Resumo: O princípio constitucional da ampla defesa reveste-se de força obrigatória no âmbito dos processos judiciais e administrativos, sendo que assegura ao réu a possibilidade de trazer para o processo todos os elementos permitidos na lei que possam esclarecer a verdade. Com base nesse princípio, nos processos administrativos de trânsito, portanto, é conferida ao autuado a possibilidade de produção de prova testemunhal.
Sumário: 1. Introdução; 2. Produção de prova testemunhal nos processos administrativos de trânsito; 3. Conclusão.
1 - Introdução:
A cada dia milhares de multas de trânsito são aplicadas em nosso país pelos mais diversos órgãos de trânsito, muitas delas com a inobservância dos requisitos formais e materiais previstos no Código de Trânsito Brasileiro.
Ocorrendo, em tese, uma infração de trânsito, cabe ao agente administrativo lavrar o competente auto de infração, iniciando-se aqui o processo administrativo de trânsito. Posteriormente, deverá a autoridade de trânsito notificar da autuação o proprietário do veículo para que este, caso queira, apresente sua defesa administrativa, obedecendo-se aos princípios da ampla defesa e contraditório.
Contudo, não restam muitas alternativas ao cidadão autuado para contestar o ato administrativo do agente de trânsito, que, como é cediço, goza de presunção de legitimidade. Em que pese ser assegurada constitucionalmente ao autuado a ampla defesa, com todos os recursos a ela inerentes, sua tarefa é árdua, pois dificilmente conseguirá produzir prova documental para contrapor-se ao ato administrativo.
Surge então, muitas vezes como única alternativa do cidadão, a possibilidade de produção de prova testemunhal para contestar o desiderato estatal.
Nesse sentido, o presente artigo buscará demonstrar a faculdade legal conferida ao autuado por infração de trânsito de arrolar testemunhas na sua defesa administrativa, sendo inconstitucional qualquer decisão tomada no âmbito de processo administrativo de trânsito em sentido contrário.
2 – Produção de prova testemunhal nos processos administrativos de trânsito:
A nossa Carta Magna prevê expressamente no inciso LV do seu artigo 5º, a obrigatoriedade de observância do princípio da ampla defesa no âmbito dos processos judiciais e administrativos, com todos os recursos e meios a ela inerentes. Por ser uma garantia individual, o dispositivo deve ser interpretado sempre em favor de sua extensão, ou seja, deve ser interpretado de forma extensiva ao invés de restritiva. Segue a transcrição do dispositivo para uma melhor análise:
Art. 5º - (...)
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (grifo nosso)
Por ampla defesa entende-se a possibilidade que o réu/acusado em um determinado processo judicial ou administrativo, tem de utilizar-se de todas as formas de defesa admitidas em direito, inclusive a prova testemunhal. Com fundamento nesse princípio, buscou a Constituição abolir a forma inquisitória vigente até então, para passar para uma fase acusatória, onde é dada ampla possibilidade de defesa ao acusado.
Conforme mencionado em tópico anterior, muitas vezes é impossível ao autuado dispor de prova documental para contrapor-se ao auto de infração, ficando sua defesa deveras prejudicada, já que resumida apenas ao campo da argumentação. Sendo assim, há um desequilíbrio desproporcional de forças, o que acaba por gerar questionamentos acerca da real finalidade do órgão de trânsito, se educativa ou arrecadatória.
Pois bem, com fulcro no dispositivo constitucional supracitado, os processos administrativos de trânsito devem assegurar a plenitude de defesa ao autuado por infração de trânsito, inclusive a produção de prova testemunhal, não sendo admissível o indeferimento de qualquer prova lícita requerida na defesa da autuação.
Com base nesse princípio da ampla defesa, pode o autuado requerer a produção de prova testemunhal na sua contestação administrativa, indicando na mesma peça as testemunhas que deseja as oitivas, com seus dados essenciais.
Ocorre que, costumeiramente quando o cidadão autuado requer a oitiva de testemunha no processo administrativo de trânsito, a autoridade administrativa competente indefere o pedido sem qualquer motivação, aliás, na maioria das vezes sequer manifesta-se a respeito do assunto, preferindo a omissão ante a falta de argumentos para o indeferimento, o que é inadmissível e merece controle tanto interno, realizado pela própria Administração, quanto externo, a cargo do Poder Judiciário.
Ao receber a defesa do autuado constando requerimento de produção de prova testemunhal, não cabe à autoridade de trânsito julgadora indeferir o pleito, sob qualquer justificativa, pois assim procedendo estará agindo de encontro à lei, ou melhor, de encontro a mandamento constitucional.
Ocorrendo o indeferimento da prova testemunhal, tem-se um ato administrativo claramente inconstitucional, ferindo uma garantia individual conferida pela nossa Constituição Federal, além de ilegal, por falta de motivação, o que, consequentemente, acarretará em nulidade absoluta do processo administrativo. Presente tal nulidade, cabe ao cidadão autuado socorrer-se no Judiciário para ter seu direito resguardado.
Vejamos fragmentos de um julgado interessante acerca do tema:
MANDADO DE SEGURANÇA – APLICAÇÃO DE MULTA – INOBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA.
Ilegal o ato de aplicação de multa sem a observância do princípio constitucional de ampla defesa.
Somente após analisados os argumentos da defesa, bem como a fundamentação do auto de infração, é que a autoridade de trânsito julgará a consistência do auto e poderá aplicar a penalidade.
Negaram provimento, confirmada a sentença em reexame necessário. (...)
A aplicação da multa, na hipótese, foi ilegal, pois não assegurado previamente ao impetrante o exercício do direito de defesa e do contraditório (artigo 5º, LV, da Constituição Federal). (...)
Assim, o agente de trânsito não poderia aplicar a penalidade, mas tão-somente lavrar o auto de infração. O parágrafo único, inciso II do artigo 281 do CTB deve ser interpretado no sentido de que, quando fala em notificação da autuação, quer dizer notificação do autuado para apresentar defesa, como forma de cumprir a garantia constitucional mencionada. Somente após analisados os argumentos de defesa, bem como a fundamentação do auto de infração, é que a autoridade de trânsito, e não o agente de trânsito, julgará a consistência do auto de infração, e, agora sim, poderá aplicar a penalidade. Uma vez aplicada a penalidade, cumpre-se o previsto no artigo 282 do CTB, segundo o qual: ‘Aplicada a penalidade, será expedida notificação ao proprietário do veículo ou ao infrator, por remessa postal ou por qualquer outro meio tecnológico hábil, que assegure a ciência da imposição da penalidade. (Apelação Cível nº 70.000.192.690 - RS, Relatora: Desembargadora Liselena Schifino Robles Ribeiro, 21ª Câmara Cível) (grifos nossos)
Como visto no julgado acima transcrito, o Judiciário tem reconhecido tal teoria da nulidade por ofensa ao princípio da ampla defesa e tem reparado os erros cometidos pelas autoridades de trânsito.
3 - Conclusão:
O princípio da ampla defesa, nos processos judiciais e administrativos, com todos os meios e recursos a ela inerentes, foi alçado ao status constitucional pelo Constituinte Originário de 1988. Além disso, ostenta a condição de garantia individual, cláusula pétrea, portanto, não pode sofrer restrições ao seu exercício.
Nos processos administrativos de trânsito, contudo, repetidamente as autoridades competentes, em total desrespeito à ampla defesa, indeferem a produção de prova testemunhal requerida pelo cidadão autuado, o que acarreta a nulidade absoluta de todo o processo, devendo o cidadão recorrer ao Judiciário para ter seu direito reconhecido.
O Judiciário, na esteira do princípio da ampla defesa, tem seguidamente declarado nulos os processos administrativos de trânsito que privam o cidadão autuado da faculdade de requerer a produção de prova testemunhal.
Cabe então, à própria Administração, através de seus órgãos de trânsito, exercer a autotutela e, a partir daí, corrigir seu procedimento arbitrário de indeferimento de prova testemunhal nos processos decorrentes de multas de trânsito, garantindo-se o pleno exercício da ampla defesa e diminuindo-se a judicialização desnecessária.
4 – Referências:
ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Direito Constitucional Descomplicado. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Método, 2010.
_____. Direito Administrativo Descomplicado. 18ª edição. São Paulo: Editora Método, 2010.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2006.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2009.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2007.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEITE, Arypson Silva. A possibilidade jurídica da produção de prova testemunhal nos processos administrativos de trânsito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2012, 08:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/29756/a-possibilidade-juridica-da-producao-de-prova-testemunhal-nos-processos-administrativos-de-transito. Acesso em: 24 nov 2024.
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