O tema relativo ao reconhecimento de Estados no Direito Internacional é geralmente abordado pela doutrina como extrínseco ao próprio sistema jurídico internacional. E isto ocorre porque tal faculdade é considerada um atributo da soberania, de maneira que cada Estado é soberano para reconhecer ou não um novo Estado como seu semelhante na ordem internacional. Assim, a doutrina aborda apenas os efeitos jurídicos do reconhecimento, limitando a discussão aos elementos constitutivos do Estado – território, população e governo soberano – e às modalidades de reconhecimento – declaratório e constitutivo. Diferentemente da doutrina, a jurisprudência internacional relativa ao tema revela a transformação da prática internacional ao longo de três períodos que marcam o Direito Internacional moderno. Levando em conta os precedentes internacionais que definem cada estágio, este artigo tem por objetivo delinear os princípios de direito internacional que informam cada um dos três estágios do Direito Internacional moderno referente ao Reconhecimento de Estado.
O Primeiro Estágio: da “Paz de Vestefália” à Segunda Guerra Mundial (1648-1945)
A emergência do Direito Internacional moderno remonta à “Paz de Vestefália”, em 1648, que encerra a Guerra dos Trinta Anos e leva à conclusão de diversos tratados, reconhecendo a independência do Estado em relação à Igreja. Desde então, surge a noção de “soberania” no Direito Internacional, que confere ao Estado autoridade suprema na ordem externa, sem qualquer subordinação a entidade superior. Essa insubordinação faz com que os Estados sejam livres para reconhecer ou não novos Estados e governos como seu semelhante na ordem internacional. Assim, em decorrência do reconhecimento mútuo ao direito à soberania, o Direito Internacional acaba por não regulamentar a matéria relativa ao reconhecimento de novos Estados. A regra é a discricionariedade e mesmo arbitrariedade dos Estados que optam, livremente, por reconhecer ou não um novo Estado. Entretanto, apesar do tema extrapolar a regulamentação por parte do Direito Internacional, não é alheio à disciplina, e a jurisprudência internacional que marca esse estágio, o Caso Palmas, de 1928, decidido pela Corte Permanente de Arbitragem revela a ideologia jurídica que permaneceu até o advento das Nações Unidas.
No Caso Palmas, Estados Unidos e Holanda recorreram à Corte Permanente de Arbitragem com o objetivo de solucionar litigio referente a disputa territorial da Ilha de Palmas, também conhecida como Pulau Muangas, situada na Indonésia, atualmente. A ilha de Palmas foi cedida aos Estados Unidos em 1898 pela Espanha, no Tratado de Paris. Em 1906, os Estados Unidos descobrem que a Holanda também alegava ser soberana. Assim, os Estados Unidos, justificando que o título de descobrimento da Espanha lhe conferia a propriedade da Ilha de Palmas como parte integrante de seu território, em consenso com a Holanda, recorreu à jurisdição da Corte Permanente de Arbitragem. Em 1928, o arbitro Max Huber, renomado jurista suíço, emitiu seu julgamento, decidindo que o titulo de descobrimento, dissociado da continuidade e do exercício da soberania sobre o território descoberto, não possuía efeitos jurídicos. Assim, considerando a presença continua e o exercício da soberania holandesa na Ilha de Palmas, a Corte conferiu a soberania à Holanda.
O caso demonstra, sobretudo, que até o estabelecimento das Nações Unidas não havia qualquer noção de direito à autodeterminação dos povos. Além disso, a participação dos Estados Unidos no Caso Palmas, como parte litigante, revela a aproximação deste em relação à ideologia imperialista europeia, ao utilizar argumentos remanescentes do ciclo colonial no continente americano.
O Segundo Estágio: da criação da ONU ao fim da Guerra Fria (1945-1989)
O estabelecimento das Nações Unidas, na Conferencia de São Francisco, em 1945, com a presença de representantes de 50 governos, levou à criação de regras para uma nova ordem mundial, fundada no principio da igualdade soberana dos Estados, no principio da não intervenção e na proibição do uso da força. O objetivo primordial da ONU, de acordo com sua Carta maior, é evitar novos conflitos armados e garantir a paz e estabilidade internacional. Todavia, ao fazer referencia ao principio da autodeterminação dos povos em seu artigo 1 (2) , a base jurídica para a independência de novos Estados no período pós-guerra já se encontra incipiente. Com base nesse fundamento, o direito à autodeterminação dos povos tornou-se, nas décadas que se seguiram, o principal argumento jurídico das guerras de descolonização que resultaram na independência de novos Estados.
Apesar da Carta da ONU não delimitar o conteúdo e o alcance do direito à autodeterminação dos povos, o tema acabou por ser influenciado pelo contexto da guerra fria. Com o objetivo de representar um contraponto a hegemonia dos blocos comunista e capitalista, emerge o bloco dos membros não alinhados, que conta com participação em peso dos novos Estados, surgidos após a criação da ONU. A discussão do tema, neste contexto, alcançou relevância jurídica na Opinião Consultiva relativa ao Sahara Ocidental, de 1975. Nesta ocasião, a Corte Internacional de Justiça alterou de forma categórica o entendimento fixado no caso Palmas, de 1928. Trata-se de jurisdição consultiva da Corte que em atendimento à resolução 3292 da Assembleia Geral da ONU, de 1974, a Corte Internacional de Justiça é chamada para responder a duas perguntas: a) Seria o “Sahara Ocidental” (Rio de Oro ou Sakiet El Hamra) terra nullios, ou seja, um território que não pertencia a ninguém, ao tempo da colonização por parte da Espanha? b) Quais eram os laços jurídicos entre o território e o Reino do Marrocos e a Entidade da Mauritânia?
A Corte, em seu parecer, levou em conta as conclusões da Missão da ONU que visitou a área e investigou a situação política, constatando que a população em sua grande maioria era a favor da independência tanto da Espanha quanto do Marrocos/Mauritânia. Em relação a segunda pergunta, a maioria dos juízes da Corte concluiu que havia laços jurídicos entre o território e o Marrocos, bem como entre o território e a entidade da Mauritânia. Contudo, a Corte concluiu que tais laços não resultavam em um elo de soberania ou direito de propriedade sobre o território. No entendimento da Corte os laços jurídicos não se aplicam quando em questão a “autodeterminação por meio do livre e genuíno exercício da vontade das pessoas do território”.
O Terceiro Estágio: do fim da Guerra Fria a atualidade (1989-2011)
Com o fim da guerra fria, e o esfacelamento do bloco soviético, surge uma nova ordem mundial em que se torna possível a cooperação internacional entre os membros do Conselho de Segurança, reativando o sistema de segurança coletiva das Nações Unidas. Com o desmantelamento da União Soviética, há o surgimento de vários Estados, antes atrelados ao bloco comunista, levando ao desenvolvimento de uma nova prática internacional relativa ao reconhecimento de Estados e governos. Durantes os anos 90, ocorreu uma crescente pressão por parte dos países europeus e em menor escala, por parte dos Estados Unidos, em relação à observância de direitos humanos.
No âmbito europeu, a recém-criada União Europeia, decorrente do Tratado de Maastricht, de 1992, passa a adotar uma pratica regional no sentido de estabelecer como pré-requisito para o reconhecimento de novos Estados, a adesão ao sistema europeu de direitos humanos. Tal prática esteve presente no reconhecimento de Estados do leste europeu, inclusive como parte do processo de adesão a União Europeia. Mas foram os conflitos armados que levaram a uma maior evolução do tema no âmbito global. A guerra da Iugoslávia levou ao desmembramento do seu território e surgimento de novos Estados, contando com a intervenção militar da coalização liderada pelos Estados Unidos e o envolvimento posterior da ONU . A independência do Kosovo, entretanto, como Estado independente da Sérvia, acabou por ser adiada devido a divergências entre a Rússia, que apoiava a Sérvia e os Estados Unidos e Estados europeus, que reconheceram a Declaração de Independência do Kosovo de 2008. Contrariada, a Sérvia recorreu a Assembleia Geral da ONU para requerer um parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça acerca da legalidade da Declaração de Independência do Kosovo, de 2008. Vale ressaltar que esse é o primeiro caso em que a matéria relativa ao reconhecimento de novos Estados é enfrentada diretamente por um órgão judiciário internacional, e esse precedente constitui fonte subsidiária do Direito Internacional, de acordo com o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.
A resolução 63/3, de outubro de 2008, iniciada pela Sérvia contou com o apoio de 120 Estados membros da ONU, inclusive com voto a favor do Brasil. Com base no artigo 96 da Carta da ONU e artigo 65 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, a resolução solicita ao órgão judiciário que responda à seguinte pergunta: A declaração unilateral de independência por meio das instituições provisórias de autogoverno do Kosovo está em conformidade com o Direito Internacional? Tal caso contou com ampla repercussão geral e durante os procedimentos, 35 Estados apresentaram posições oficiais escritas, inclusive o Brasil. Em dezembro de 2009, o Estado brasileiro se apresentou contra a legalidade da Declaração de Independência do Kosovo, alegando que esta seria contraria a autoridade do Conselho de Segurança e às regras aprovadas na resolução 1244 (1999) que estipula uma solução acordada entre o Kosovo e a Sérvia. Ademais, diversos Estados se manifestaram contra a legalidade da Declaração de Independência do Kosovo por considerar que se tratava de um precedente que poderia incitar movimentos separatistas em diversas regiões. Em julho de 2010, a Corte emitiu o parecer que considera que não há qualquer norma no Direito Internacional que proíba declarações de independência e que o tema é eminentemente político. Segundo o entendimento da Corte, a resolução 1244 não obrigava o Conselho Provisório de autogoverno do Kosovo e como não há nenhuma norma no Direito Internacional que proíbe a Declaração de Independência, cabe a cada Estado, individualmente optar ou não pelo reconhecimento.
Conclusões
A jurisprudência internacional relativa ao reconhecimento de Estados indica a transformação do Direito Internacional, que, ainda que sem regulamentar o tema diretamente, é influenciada pelo discurso universalista dos direitos humanos. O advento do direito a autodeterminação dos povos no contexto da Carta das Nações Unidas foi crucial para impulsionar a descolonização e desestruturar a ordem internacional eurocêntrica. O reconhecimento de novos Estados no contexto pós-guerra fria levou ainda mais à descentralização da ordem bipolar, que passa a atuar no âmbito da Assembleia Geral da ONU. E é nesse contexto que é delineada a fase atual relativa ao reconhecimento de Estados. A opinião consultiva referente à legalidade da Declaração de Independência do Kosovo, assim, pode ser considerado o precedente que define o atual estágio evolutivo do Direito Internacional referente ao reconhecimento de Estados.
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Jurisprudência da Corte Internacional de Justiça
Caso Ilha de Palmas, 1928, Corte Permanente de Arbitragem, Perm. Ct. Arb. (1928)
Caso Oeste Sahara, 1975, Corte Internacional de Justiça, ICJ Reports (1975)
Caso Kosovo, 2010, Corte Internacional de Justiça, ICJ Reports (2010)
Advogada e Professora da FPL. Mestre em Direito Internacional - PUC/MG e Universidade de Tel Aviv
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: WAISBERG, Tatiana. A Jurisprudência Internacional e o tema do Reconhecimento de Estado no Direito Internacional: três estágios evolutivos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 set 2011, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/25504/a-jurisprudencia-internacional-e-o-tema-do-reconhecimento-de-estado-no-direito-internacional-tres-estagios-evolutivos. Acesso em: 25 nov 2024.
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