Ou será que, em matéria penal, ao invés de projetar instituições e saudáveis e procurar realizá-las, deveríamos proceder como certos políticos, que se comprazem em “urbanizar” favelas, para não ter que enfrentar o problema da falta de moradia, para cuja solução iriam certamente consumir os recursos que pretendem empregar para outros fins?[1]
1. FINALIDADE
Neste ensaio tratarei dos crimes de homicídio, de genocídio e especialmente, do feminicídio, que é um crime instituído recentemente visando a evitar a morte violenta de mulheres unicamente pela condição de serem mulheres.
Apresentarei inicialmente, em uma abordagem histórica, como está o crime de homicídio no art. 121 do Código Penal (CP), bem como a sua inserção na lei dos crimes hediondos e, pior, a manutenção de péssima técnica legislativa ao se fazer a previsão da “atividade típica de grupo de extermínio”.
Tratarei da Lei n. 13.104, de 9.3.2015, que tipifica o crime de feminicídio, próprio de um país bipolar, em que tudo se explica pelas dicotomias: homem-mulher, negro-branco, azul-vermelho, burguês-proletário etc. Todas essas dicotomias estão equivocadas porque devemos buscar leis mais comuns, aplicáveis a todos, e afastar os sectarismos que tendem a criar, respectivamente, brigas de sexos, raciais, partidárias, de classes etc. É nesse contexto que se instituiu o crime de feminicídio como uma nova modalidade de homicídio qualificado.
A Lei n. 13.104/2015 foi publicada no dia 10.3.2015, como presente às mulheres, em homenagem ao “Dia das Mulheres” (8.3.2015), tendo entrado em vigor no mesmo dia (art. 3º), criando uma nova qualificadora para o homicídio, que é o feminicídio.
É uma lei alteradora, a qual apenas acrescenta dispositivos ao art. 121 do CP e insere o feminicídio expressamente no rol, dos crimes hediondos (Lei n. 8.072, de 25.7.1990). Porém, alguns aspectos doutrinários exigem esclarecimentos, desde a manutenção equivocada da redação do inc. I do art. 1º da lei nupercitada, conforme exporei adiante.
2. DA ANTIGUIDADE AO NOVO ART. 121 DO CÓDIGO PENAL E A HEDIONDEZ DO HOMICÍDIO
Homicídio, segundo Carmagnani, é “a ocisão violenta de um homem injustamente praticada por outro homem” (violenta hominis caedes ab homine injuste patrata).[2] Tem-se que ele remonta o período mais remoto e de maior barbárie da humanidade, evidenciando o delito por excelência.
Na fase da vingança predominava a pena de morte. Mesmo na fase da composição, certos crimes eram apenados com a morte, dentre eles o homicídio. No entanto, no Código de Hamurabi a pena variava de acordo com a condição social da vítima, sendo possível a imposição da morte em muitos casos de homicídio, inclusive, há hipótese de ser o delito negligente.
Impor a pena de morte a quem matava negligentemente, embora não fosse compatível com a lei de talião (porque quem exercia a pena atuava dolosamente, enquanto que o condenado atuou sem desejar ou aceitar o resultado[3]), tendo em vista unicamente o resultado provocado, admitia-se a imposição de pena de morte àquele que matou negligentemente.
O crime de homicídio doloso era conhecido como parricidium. Depois, o parricidium passou a designar unicamente o homicídio praticado com perversidade. Hoje, diz-se que parricídio é apenas o crime praticado pelo filho contra um de seus pais, isso porque o latim parricidium decorre de parens, que significava pai e mãe. As leis antigas puniam tal crime com a morte por varas.
No direito romano o homicídio doloso, como regra, era punido com a morte e o negligente ensejava a reparação pecuniária. No caso de homicídio doloso, não era rara a imposição de pena extensiva aos parentes mais próximos. Não obstante isso, já no direito romano era possível ver três níveis de homicídio, a saber: simples, atenuado e qualificado.
Mais tarde o direito romano distinguiu as seguintes espécies de homicídio: parrricidium (matar um dos pais), infanticidium (morte do filho executada pela mãe), veneficium (matar com o emprego de veneno), assassinium (morte por encomenda, premeditada), e impetus justi doloris (este representou a construção doutrinária que permitia o privilégio no homicídio).
A execução cruel e teatral das penas era comum. A crucificação, que foi considerada o suplício supremo, cedeu gradativamente lugar às execuções por enforcamento e, mais tarde, às execuções rápidas, marcando uma “nova ética da morte legal”.[4] Porém, no início do século XVIII a pena de morte passou a ser substituída pela de trabalho forçado, mas foi mantida no Código francês de 1810.
Aqui no Brasil, vigoraram as Ordenações do Reino (afonsinas, manuelinas e filipinas). Nestas, o homicídio doloso era apenado com a morte, sendo que o mandante tinha as mãos decepadas antes da execução. Existindo bens, eles eram perdidos para Coroa, caso não houvesse herdeiros legítimos. Já o homicídio negligente não tinha pena predeterminada, o Juiz a imporia segundo a “qualidade do excesso”.
No Código Criminal de 1830 o homicídio qualificado era apenado com a morte (grau máximo), galés perpétuas (grau médio) ou prisão com trabalhos forçados 20 anos (grau mínimo). A prisão com trabalhos forçados seria de 2 a 12 anos, no caso de homicídio preterdoloso. O homicídio negligente era espécie qualificada atenuada do simples, representando lacuna na lei que foi corrigida pela Lei n. 2.033, de 20.9.1871, com pena de 1 mês a 2 anos e multa.
No Código de 1890, o homicídio qualificado tinha pena de prisão de 12 a 30 anos e o de homicídio simples era apenado com prisão de 6 a 24 anos. Critica-se este código por ter mantido as lacunas existentes no Código de 1830 em relação à premeditação e o homicídio involuntário.
O art. 121 do CP já foi alterado algumas vezes, tendo hoje a seguinte redação:
Homicídio simples
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;
V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:
Feminicídio
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Homicídio culposo
§ 3º Se o homicídio é culposo:
Pena - detenção, de um a três anos.
Aumento de pena
§ 4o No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.
§ 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.
§ 6º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio.
§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.
A primeira alteração foi feita para inserir o § 5º no art. 121 do CP, a fim de autorizar o perdão judicial para o condenado por homicídio negligente, o que se deu por meio da Lei n. 6.416, de 24.5.1977.
A lei n. 9.503, de 23.9.1997 (Código de Trânsito), não prevê o perdão judicial para o homicídio de trânsito. No entanto, não obstante a jurisprudência entender só ser possível o perdão judicial nos casos em que a lei expressamente prevê (CP, art. 107, inciso IX), tem-se entendido ser ele cabível, porque as razões do veto do art. 300 da nova lei enunciam ser desnecessária sua previsão, uma vez que ele já é previsto no CP.
A segunda alteração foi feita no § 4º para inserir o menor de 14 anos de idade como causa especial de aumento da pena do homicídio doloso, seja ele simples ou qualificado, o que se deu pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13.7.1990). Depois, com o advento do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 1.10.2003), o mesmo § 4º foi alterado para inserir a vítima idosa (maior de 60 anos) como causa especial de aumento da pena, nas mesmas hipóteses do menor de 14 anos de idade.
Esclareço que adotamos a teoria do minuto, pela qual a pessoa será maior de 14 e de 60 anos no primeiro minuto das datas dos aniversários em que completar as referidas idades.
A penúltima alteração havida no art. 121 do CP decorreu da Lei n. 12.720, de 27.9.2012, que trouxe o § 6ª transcrito, sob o argumento de que a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Dez/1989, por meio da Resolução n. 44/162, aprovou os princípios e diretrizes para a prevenção, investigação e repressão às execuções extralegais, arbitrárias e sumárias, e, portanto, tipificou o crime de formação de organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes do CP, ex vi do seu art. 288-A.
Justificou-se, ainda, a necessidade da Lei n. 12.720/2012 pela possibilidade de incidência dos rigores do Estatuto de Roma, que instituiu a Corte Internacional Criminal, já em vigor no Direito interno, pela omissão da República Federativa do Brasil na proteção de seu povo, exposto ao risco de execuções sumárias.[5]
A Lei n. 13.104/2015 decorreu do Projeto de Lei do Senado n. 292, apresentado pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (Violência Contra a Mulher) no dia 15.7.2013, justificando-se a inovação legislativa pela constatação do crescimento de assassinatos contra mulheres pela condição de serem mulheres, sendo que a espécie feminicídio foi assim denominada pela primeira vez na ordem internacional, em 2009, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, devido às mortes de mulheres havidas na Ciudad de Juarez, Estado de Chiuahua, no México.[6]
A Lei n. 8.072, de 25.7.1990, foi elaborada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, sendo encaminhado ao Congresso Nacional por meio da Mensagem n. 546, de 21.9.1989. Na Câmara dos Deputados, recebeu o n. 3.734, tendo sido registrado na Mesa Diretora no dia 27.9.1989.[7] O projeto recebeu o substitutivo do Projeto de Lei do Senado n. 5405/1990, mas deixou de inserir o homicídio no rol dos crimes hediondos. Daí a Lei n. 8.072/1990, que denomino de lei hedionda, ter sofrido diversas críticas.[8]
O crime de homicídio foi inserido na lei hedionda por força da Lei n. 8.930, de 6.9.1994, sob o argumento de que o legislador descurou-se de incluir no rol dos crimes hediondos os crimes contra a vida humana, expondo o então Min. da Justiça que a proposta foi do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Estado do Rio de Janeiro nos seguintes termos:
... Trata-se de sinistra atividade dos esquadrões da morte, ou grupos de extermínio que atuam ora a soldo de mandantes, interessados na eliminação de suas vítimas pelos mais variados motivos, ora agindo por conta própria, usurpando o magistério punitivo do Estado em nome de cruel e primitiva vingança privada.
As chacinas perpetradas por estes delinquentes têm, como se sabe, escolhido como alvo predileto crianças e adolescentes em todo país, geralmente sob o intolerável pretexto de eliminação de autores de ilícitos patrimoniais.[9]
Observe-se que a motivação é semelhante à da Lei n. 12.720/2012, sendo que a proposta de criação da Lei n. 8.930/1994, foi feita logo depois do “Massacre da Candelária”, ocorrido em 23.7.1993, o qual consta dentre os “exemplos emblemáticos” da exposição de motivos Lei n. 12.720/2012. Porém, a “redação adotada é manifestamente esdrúxula”.[10]
Inexistindo a definição legal, não se pode afirmar o que “grupo” ou “extermínio” e, pior, que pode “ser cometido por um só agente”, permitindo a ilação mental que o “grupo” possa ser formado por “um só agente”.[11] Mesmo diante de tantas críticas, a Lei n. 13.104, de 9.3.2015, dispõe: “Art. 2o O art. 1o da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte alteração: ‘Art. 1o (...) I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV, V e VI);’(...)”.
Pensar em um crime de homicídio simples já é difícil. Pior é pensar nele praticado em atividade de extermínio que não seja, no mínimo, qualificado pelo motivo torpe. De qualquer, em face da disposição legal, em tese, é possível haver homicídio simples que seja hediondo e a nova lei apenas acresceu o feminicídio, inc. VI do § 2º do art. 121 do CP, no rol dos Crimes hediondos.
3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O TIPO DO HOMICÍDIO, OS SEUS OBJETOS E O CONCURSO DE CRIMES
Homicídio, nos termos da lei, constitui “matar alguém”. Alguém, da forma que a palavra consta do CP, está a sugerir até a própria morte. No entanto, alguém é somente terceira pessoa, estando excluído o ato de matar a si mesmo. Outrossim, alguém, é somente pessoa humana, não podendo ser incluído qualquer outro animal.
O sujeito ativo do homicídio é qualquer pessoa. Também, o sujeito passivo será qualquer pessoa humana. Ocorre que se for o próprio filho, vítima da mãe, logo após o parto desta e estando ela sob a influência do estado puerperal, haverá infanticídio (CP, art. 123).
Na hipótese de homicídio doloso se tratando de vítima menor de 14 anos, ou maior de 60 anos, a pena será majorada (CP, art. 121, § 4º). Também, no caso de grupo de extermínio ou de milícia privada (CP, art. 288-A), incidirá a causa especial de aumento da pena (§ 6º).
As majorantes do § 7º do art. 121 do CP evidenciam a má técnica legislativa, visto que o inc. II, em relação à idade, é plenamente desnecessário, uma vez que abrangido pelo § 4º, in fine. Quanto ao referido inciso, sobressai-se apenas o fato de ser a vítima portadora de necessidades especiais. No entanto, o referido § 7º acresce três causas circunstanciais para aumentar especialmente a pena do femicídio, a saber: “I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; (...) III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima”. Ora, em face das óbvias consequências das hipóteses do inc. III, a causa de aumento de pena poderia incidir sobre todas as espécies de homicídio doloso.
Quando explico as circunstâncias judiciais de aplicação da pena, constantes do art. 59 do CP, costumo alertar para o fato de que as circunstâncias judiciais desfavoráveis, normalmente, levam às consequências mais graves do delito, o que justifica a exasperação da pena.[12] Daí, ratifico, em todas espécies de homicídio, estar a vítima grávida ou na presença de descendentes ou ascendentes, poderiam ser causas especiais de aumento da pena, não apenas no feminicídio.
O objeto material (aquele que suporta o delito) é a pessoa vítima da morte (consumada ou tentada), enquanto que o objeto jurídico (aquele tutelado pelo Direito) é a vida, mas somente a vida extrauterina, uma vez que interromper a gravidez com a morte do feto constitui aborto.
Matar (núcleo do tipo) significa extinguir todas as funções vitais da vítima, o que torna o crime em comissivo, ou seja, exige a atuação positiva do autor. Não obstante isso, a pessoa pode praticar homicídio por conduta omissiva, desde que se trate de garante (CP, art. 13, § 2º), o que caracterizará o crime comissivo por omissão (omissão imprópria).
Não se deve confundir vida com vitalidade. O moribundo e o condenado à morte têm direito à vida, podendo ser vítimas de homicídio. Assim, mesmo que não se trate de pessoa com vida viável, poderá ser vítima de homicídio. O neonato, ainda que não tenha vida viável, é pessoa, merecendo a tutela do Direito Criminal. Também, tem a tutela do Direito Criminal aquele que está inválido, portando doença degenerativa e desenganado pelos médicos. A eutanásia pode até privilegiar o homicídio, mas não excluir o delito.
Em nome de suposta humanidade, às vezes incompreensível e que precisa ser melhor estudada, considera-se morto, na atualidade, aquele que teve a morte cerebral atestada por equipe médica. Embora eu seja a favor do suicídio assistido esse é um assunto que deve ser melhor explicado pela Bioética.
O transplante gera problemas, uma vez que, ocorrendo morte cerebral, pode-se transplantar órgãos vitais do “morto”, cessando todas funções vitais. Com efeito, considerava-se, até 1997, consumado o homicídio no momento em que cessasse todas as funções vitais. Muitos livros ainda trazem referida posição, a Lei n. 9.434, de 4.2.1997 dispõe:
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
Fernando Capez concluindo sua exposição sobre o assunto expõe:
É certo que há casos em que, mesmo após a morte cerebral, órgãos vitais continuam funcionando, havendo, inclusive, exemplo de gestante que chegou a dar à luz[13] nessas condições. Entretanto este é o melhor critério; afinal, com a destruição irreversível das células e do tecido encefálico, não há mais a mínima condição de vida, embora possa o corpo vegetar por algum tempo ainda.[14]
Prefiro não emitir uma opinião conclusiva sobre o assunto. Agora que conhecemos o genoma e podemos clonar, com certa margem de sucesso, órgãos humanos, não é demais pensar na possibilidade da clonagem de cérebros humanos. Ratifico, esse é um assunto a ser melhor estudado pela bioética, que é uma parte da filosofia, e, por enquanto, prefiro o exame de casos concretos, visto que sou favorável ao suicídio assistido.
O concurso de crimes é possível no homicídio. Aquele que desejando matar várias pessoas, lançar um explosivo na direção delas, praticará homicídios diversos em concurso formal imperfeito (CP, art. 70, in fine). De outro modo, quem pretende matar uma pessoa, mas acabar negligentemente atingindo outra, além da pessoa visada, praticará dois crimes em concurso formal ideal (CP, art. 70, 1ª parte).
O agente que furtar um carro para ir à cidade vizinha matar um desafeto, praticará dois crimes em concurso material (CP, art. 69). Outrossim, em face do art. 71, parágrafo único, do CP, está prejudicada a Súmula n. 605, que veda o reconhecimento do crime continuado no caso de homicídio. Assim, em face nova da redação da nova Parte Geral do CP (Lei n. 7.209, de 11.7.1984), é possível haver homicídio em continuidade delitiva, eis que a Súmula n. 605 foi aprovada antes da Lei n. 7.209/1984 entrar em vigor.[15]
Por uma questão de política criminal, aquele que matar, não poderá ser acusado de lesão corporal (CP, art. 129), em concurso de crimes contra a mesma vítima, isso em face do princípio da consunção. Outrossim, o princípio da subsidiariedade, impedirá que se acuse de homicídio e periclitação da vida ou da saúde (CP, art. 132), em concurso de crimes, quem tentar ou vier a matar alguém.
Por uma questão de política criminal, em regra, não se punirá o exaurimento, salvo se ele vier constituir novo crime, verbi gratia (v.g.), ocultação de cadáver (CP, art. 211). Normalmente, o exaurimento não integrará o iter criminis, sendo considerado post factum impunível.[16]
O homicídio negligente enseja a continuidade delitiva simples, desde que preenchidos os requisitos do art. 71, caput. Em se tratando de homicídio tentado e depois homicídio qualificado contra a mesma vítima, haverá continuidade simples (CP, art. 71, caput). No entanto, em se tratando de homicídios dolosos, contra vítimas diferentes, preenchidos os requisitos do caput do art. 71, haverá crime continuado especial (específico), ex vi do parágrafo único do mesmo artigo.
Homicídio putativo seria um não crime. O agente pensaria estar praticando um crime, mas a sua conduta será atípica, por ausência de previsão, o que pode incidir apenas sobre qualificadoras. Imagine-se que um homem que esteja em conjunção carnal com uma prostituta no carro veja seu cunhado filmando a cena e por medo de ser processado pelo crime de adultério ele o mate. No caso não poderá incidir a qualificadora do art. 121, § 2º, inc. V, do CP, haja vista que o crime de adultério foi revogado pela Lei n. 11.106, de 28.3.2005.[17]
É diferente do homicídio impossível, que é aquele em que a tentativa sempre restará frustrada, seja por absoluta ineficácia do meio ou por absoluta impropriedade do objeto ou (CP, art. 17). Exemplo típico é aquele que com necandi animus ministra açúcar refinado a uma pessoa normal, acreditando ser veneno.
Como a lei não faz qualquer referência à iniciativa da ação, esta será pública incondicionada. Até mesmo o homicídio negligente terá ação de iniciativa pública incondicionada. A única probabilidade de iniciativa privada será a subsidiária da pública (CP, art. 100, caput e § 3º). A regra é a iniciativa pública incondicionada, qualquer outra iniciativa deverá constar expressamente da lei, visto que será exceção.[18]
4. DISTINÇÃO ENTRE HOMICÍDIO DOLOSO E HOMICÍDIO NEGLIGENTE
Conforme se pode extrair do CP, em regra, só se pune o fato doloso. A punição da negligência é excepcional, só podendo ocorrer se houver determinação expressa quanto a esta (art. 18, parágrafo único). Assim, como regra geral o homicídio será doloso, considerando-se como tal aquele que o agente quis o resultado (dolo direto, art. 18, inciso I, primeira parte) e aquele em que ele aceitar o resultado (dolo eventual, art. 18, inciso I, parte final).
Em Brasília, em 20.4.1997, alguns rapazes colocaram fogo em um silvícola que veio a morrer carbonizado. Disseram que gostariam apenas de brincar, tendo desprezado parte do álcool que adquiriram para realização da “brincadeira”. Como eles se autoincriminaram, o valor de suas palavras foi visto com maior destaque pela Juíza que conduzia a primeira fase do procedimento dos crimes dolosos contra a vida. Então, ela decidiu fazer operar a desclassificação (CPP, art. 419).
A denúncia narrava a existência de dolo eventual, caracterizado pelo excesso de combustível despejado sobre o corpo da vítima, eis que eles adquiriram dois litros. De outro modo, a defesa sustentava que eles fizeram a previsão do resultado, mas tentaram evitar o resultado lançando fora uma parte dele. Havia negligência inconsciente ou dolo eventual? O júri optou por dolo eventual.
Dentre os arestos que tratam da distinção entre homicídio doloso, mediante dolo eventual, e homicídio negligente (ante a negligência consciente), posso apresentar o seguinte:
O dolo eventual se caracteriza ‘quando o autor não se tenha deixado dissuadir da execução do fato pela possibilidade próxima da ocorrência do resultado, e sua conduta justifique a assertiva de que ele, por causa do fim pretendido, se tenha conformado com o risco da realização do tipo, antes até com a ocorrência do evento do que renunciado ``a prática da ação’, segundo Welssels (Direito Penal, parte geral. p. 53). E, como ensinava Aníbal Bruno, trazido à colação por José Frederico Marques, ‘ao contrário do que ocorre no dolo direto, no eventual a vontade não se dirige propriamente ao resultado, mas apenas ao ato inicial, que nem sempre é lícito, e o resultado não é representado como é certo, mas só como é possível. Mas o agente prefere que lhe ocorra, a desistir de seu ato’. (Curso de direito penal, vol. II/204). Em suma, o dolo eventual se caracteriza pela anuência que o agente presta ao resultado (TJSP – AC – Rel. Celso Limongi – RJTJSP 167/313).[19]
Distinguir o dolo eventual da negligência consciente só seria efetivamente possível se pudéssemos adentrar na cabeça do agente e descobrir o que a pessoa pensou no momento do fato. Como isso não é possível, o julgador se baseará em elementos externos.
Durante uma viagem que fiz a Salvador – BA, errei o endereço, e me deparei em um local repleto de pessoas. Estava em uma ladeira e percebi, pelo retrovisor, que dois carros desciam em alta velocidade. Ali, por mais habilidoso que fossem os motoristas, uma desgraça seria inevitável se uma pessoa ou grupo de pessoas desavisadas viessem a entrar na pista, o que caracterizaria o dolo eventual. De outro modo, quando eu era Oficial da PM, tomei conhecimento que um colega se exibia, durante as aulas práticas de tiro, assustando recrutas da seguinte maneira: mandava o recruta buscar correndo o alvo e quando ele já estava o alcançando, o Oficial atirava atingindo certeiramente no alvo, evidenciando negligência consciente, em caso de atingir o recruta.
O Oficial da PM agia acreditando em sua perícia e no instrumento que utilizava (a arma), mas sabia que um erro poderia ser fatal. De qualquer modo, não acreditava que isso fosse ocorrer. Porém, o mesmo não pode ser dito em muitos casos de “pegas”, nos quais fica evidente a impossibilidade de se evitar uma desgraça ao menor imprevisto. De qualquer modo, nem toda corrida automobilística delituosa (Lei n. 9.503/1997, art. 308), representa dolo eventual em relação ao homicídio. No Distrito Federal, por exemplo, os jovens se cercavam de cuidados na DF 150, a fim de promoverem o “pega”, que se dava em avançadas horas da noite. Eles acreditavam que não haveria problema porque o local era pouco habitado, com raros acessos vicinais, bem como se julgavam habilidosos pilotos. O homicídio decorrente do excesso de velocidade, próximo de 200 km/h, por si só, não seria suficiente à alegação da existência de dolo eventual.
No caso de haver previsão, mas acreditando o agente que o fato não ocorrerá porque ele detém perícia suficiente para evitar o resultado ou que o instrumento que utiliza é tão bom que jamais o resultado se produzirá, entender-se-á que a hipótese é de negligência consciente. De outro modo, não sendo crível que a pessoa acreditasse ser possível evitar o resultado, a hipótese será de dolo eventual.
Estamos vivendo um momento em que o punitivismo prevalece, sendo recorrentes os casos de se denunciarem como homicídios dolosos os delitos de motoristas embriagados, daqueles que estiverem escrevendo mensagens em smartphones etc. Estamos confundindo dolo e negligência, trazendo o dolo para momento anterior, o que é perigoso, visto que estamos a resgatar o ultrapassado direito criminal do autor.
Heleno Fragoso já propunha a análise particularizada dos delitos de trânsito, em face dos mesmos, nas grandes cidades, terem alcançado proporções alarmantes.[20] No entanto, se tem pretendido a aplicação de penas com base unicamente em resultados e alardes gerados pelos meios de comunicação de massa.
Um tribunal é dotado de juristas (cientistas em Direito), devendo apresentar perspectivas científicas, sem apegos exagerados às paixões populares. Ocorre que o povo pretende maior rigor em delitos de trânsito, o que tem levado os tribunais a estenderem exageradamente as hipóteses de homicídios dolosos no trânsito, bastando o excesso de velocidade ou a embriaguez do condutor para tal conclusão.
5. HOMICÍDIO SIMPLES
O art. 121, caput, CP, traz o homicídio simples com o seguinte tipo: “matar alguém”. A pena cominada varia de 6 a 20 anos de reclusão. Não constitui crime hediondo, salvo se praticado em ação típica de extermínio (Lei n. 8.072/1.990, art. 1º, inc. I).
Em 1993, crimes graves provocaram a edição da Lei n. 8.930/1994, que tornou hediondo o homicídio simples praticado em ação de extermínio (hipótese praticamente impossível de ser vislumbrada porque normalmente alguma qualificadora incidirá em tal espécie de homicídio).
Homicídio simples é aquele que não contém uma causa que o qualifique ou que o privilegie. A qualificadora tem visão bastante restrita no Brasil. Assim, atualmente não é correto falar, em nosso meio, em qualificadora agravante e qualificadora atenuante. Em nosso meio, a qualificadora constituirá apenas o aumento que incidirá na primeira fase da dosimetria da pena, predeterminando os limites mínimo e máximo cominados ao delito.
Costumo dizer que a condenação por homicídio simples, normalmente, decorre da insuficiência da defesa ou da acusação, uma vez que o mais raro é o homicídio despido de motivo, circunstância ou forma de execução que o qualifique ou motivo ou circunstância que o privilegie.
Por incrível que pareça, o homicídio sem motivo visível será simples, enquanto o decorrente de pequeno motivo será qualificado, isso em razão do princípio da legalidade. Existem vários precedentes de tribunais em sentido contrário, mas o homicídio praticado sem qualquer motivo, ao meu sentir, é o exemplo mais palpável de homicídio simples. Dizer que a ausência de motivo, por ser mais grave que o motivo pequeno, deverá qualificar o crime porque serão equivalentes, importará em fazer operar a analogia acerca de norma incriminadora, o que é defeso. Porém, não é rara a decisão que considera qualificado o homicídio praticado sem motivo.[21] Aqui, é conveniente apresentar o magistério de Cezar Roberto Bitencourt:
O homicídio simples, em tese, não é objeto de qualquer motivação especial, moral ou imoral, tampouco a natureza dos meios empregados ou modo de execução apresenta algum relevo determinante, capaz de alterar a reprovabilidade, para além ou para aquém da simples conduta de matar alguém.
Ademais, ao longo do tempo, cristalizou-se corrente jurisprudencial segundo a qual a ausência de motivo não caracteriza futilidade da ação homicida, isto é, a absoluta ausência de motivo é menos grave de que a existência de algum motivo, ainda que irrelevante. Trata-se, na verdade, de um paradoxo que somente a exigência de absoluto respeito ao princípio legalidade nos convence a aceitar, embora no plano lógico, sociológico e ético seja absolutamente insustentável.[22]
Apegar-se à literalidade da lei incriminadora não constitui exagero, mas respeito à necessária garantia que ela deve oferecer. Por isso, mantenho minha posição no sentido de que a ausência de motivo não poderá ser tratada, por analogia, como futilidade. Todavia, o desvalor com a pessoa da vítima, capaz de levar o agente a matar para satisfação pessoal, como prêmio, poderá constituir torpeza. Assim, não será simples, mas qualificado pelo motivo torpe.
O homicídio praticado mediante dolo eventual é apresentado como sendo aquele que se caracterizará como simples. Ocorre que não basta que seja dolo eventual, uma vez que se praticado mediante o emprego de fogo ou explosivo, incidirá a qualificadora objetiva do art. 121, § 2º, inciso III. Então, para vislumbrar o homicídio simples, sugere-se a hipótese daquele que praticar um crime e após isso saia dirigindo veículo automotor perigosamente para se evadir do local do crime e, sem se preocupar com resultado a possibilidade de atropelar alguém, vem a matar um transeunte. Ao meu sentir, a hipótese é homicídio qualificado, isso em face do art. 121, § 2º, inciso V, do CP.
6. HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
O homicídio será privilegiado por duas razões: a) agir sob o domínio de violenta emoção logo após injusta provocação da vítima; b) agir por relevante valor moral ou social.
Trata-se de tipo derivado, uma vez que não detém autonomia. Os tipos autônomos têm nomen iuris próprios, o que não ocorre com o homicídio privilegiado. O infanticídio, por exemplo, que constitui espécie de homicídio privilegiado é autônomo, estando disciplinado com nome e elementares do tipo próprios (CP, art. 123).
“Logo em seguida” é expressão quase sinônima de “imediatamente”. A jurisprudência, dominantemente, não admite o privilégio se o homicídio se dá premeditadamente e algumas horas depois da injusta provocação da vítima. Porém, não existe um prazo a ser determinado objetivamente. O prazo deve estar condicionado à emoção. Imagine-se, por exemplo, que uma filha, preocupada com o comportamento de seu pai, consiga esconder, às duras penas, estupro ocorrido há seis meses. Nesse exemplo, caso o pai venha a matar o estuprador logo após o conhecimento dos fatos, depois de 6 meses do crime contra a liberdade sexual, lógico é entender que é incidente o privilégio.
Também deve ser considerado privilegiado o homicídio premeditado em que o filho mata o assassino de seu pai (este vítima de latrocínio), praticado por vingança dois dias depois da morte do genitor. Todavia, a doutrina praticamente unânime e a jurisprudência afirmam que o planejamento é incompatível com o estado de comoção provocado pelo domínio de violenta emoção.
Agir sob o domínio de violenta emoção logo após injusta provocação da vítima (CP, art. 121, § 1º) é diferente de agir sob a influência de violenta emoção na mesma circunstância (CP, art. 65, inciso III, alínea c). Aquela constitui causa especial de diminuição da pena (incide na terceira fase da aplicação da pena) e esta circunstância atenuante genérica (segunda fase). O domínio de violenta emoção privilegia o homicídio e a influência apenas gera uma redução da pena, não alterando a espécie. Havendo o privilégio, não poderá incidir a atenuante genérica, senão se violará o princípio non (ou ne) bis in idem.
É dominante o entendimento de que o privilégio decorrente do domínio da violenta emoção depende do requisito temporal, ou seja, só pode ser invocado se dá logo depois da conduta ofensiva da vítima. De outro modo, a atenuante genérica não está sujeita ao requisito temporal. Desse modo, diversamente do que entendo, os autores sugerem que o homicídio decorrente de emoção por saber de estupro da filha, logo após receber a notícia, mas seis meses depois do fato, não constitui privilégio e sim atenuante genérica. A interpretação literal do § 1º leva a tal conclusão, pois a lei insere “logo em seguida à provocação da vítima”, mas seria razoável entender, in bonam partem, que a lei contém uma lacuna involuntária, podendo inserir “logo em seguida que tomar conhecimento da conduta injusta da vítima”.
Relevante valor moral ou social é hipótese mais difícil de ser verificada. O relevante valor moral é, basicamente a mesma coisa com o relevante valor social, uma vez que moral nada mais é que costume. Ocorre que, em Direito, tem-se tradicionalmente que a moral é interna e o social é externo.
Em uma sociedade machista, matar a mulher logo após saber da infidelidade desta, constituirá, no mínimo, privilégio. Alguém poderia argumentar que a adequação social retiraria o próprio delito. Argumento semelhante poderia ser construído em relação ao linchamento e ao extermínio de ladrões, ou seja, tais atos representariam a vontade da sociedade e, como o fato socialmente adequado não pode ser considerado típico, em todas hipóteses (extermínio da mulher adúltera, linchamento e eliminação de um “esquadrão da morte”) não haveria crime. Ocorre que a observação de um fato não pode ficar atenta a apenas um seguimento da sociedade complexa, mas ao sistema global, que é a sociedade global. Talvez inconscientemente, sem qualquer perspectiva científica ou filosófica, os tribunais não aderiram à tese descriminalizante de tais fatos.
Não se pode conceber socialmente adequado o linchamento, pois ele atenderá apenas à vingança popular, ofendendo toda ordem normativa e sistema de ordem pública constitucionalmente estabelecido. O mesmo se pode dizer dos grupos de extermínio. E, quanto ao assassinato da mulher adúltera, só pode ser concebido como socialmente adequado em grupos machistas que não mais devem encontrar lugar na modernidade. Somente em sociedades obsoletas é que podem perdurar tais posturas.
A eutanásia constitui a hipótese mais clara de homicídio decorrente de relevante valor moral ou social. No entanto, procura-se dizer que a perspectiva pública do interesse constitui relevante valor social, v.g., o homicídio é praticado contra vil traidor da pátria, enquanto a privada, relevante valor moral, v.g., pai mata o estuprador de sua filha. Essa distinção evidencia a necessidade que o jurista sente de corrigir equívocos que estão contidos na lei.
É mais fácil perceber que a lei contém palavras vãs, merecendo interpretação técnica e não segundo os diversos equívocos que contém. É certo que a teleologia da inserção das palavras social e moral foi explicitar que o valor individual e o público estão abrangidos pelo privilégio do § 1º. Porém, a moral é relativa aos costumes, sendo nada científica a distinção que se procura empreender nesse campo, aduzindo ser a moral interna e a social externa ao indivíduo.
7. HOMICÍDIO QUALIFICADO
7.1 Apresentação propedêutica necessária
A qualificadora tem perspectiva restrita no meio pátrio. Para nós, ela constitui o aumento incidente na primeira fase da dosimetria da pena, o que faz com que a pena cominada seja alterada em seus limites mínimo e máximo. Fala-se em qualificadora agravante e qualificadora atenuante. Esta última permitiria ver o privilégio como qualificadora, mas não é assim. Para que exista qualificadora, é necessário que as penas mínima e máxima estejam cominadas.
O homicídio qualificado tem pena variável de 12 a 30 anos, com todos os rigores da Lei n. 8.072/1990, uma vez que inserido no rol dos crimes hediondos. Não creio ser referida lei razoável. Pior é a tentativa de justificá-la, conforme o fazia o STF. De qualquer modo, o aumento de metade, previsto no art. 9º da Lei n. 8.072/1990, não incidia sobre a pena do homicídio porque o homicídio não está relacionado no referido artigo. Hoje, não tenho qualquer dúvida que a exasperação do mencionado art. 9º é inaplicável porque houve revogação tácita do preceito pela Lei n. 12.015, de 7.8.2009.
As qualificadoras podem ser objetivas (quanto aos meios ou modos de execução) ou subjetivas (relativas aos motivos do crime). Finalmente, a Lei n. 13.104/2015 inseriu a qualificadora circunstancial, que é a decorrente da violência doméstica. Independentemente de qual espécie de qualificadora, o homicídio qualificado será hediondo, salvo se também for privilegiado.
7.2 Qualificado pelos motivos
Os motivos que qualificam os homicídios são: torpeza, futilidade, conexão e menosprezo ou discriminação à condição de mulher, caracterizando este último o feminicídio (CP, art. 121, § 2º, incs. I, II, V e VI).
A torpeza constitui o motivo ignóbil, abjeto, que causa repugnância social etc. De outro modo, a futilidade é representada pela desproporcionalidade concretizada entre o delito e o motivo antecedente.
O art. 121, § 2º, inciso V, do CP, estabelece que o homicídio se qualifica pelo fato de ter sido praticado para assegurar a execução, a ocultação, vantagem ou a impunidade de outro crime. Certamente, qualquer desses objetivos constitui motivo torpe, mas são tratados em inciso diverso daquele que faz referência expressa ao motivo torpe.
O inciso I considera a paga ou a promessa de recompensa motivo torpe. A lei insere a necessidade de se fazer interpretação analógica, uma vez que nem tudo deve ser considerado torpe. Somente o motivo que se aproxima do pagamento promessa de recompensa deve ser visto como torpe.
Tem-se entendido que o desvalor da conduta, representado pelo fato de se brincar em relação à vida humana ou tripudiar dela constitui motivo suficiente para qualificar o crime pela torpeza. A brincadeira não pode representar motivo fútil, sendo que a torpeza decorre do fato de ser ignóbil, abjeto, vil etc. sacrificar a vida humana para satisfação de desejos bestiais, o que seria um prêmio ao agente.
Em relação ao mesmo fato, não se pode pretender compatibilizar os motivos torpe e fútil. Eles não podem ser conjugados em um único crime (RT 735/669).[23] O que é possível é a verificação de qualificadoras objetivas coexistindo entre si e com alguma subjetiva. Porém, não se pode conceber a coexistência de duas subjetivas.
Praticar o crime para assegurar impunidade ou vantagem em outro crime, certamente, constitui motivo torpe. Porém, em face do critério da especialidade (denominado nos manuais de verdadeiro princípio), deve-se entender incidente apenas a qualificadora do inc. V (refiro-me ao art. 121, § 2º do CP).
O motivo fútil (inc. II) é o motivo insignificante, desproporcionado com a conduta. Revela insensibilidade moral e egoísmo mesquinho do agente, que se mostra indiferente à sorte alheia.[24]
Enquanto a conexão teleológica (um crime é meio para a prática de outro) pode levar à absorção do crime-meio pelo crime fim, isso em face dos princípios da consunção e do princípio da subsidiariedade, a conexão causal (um crime é efeito de outro, tem como causa crime anterior) traz como consequência reprovação mais séria do crime-efeito. Daí a propriedade do inciso V em comento. No entanto, no homicídio, a prática do crime para assegurar outro (conexão teleológica), em que o homicídio será meio para o alcance de outro, também qualificará o delito (CP, art. 121, § 2º, inc. V), o que é bastante razoável.
O feminicídio se caracteriza pelo motivo “menosprezo” ou “discriminação” à condição de mulher (§ 2º-A), o que torna a inovação legal desnecessária porque já seria incidente a qualificadora da torpeza. No entanto, o afã de presentear a mulher, em homenagem ao seu dia, 8.3.2015, fez brotar mais uma lei criminal, nesse aspecto inútil.
O § 2º do art. 121 do CP contém previsões que tornam de tipo aberto, uma vez que este exige complementação. Ao estabelecer que o pagamento ou a promessa de recompensa constitui qualificadora (inciso I), juntamente com qualquer outro motivo torpe, poder-se-ia pensar ser necessária a aplicação da analogia. No entanto, ao contrário de pretender ampliar o sentido da lei, o interprete deve restringir seu alcance. Não é qualquer motivo torpe que deve ser considerado como suficiente para qualificar o homicídio, eis que somente aquele que tende ao pagamento ou recompensa é que deve servir para qualificar o delito. Aliás, o inciso V seria desnecessário, caso não houvesse o risco de se tentar construir a tese de que não se poderia considerar qualificado a conduta tendente a assegurar direito natural do homem – a liberdade.
A explicitação de que a tentativa de assegurar vantagem ou impunidade de outro crime qualifica o homicídio tem a vantagem de não deixar pairar dúvida sobre tal hipótese. Porém, caso não houvesse previsão expressa, aplicar-se-ia o inciso I, que não deixaria qualquer lacuna sobre a matéria. Com efeito, pagamento ou promessa de recompensa parece muito com as hipóteses do inciso V, permitindo a interpretação analógica (analogia intra lege – ou dentro da lei).
Ao instituir a analogia intra lege, não se buscou ampliar as hipóteses, mas restringi-las. Destarte, só pode ser considerado torpe o motivo que se assemelha ao pagamento ou promessa de recompensa. No Distrito Federal, verifiquei que um homem conheceu uma a mulher de um amigo quando foi convidado para um churrasco, à noite, em sua casa. Eles flertaram e ele a abordou no meio da noite. Então ela disse que se deitaria com ele se matasse o marido dela. Ele concretizou o homicídio, hipótese em que a promessa de satisfação da lascívia é suficiente para caracterizar a torpeza.
Mesmo adotando visão garantista, a morte por mera pilhera – o descaso para com a vida humana -, é suficiente para qualificar o homicídio pela torpeza porque a satisfação pessoal seria a recompensa pelo crime. É nesse ponto que a aparente ausência de motivo poderá ser considerada motivo torpe. Porém, deve-se rechaçar qualquer fundamento lógico que pretenda equiparar a ausência de razões para o crime ao motivo fútil.
Dependendo da reprovabilidade da vingança, tem-se pacificamente na doutrina e nos tribunais que ela pode constituir motivo torpe. Porém, entendo que em se tratando de vingança por motivo pequeno, aplicar-se-á a qualificadora do inciso II (motivo fútil). Quanto à futilidade, a lei não faz qualquer referência limitadora, portanto, qualquer motivo significativamente irrelevante, desproporcional, será suficiente para qualificar pela futilidade, mas a lei, quanto à torpeza, limita as hipóteses, ou seja, somente aquelas semelhantes ao pagamento ou promessa de recompensa qualificam pela torpeza.
A vingança que pode ensejar a torpeza é aquela que objetiva à “queima de arquivo”, ou seja, a destruição da prova de crime antecedente. Entretanto, em tal hipótese, o inciso incidente será o V, não o I. Porém, essas conclusões, que são feitas à luz da legislação da aplicação da teoria geral do Direito Criminal, não encontram lugar nos tribunais. Eles preferem violar o garantismo necessário e julgam, normalmente, atendendo aos anseios do desejo de vingança pública, manifestados nos crimes que geram comoção social. Daí, a vingança ser concebida, na maioria das hipóteses, como motivo torpe.
7.3 Qualificado pelos meios e modos empregados
Paulo José da Costa Júnior distingue os meios de execução (venefício seria exemplo característico de meio insidioso; meio cruel; e aquele que cause perigo comum, em enumeração exemplificativa) dos modos de execução (traição, emboscada, dissimulação, também expostos exemplificativamente).[25] No entanto, prefiro tratar dos meios e dos modos de execução em uma mesma seção por entender que são muito próximos.
Os meios e modos de realização do delito podem levar à qualificadora por causarem sofrimento desnecessário à vítima ou por serem mais reprováveis por impedirem a defesa. De qualquer modo, são mais reprováveis que os outros meios, aproximando-se da torpeza, não quanto aos motivos que ensejam o fato, mas quanto ao fato em si.
O sofrimento atroz pode advir do uso do fogo ou da asfixia como meios para concretização do crime. De outro modo, a utilização de explosivo, por causar perigo comum, é também mais reprovável. O que se equipara a essa reprovação é o emprego de traição ou outro meio a ela correspondente, embora por razões diferentes. Ocorre que a lei ao inserir “meio insidioso ou cruel” acabou por misturar aspectos diversos.
Pareceria adequado separar o inciso em dois, deixando numa parte os meios que levam ao sofrimento desnecessário da vítima (crueldade) e em outra aqueles relativos ao perigo comum. Mais ainda, o meio insidioso, ao contrário de constar do inciso III deveria estar no mesmo inciso que trata da traição e da emboscada (inciso IV).
O veneno e o fogo se equivalem por provocarem sofrimento desnecessário à vítima. O fogo, ao mesmo tempo, provoca extremo sofrimento à vítima e, na forma de incêndio, se equivale à explosão porque gera perigo comum. Destarte, mesmo não optando pela separação total dos meios, o inciso III deveria se reservar aos meios cruéis e que causassem perigo comum, uma vez que é difícil distinguir a qualificadora relativa ao fogo, se decorrente do perigo comum ou da crueldade.
Tem-se o hábito de considerar hediondo o homicídio resultante de várias facadas. Ocorre que nem sempre é assim, uma vez que se o primeiro golpe for letal, os demais não geram qualquer sofrimento ao morto, ou seja, nada acrescentará à vítima. A tradicional prática dos acusadores de se mostrarem imagens dos corpos das vítimas em decomposição, como prova da crueldade, leva aos mais diversos equívocos jurídicos nos tribunais do júri, uma vez que o momento a ser considerado é o do delito, não o da decomposição. A quantidade de golpes só será relevante se houver como precisar que uma das primeiras não foi causa instantânea da morte, ou que retirou a sensibilidade da vítima, eis que a dúvida deve militar em favor do réu. Lamentavelmente os tribunais entendem diversamente e consideram que a quantidade de golpes, por si só, prova a crueldade.
O meio insidioso “é aquele dissimulado em sua eficiência maléfica”,[26] é a perfídia, a fraude, o que se assemelha à dissimulação que leva à traição e à emboscada. Portanto, é necessário distinguir claramente as diversas previsões constantes do inciso III, até porque ele acaba confundindo qualificadoras distintas.
Traição é a quebra da confiança. É a própria perfídia. A surpresa se equivale a tal meio porque qualquer deles leva à impossibilidade ou diminuição da possibilidade de defesa da vítima (Inc. IV). Não se equivale a tais meios, a diferença de forças. O simples fato de um estar armado e outro não quer dizer que haja a incidência do inciso IV, uma vez que o outro meio que impossibilite ou dificulte a defesa da vítima há de ser aquele se assemelha à traição ou à emboscada. Assim, o agente telefonar para a vítima e informar que está indo matá-la por saber que ela não terá arma de fogo em casa, mesmo que o agente atue fortemente armado, não incidirá a qualificadora em comento porque ausente a surpresa ou a traição. A diferença de forças entre o autor e a vítima, por si mesma, não será suficiente para caracterizar a qualificadora do inc. IV do § 2º do art. 121 do CP.
7.4 Qualificadora pela violência doméstica e familiar
Segundo o § 2º-A do art. 121, são duas as hipóteses que levam às “razões de condição de sexo feminino”: (I) violência doméstica; (II) menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Esta última hipótese caracterizaria torpeza e pode ser classificada como qualificadora pelos motivos. No entanto, a hipótese do inciso I, “violência doméstica e familiar” decorre da circunstância, mas ficou mal escrita.
Em uma postura garantista, não se pode pretender incluir a violência contra a namorada porque a lei exige que, além da violência doméstica, seja concretizada a familiar. Como a namorada não integra a família, não poderia estar abrangida pela lei, a qual traz uma qualificadora circunstancial, que se verifica por se realizar violência doméstica e familiar.
Em face da exposição de motivos da lei, se a redação incluísse apenas a “violência doméstica” evitaria complicadores e divergências de entendimento. Todavia, a lei não é clara, exigindo, ainda, que a violência seja familiar, só se caracterizando se houver vínculo de parentesco ou união estável. Por isso, embora seja vedado, os tribunais interpretarão como se estivesse escrito “violência doméstica ou familiar”. Desse modo, sendo a vítima namorada ou parente mulher do agente poderá incidir a qualificadora. Todavia, é melhor esperar um pouco para saber como a jurisprudência efetivamente se consolidará.
O homicídio de mulher por outra com quem mantém união estável não poderá ser considerado feminicídio. Com efeito, ainda que a qualificadora se dê pelas circunstâncias, o inciso VI tem como requisito o fato de ser o crime praticado contra a mulher pela sua “condição de sexo feminino”. Ora, sendo a agente também mulher, a razão do inc. VI do § 2º do art. 121 do CP ficará esvaziada.
8. HOMICÍDIO PRIVILEGIADO-QUALIFICADO
Os crimes dolosos contra a vida serão julgados pelo tribunal do júri. Os jurados serão perguntados por meio de quesitos sobre a materialidade, a autoria e se o réu deverá ser absolvido (Código de Processo Penal, arts. 482-483). Caso a resposta seja positiva para os dois primeiros quesitos e negativa para o terceiro, a quesitação se desdobrará em outras, segundo as teses apresentadas pela defesa e depois pela acusação.
Sendo respondido positivamente o quesito do privilégio, o júri não poderá ser quesitado sobre o qualquer qualificadora subjetiva, eis que haverá incompatibilidade entre os motivos do crime. De qualquer modo, é pacífico o entendimento de que é admissível a quesitação sobre qualificadoras objetivas. Daí poderá decorrer o crime privilegiado-qualificado, por exemplo, logo depois de injusta provocação da vítima, dominado por violenta emoção, o agente pratica o crime valendo-se de explosivo.
As qualificadoras objetivas não podem prevalecer sobre os motivos do crime. Desse modo, não se pode considerar hediondo o homicídio privilegiado-qualificado. Portanto, reconhecido o privilégio não deverá incidir os rigores da Lei n. 8.072/1990.
Quanto ao feminicídio caracterizado pelas circunstâncias, poderá haver o privilégio, haja vista que a qualificadora será objetiva. No entanto, não poderá incidir a qualificadora na hipótese de menosprezo ou discriminação da mulher (CP, art. 121, § 2º-A, inc. II) porque aí haverá um motivo torpe que foi destacado do inc. I do § 2º do art. 121 do CP.
Ainda que se trate de crime com causa especial de aumento da pena, sendo considerado privilegiado, não poderá ser classificado como crime hediondo, porque a referida causa de aumento também será objetiva.
9. HOMICÍDIO DOLOSO MAJORADO
A pena privativa de liberdade é aplicada em três fases. A qualificadora incide na primeira fase – a da fixação da pena-base -, sendo que a segunda fase é representada pelas circunstâncias legais (agravantes e atenuantes genéricas), enquanto a terceira fase traz as causas de aumento e diminuição da pena.
O homicídio simples, o privilegiado e o qualificado poderão ter a incidência da causa especial de aumento da pena prevista na segunda parte do § 4º do art. 121 do CP. Não há incompatibilidade entre o privilégio e a causa de aumento, eis que aquele é subjetivo e a causa especial de aumento da parte final do § 4º será objetiva.
O marido que, dominado por violenta emoção, logo após injusta provocação da mulher, maior de 60 anos, vier a matá-la na presença de filhos ou netos, terá apenas a causa especial de aumento da pena do § 7º, senão haverá violação ao princípio ne bis in idem. Na hipótese, incidentes 2 causas de aumento, o Juiz deverá optar pelo aumento máximo (metade).
Para que incida a causa de aumento é necessário apenas que a vítima seja criança (menor de 12 anos de idade), adolescente menor de 14 anos, idoso (maior de 60 anos). O que interessa é a data do crime, não a da sentença.
Interpretar a lei, diante tamanha inflação legislativa, é um problema que tem assolado o mundo jurídico-criminal em todo planeta, a Itália, por exemplo, sofre com esse problema, apresentando legislação criminal paradoxal, entre o minimalismo e a banalização do Direito Criminal, isso em face de abandonar a extrema ratio.[27] O Brasil não fica isento de tal dificuldade. Observe-se que a atenuante genérica decorre do fato de ser o agente maior de 70 anos (CP, art. 65, inciso I), enquanto que a causa especial (CP, art. 121, § 4º, in fine) e a agravante genérica (CP, art. 61, inciso II, alínea h) têm como referência a idade de 60 anos.
Acerca da evolução legislativa que favorece os agentes em razão da idade, expus:
Em 1927 foram consolidadas as leis de assistência e proteção aos menores, onde se previu pela primeira vez, no ordenamento jurídico positivo pátrio, a redução de metade do prazo da prescrição da ação penal, em favor dos maiores de quatorze anos e menores de dezoito[28]. O legislador pátrio, em 1933, ampliou o número dos beneficiários com a redução do prazo prescricional, estendendo o benefício para os maiores de dezoito anos de idade e menores de vinte e um.[29] O CP de 1940 inovou, estendendo o benefício aos idosos que, nada data do crime, tivessem mais de setenta anos de idade.[30] A evolução do benefício não parou, tendo o legislador consignado na PG/1984 que o idoso poderá ser beneficiado quando, na data da sentença, for maior de setenta anos.[31]
A idade de 60 anos surgiu com o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 1.10.2003). Com isso, mormente ante o atual estágio de civilização e as correntes dominantes acerca do Direito Criminal, dever-se-ia entender também modificada a idade para os benefícios dos arts. 65 e 115 do CP, ou seja, em se tratando de agente maior de 60 anos, deve incidir a atenuante genérica e a redução da prescrição, respectivamente. Não é razoável majorar a pena se a vítima é maior de 60 anos e não atenuar se o agente tem a mesma condição em razão da idade.
Caso o agente acredite que a vítima tenha menos que a idade de 60 anos, mas a a situação fática seja diversa, poderá haver erro de tipo. No entanto, havendo dúvida a respeito, isso em face da aparência física da vítima, incorrerá em dolo eventual, gerando o aumento. A mesma interpretação deve ser feita em relação à menor de 14 anos, caso o agente pense que a vítima seja maior de 14 anos poderá haver erro de tipo, afastando a causa especial de aumento da pena.
Em face do princípio ne bis in idem, não poderá incidir a agravante do art. 61, inciso II, alínea h, do CP, na hipótese de homicídio doloso contra criança ou idoso, uma vez que a hipótese será considerada na terceira fase da aplicação da pena (causa de aumento) e aquela incidiria na segunda fase, ficando prejudicada.
Considero equivocada a presunção legal de que matar a filha menor de 14 anos, ou a mãe maior de 60 anos, na presença de ascendente ou descendente da vítima é mais grave do que matar o filho ou o pai na presença de descendente. Esse simbolismo de defesa da mulher é, no mínimo, irracional.
10. HOMICÍDIO E ERRO
Para entender adequadamente o que aqui será exposto é bom que o leitor busque textos específicos sobre a matéria, pois aqui o assunto será apresentado muito sucintamente.
Ignorar a lei será inescusável, mas errar sobre o seu sentido poderá constituir erro de tipo (CP, art. 20). Outrossim, errar sobre a ilicitude do fato poderá constituir erro de proibição escusável (CP, art. 21).
O erro poderá ser acidental ou essencial, sendo que este recai sobre elemento do tipo, enquanto acidental se dará quanto aos meios, à vítima ou ao objeto material do crime.
O erro de pessoa levará à aplicação do art. 20, § 3º, do CP, pelo qual não se consideram “as condições e as qualidades da vítima, senão as da pessoa contra a qual o agente queria praticar o crime”. Porém, o erro na execução leva à aberratio ictus (art. 73 do CP) ou à aberratio delicti (art. 74 do CP). Caso o agente atinja, além da pessoa visada, terceira pessoa, isso porque sua arma é muito potente, haverá concurso formal ideal (CP, art. 70, caput, 1ª parte). No entanto, se o agente prever o dano a outrem, além da pessoa visada, e assumir o risco de produzi-lo, haverá concurso formal imperfeito (CP, art. 70, caput, parte final).
Em se tratando de concurso formal ideal, a pena não poderá ser superior à do concurso material (CP, art. 70, parágrafo único), isso porque o critério da exasperação para aplicação da pena, no caso de concurso formal ideal, decorre do idealismo humanitário, não se podendo admitir pena superior à que corresponderia à realidade.
O erro de tipo excluirá o dolo, mas permitirá a punição do agente a título de negligência (CP, art. 20, caput). O mesmo se dará no caso de descriminante putativa (CP, art. 20, § 1º). Nesta, tenho que se trata de erro de proibição, não de erro de tipo permissivo como pretende a teoria finalista da ação.
O erro inevitável sobre a ilicitude do fato, erro de proibição, isentará de pena porque excluirá a culpabilidade, enquanto que o evitável diminuirá a censura, permitindo reduzir a pena de 1/6 a 1/3 (CP, art. 21, caput). Também, isentará de pena a obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal (CP, art. 22), até porque a obediência hierárquica constituirá espécie de erro de proibição.
No militarismo, é frequente o superior determinar ao conscrito que está de sentinela que ele determine a quem se aproxime para avançar a senha. Não o fazendo, quem se aproxima estará se colocando em perigo porque a sentinela disparará para o alto uma vez e depois atirará na pessoa. Imagine-se que a pessoa que se aproximou da sentinela seja surda e esteja buscando informações sobre como sair do local. O assunto estará adstrito ao Direito Criminal Militar, mas o raciocínio será o mesmo, ou seja, a ordem não será manifestamente ilegal e só será responsabilizado pelo evento morte do estranho o comandante.
Fala-se em erro sucessivo, ou aberratio causae, que será aquele em que o agente pensando ter consumado homicídio procurará ocultar o cadáver matando a vítima por asfixia. Tratar-se-á de hipótese de erro essencial, uma vez que o agente terá errado sobre elemento do tipo, eis que pensará estar a vítima morta. De qualquer modo, o erro sucessivo é irrelevante, pois haverá num nexo causal doloso entre o evento morte e a ação do agente. Todavia, não se pode olvidar o alerta de Nelson Hungria de que um grande número de autores, notadamente alemães, tende a ver, na hipótese, o concurso de homicídio tentado e homicídio negligente,[32] posição que parece estar superada na doutrina hodierna.
12. HOMICÍDIO NEGLIGENTE
12.1 Complementação das noções expostas
Neste ensaio discorri sobre o assunto desta seção. No entanto, algumas outras considerações são necessárias, mormente em relação aos delitos de trânsito.
Delito negligente é aquele em que o agente sem desejar o resultado e sem assumir o risco de produzi-lo, acaba por provocar o dano por se conduzir sem atender ao seu necessário dever de cuidado. São várias as formas em que o agente pode se conduzir para concretizar negligentemente o resultado proibido, o que faz com que os tipos de delitos negligentes sejam abertos, o do § 3º, do art. 121, do CP, por exemplo, enuncia: “se o homicídio é culposo”.
A embriaguez, que será circunstância majorante do homicídio negligente, não podendo influenciar na dosimetria da pena base, unicamente em face dela. A embriaguez voluntária ou negligente afetará a coordenação e a capacidade de entendimento da ilicitude da conduta do agente, mas não o isentará de pena (CP, art. 28, inciso II), mas se o agente se embriagar para poder praticar o crime incidirá a agravante do art. 61, inciso II, alínea “l” do CP, o que se dará apenas no caso de homicídio doloso. No caso de homicídio negligente, tem-se pretendido transformar a conduta negligente do embriagado em dolosa, o que representará retrocesso.
A inflação legislativa e a influência dos movimentos de lei e ordem têm gerado imbróglios quase intransponíveis. Um médico negligente que matar um paciente por esquecer instrumento cirúrgico dentro de seu corpo, não praticará crime menos censurável que aquele que, devido a um grande problema, dirigir veículo automotor acima da velocidade permitida, a fim de solucionar tal problema. Entretanto, a pena do médico variará de 1 a 3 anos (CP, art. 121, § 3º), enquanto a do condutor variará de 2 a 4 anos (Lei n. 9.503, de 23.9.1997, art. 302). Entendo que a pena da legislação especial, por ferir a necessária racionalidade ou proporcionalidade, é inconstitucional, mas essa é uma posição que não encontra eco nos tribunais pátrios.
12.2 Delito negligente majorado
A pena do médico será majorada porque incidente o CP, art. 121, § 4º, 1ª parte, portanto, variará de 1 ano e 4 meses a 3 anos e 9 meses, o que continuará sendo menor que a pena aplicável ao agente condutor de veículo. Caso este seja motorista profissional, a pena variará de 2 anos e 8 meses a 6 anos, o que mantém a irracionalidade legislativa.
No delito negligente não incide a causa de aumento objetiva decorrente da idade da vítima, uma vez que não está prevista em lei. Porém, se a pessoa não prestar socorro à vítima ou procurar se evadir da ação da Justiça, a causa de aumento estará presente, sendo de 1/3 nos crimes do CP e de 1/3 a 1/2 nos crimes de trânsito (Lei n. 9.503/1997, art. 302, parágrafo único).
As hipóteses de majoração do CP (art. 121, § 4º, 1ª parte) são as mesmas do art. 302, parágrafo único, inciso II e IV, da Lei n. 9.530/1997. A esse parágrafo único se acresceram duas hipóteses: (a) ausência de Carteira de Habilitação; (b) prática do delito na faixa de pedestres. Porém, o aumento que se dará na 3ª fase será de 1/3 a 1/2, competindo ao Juiz ponderar sobre a gravidade da conduta, a fim de decidir se o aumento será feito com base no mínimo ou no máximo autorizado por lei.
12.3 Perdão judicial
Já mencionei o perdão judicial neste ensaio e, ratifico, não ser simpático à incoerência, critico a Súmula 18 do STJ porque não posso entender o perdão sem a declaração da culpa. Entendo que a natureza da sentença que condenar e conceder perdão judicial será essencialmente condenatória, subsistindo os efeitos civis da condenação. Outrossim, entendo, ao arrepio da jurisprudência, aplicável a analogia in bonam partem, estendendo-se o perdão aos casos que a lei não prevê.
Os mesmos tribunais que não admitem a analogia, a fim de permitir a extensão do perdão judicial a outros casos, o admitem nas hipóteses de homicídios negligentes de trânsito. Porém, o artigo que previa o perdão judicial ao homicídio de trânsito era o 300 da Lei n. 9.503/1997, mas ele foi vetado e as razões do veto são as seguintes: “O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito Penal. Deve ser vetado, porém, porque as hipóteses previstas pelo § 5° do art. 121 e § 8° do artigo 129 do Código Penal disciplinam o instituto de forma mais abrangente”.
Ao vetar o art. 300 o legislador expressou sua vontade. No entanto, ao ser publicada, a lei ganhou vida e vontades próprias. Concordo com a aplicação da analogia, mas não se poderá argumentar apenas que a simples vontade do legislador será elemento suficiente para se aplicar analogia ao caso de homicídio de trânsito e não se permitir a analogia aos demais casos.
Ao meu sentir cabível seria o perdão judicial, mesmo que não existisse o veto do art. 300 da Lei n. 9.503/1997, eis que sou favorável à aplicação da analogia in bonam partem. Porém, adotando a postura dos tribunais quanto aos crimes em geral, não seria possível o perdão judicial em caso de delito negligente de trânsito, uma vez que se não é possível a analogia, vetado o art. 300 nupercitado, não mais seria possível falar em perdão judicial aos delitos de trânsito. No entanto, ratifico, a incoerência judicial, leva à aplicação da analogia no caso de homicídio negligente de trânsito, mas sem a admitir em outras hipóteses.
Ainda tratando das incoerências consolidadas, observe-se o que dispõe o art. 89, caput, da Lei n. 9.099/1995:
Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).
O STF editou a Súmula n. 723 e o STJ a de n. 243, ambas no sentido de impedir a suspensão se houver concurso de crimes ou causa de aumento potencialmente incidente ao caso. Contra elas já me manifestei alhures,[33] mas sem encontrar eco nos tribunais. Então, pensando coerentemente e adotando a posição consolidada nos tribunais, incidente uma causa especial de diminuição da pena, cabível será suspensão condicional do processo, ainda que a pena mínima cominada ao delito seja superior ao um ano, por exemplo, se o agente, no peculato apropriação, se arrepende voluntariamente, dever-se-ia entender incidente a suspensão, eis que a pena poderá ser reduzida de 1/3 a 2/3 (CP, art. 312, caput, c/c art. 16). Porém, não consigo verificar um homicídio negligente de trânsito que permita a suspensão condicional do processo, até porque os crimes negligentes não admitem tentativa.
Quanto ao homicídio negligente abrangido pelo CP, embora não seja delito de menor potencial ofensivo, cabível será a suspensão condicional do processo, desde que atendidos os requisitos do art. 89 transcrito.
12.4 Concurso em/de homicídios negligentes
O concurso em homicídios negligentes se relaciona ao concurso de pessoas (mais de uma pessoa praticando um homicídio), enquanto que o concurso de homicídios negligentes leva à pluralidade de crimes (mais de um crime se relacionando), existindo entre eles conexão material, que pode ser teleológica, causal, ocasional ou legal.
Sou contrário à concorrência de sujeitos ativos em delitos negligentes. Com efeito, caso uma enfermeira, perceba que o frasco de um medicamento está violado e negligentemente ministre veneno inserido nele por um médico que dolosamente deseja a morte do paciente, não terá concorrido para o homicídio. A negligência da enfermeira poderá até constituir um homicídio negligente, mas a conduta do médico, por faltar liame subjetivo, constituirá homicídio doloso. O médico, por gerar o erro, deverá ser responder segundo o art. 20, § 2º, do CP, portanto, homicídio doloso.
Inexistindo liame subjetivo, não será possível a participação dolosa em homicídio negligente, nem a negligente em homicídio doloso. Porém, a doutrina majoritária pátria (posição que tem prevalecido em concursos públicos), admite a coautoria em homicídios negligentes. Entendo que os agentes não terão liame subjetivo ao resultado, apenas pretenderão atuar negligentemente, o que induz à existência de duas autorias diversas, paralelas, não em concurso de pessoas. Essa é a posição da doutrina alemã, esposada por Juarez Cirino dos Santos.[34]
O concurso material em delitos negligentes será possível (art. 69 do CP), desde que o agente pratique os fatos em momentos diversos e sem estarem preenchidos os requisitos do art. 71 do CP. Também será possível o concurso formal ideal se os crimes forem praticados mediante uma única ação ou omissão (CP, art. 69, art. 70, 1ª parte).
Não obstante a relutância dos tribunais em aplicar a continuidade delitiva quando não há um nexo subjetivo unindo os fatos, a súmula n. 605 do STF está prejudicada e é cabível a continuidade delitiva em homicídios negligentes, uma vez que foi adotada a teoria objetiva, bastando estarem preenchidos os requisitos do art. 71, caput, do CP.
13. GENOCÍDIO
13.1 Lei n. 2.889, de 1.10.1956, Código Penal Militar e Estatuto de Roma
O genocídio surgiu logo após a segunda grande guerra, visando a atingir os derrotados, mais especificamente os alemães. No Brasil, ele não constava da legislação criminal, tendo emergido com a Lei n. 2.889, de 1.10.1956 que dispõe:
Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;
Será punido:
Com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a;
Com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra b;
Com as penas do art. 270, no caso da letra c;
Com as penas do art. 125, no caso da letra d;
Com as penas do art. 148, no caso da letra e;
Art. 2º Associarem-se mais de 3 (três) pessoas para prática dos crimes mencionados no artigo anterior:
Pena: Metade da cominada aos crimes ali previstos.
Art. 3º Incitar, direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes de que trata o art. 1º:
Pena: Metade das penas ali cominadas.
§ 1º A pena pelo crime de incitação será a mesma de crime incitado, se este se consumar.
§ 2º A pena será aumentada de 1/3 (um terço), quando a incitação for cometida pela imprensa.
Art. 4º A pena será agravada de 1/3 (um terço), no caso dos arts. 1º, 2º e 3º, quando cometido o crime por governante ou funcionário público.
Art. 5º Será punida com 2/3 (dois terços) das respectivas penas a tentativa dos crimes definidos nesta lei.
Art. 6º Os crimes de que trata esta lei não serão considerados crimes políticos para efeitos de extradição.
É complicado porque se verifica que o genocídio terá pena menor do que o homicídio qualificado com causa especial de aumento de pena. Mais incoerente, a pena do feminicídio poderá ser ainda maior do que o genocídio. Veja-se, a pena do homicídio qualificado, de 12 a 30 anos, se majorado de 1/3, a pena mínima passará a ser 16 anos. Quanto ao feminicídio, o aumento poderá chegar à metade, o que fará com que a pena mínima seja 16 a 18 anos. Como para o genocídio não há previsão de causa especial de aumento da pena, a pena mínima, ela será de 12 anos.
No caso de crime militar, afastar-se-á a Lei n. 2.889/1956, aplicando-se o Código Penal Militar (CPM). Incidirá o art. 208 se o crime for praticado em tempo de paz e o art. 401 se ocorrer em tempo de guerra. Porém, em caso de omissão da Justiça pátria, poderá incidir a jurisdição militar, em face da subsidiariedade do Estatuto de Roma.
O CPM, para o tempo de paz, disciplina o genocídio da seguinte maneira:
Genocídio
Art. 208. Matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou pertencente a determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial desse grupo:
Pena - reclusão, de quinze a trinta anos.
Casos assimilados
Parágrafo único. Será punido com reclusão, de quatro a quinze anos, quem, com o mesmo fim:
I - inflige lesões graves a membros do grupo;
II - submete o grupo a condições de existência, físicas ou morais, capazes de ocasionar a eliminação de todos os seus membros ou parte dêles;
III - força o grupo à sua dispersão;
IV - impõe medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
V - efetua coativamente a transferência de crianças do grupo para outro grupo.
Em tempo de guerra, a disposição legal é a seguinte:
Genocídio
Art. 401. Praticar, em zona militarmente ocupada, o crime previsto no art. 208:
Pena - morte, grau máximo; reclusão, de vinte anos, grau mínimo.
Casos assimilados
Art. 402. Praticar, com o mesmo fim e na zona referida no artigo anterior, qualquer dos atos previstos nos ns. I, II, III, IV ou V, do parágrafo único, do art. 208:
Pena - reclusão, de seis a vinte e quatro anos.
Verifica-se o absurdo de ter o feminicídio majorado pena maior do que o genocídio praticado em tempo de paz. Pior ainda será na hipótese de casos assimilados, em que a pena do homicídio qualificado será muito maior.
O Estatuto de Roma institui a Corte Internacional Criminal, sendo que dele se extrai:
Art. 6º. Crime de genocídio.
Para efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocício” qualquer um dos atos que a seguir enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:
a) homicídio de membros do grupo;
b) ofensas graves à integridade do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo;
e) transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.
O genocídio, embora tenha origem remota, não está classificado como crime contra a ordem internacional, contra a pessoa ou contra a humanidade. É apenas o principal deles, destacado dos demais constantes do Estatuto de Roma.
Nos primórdios, os grupos se dizimavam como forma de vingança (divina, privada ou pública). Não havia forma de proteção jurídica. Na verdade, a proteção se dava por meio da força, manifestada por meio da guerra. Destarte, foi com o Direito Criminal Militar romano que emergiram as primeiras tentativas de se buscar o respeito aos direitos dos povos dominados.
Não proibido pelo Direito Criminal, o genocídio sempre se manifestou ao longo dos anos, mormente durante os conflitos armados. Porém, a motivação e a perseguição feita aos judeus durante a Segunda Grande Guerra exigiu a criminalização do genocídio.
Nos tempos modernos, o genocídio surgiu na ordem jurídica, em 8.8.1945, como delito contra a ordem internacional, a fim de atingir os derrotados na segunda grande guerra, o que sem dúvida representou violação ao princípio da legalidade.[35] O CP brasileiro já havia sido editado, portanto, o genocídio só veio a constar, no meio interno, da Lei n. 2.889, de 1.10.1956. Nesta, não há uma classificação do genocídio. No entanto, no CPM (Decreto-Lei n. 1.001, de 21. 10.1969), ele consta do Título IV – Dos Crimes contra a pessoa -, eis que constitui seu capítulo II (art. 208). O CP de 1969 manteve essa visão, ou seja, o genocídio se classificou como crime contra a pessoa (art. 128).
No Estatuto de Roma, aprovado pelo Decreto Legislativo nº 112, de 6.6.2002, e regulamentado pelo Dec. n. 4.388, de 25.9.2002, não classificou o genocídio segundo qualquer daquelas espécies mencionadas, ocorre que esta norma é de Direito Internacional, fugindo da proposta deste ensaio.
Os comentários que se seguirão, referem-se ao Direito Criminal interno, mas não se pode olvidar que o Estatuto de Roma é subsidiário, aplicando-se ao fato concretizado que não tiver sido submetido à jurisdição interna. Desse modo, havendo omissão da Justiça brasileira, incidirá a jurisdição internacional, a ser exercida pela Corte Internacional Criminal (CIC).
13.2 Espécies de genocídio e classificação doutrinária
As motivações do genocídio são diversas, a saber: (a) raça – o racismo pode levar ao genocídio; (b) etnia – a rejeição por pessoas provindas de determinadas regiões também levam ao genocídio; (c) religião – as diferenças religiosas têm levado às várias guerras e às muitas tentativas de exterminação de grupos; (d) cultura – muitas vezes se procura eliminar determinadas culturas, por exemplo, danças folclóricas, língua e etc., descaracterizando uma nação.
Fala-se em genocídio: (a) físico – assassinato e atos que podem causar a morte; (b) biológico - este se caracteriza pelo fato de se esterilizar pessoas, ou miscigenar membros do grupo, extinguindo-o. Tal espécie de genocídio é classificada pelos meios utilizados para sua concretização, não pela sua motivação; (c) cultural – a ordem jurídica moderna não reconhece o genocídio cultural. O Afeganistão, por exemplo, experimentou a destruição de todos seus símbolos religiosos, o que foi feito com a intenção de se destruir um pensamento religioso no País. Outro exemplo é o que está acontecendo no Iraque neste ano de 2015. No entanto, tal delito pode até constituir o dano ao patrimônio artístico, cultural ou histórico, mas não chega a caracterizar o delito de genocídio.
Diz-se que a norma criminal será incompleta ou imperfeita se não apresentar o preceito (sanção), sendo exemplo típico de tal espécie a Lei n. 2.889/1956 porque remete as penas do genocídio às do CP.
A norma em branco exige complementação, sendo, portanto, incompleta. Destarte a classificação é inócua. Pior, toda norma incriminadora depende de complementação, o que autoriza afirmar ser despropositada a classificação. Tanto é que a norma criminal incompleta é denominada de norma em branco em sentido amplo. Tal classificação, portanto, serve apenas para a cultura dos concursos públicos.
É importante verificar que o genocídio não exige que o atentado atinja mais de uma pessoa. O que interessa é o dolo, ou seja, a vontade de atingir determinado grupo racial, étnico, religioso etc.
Conforme exposto, em face da lei hedionda, a vida ficou em segundo plano, mas, embora o homicídio não o fosse, o genocídio era crime hediondo. Com o advento da Lei n. 8.930/1994 o genocídio continuou figurando no rol dos crimes hediondos (art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 8.072/1990).
O genocídio se classifica como crime doloso (exige o querer ou o assumir o resultado. Não há genocídio negligente), plurissubssistente (a conduta pode ser fracionada, podendo ser praticado na forma tentada), de dano (exige a ofensa ao objeto jurídico), material (exige a transformação física na natureza), unissubjetivo (pode ser praticado por uma única pessoa), comum (pode ser praticado por qualquer pessoa), instantâneo (pode se consumar no momento da ação ou omissão delituosa); hediondo (Lei n. 8.072/1990, art. 1º, parágrafo único); e de dupla subjetividade passiva, eis que exige necessariamente mais de um objeto jurídico (mesmo que uma única pessoa seja atingida, é necessário que a intenção seja exterminar determinado grupo, portanto, mais de uma vida estará sendo visada).
A Lei n. 8.930/1994 não alterou o art. 9º da Lei n. 8.072/1990, o que fez com que o genocídio tenha sido excluído da previsão da majorante prevista no artigo nupercitado. Ressalte-se, no entanto, que tal preceito foi tacitamente revogado.
Em se tratando de crime julgado pela CIC, outros rigores serão incidentes, tais quais, imprescritibilidade e pena em caráter perpétuo. Também, o brasileiro nato poderá ser entregue àquela Corte para julgamento ali.
14. CONCLUSÃO
O homicídio tem disciplina legal anterior ao genocídio. Este sequer consta do CP, enquanto que o homicídio consta desde a redação original. Alterações posteriores trouxeram causas de aumento de pena em razão da idade, o perdão judicial ao homicídio negligente, bem como as causas especiais de aumento da pena pelo extermínio e, finalmente o feminicídio.
O genocídio surgiu na ordem internacional em 1945, estando na legislação extravagante brasileira desde 1956. Ele consta, também, do CPM e do Estatuto de Roma. Porém, ante as recentes alterações, a pena do homicídio será maior do que a do genocídio, na hipótese de incidirem causas especiais de aumento da pena sobre o homicídio.
O homicídio poderá ser negligente, tendo pena menor no CP do que no Código de Trânsito. O do CP poderá ensejar suspensão condicional do processo m favor do agente, enquanto o do Código de Trânsito não admitirá o benefício, haja vista a pena mínima cominada ser superior a um ano.
O feminicídio surgiu de forma atabalhoada, apresentando complicadores, a partir da literalidade da lei, introduzindo uma nova espécie de qualificadora para o homicídio, que é a decorrente das circunstâncias. Além da qualificadora, a nova lei trouxe novas causas especiais de aumento da pena, mas que podem suscitar questionamentos futuros quanto à constitucionalidade porque existem problemas quanto à proporcionalidade das penas.
[1] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos do direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 78.
[2] Apud HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.958. vol. 5, p. 27. Por entender que o sujeito ativo do crime é sempre o homem e que o delito pressupõe injustiça, o autor prefere outra velha definição: “violenta eliminação da vida de um homem” (violenta vitae hominis ademptio).
[3] Em Aristóteles, a proporcionalidade pode ser justa, mas não a é de maneira irrestrita. Ele informa que para Radamanto a justiça significa: “se alguém sofrer o mesmo que infligiu, então teremos a justiça feita”. Porém, temos que distinguir os atos voluntários dos involuntários senão geraremos reciprocidade desproporcional. (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural [Os pensadores], 1996. Livro V, Cap. 5, p. 201).
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 1.987. p. 17.
[5] BRASIL. Câmara dos Deputados. Luiz Couto (PT/PB). Justificativa do Projeto de Lei n. 370, apresentado em 8.3.2007. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao= 344218>. Acesso em 13.3.2015, aos 20 minutos.
[6] BRASIL. Câmara dos Deputados. Luiz Couto (PT/PB). Justificativa do Projeto de Lei n. 370, apresentado em 15.7.2013. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=133307&tp=1>. Acesso em: 13.3.2015, à 1h21.
[7] BRASIL. Câmara dos Deputados. Poder Executivo. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=215459>. Acesso em: 13.3.2015, à 2h10.
[8] FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: notas sobre a Lei n. 8.072/1990. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. passim.
[9] BRASIL. Ministério da Justiça. Maurício Corrêa. Exposição de Motivos n. 397, de 25.8.1993. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12OUT1993.pdf#page=35>. Acesso em: 13.3.2015, às 8h.
[10] FRANCO, Alberto Silva. Crimes... Op cit. Suplemento de atualização, p. 13.
[11] Ibidem, p. 5-6.
[12] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p.
[13] A expressão dar à luz, utilizada pelo autor, não é adequada, eis que a mulher parturiente não será poste para “dar à luz”. Ela entrará em trabalho e parto e virá a parir, não existindo qualquer demérito em ato tão nobre.
[14] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 2, p. 16.
[15] BRASIL. STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico= jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_601_700>. É interessante notar que a Súmula n. 605 do STF foi aprovada no dia 17.10.1984 e publicada no Diário de Justiça do dia 29.10.1984, Seção 1, p. 18113, quando a Lei n. 7.209, de 11.7.1984, já tinha sido publicada, em 13.7.1984, e estava em vacatio legis.
[16] No art. 317 do CP (corrupção passiva) encontraremos o exemplo de uma exceção a essa regra, pois o exaurimento será causa especial de aumento da pena (§ 1º).
[17] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 651.
[18] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 26.
[19] FRANCO, Alberto Silva. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. v. 1, t. 2, p. 121.
[20] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 3. ed. São Paulo: José Bushatsky, 1.976. Parte Especial, vol. 1, p. 74.
[21] Precedentes a respeito: FRANCO, Alberto Silva et al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1.1997. v. 1, t. II, p. 1891-1866.
[22] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2, p. 54-55.
[23] MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato Nallini. Código penal interpretado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 925.
[24] COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal: curso completo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 257.
[25] COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito... Op. cit. p. 257.
[26] PRADO, Luiz Regis; CARVALHO, Érika Mendes de; CARVALHO, Gisele Mendes de. Curso de direito penal brasileiro. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 639.
[27]. TEMONTI, Giulio. Apresentação. GRAZIANO, Giuseppe. Il futuro del diritto penale. Roma: Seam, 1999. p. 11.
[28] Dec. Federal n. 17.943-A, de 12.10.1927, art. 83.
[29] Dec. Federal n. 22.494, de 24.2.1933, art. 1o.
[30] CP/1940, art. 115.
[31] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 129-130.
[32] HUNGRIA, Nelson. Op. cit. v. 5, p. 91.
[33] MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2.005. p. 82.
[34] SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2.000. p. 286. Idem. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006. p. 361.
[35] GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg: 1945-1946. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2.004. p. 157-172.
Procurador Federal; Concluiu o Curso de Formação de Oficiais (APMG) e Graduou-se em Direito (UniCEUB); Especialista em Direito Penal e Criminologia (UniCEUB); e em Metodologia do Ensino Superior (UniCEUB); Mestre (UFPE) e Doutor em Direito (UNZL); Professor, Procurador Federal e Advogado; Autor dos livros "Prescrição Penal", "Execução Criminal: Teoria e Prática" e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (Editora Atlas); e de vários artigos jurídicos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIDIO ROSA DE MESQUITA JúNIOR, . Do homicídio ao genocídio e deste ao feminicídio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 mar 2015, 23:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/43577/do-homicidio-ao-genocidio-e-deste-ao-feminicidio. Acesso em: 21 nov 2024.
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