Uma decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferida no Recurso Ordinário Constitucional no Habeas Corpus nº. 52.086/MG, da Relatoria do Ministro Jorge Mussi, decidiu pela impossibilidade da incidência do art. 397 do Código de Processo Penal no procedimento do Tribunal do Júri.
Segundo o voto, "os artigos 406 e seguintes do Código de Processo Penal regulamentam o procedimento a ser seguido nas ações penais deflagradas para a apuração de crimes dolosos contra a vida, assim, rito especial em relação ao comum ordinário, previsto nos artigos 394 a 405 do referido diploma legal.Por conseguinte, e em estrita observância ao princípio da especialidade, existindo rito próprio para a apuração do delito atribuído ao recorrente, afastam-se as regras do procedimento comum ordinário previstas no Código de Processo Penal, cuja aplicação pressupõe, por certo, a ausência de regramento específico para a hipótese. Se as normas que regulam o processo e o julgamento dos crimes dolosos contra a vida determinam que o exame da viabilidade de absolvição sumária do réu só deve ocorrer após o término da fase instrutória, não há dúvidas de que deve ser aplicado o regramento específico, pois, como visto, as regras do rito comum ordinário só têm lugar no procedimento especial quando nele houver omissões ou lacunas.4. Recurso desprovido."
Entendemos equivocada a decisão da Corte Superior. Ora, o Código de Processo Penal, em seu art. 394, § 4º., estipula que as disposições dos arts. 395 a 397 aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não por ele regulados.
Como se sabe, a Lei nº. 11.719/2008 alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal relativos à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos procedimentos.
O art. 397 trouxe uma novidade importante em nosso ordenamento jurídico, que há muito carecia de uma disposição como esta. Trata-se da possibilidade do Juiz penal, desde logo, julgar antecipadamente o caso penal[1], sem necessidade, sequer, de submeter o acusado ao interrogatório e às demais “cerimônias degradantes” do processo penal. É o que a lei chama de absolvição sumária (também prevista no procedimento do Júri, art. 415). Portanto, agora, temos duas hipóteses de absolvição sumária.
Diz o art. 397 que após a resposta preliminar “o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: “I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; (art. 23 do Código Penal). “II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; tratando-se de réu inimputável é indispensável o processo, com a presença de um curador, além do advogado, para possibilitar, confirmando-se a ilicitude e antijuridicidade do fato, a aplicação de uma medida de segurança (absolvição imprópria, nos termos do art. 386, parágrafo único, III).“III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; (ausência de tipicidade, impossibilidade jurídica do pedido).“IV - extinta a punibilidade do agente.” (art. 107 do Código Penal).
Estas hipóteses diferem formal e substancialmente da rejeição liminar da peça acusatória (ou do não recebimento, como prefiram[2]), pois a absolvição sumária é uma decisão de mérito, passível de fazer coisa julgada material (intangível e absolutamente imutável) e que desafia o recurso de apelação (art. 593, I). Ressalvamos apenas que na hipótese de decisão extinguindo a punibilidade, o recurso será o de apelação apenas se foi proferida nesta fase, pois se a decisão foi anterior (na fase do inquérito, por exemplo) ou mesmo durante o processo, como permite o art. 61 do Código, o recurso oponível continua sendo o recurso em sentido estrito (art. 581, VIII, não revogado).
Também entendemos que o Juiz, até para que se evite uma citação desnecessária do denunciado, ao invés de receber a peça acusatória e determinar a citação do acusado para respondê-la e só então absolvê-lo, deve desde logo rejeitar a denúncia ou queixa (com base no art. 395, II, segunda parte), caso estejam presentes uma das circunstâncias do art. 397, seja por impossibilidade jurídica do pedido (inciso III) ou por falta de interesse de agir (interesse-utilidade, incisos I, II e IV).
Sobre a absolvição sumária, veja-se estes julgados:
“O dever de fundamentar as decisões judiciais tem guarida constitucional (art. 93, IX). O Juízo de primeiro grau deve fundamentar decisão que não absolva sumariamente o acusado. Sucinto despacho recebendo a inicial alegando que tese defensiva se confunde com mérito da causa. Teses defensivas apresentadas na resposta à acusação devem ser apreciadas na resposta à acusação devem ser apreciadas pelo Juízo, mesmo quando se trata de alegação de tipicidade, já que as condutas imputadas ao acusado estão descritas na inicial acusatória. Nulidade configurada. Ordem concedida para anular a ação penal desde o recebimento da denúncia e determinar que seja proferida nova decisão, desta vez fundamentada” (TJSP – 8ª C. - HC 990.09183184-0 – rel. Louri Barbiero – j. 08.10.2009).
“A Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, criou hipótese de absolvição sumária, que admite o reconhecimento da insignificância, seja como excludente da ilicitude (como condição objetiva de punibilidade), seja como atipia (como condição de tipicidade). Como fase processual nova, somente pode incidir sobre os feitos após sua vigência - princípio da imediatidade, o que se verifica no caso presente, consideradas a vacatio legis e a data em que proferida a decisão. A segurança jurídica da decisão esperada recomenda o prestigiamento dos precedentes, especialmente da Suprema Corte, a dar a solução definitiva em tema de tipicidade - na via do habeas corpus. Possível, na data da decisão, a absolvição sumária, e não sendo admissível o prosseguimento da persecução criminal por fato reconhecidamente atípico pela reiteração jurisprudencial nesta Corte de tema exclusivamente de direito, mantém-se o excepcional trancamento da investigação criminal.” (TRF 04ª R.; RN 2008.72.11.000622-1; SC; Sétima Turma; Rel. Des. Fed. Néfi Cordeiro; Julg. 17/02/2009; DEJF 04/03/2009; Pág. 764).
“Defesa de que alegou tudo o que interessava na fase do art. 396-A do CPP. Direito à apreciação fundamentada das preliminares e matérias arguidas em sede de resposta à denúncia. Resposta que exige do magistrado decisão complexa e fundamentada. Decisão que não explicitou os motivos da rejeição do pedido de absolvição sumária. Nulidade. Ordem concedida” (TJSP – 14ª C. - HC 990.09.123605-5 - rel. Herman Herschander – j. 13.08.2009).
Pergunta-se: qual a utilidade da resposta preliminar no procedimento do Júri, senão obter, desde logo (e não somente após a audiência de instrução) a absolvição sumária? A propósito, vejamos as observações de Gabriela Montagnana e Natália Penteado Sanfins:
"O novo art. 397 do CPP nasceu de um desmembramento efetuado pelo legislador, que, revogando o art. 43 do CPP, alterou os arts. 395 e 397 do mesmo Diploma Legal, transferido-lhes o seu conteúdo. O atual art. 43 trata das hipóteses que ensejam rejeição da peça acusatória, sejam estas quando o fato narrado evidentemente não constituir crime; quando presentes causas extintivas da punibilidade ou ausentes as condições da ação penal. As duas primeiras hipóteses cuidam de questões relativas ao próprio mérito da ação penal, sendo majoritário o entendimento doutrinário e jurisprudencial, no sentido de ostentar tal decisão eficácia típica de coisa julgada material, o que se pode constatar, aliás, a partir da leitura do parágrafo único do mesmo art. 43. A nova legislação tratou de desmembrar o art. 43, para adotar, expressamente, com a disposição do art. 397, referido posicionamento, conferindo, a essa decisão, natureza jurídica de sentença definitiva. Não há que se sustentar, por derradeiro, não possuir o juiz togado competência para proferir sentença de absolvição sumária com base no art. 397, no procedimento do júri. Note que, referida decisão possui as mesmas conseqüências daquelas por tanto vezes proferidas pelo magistrado, com base nos incisos I e II do art. 43, sem que tenham sido, até hoje, objeto de qualquer crítica. O que se quer dizer, como se percebe é que continua sendo o juiz togado competente para proferi-la, porém, a partir da vigência da novel legislação, com fundamento em outro dispositivo legal, seja este o art. 397 do CPP." (Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1871, 15 ago. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11607>. Acesso em: 15 abr. 2015).
Este entendimento é corroborado por Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho:
"Cabe a absolvição sumária do rito comum (CPP 397) na fase de recebimento do CPP 406? Sim, até porque o CPP 415 abarca as mesmas hipóteses de absolvição sumária, acrescentando mais uma (estar provada a inexistência do fato). O juiz do Júri integra o Tribunal do Júri, por isso não há usurpação da competência constitucional." (Disponível em http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=d468cb7a-269b-4f36-971a-ce239fd27866&groupId=10136 Acesso em: 15 abr. 2015).
Na jurisprudência, destacamos este julgado:
"Não há previsão legal para a rejeição da denúncia por questões de mérito, senão por questões processuais-formais (CPP, art. 395). A excludente de ilicitude da legítima defesa, adotada pelo MM. Juiz a quo como fundamento para a rejeição, acaso devidamente configurada, impõe a absolvição sumária, nos termos do art. 397 do mesmo Código, contanto que se observe, previamente, o rito procedimental previsto nos arts. 396 e 396-A do CPP. Também na hipótese de procedimento afeto ao Tribunal do Júri, caso dos autos, já que se trata de imputação de homicídio, não há possibilidade de rejeição da denúncia fundada em questões de mérito. Deve o juiz absolver sumariamente o réu, se for o caso, após o sumário de culpa. Mesmo para a absolvição sumária, quer no Juízo singular quer finalizado o sumário de culpa, é necessária a demonstração de manifesta causa excludente de ilicitude, o que, no caso, não ocorreu, pois há severas dúvidas de que o réu agiu em legítima defesa. A açodada e inoportuna rejeição da denúncia retira da acusação a possibilidade de provar os fatos alegados na inicial. 5. Recurso provido, para que se dê regular andamento ao feito." (TRF-1 - RSE: 44602 PA 0044602-02.2010.4.01.3900, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL TOURINHO NETO).
Portanto, deve ser aplicado, sim, o art. 397 do Código de Processo Penal no procedimento do Júri, observando-se, ademais, o disposto no art. 3º. do mesmo Código.
[1] Preferimos falar em “caso penal” ou “causa penal” ou mesmo “controvérsia penal”, pois “a lide, em qualquer de suas formas, é inaceitável no processo penal, isto é, para referir o conteúdo do processo penal, não serve a lide do processo civil e nem a lide penal. O conteúdo do processo pode ser apresentado pela expressão caso penal.” (Jacinto Nelson Miranda Coutinho, A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, Curitiba: Juruá, 1998, p. 152, grifo no original).
[2] Há setores da doutrina que fazem uma diferença entre rejeição e não recebimento. Por todos, conferir José Antonio Paganella Boschi, Ação Penal, Rio de Janeiro: AIDE, 3ª. ed., 2002, pp. 233/234.
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rômulo de Andrade. O procedimento do júri e a aplicação do Art. 397 do Código de Processo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jul 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/44756/o-procedimento-do-juri-e-a-aplicacao-do-art-397-do-codigo-de-processo-penal. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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