1 INTRODUÇÃO
Reza o art. 42 da Lei 11343/2006[1] que “o juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente”.
Nesta trilha, o magistrado, após se convencer pela condenação do acusado pelo crime de tráfico internacional de drogas, passará a realizar a dosimetria da pena.
Em um primeiro momento, quando da estipulação da pena-base, o magistrado deverá considerar, com preponderância sobre o art. 59 do Código Penal, alguns requisitoscontidos no mencionado artigo de lei, tais como a natureza e a quantidade da droga apreendida[2].
Ocorre que as circunstâncias que envolvem a mercancia ilícita de drogas, em especial a sua fase de transporte para o destino eleito, não podem passar despercebidas pelo juízo valorativo do Estado-Juiz.
Com este espírito, o presente artigo abordará a peculiar situação enfrentada por aqueles que se dispõe a transportar drogas para organizações criminosas (notadamente pessoas humildes e carentes), bem como os efeitos desta conduta quando da fixação da pena-base, principalmente quando o agente desconhece a quantidade e qualidade do produto traficado.
2 DESENVOLVIMENTO
É de conhecimento geral que as organizações criminosas buscam cooptar pessoas em notória situação de desespero e aflição para serem potenciais transportadores de seus produtos ilícitos. Com isso, afastam quaisquer riscos de seus principais integrantes serem presos.
Notadamente, os responsáveis pelo tráfico não são apenados e nem sancionados. Atribui-se, ao cabo, a responsabilidade criminal apenas às “mulas”.
Não há no horizonte perspectiva para o combate imediato daqueles que alimentam a cadeia do tráfico. Por enquanto, o aparato estatal despeja todo o ódio da sociedade contra aqueles que se aventuram, em troca de um montante pecuniário irrisório, mas capaz de suprir suas necessidades imediatas, a transportar pequenas quantias de droga mundo afora.
Pune-se e se continuará punindo um amontoado de desesperados, muitas deles oriundos de países periféricos e subdesenvolvidos.
Logicamente não se está aqui a apregoar a descriminalização das condutas praticadas por aqueles que se dispõe, seja qual for o motivo, a transportar, em nome dos comandantes do tráfico, substâncias entorpecentes. Muito pelo contrário.
Uma vez constatada a culpabilidade do acusado, respeitado o devido processo legal formal e substancial, nada mais coerente seja sancionado o responsável. O que não se admite é atuação estatal excessiva em face de um sujeito que representa o menor dos problemas quando se avaliam, em uma ótica global, os malefícios que o cartel da droga produz.
Evidentemente, e aqui se aplaude o legislador, a situação dos transportadores, conhecidos vulgarmente por “mulas”, já foi suavizada com a edição da Lei 11343/2006, que, em seu art. 33, § 4º, previu uma hipótese de diminuição de pena, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Ocorre que a mesma sistemática humanitária, infelizmente, não foi adotada pela totalidade dos nossos julgadores.
Ainda hoje se realiza a dosimetria da pena utilizando-se de rigor desnecessário. A “mula”, quando deveria ser o chefe do tráfico, é utilizada como o exemplo a não ser seguido pelos demais cidadãos (prevenção geral negativa).
Como se tal gesto estatal fosse capaz de impedir que milhares de desesperados, muitas vezes endividados e sem opção imediata de resolver suas pendências, deixem de ser encantados pelo poderio financeiro de quem realmente comanda o poderoso comércio das drogas. O poder do dinheiro sobre aqueles que não têm acesso a bens de consumo inerente ao bem estar familiar é superior a qualquer poder intimidatório de que faça uso o Estado.
Diante desta conjuntura social que abarca os recrutáveis pelo comércio ilegal de entorpecentes, não há valia em se calcular a pena (dosimetria) do transportador no mesmo molde da que seria feita para os comandantes do tráfico. Deve-se, sim, condenar quando restar apurada a responsabilidade penal, porém a fixação da pena não pode sobrepujar o mínimo legal, sob pena de se deixar de reconhecer a própria situação de vulnerabilidade enfrentada por aqueles que aceitam o risco de transportar a droga para quadrilhas organizadas.
Vulnerabilidade, esta, que está escancarada no medo de delatar quem os contratou para a empreitada criminosa, visto que o poder de intimidação criado pelas organizações criminosas alcança também os familiares do transportador. Vulnerabilidade que se faz presente, ainda, na promessa de recompensa financeira, que só se efetivará com o cumprimento integral da tarefa repassada. O risco por eventuais falhas não é compartilhada com terceiras pessoas. É assumida integralmente pelo transportador, que poderá, inclusive, ter de se justificar com que os contratou, pagando o prejuízo causado, muitas vezes, com sua vida.
A saída para uma justa fixação da pena, como já dito acima, encontra-se na necessidade imediata que o Estado Julgador reconheça a situação de vulnerabilidade daquelas pessoas que foram utilizadas pelos grandes cartéis para transportar suas drogas para outras localidades.
Dentro desta ótica, o magistrado não poderia nem deveria invocar a aplicação do art. 42 da Lei 11343/2006 para elevar à pena-base em razão da “natureza e a quantidade da substância ou do produto”.
Isso porque, e esta parece ser a regra geral, o transportador da droga não detém conhecimento do montante e nem da natureza do produto que lhe é repassado.
A droga, geralmente, é acondicionada em fundos falsos ou posta no interior de objetos inseridos nas bagagens que são entregues por integrantes das organizações criminosas aos transportadores. Estes, por sua vez, as recebem lacradas ou, então, desconhecem o teor e a quantidade do produto que foi armazenado em seu interior.
Assim, eventual elevação da pena em razão do montante de drogas encontrado com o transportador não se justificaria. O magistrado, na hipótese de elevar a pena em razão desta circunstância, provavelmente presumirá que o transportador detinha ciência do quantitativo de entorpecente que trazia consigo.
Tal presunção, é bom esclarecer, geralmente não é acompanhada de nenhum suporte probatório. Primeiro, porque o transportador, em juízo, geralmente declara desconhecer a quantidade e a natureza da substância transportada; segundo, não há a determinação de realização de perícia técnica nas substâncias entorpecentes apreendidas, capaz, por si só, de apontar se o transportador havia ou não as manipulado, o que poderia gerar uma certeza quase absoluta sobre o seu conhecimento a respeito do quantitativo e natureza do objeto transportado.
Injustificável, pois, a elevação da pena com base em presunções ou suposições.
A exasperação da pena, a princípio, não deveria recair sobre quem recebeu a promessa de ganho financeiro para transportar substâncias entorpecentes, mas sim sobre aquele que, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade do proposto, oferece quantia em dinheiro capaz de desestabilizar qualquer pessoa que esteja enfrentando dificuldades degradantes em seu lar familiar.
O rigor da lei, em seus limites, deveria recair, tão somente, sobre aqueles que manipulam pessoas fragilizadas para se esconderem das conseqüências oriundas de suas atividades nefastas.
É certo, então, que a condição especial de vulnerabilidade a que está exposto o mero transportador de entorpecentes permite ao magistrado interpretar o art. 42 da Lei 11343/2006 sem amarras ou freios, amparando-se apenas nos vetores máximos que irradiam da Carta Magna, dentre eles o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesta lógica, e lembrando que o Legislador, como já dito linhas acima, já reconhecera a situação de vulnerabilidade do transportador da droga, através da edição do § 4º do art. 33 da lei de drogas, cabe ao magistrado tecer raciocínio semelhante e aplicar a mesma lógica, de modo que fatores como quantidade e natureza da droga só sejam considerados quando da aplicação da pena de integrantes de organizações e cartéis criminosos.
3 CONCLUSÃO
O presente artigo focou na situação dos chamados traficantes ocasionais, mais precisamente das “mulas do tráfico”, que são aliciadas por integrantes de organizações criminosas para realizar o transporte da droga.
Em muitos dos casos, estas pessoas, ao serem detidas e processadas, jamais haviam tido qualquer contato com o universo criminoso das drogas. Os motivos que as levaram a aceitar a referida empreitada criminosa sempre estão relacionados com a falta de recurso financeiro e a ausência de assistência do Estado para suprir as carências mínimas de seus familiares (saúde, educação, segurança, moradia, saneamento básico, lazer, vestuário e etc.).
Vale frisar que a metodologia adotada pelas organizações criminosas para facilitar a difusão da droga não conta com a participação da “mula do tráfico”. Esta, geralmente, só executa a tarefa que lhe foi repassada, uma vez que a droga que lhe é repassada já se encontra preparada e pronta para o transporte.
Neste intuito, ao apresentarmos as peculiares condições em que se dão o transporte da droga, aliada a especial situação de vulnerabilidade a que estão expostas estas pessoas, nos posicionamos pela aplicação mitigada do art. 42 da Lei 11343/2006.
4 REFERÊNCIAS
Site Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.br
BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; OLIVEIRA, Willian Terra. Lei de Drogas Comentadas. 3º ed. rev. E atual. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007.
Notas
[1]Extraído do sítio:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11343.htm. Acesso em: 12/02/2013.
[2]BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; OLIVEIRA, Willian Terra. Lei de Drogas Comentadas. 3º ed. rev. E atual. São Paulo, Revista dos Tribunais: 2008,p. 232
Defensor Público Federal, com pós-graduação em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Pablo Luiz. Da mitigação do art. 42 da lei 11343/2006 em face da realidade sombria enfrentada pelas "mulas" do tráfico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 fev 2013, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/33872/da-mitigacao-do-art-42-da-lei-11343-2006-em-face-da-realidade-sombria-enfrentada-pelas-quot-mulas-quot-do-trafico. Acesso em: 21 nov 2024.
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