Pizzolato (condenado no processo do mensalão do PT – AP 470, STF – a 12 anos e 7 meses de prisão), ao entrar no avião para ser extraditado da Itália para o Brasil (22/10/15), foi recebido com vaias. Na saída não foi diferente (“fora, fora”). Uma das passageiras disse: “ele deve ser levado para a prisão para pagar pelos crimes que cometeu. Essa prisão representa o que deve acontecer com quem rouba” (Globo 23/10/15). Um senhor de cabelos brancos lançou insultos com palavras ofensivas a ele assim como ao ex-presidente Lula e Dilma. Dizia que a culpa da desgraça econômica do Rio Grande do Sul é deles. Na chegada em Guarulhos ainda houve tempo para alguém gritar: “Pizzolato, tenha vergonha na cara. Pelo menos faça delação premiada”. Chamado de corajoso, o insultador afirmou: “Fui corajoso nada, fiz o meu dever. Deu vontade de pular em cima dele. A gente tinha que pedir para ele fazer a delação premiada” (Globo 24/10/15: 8).
Para que serve a condenação ou reprovação de um criminoso? Na ciência penal da modernidade (desde o século XVIII) surgiram duas grandes correntes de pensamento: (a) serve como retribuição pelo crime cometido: é a reafirmação do imperativo categórico, diz Kant; é a negação do delito que é a negação do direito, diz Hegel; (b) serve para a prevenção de futuros crimes (castiga-se para evitar novos delitos). Retribucionismo (a pena é puro castigo) “versus” utilitarismo (a pena serve para evitar futuros crimes – sobre os vários conceitos de castigo veja Nietzsche, Genealogia da moral: 77-78). Existem ainda as correntes conciliatórias. Já são mais de dois séculos de polêmica (no mundo jurídico) centrados na superfície da questão (nas funções manifestas da pena), não na sua essência social e psicológica.
Fugindo da seara jurídica e analisando, por ora, apenas o campo social (o oculto do aparente), descobrimos que, na prática, a pena (em sentido social) é uma reação emotiva a um crime, de intensidade graduada, e essa reação apaixonada serve como fator de coesão social, de agregação e de integração da comunidade (Durkheim, Da divisão do trabalho social: 62 e 81). A pena existe para proteger a sociedade, por isso que é expiatória.
Todos os petistas condenados no mensalão geraram reações emotivas (paixões) muito intensas na população. O termômetro dessas reações massivas, depois de 2012, foi se agravando a cada mês, particularmente depois que eclodiu o escândalo da Petrobras, investigado na operação Lava Jato (março/14). Atingiu patamares inusitados depois das eleições de outubro/14, vencidas pela quarta vez pelo PT, que passou a ser considerado, para grande parcela dos eleitores, um inimigo do povo. Isso se deu não só pela insatisfação da derrota, senão também pelas condenações criminais dos seus próceres, pelo aparelhamento do Estado, pela incompetência na governabilidade, pelas novas acusações de corrupção e, sobretudo, pela grave crise econômica que estamos vivendo (desemprego, inflação, dólar alto, orçamento deficitário, descontrole fiscal, “pedaladas” censuradas pelo TCU etc.).
Pior: várias crises se somaram: de confiança (despencou o índice de aprovação de Dilma), política (sobressaindo a disputa com Eduardo Cunha), econômica, social e ética, que passaram a gerar (nas consciências comuns) medo, indignação, danos, dores e sofrimentos para muitos brasileiros. Como dizia Durkheim (Da divisão do trabalho social: 42), “uma crise econômica, uma jogada na Bolsa, até mesmo uma falência [pior ainda quando se trata da falência de um país] podem desorganizar o corpo social de maneira muito mais grave do que um homicídio isolado (…), [apesar disso] esse ato pode ser desastroso para uma sociedade sem incorrer na menor repressão”. Não foi isso que ocorreu, no entanto, no caso do PT.
Não é sempre que a desorganização social de um governo gera reações apaixonadas idênticas ou até mesmo mais intensas do que um ato criminoso que “melindra sentimentos que se encontram em todas as consciências sadias de um mesmo tipo social” (Durkheim). Mas o fenômeno apareceu (tornou-se visível). O PT, os petistas e todos os que participaram dos seus atos (e, especialmente, dos seus contratos mirabolantes) provocam, hoje, em enorme parcela da população, reações de repugnância, de nojo, de ojeriza. Tornaram-se (na percepção da sociedade rebelada), mais do que adversários ou concorrentes, inimigos do povo (e para os inimigos, como se sabe, o que vale é a lógica da guerra).
O sociólogo francês Durkheim (no final do século XIX) estudou e procurou descrever as reações emotivas sociais como consequência de um crime, que ocorre “quando ofende os estados fortes e definidos da consciência coletiva (ou consciência comum) (Da divisão do trabalho social: 51). Embora ou para além de não descritos como crime, há outros “estados fortes e definidos na consciência coletiva” de onde podem emanar semelhantes ou idênticas reações passionais (p. 57). Como a paixão é a alma da pena (bem como de todas as reações emotivas), muitas vezes ela somente se detém quando esgotada totalmente.
Há povos (tudo depende de sua formação antropológica e religiosa – veja Nietzsche, Genealogia da moral: 38 e ss.) que punem por punir, que procuram fazer o culpado sofrer unicamente para fazê-lo sofrer e sem esperar, para si, nenhuma vantagem do sofrimento que lhe impõem (Durkheim, citado, p. 57). Trata-se da vingança, que teria algo de sagrado – transcendental –, que sentimos mais ou menos confusamente, mas que estaria fora e acima de nós (Nietzsche). Essa representação, no entanto, seria ilusória (para Durkheim, p. 73): “somos nós mesmos que nos vingamos, nós que nos satisfazemos, pois é em nós e apenas em nós que se encontram os sentimentos ofendidos.” Mas essa transcendentalidade e ilusão seriam necessárias, pois os sentimentos de repugnância ao crime [e a outros estados fortes que afetam a consciência coletiva] “nos aparecem como eco de uma força que nos é estranha e superior, que precisaria ser projetada para fora de nós, relacionada a algum objeto exterior. Este objeto é a pena” [ou outro tipo de repulsa ao inimigo]. O caráter “quase religioso” da expiação seria um elemento integrante da pena (para Nietzsche não há nenhuma dúvida sobre isso – Genealogia da moral: 38 e ss.).
Incursionando na psicologia individual, Durkheim afirma “que a consciência é um fator essencial de nossa vitalidade geral e que tudo o que tende a debilitá-la nos diminui e nos deprime; daí, é inevitável, pois, que reajamos energicamente contra a causa que nos ameaça, a fim de manter a integridade de nossa consciência” (p. 69). Ele chama de “representação de um estado contrário” ao processo orgânico e psíquico desencadeado no indivíduo por causa dessa ameaça, que provocaria verdadeiras desordens: “é como se uma força estranha se houvesse introduzido em nós, de maneira a desconcertar o livre funcionamento de nossa vida psíquica. Eis por que uma convicção oposta à nossa não pode se manifestar em nossa presença sem nos perturbar (p. 69).
Quando a ofensa atinge uma crença que nos é cara, “não podemos permitir que remanesça impune, suscitando uma reação mais ou menos violenta contra o ofensor. Esta reação constituir-se-ia em um mecanismo de autodefesa, que nos ajuda a encarar os perigos, mobilizando nossas reservas energéticas. Tal é o que ocorreria, na sociedade, diante da incidência de um delito” [ou de outras ofensas que afetem a consciência coletiva]. O crime “é um fator de solidariedade social, pois a representação coletiva punitivista, que lhe corresponde, deflagraria um processo de reafirmação do ente coletivo, aproximando e concentrando as “consciências honestas”, que se veem agregadas pela vontade comum de repulsão ao ato e de reassegurar a ordem social (p. 75).
A conclusão é a seguinte: “assim como uma guerra é capaz de provocar a união de uma nação, a pena [ou qualquer outra reação coletiva] é um fator de solidariedade e agregação social. Porém, mais do que útil, a pena é necessária: se, quando o crime se produz, as consciências que ele ofende não se unissem para atestar que permanecem em comunhão, que esse caso particular é uma anomalia, não poderiam deixar de ser abaladas a longo prazo.” (p. 76). Os insultos, as paixões, os chingamentos e as reprovações a Pizzolato (assim como a todos os condenados e investigados do PT) são reações mais do que previsíveis e esperadas. Durkheim, de qualquer modo, apenas explicou o fenômeno das reações sociais emocionais, ou seja, apenas descreveu como elas acontecem, mas não como deveriam ser (p. 59).
Deputado Federal por São Paulo (2019-2023) - é professor e jurista, Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito Penal pela USP. Exerce o cargo de Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Atuou nas funções de Delegado, Promotor de Justiça, Juiz de Direito e Advogado. Atualmente, dedica-se a ministrar palestras e aulas e a escrever livros e artigos sobre temas relevantes e atuais do cotidiano.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Luiz Flávio. Pizzolato "tem que pagar pelo que roubou" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 nov 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/45492/pizzolato-quot-tem-que-pagar-pelo-que-roubou-quot. Acesso em: 25 nov 2024.
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