1. Introdução
Há intensa discussão acerca da necessidade do processo penal ante a posição de supremacia de poder que o Estado detém em relação aos particulares. Como é sabido, o Estado detém o ius puniendi e, para sua garantia, conta com um conjunto de órgãos – autoridades policiais, Ministério Público, Juízes de Primeiro e Segundo Grau e Supremo Tribunal Federal – para o exercício de tal soberania.
Nesse sentido, é comum o questionamento acerca do motivo pelo qual o Estado, detentor de tamanho poder, encontra-se vinculado aos procedimentos estabelecidos pelo Código de Processo Penal e não apenas procede à aplicação da pena ante a configuração de conduta considerada atípica. Para compreender tal questão, é necessário remontar-se à origem do direito penal.
A Idade Média foi marcada por uma complexa fusão do direito processual penal em relação ao direito penal. Não havia, portanto, quaisquer diferenças em relação à matéria e aos procedimentos. Tal diferenciação decorre de lenta construção histórica, que deve ser analisada e compreendida face ao embate entre duas polaridades, quais sejam o indivíduo e o Estado.
O Estado, que antes apresentava-se de maneira absoluta e autoritária, sofreu limitações em relação ao exercício de seu poder. Esse delineamento da atividade estatal no Brasil foi retomado com a vigência da Constituição Federal de 1988, uma vez que o povo tornou-se titular do poder soberano, seja através de seus representantes ou diretamente.
Importa ressaltar que a drástica mudança de entendimento ocorreu em favor do indivíduo, que antes consistia tão somente em polo desamparado quando da luta em relação ao Estado. No presente trabalho será abordado apenas e tão somente o ponto relativo à limitação da atuação estatal.
É sabido por todos que a configuração atual das garantias fundamentais e da limitação do poder estatal é marcada por um longo período de construção histórica, que, ainda hoje, encontra-se em desenvolvimento. Para tanto, com base em tema atual, serão abordados pontos pertinentes em a respeito do embate entre indivíduo e Estado com o fito de auxiliar no desenvolvimento de pensamento crítico acerca do assunto.
Por todo o exposto, o presente artigo fará uma breve análise acerca da importância do direito processual penal para a sociedade, da constante busca da verdade dos fatos, da diferenciação entre o sistema processual acusatório e o sistema processual inquisitório, bem como explicitará o sistema vigente atualmente no Brasil. Para tanto, será utilizado o filme O Processo de Joana D’Arc[1] como instrumento de estudo para o esclarecimento da prática dos sistemas processuais à época.
2. Da racionalidade existente no embate indivíduo x Estado
Luigi Ferrajoli[2] é um autor de extrema relevância no que diz respeito ao sistema penal sob a ótica política filosófica e jurídica. Em sua obra Direito e Razão, o autor defende que o modelo processual penal ideal seria um sistema normativo baseado em determinadas garantias que lhe trouxessem racionalidade. Subtende-se, portanto, que a doutrina denominada garantismo abrange não apenas o processo penal, mas também o direito e a execução penal.
Com relação ao processo penal, há que se ressaltar a existência do utilitarismo, também denominado eficientismo, que se contrapõe aos ideais característicos do garantismo. A título de esclarecimento, na polarização existente entre indivíduo e Estado, a principal crítica enfrentada pelo enfoque garantista é a exacerbada proteção da figura do indivíduo em detrimento do Estado e, como consequência, a dificuldade enfrentada pelo Estado de exercer seu poder-dever de punir as condutas que prejudicam o convívio social.
Tal dificuldade fica evidente quando da análise dos meios de prova, especialmente no tocante à quebra de sigilo de correspondência e interceptação telefônica, uma vez que os procedimentos adotados são extremamente invasivos e discute-se acerca das limitações desse poder.
Entretanto, a consequência da proibição de procedimentos invasivos seria o prejuízo causado à persecução penal quanto à investigação desses crimes. Trata-se, portanto, de complexa questão a ser analisada, uma vez que a abdicação das garantias do indivíduo frente ao Estado pode levar à extremidade da tortura e das detenções arbitrárias, atitudes que o movimento do garantismo busca dirimir.
É indubitável que o número de torturas e de detenções arbitrárias diminuiu expressivamente ao longo do tempo. No entanto, a preocupação atual é a posição do indivíduo frente à total ausência de privacidade. O indivíduo é uma figura marcada pelo nível máximo de controle, o que representa, em verdade, uma controvérsia em relação ao papel do Estado de garantidor dos direitos fundamentais e da ordem social.
Ainda sobre o tema, importa ressaltar que, embora não haja clara relação de poder hierárquico estabelecido entre Estado e indivíduo, há uma rede de poder que, em verdade, é exercida por todos os Estados. Prova disto é a recente descoberta de que os Estados Unidos da América possuem programas capazes de monitorar conversas telefônicas dos cidadãos brasileiros.
Posto isto, ante as questões enfrentadas pela sociedade, a atuação do direito penal e do processo penal ganham destaque, uma vez que os operadores do direito devem fundamentar-se em seus instrumentos e ferramentas objetivando encontrar respostas. É com o direito penal que o Estado obtém seu poder punitivo para instituir infrações penais e as sanções correspondentes[3].
Defende-se que o Estado deve agir com parcimônia em relação aos seus interesses e aos interesses da coletividade. Nesse sentido, cumpre destacar que o povo é o principal elemento para a condição de existência do Estado, de modo que, visando sua proteção, o Estado deve atuar de modo a respeitar as garantias fundamentais dos indivíduos.
3. Da constante busca da verdade processual
Com o objetivo de atender às demandas da sociedade, e levando-se em consideração o devido respeito à condição de dignidade do homem, importa relatar a importância do processo penal como instrumento para a garantia da justiça. O processo penal, como é sabido, tem como característica fundamental a constante busca da verdade dos fatos.
Ocorre que a verdade processual tem como característica principal ser limitada, ante a impossibilidade de se repetir a realidade. Assim, a história no processo será sempre reescrita e recontada em momento posterior ao ocorrido e, portanto, jamais configurará uma reprodução exata dos fatos ocorridos.
Tais alegações ficam evidentes quando da análise do filme O Processo de Joana D’Arc, uma longa-metragem sob direção de Robert Bresson, lançado em 1963, que demonstra a prisão, a execução e o julgamento da protagonista. Trata-se de uma obra-prima que demonstra uma das facetas do embate entre as figuras indivíduo e Estado. Ao longo do filme, resta claro que o processo é nada além de uma farsa, que conta com defensores e conselheiros apenas no intuito de cumprir formalidades.
Apesar das insistentes tentativas de convencimento para que confessasse o suposto cometimento de um delito durante a fase inquisitorial, e das inúmeras vezes em que verificava-se a deturpação acerca dos fatos contados por ela, Joana D’Arc a todo tempo manteve-se em posição de respeito à sua fé, ainda que tenha sofrido diversas sanções em decorrência disto.
Sobre o tema do inquérito, Michel Foucault, em sua obra A Verdade e as Formas Jurídicas[4], ao tratar a respeito de seu surgimento e desenvolvimento, defende que a finalidade máxima do inquérito é a busca da verdade. Foucault alega que o inquérito, em verdade, relaciona-se à uma forma de poder, o que resta evidenciado pela análise do filme.
No filme supracitado, evidencia-se a noção de que os fatos narrados por Joana D’Arc são relatados pela autoridade de modo distinto ao que foi falado. Isto ocorre que a busca da verdade é, efetivamente, a busca de um modo de contar os fatos relacionados ao poder, e, no caso em questão, a autoridade-juiz não demonstrava interesse em absolver a protagonista.
Para Foucault, o importante não é a questão procedimental, mas sim a racionalidade do poder. Essa racionalidade, assim como no sistema de justiça, também existe em diversas outras áreas de conhecimento científico, o que nos leva a crer que tal racionalidade preside toda a Idade Moderna e vigora até os dias atuais.
4. Do sistema processual penal acusatório
Conforme brevemente mencionado, adota-se para o estudo de direito processual penal dois sistemas processuais tradicionais: o sistema processual acusatório e o sistema processual inquisitório. Faz-se mister, pois, ter uma compreensão básica acerca desses dois modelos para que seja possível compreender as características do modelo vigente atualmente no Brasil.
Da análise do filme O Processo de Joana D`Arc, o senso comum leva a crer que o sistema inquisitório foi o primeiro sistema processual existente. Entretanto, tal afirmação é errônea e inverídica pois, apesar de este sistema ser o mais simples, no qual não existe defesa, do ponto de vista da história, o primeiro a surgir foi o sistema acusatório.
O sistema acusatório tem suas origens na Antiguidade, sendo o exemplo mais organizado desse modelo o que tínhamos no Direito Romano. No processo romano, mais especificamente quanto ao enfoque penal, o juiz somente entrava em cena se houvesse uma acusação. Essa acusação era denominada de accusatio, e era feita pela vítima ou ofendido, ou por seus parentes, em caso de homicídio, por exemplo. É importante ressaltar que nesse período não havia um órgão estatal, como existe hoje, encarregado de fazer a acusação. Tratava-se, portanto, de uma acusação privada.
O procedimento iniciava-se com a acusação, que seguia o rito dos procedimentos orais. Em seguida, tem-se a fase denominada inquisitio, que consistia na fase em que o juiz fazia a investigação. Para realizar tal investigação, era necessário que a accusatio fosse feita perante o juízo. Logo após, o juiz deferia uma lex, que era tal como uma delegação para que o acusador fizesse a inquisitio, isto é, a investigação. Em suma, tem-se a acusação e a investigação privada, com a ressalva de que a investigação conta com a autorização por parte da autoridade do juiz.
Ressalta-se que, nesta época, havia uma disponibilidade em relação ao conteúdo do processo penal, diferentemente do que tem-se atualmente. A implicação prática disso consiste na ideia de que se o réu confessasse a prática do crime, a confissão era aceita de todo modo, pois era considerado o mais essencial e fundamental meio de prova.
Ainda sobre o processo romano, importa destacar que o processo penal naquela época era claramente público, isto é, não havia sigilo algum. É sabido que isto tem implicações extremamente negativas no que diz respeito à questão da imagem do indivíduo, pois uma vez pública, sua imagem estará maculada incessantemente.
Outro ponto fraco em relação à este sistema é a impunidade. A legislação prevê que todos são iguais perante a lei, entretanto, sabe-se que tal afirmação apresenta-se de modo descabido quando da análise da sociedade brasileira, posto que existem razoáveis distinções materiais entre os indivíduos.
O povo brasileiro como um todo, desde tempos antigos, abrange pessoas pertencentes à diferentes posições sociais. Nessa esteira, é falho o sistema quando desampara o polo fraco da relação processual. Ocorria, portanto, que inúmeros fatos delituosos não se tornavam objeto de acusações devido ao medo e anseio por parte da vítima ante seu evidente desprestígio social.
Ainda nesse sentido, era extremamente comum a ocorrência de denunciações caluniosas no sistema inquisitório. Apesar de os contextos serem distintos, as paixões dos seres humanos movem o mundo com o sentimento de amor, inveja, ciúmes, e principalmente justiça, tal como ocorria no passado. Assim, o intuito de difamar o suposto inimigo percorre por toda a humanidade.
Ante todas essas dificuldades, o cenário romano encontrou a necessidade de se criar a figura dos quaesitores, que eram os responsáveis por averiguar as infrações que eram noticiadas. Tal figura é a origem do órgão estatal hoje denominado de Ministério Público, que surgiu como uma forma de acusação ligada à esfera pública. Cumpre esclarecer que a figura dos quaesitores não afastou a existência da acusação privada, e por longo tempo as duas figuras coexistiram em relação de complementariedade.
Em síntese, o modelo acusatório é um modelo inicial na história do direito e existe uma diferenciação entre a função de acusar e a função de julgar. Tem-se que o acusador privado, e o acusador oficial, e a investigação é gerida pelo acusador, mas o julgamento é feito por outro indivíduo, que, no caso, eram os magistrados dos processos romanos.
5. Do sistema processual penal inquisitório
A partir do século XVIII e início do século XIX, frente à Revolução Francesa e o Iluminismo, houve um questionamento a respeito do modelo do sistema inquisitório, no qual o direito penal e o direito processual penal eram tratados de modo similar. Surge, desta forma, o sistema processual acusatório, objetivando corrigir as imperfeições e os pontos fracos presentes no sistema inquisitório.
O modelo inquisitório tem como característica fundamental ser sigiloso. Nesse sentido, há que se frisar que não há, neste modelo, divulgação de informações por parte da autoridade policial, ante o resguardo e cautela para com a investigação. Entretanto, deve-se ter sempre em mente que tal atuação deve ser parcimoniosa, posto que uma exacerbação no plano do segredo resulta em um abuso, no qual comportamentos considerados antiéticos e imorais serão constantemente encobertos pelo sigilo.
Outra característica relevante é que, ante o pensamento de que a confissão era prova primordial, conforme bem demonstrado no filme baseado nos autos do processo de Joana D’Arc, as pessoas faziam uso de todos os artifícios disponíveis para alcança-la. Nesse contexto, o uso da tortura e de constantes ameaças ganham grande enfoque e problematização.
Havia ainda, neste modelo, a concentração dos poderes na figura dos juízes. E, do ponto de vista de alguns doutrinadores, reside aqui a principal diferença entre os dois modelos tradicionais. Conforme já dito alhures, tem-se no sistema acusatório um órgão que acusa e outro que julga. Já no sistema inquisitório, a mesma pessoa que acusa, também é responsável por investigar, fazer a defesa e julgar.
O filme supracitado demonstra claramente os papéis de acusar, julgar e fazer a defesa concentrado em apenas uma pessoa. Mais especificamente, o bispo e seus secretários ocupavam formalmente tais papéis, o que demonstrava claramente como se dava a prática neste sistema, na qual a defesa do réu era tão somente uma formalidade. A própria protagonista do filme alegou em fala que a única defesa que ela tinha era ela mesma.
Portanto, o modelo inquisitório é marcado pela concentração dos papéis de acusar, defender e julgar em uma mesma pessoa. Desta forma, o princípio da ampla defesa e do contraditório consistem apenas em formalidades, posto que materialmente são extremamente flexibilizados.
6. Conclusão
Por todo o exposto, resta evidente que o abuso de poder em sua acepção penal é, hoje, tema frequente em discursos jurídicos. Diante disso, a preocupação acerca da função do direito processual penal e do direito penal encontra grande espaço, bem como as discussões acerca do embate existente entre a indivíduo e Estado.
A história do direito processual penal é uma das mais ricas da história da humanidade. Diversas acepções do processo foram desenvolvidas para culminar no que ele é hoje. Conforme visto, na Idade Média vigorava o direito baseado em procedimentos jurídicos que abrangiam a manipulação de dados, o parâmetro de prova mínimo - era necessário muito pouco para condenar alguém -, a coerção sobre o suspeito e a tortura como meio de se obter confissões.
Atualmente, o pensamento acerca do processo penal sofreu radicais alterações. Para tanto, os princípios do contraditório e ampla defesa não funcionam apenas como formalidades a serem cumpridas, mas sim como um princípio constitucional, que deve ser respeitado como tal, e figura como elemento essencial à qualquer processo ou procedimento judicial.
Assim, a observação da abordagem histórica propiciou a compreensão da relevância do instrumento processual como garantidor da ordem social contemporânea. A construção do direito processual penal tal como é visto hoje foi lenta e gradual, perpassando por fases críticas como a relatada no filme de Joana D’Arc, chegando à evolução dos dias atuais, nos quais se observa o equilíbrio de poderes existentes entre indivíduo e Estado.
7. Referências Bibliográticas
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 1995. p. 851-951.
_______________. O Direito como sistema de garantias. In: OLIVEIRA.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 8.ed.rev.atual e ampl. São Paulo: Editora Revisada dos Tribunais, 2012.
JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 10 edição. São Paulo: Editora Saraova, 2013.
[1] Trata-se de longa-metragem, dirigida por Robert Bresson, e lançado em 1963.
[2] FERRAJOLI, Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, 2ª edição revisada.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial.-8.ed.rev.atual e ampl. São Paulo: Editora Revisata dos Tribunais, 2012, p.74.
[4] Foucault, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
Estudante de Direito da Universidade de Brasília (UnB), aprovada no segundo vestibular de 2010, cursando no momento o sétimo semestre (abril de 2013).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Bruna Athayde. A análise dos sistemas processuais penais e os paradigmas que o antecederam à luz de uma ótica histórica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 set 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/36520/a-analise-dos-sistemas-processuais-penais-e-os-paradigmas-que-o-antecederam-a-luz-de-uma-otica-historica. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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