RESUMO: O presente artigo teve por objetivo analisar a relação entre o crime fiscal e ilícitos tributários. Inicialmente, será apresentado um estudo sobre a evolução histórica no direito comparado e no ordenamento pátrio da criminalização de condutas relacionadas ao pagamento de tributos. Após análise histórica, diferencia-se o mero ilícito tributário do crime fiscal, defendendo-se que não se criminaliza a simples conduta de inadimplemento da obrigação tributária, na medida em que se exige do agente o elemento subjetivo fraude. Nesse contexto, será também analisado o elemento fraude no crime de descaminho e no crime de apropriação indébita previdenciária sob o enfoque jurisprudencial.
Palavras-chave: Sonegação fiscal. Ilícitos tributários. Evolução histórica. Descaminho. Apropriação indébita previdenciária.
1 INTRODUÇÃO
A legislação penal tipifica condutas com objetivo de tutelar a Ordem Tributária por meio da Lei n.º 8.137, de 27 de Dezembro de 1990, além de outros dispositivos ao longo do Código Penal, especialmente art. 334 – que define o crime de descaminho – e art. 337-A, o qual define o crime de sonegação de contribuição previdenciária.
A relação existente entre o Direito Penal e o Direito Tributário é travada desde longa data, de modo que é necessária uma prévia análise do escorço histórico no direito comparado e da evolução legislativa da criminalização dessas condutas no ordenamento jurídico pátrio para compreender os crimes tributários.
Outrossim, ganha relevo a distinção entre os conceitos de mero ilícito tributário e crime tributário, notadamente os crimes de sonegação fiscal e apropriação indevida de tributo.
2 ESCORÇO HISTÓRICO
2.1 EVOLUÇÃO NO DIREITO COMPARADO
A análise do desenvolvimento histórico da tributação e dos meios de coerção para fins de adimplemento da obrigação tributária é estudo de premente necessidade para que se possa compreender o estágio atual em que se encontra a relação entre o poder de tributar e a sociedade, notadamente no que concerne à utilização do direito penal como forma de exigibilidade dessa obrigação.
A ideia de tributação está intrinsecamente relacionada à própria ideia de Estado, visto que essa ficção jurídica criada pelo homem não apresenta autonomia, de forma a necessitar de meios externos ao seu sustento, notadamente por meio da criação de tributos.
Não se olvida que a noção de tributo é, inclusive, anterior ao surgimento do Estado, na medida em que povos tribais já instituíam pagamentos compulsórios unilaterais dos integrantes da tribo em favor do chefe tribal, de modo que aquele que cultivasse a terra ou nela pastasse o gado, caçasse ou explorasse seus recursos devia ao chefe tribal parcela do seu trabalho[1].
Após o surgimento do Estado, notadamente com a construção de Roma, as linhas do poder de tributação passaram a apresentar contornos mais nítidos, aspecto evolutivo este acompanhado pelas formas de coerção em seu adimplemento.
Relata Maximiliano Führer[2] a figura do censor com a função de revelar a situação pessoal dos cidadãos e a grandeza de suas respectivas propriedades, mencionando a existência de três espécies de tributos em Roma: “deceuma, cobrada dos proprietários; scriptaura, cobrada dos donos de rebanhos; e portarium, devida em função da importação ou exportação”.
Surge, nesse período, a primeira regra clara do Direito Penal Tributário em que àquele que ludibriasse o censor seria aplicada pena sobre seu corpo ou sua vida[3].
Após o período romano até a era medieval, não há relatos históricos importantes acerca da relação entre o poder de tributar e o direito penal.
O correr do período medieval foi marcado pelo enfraquecimento do poder real e o predomínio dos senhores feudais, os quais compartilhavam o poder com o clero, caracterizou-se por excessiva carga tributária com a finalidade de sustentar os luxos da nobreza e a imponência da Igreja, sendo observado um desenvolvimento exacerbado dos meios coercitivos para que os plebeus cumprissem suas obrigações tributárias, inclusive por meio da utilização, nos termos de Maximiliano Führer, de um Direito Penal Mágico[4].
Na Era Medieval, os meios coercitivos eram instrumentalizados tanto por normas jurídicas – nesse momento histórico, as leis eram ditadas pelos senhores feudais – quanto por normas morais, estas muito mais eficazes que aquelas, pois incutiam no particular o receio de uma retaliação divina por meio de pragas, além de promessas de bênçãos de fartura.
Dessarte, a carga tributária era gigante, além dos tributos devidos à Igreja consistente no dízimo e no “tostão de São Pedro”, o servo era sujeito passivo de, pelo menos, dezessete espécies diferentes de prestações ao senhor feudal, dentre o qual se destaque o curioso ius primae noctis em que o senhor possuía o direito de passar a primeira noite com a noiva do servo, podendo essa obrigação ser substituída pelo pagamento de uma taxa compensatória[5].
A Igreja se valia de penalidades diversas tais como a nunciação de um mal divino até a possibilidade de excomunhão e declaração de herege impenitente pela inquisição, enquanto que os senhores feudais tomavam as medidas que bem entendessem, v.g. assenhorear os bens do servo.
Após a centralização do poder na pessoa do monarca, a questão tributária continuou a ser tratada da mesma forma que na Era Medieval: excessiva carga tributária e finalidade não democrática dos recursos. Assim, reunidos os motivos perfeitos para uma revolução, a qual aconteceu por meio da famigerada Revolução Burguesa, a excessiva carga tributária foi substituída pelo que se denominou de capacidade tributária, ao passo que a destinação dos recursos passou a se legitimar na ideia de sua conversão em prol da nação por meio da prestação de serviços públicos em benefício da coletividade[6].
Após a era medieval, relata FÜHRER[7] que a repressão passou a ser tema de direito administrativo ou civil, de modo que o Direito Penal aparentemente se afastou das fraudes fiscais durante o século XIX e metade do século XX.
Ressalte-se que a história não é linear, de modo que a ausência de criminalização reflete um momento histórico da Europa, notadamente os Estados influenciados pela dita Revolução. Isso porque em Portugal a sonegação poderia ser punida com pena de morte natural ou degredo, além da perda de bens[8].
Percebe-se que a ausência de democratização na destinação dos tributos aliada à excessiva carga tributária aumenta os casos de sonegação. Nesse contexto, “o Direito Penal Tributário é a história das punições impostas ao dominado pelo dominante em decorrência da ausência ou da deficiência da homenagem devida”[9].
Todavia, quando há uma democratização do poder o Direito Penal deixa de ser visto como uma ferramenta de opressão social e passa a ser um importante meio de prevenir desvios de comportamentos nocivos à coletividade, tornando-se assim um instrumento legítimo.
Nessa vertente, o surgimento do Estado de Direito Social elevou novamente as infrações fiscais à categoria de infrações penais, porém sob uma nova justificativa consubstanciada na maior necessidade de intervenção do Estado na regulação da economia e na necessidade de assegurar uma justiça distributiva na repartição de riqueza[10].
Dessa forma, a análise do direito comparado e evolução histórica mundial permite concluir que a criminalização de ilícitos tributários é prática contumaz nos ordenamentos jurídicos alienígenas, não sendo adstrita ao ordenamento jurídico pátrio.
2. 2 EVOLUÇÃO LEGISLATIVA NO BRASIL
O ordenamento jurídico brasileiro não vivenciou todas as fases históricas anteriormente explanadas, em razão do curto lapso de tempo entre os tempos atuais e a formação do Estado do Brasil. Todavia, as leis nacionais se curvaram à influência internacional, de modo que foram capitulados, tanto no código penal, quanto em leis extravagantes, os ilícitos tributários.
O início do escorço histórico legal brasileiro remonta à época do Brasil Império com o advento do Código Criminal do Império, de 1830, por meio do qual foi criminalizado o descaminho[11].
Idêntica conduta foi criminalizada por meio do Código Penal Republicano, de 1890, capitulado no artigo 265, porém com a previsão de pena privativa de liberdade de 1 a 4 anos.
O próximo precedente legislativo no ordenamento jurídico pátrio foi o Código Penal (Decreto-Lei n.º 2.848/40) que se limitou a manter a criminalização do crime de descaminho. No entendimento de Luiz Regis Prado,[12] a ausência de criminalização dos ilícitos tributários nesse momento histórico foi consequência da influência iluminista em que o individualismo e a liberdade eram alçados a bens jurídicos mais importantes, os quais cederam lugar à justiça distributiva e à igualdade material com o advento do Estado Social.
Nesse passo, transcorreram vinte e cinco anos para que a matéria fosse novamente tratada pelo poder legislativo, notadamente com a promulgação da Lei n.º 4.357/65 que incluiu dentre os fatos constitutivos do crime de apropriação indébita (168 do Código Penal) o não-recolhimento, dentro de 90 (noventa) dias do término dos prazos legais, as importâncias do Imposto de Renda, seus adicionais e empréstimos compulsórios, descontados pelas fontes pagadoras de rendimentos.
Entretanto, a Lei n.º 4.729/65 foi que instituiu os crimes de sonegação fiscal, sendo esse o marco inicial que transformou os ilícitos meramente administrativos em crimes de sonegação fiscal[13].
Destaque-se que a lei vergastada não criminalizou a simples conduta de inadimplemento das obrigações tributárias. Isso porque a sonegação de tributos pressupõe uma fraude anterior acrescida à finalidade de burlar o fisco, de modo que, em regra, a sonegação fiscal é praticada por meio dos crimes de falsidade documental ou ideológica, os quais são absorvidos pelo crime fiscal em razão da aplicação do instituto da consunção.
A matéria atinente à sonegação fiscal foi tratada no bojo da Lei n.º 8.137/90, a qual definiu os Crimes Contra a Ordem Tributária. O entendimento majoritário é que a referida lei revogou tacitamente a Lei n.º 4.729/65, não obstante sua aplicação às condutas praticadas ao tempo de sua vigência, em razão de aplicação da lei mais benigna[14].
Atualmente, a matéria é disciplinada densamente pela Lei n.º 8.137/90 e dispositivos do Código Penal, v.g., 337-A que trata da sonegação de contribuição previdenciária.
Outrossim, paralelamente aos crimes de sonegação tributária, há o crime de apropriação indevida de tributo, de sorte que, do ponto de vista legal, há uma nítida distinção entre três ilícitos tributários: inadimplemento da obrigação tributária, sonegação de tributo e apropriação indevida de tributo.[15]
A apropriação indevida de tributo foi prevista, inicialmente, por meio da Lei n.º 8.137/90 em seu art. 2º, II, cujo tipo penal consiste em deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.
Entretanto, especificamente quanto à apropriação de contribuições devidas à Seguridade Social, o tema passou a ser tratado por meio da Lei n.º 8.212/91 em seu art. 95, “d”, de modo que a Lei n.º 8.137/90 não é mais aplicável no que diz respeito à Previdência Social, notadamente no que concerne à apropriação de tributo, apesar da redação semelhante em ambos diplomas legislativos.
Ocorre que o tipo penal foi incorporado ao Código Penal por meio da Lei n.º 9.983/00 sob a denominação de apropriação indébita previdenciária, com previsão legal no art. 168-A do mencionado código, ao passo que o art. 95 da Lei n.º 8.212/91 foi expressamente revogado.
Ressalte-se que não houve abolitio criminis, visto que a Lei n.º 9.983/00 basicamente reproduz as mesmas descrições contidas no art. 95, d, da Lei n.º 8.212/90.[16]
Alfim, em contraponto à criminalização dos ilícitos tributários, foram criados institutos despenalizadores, notadamente a extinção da punibilidade pelo pagamento do crédito tributário e suspensão da punibilidade pelo parcelamento.
3 CRIME FISCAL E ILÍCITO TRIBUTÁRIO
A tipificação dos crimes contra a ordem tributária é tema que deve ser analisado sob o aspecto do ordenamento jurídico de cada Estado, não sendo possível, aprioristicamente, elaborar um conceito genérico da mencionada conduta delituosa.
Nesse passo, o ordenamento jurídico pátrio tipifica as condutas tanto no Código Penal por meio dos artigos 168-A; 334 e 337-A, quanto em leis esparsas, notadamente lei n.º 8.137/90, que trata dos crimes de sonegação fiscal.
A posição adotada pelo legislador revela que o crime tributário não se confunde com o mero inadimplemento do tributo devido, mormente por, via de regra, ser precedido pela prática de crime de falsidade ideológica ou documental.
Com efeito, equiparar a conduta do crime de sonegação fiscal ao mero inadimplemento seria criminalizar a dívida, o que viola princípios do direito penal da subsidiariedade, além de contrariar remansosa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que veda a prisão por dívida, salvo na hipótese de dívida alimentar.
Ademais, há meio específico para cobrança dos débitos fiscais, a qual deve ser efetivada por meio da execução fiscal, após regular inscrição em dívida ativa, de modo que, considerar o direito penal como meio coercitivo válido para cobrar os valores não recolhidos é atentatório ao princípio do devido processo legal.
Maximiliano Führer sintetiza o entendimento ora defendido:
O sonegador sofre ação penal não por estar devendo, mas por ter praticado uma modalidade especial de estelionato, retendo para si indevida vantagem econômica, em prejuízo de outrem, mediante meio fraudulento, que geralmente envolve uma falsidade documental[17]
Arremata ainda o autor[18] que “não é dívida tributária singela, cobrável por executivo fiscal, mas, sim, a farsa economicamente concretizada que fundamenta a eventual prisão criminal do sonegador”.
Posição idêntica é perfilhada por Luiz Régis Prado[19], asseverando que, em regra, os crimes contra a ordem tributária têm como fundamento a fraude ou falsidade, os quais denomina de burla tributária ou fiscal, aduzindo, ainda, que a fraude pode ser analisada sob o viés da violação dos deveres de informação e de verdade que incidem sobre o cidadão contribuinte.
O elemento fraude torna-se evidente na tipificação da conduta em que o legislador fez inserir verbos como “omitir”, “fraudar”, “falsificar”, dentre outros que indicam a intenção do legislador em punir com o rigor da sanção penal aqueles que não simplesmente deixem de recolher o tributo devido, mas sim aqueles que o façam por meio ardil ou fraudulento.
Nesse sentido, tecendo comentários acerca da Lei n.º 8.137/90, Guilherme Nucci[20] leciona que o objeto material do tipo incriminador é a informação ou declaração falsa por meio da qual o agente consegue atingir o bem jurídico tutelado, que é a arrecadação tributária.
Dessa forma, a prática do crime de sonegação depende para sua concretização de manobras ardilosas por parte do agente, notadamente inserção de elementos inexatos ou omissão de operações nos respectivos documentos, alcançando seu intento de suprimir ou reduzir tributos.
Antônio Carlos Martins[21] diverge em ponto específico ao asseverar que não existe diferença substancial entre a infração tributária e o delito, de modo que a conversão de infrações tributárias em criminais não afeta o teor do injusto, o que seria modificado é apenas a natureza da sanção.
O autor se posiciona no sentindo de deslocar a reprovabilidade para a sanção, tornando o contribuinte temoroso das consequências que poderá enfrentar caso pratique a conduta. Todavia, não é esse o modelo criminal que ora se defende, mormente quanto ao parâmetro para elaboração de normas incriminadoras pelo legislador.
O Direito Penal deve pautar-se nos princípios da mínima ofensividade, subsidiariedade e fragmentariedade, de sorte que não é mais admissível que se possa defender o injusto de conteúdo de uma conduta criminosa em razão de simples temor que a sanção pode ocasionar.
Outrossim, num estudo descritivo acerca do ordenamento jurídico se pode afirmar que há diferenças entre o ilícito tributário e o crime tributário, notadamente pela previsão do artigo 136 do Código Tributário Nacional, o qual prescreve que as infrações à legislação tributária independem da intenção do agente.
Ora, é inadmissível em direito penal que ao agente seja imputada conduta criminosa sem que se analise a sua intenção (dolo ou culpa) no momento da pretensa ação delituosa, sob pena de responsabilidade penal objetiva.
Nesse sentido, é diametralmente oposta a posição legislativa adotada pelo legislador no âmbito penal do âmbito tributário, na medida em que o direito penal brasileiro veda qualquer responsabilização objetiva:
Diga-se, pois, que o CTN, ao adotar o princípio da responsabilidade objetiva, afasta o que é tradicional no Direito Penal brasileiro – o princípio da responsabilidade subjetiva –, em que a imputabilidade depende da subjetividade, ou seja, da análise do que pensou ou previu o agente, à luz do elemento volitivo.[22]
Assim, percebe-se que os parâmetros para caracterização de infração tributária e crime tributário divergem de forma gigantesca, justificando a imposição de penas de cerceamento de liberdade àqueles que praticam crimes tributários, em detrimento das condutas adstritas ao âmbito dos ilícitos administrativos fiscais.
Contudo, não se olvida ser possível a coincidência, em algumas situações, das infrações tributárias com os crimes contra a ordem tributária, na medida em que as instâncias administrativa e penal são independentes, sendo possível a cumulação entre as sanções.
4 FRAUDE NA APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA
O crime de apropriação indébita previdenciária, espécie de crime tributário, é tipificado no art. 168-A do Código Penal consistindo na conduta de “deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional”.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu que para configuração do crime de apropriação indébita previdenciária prescindiria a necessidade de demonstrar intenção de fraudar o INSS, consoante ementa do julgado veiculado no informativo 528, in verbis:
DIREITO PENAL. DOLO NO DELITO DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA.
Para a caracterização do crime de apropriação indébita de contribuição previdenciária (art. 168-A do CP), não há necessidade de comprovação de dolo específico. Trata-se de crime omissivo próprio, que se perfaz com a mera omissão de recolhimento de contribuição previdenciária no prazo e na forma legais. Desnecessária, portanto, a demonstração do animus rem sibi habendi, bem como a comprovação do especial fim de fraudar a Previdência Social. Precedentes citados do STJ: REsp 1.172.349-PR, Quinta Turma, DJe 24/5/2012; e HC 116.461-PE, Sexta Turma, DJe 29/2/2012; Precedentes citados do STF: AP 516-DF, Pleno, DJe de 6/12/2010; e HC 96.092-SP, Primeira Turma, DJe de 1º/7/2009.[23]
Arremata a Ministra Relatora Laurita Vaz que “o delito de apropriação indébita previdenciária constitui crime omissivo próprio, que se perfaz com a mera omissão de recolhimento da contribuição previdenciária dentro do prazo e das formas legais, prescindindo, portanto, do dolo específico”.
Não obstante o julgado em epígrafe, a tese ora defendida continua plenamente válida, na medida em que o precedente deve ser interpretado com cautela.
O desvalor na conduta consistente na omissão no recolhimento da contribuição previdenciária é notório no caso específico, visto que para caracterização do tipo penal é necessário que haja o prévio recolhimento do tributo, sem que tenha concretizado o repasse, de modo que o contribuinte, em regra, o empregado, é ludibriado pelo responsável tributário, o empregador, que desconta de sua remuneração os valores a título de contribuição previdenciária, porém não os repassa para a receita federal.
Celso Delmanto[24] ensina que se trata de conduta mista, em que o recolhimento integra o tipo penal, corroborando com o posicionamento supra a respeito da necessidade do prévio desconto dos contribuintes.
Ora, não se trata de crime de sonegação fiscal em sentido estrito, em que o contribuinte suprime tributo devido por algum meio fraudulento, por exemplo, omissão das remunerações pagas pela empresa, mas, sim, de crime tributário peculiar em que o inadimplemento ocorre sem necessidade de recurso a meios fraudulentos, direcionando-se a vontade do agente para o não recolhimento da contribuição previdenciária do qual era responsável[25]. Nesse caminhar, além de lesionar o patrimônio público e contribuir para o mal funcionamento deste serviço essencial que é a previdência, lesiona, também, o contribuinte que, a priori, não poderá gozar do benefício.
Dessarte, o crime referido apresenta como sujeito passivo o Estado, especificamente o órgão ou ente da previdência social no âmbito das três esferas a depender do ente a que se destinam as contribuições, e secundariamente o contribuinte lesado[26].
Ressalte-se que, não obstante a ausência de fraude, a conduta é, de per si, reprovável, podendo ser equiparada à burla fiscal nos crimes de sonegação, notadamente pela confiança depositada pelo empregado no repasse das contribuições descontadas.
5 FRAUDE NO DESCAMINHO
O crime de descaminho, também espécie de crime tributário, é tipificado no art. 334 do Código Penal, consistindo em “iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”.
O tipo penal foi objeto de discussão jurisprudencial a respeito da necessidade de dolo específico de iludir o fisco por meio fraudulento para fins de subsunção da conduta à norma penal incriminadora.
Há precedente do Superior Tribunal de Justiça, asseverando que a simples introdução no território nacional de mercadoria estrangeira sem pagamento dos direitos alfandegários, independentemente de qualquer prática ardilosa visando iludir a fiscalização, tipifica o crime de descaminho, de modo que basta o dolo genérico, consoante ementa do julgado abaixo:
PENAL. RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. DOLO GENÉRICO.
1. O tipo subjetivo do descaminho é o dolo, genérico, consistente na vontade livre e consciente de iludir, no todo ou em parte o pagamento do tributo. Nenhuma outra conduta é exigida, bastando ao tipo que não se declare, na alfândega, a mercadoria excedente à cota.
2. Recurso conhecido e provido.[27]
Esse posicionamento ainda é seguido por alguns Tribunais, v.g., Tribunal Regional da 5ª Região que em sede de apelação criminal se posicionou no sentido que basta o dolo genérico para configuração do crime, entendido este como vontade livre e consciente de internalizar mercadoria no território nacional sem pagar os tributos devidos[28].
Noutra monta, há posicionamento doutrinário e jurisprudencial que defende a necessidade de efetiva fraude por parte do agente para considerar o fato típico, não sendo suficiente a ausência de declaração na alfândega:
DESCAMINHO (CASO). DOLO (AUSÊNCIA). AUTORIA (NÃO COMPROVAÇÃO).
1. A demonstração do elemento subjetivo será feita por meio do fato principal e de suas circunstâncias, não havendo falar em presunção.
2. Assim, se o agente em nenhum momento procurou desviar-se das barreiras alfandegárias, conduzindo a mercadoria no local próprio do veículo – identificável, portanto, mediante singela fiscalização –, onde foi encontrada por agentes da Polícia Federal, descaracteriza-se qualquer conduta dolosa.
3. Agravo regimental improvido.[29]
Ressalte-se que no caso em epígrafe o Superior Tribunal de Justiça se inclinou no sentido da necessidade de existência de elemento típico da fraude, no caso, a burla às barreiras alfandegárias.
Perfilhando o mesmo posicionamento, leciona Celso Delmanto:
a caracterização do crime de descaminho somente ocorre quando fica demonstrado que o agente atuou dolosamente buscando iludir o Fisco (…) e não na hipótese em que apenas deixa de procurar a repartição competente a fim de efetuar o referido pagamento[30]
Posicionamento idêntico é adotado pelo festejado autor Fernando Capez[31], asseverando que o núcleo do tipo “iludir” significa enganar, não se confundindo com o verbo “elidir”, o qual significa suprimir, hipótese em que seria suficiente o comportamento omissivo, ao passo que não é suficiente a mera omissão no recolhimento do tributo para fins de caracterização do crime de sonegação fiscal.
Não obstante o respeitável posicionamento dos ilustres doutrinadores, razão assiste à primeira corrente que pugna pela concretização do tipo penal o simples fato de não declarar o contribuinte a mercadoria tributável.
Não se pretende desconstruir todo o raciocínio desenvolvido alhures em que foi defendido com fervor a necessidade de fraude ou outro elemento para fins de tipificação do crime fiscal, tendo em vista que o fato de não declarar já configura uma espécie de burla ao fisco.
É dever do contribuinte declarar ao fisco a ocorrência do fato jurídico-tributário que deu ensejo ao nascimento da obrigação, visto que o imposto de importação – um dos tributos incidentes sobre a importação – é lançado por homologação, sendo da competência do importador o cálculo do montante do imposto e seu recolhimento antecipado.
Assim, a omissão do agente em declarar a mercadoria importada configura uma quebra no dever de cooperação por parte do contribuinte, além da afronta à confiança que o fisco deposita no importador, sendo, pois, suficientemente reprovável a conduta omissiva.
Ademais, a conduta omissiva no crime de descaminho se revela adequada ao conceito amplo de fraude ou burla, consoante já exposto, mormente dever legal do importador em declarar a mercadoria que adentra ao território nacional, não havendo diferença substancial da conduta praticada pelo agente que omite acréscimo patrimonial para fins de cálculo do imposto de renda.
Outrossim, em contraposição aos formalistas, que se apegam à literalidade da lei, especialmente no âmbito penal, destaque-se que o tipo penal incriminador menciona iludir o pagamento de direito ou imposto devido, não mencionando iludir a atividade de arrecadação do tributo em si.
Dessa feita, não resta caracterizado o crime referido caso haja o mero inadimplemento da obrigação tributária, de modo que o direito penal não representa apenas uma ferramenta para cobrança do respectivo crédito. De fato, há um desvalor na conduta caracterizado pelo elemento fraude.
Por todo o exposto, é necessário que haja um elemento de reprovabilidade na própria conduta para fins de tipificação do crime de sonegação fiscal, não sendo aceitável que este elemento seja a mera impontualidade no recolhimento do tributo.
6 CONCLUSÃO
Desde os tempos remotos da humanidade, há registros de contribuição por parte dos membros da sociedade, no intuito de alcançar fins que transcendem a esfera do particular. Entretanto, a civilização romana é a primeira a estabelecer regras sistemáticas a respeito da arrecadação, inclusive cominando sanção para aqueles indivíduos inadimplentes.
Nos diferentes períodos históricos, há a constatação de que o ente arrecadante se vale de diferentes meios no afã de angariar o máximo de recursos necessários para consecução de seus fins, sendo que o Direito Penal sempre foi uma ferramenta auxiliar bastante útil e eficaz na coerção do indivíduo em pagar o tributo devido.
O ordenamento jurídico pátrio não acompanhou todo o escorço histórico legislativo internacional em razão da jovialidade do Estado brasileiro, porém o Direito Penal também foi utilizado como instrumento de coerção na arrecadação tributária com o advento do Código Imperial de 1830, por meio do qual foi criminalizado o descaminho. Atualmente, a Lei n.º 8.137/90 é a principal lei que trata do tema, disciplinando os crimes de sonegação fiscal, bem como os crimes praticados por funcionários públicos.
Outrossim, não se criminaliza a simples conduta de inadimplemento da obrigação tributária, na medida em que se exige do agente o elemento subjetivo fraude, sendo precedido, em regra, dos crimes de falsidade ideológica ou documental, os quais restam absorvidos pelos crimes fiscais, em razão do instituto da consunção.
O crime de apropriação indébita previdenciária prescinde da necessidade de demonstrar intenção de fraudar o INSS, consoante precedentes do Superior Tribunal de Justiça, contudo, a conduta é, de per si, reprovável, podendo ser equiparada à burla fiscal nos crimes de sonegação. Noutra vertente, a simples introdução no território nacional de mercadoria estrangeira sem pagamento dos direitos alfandegários, independentemente de qualquer prática ardilosa visando iludir a fiscalização, tipifica o crime de descaminho, de modo que basta o dolo genérico.
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TEIXEIRA, Francisco Dias. Crime contra a Previdência Social em face da Lei n º 9.983/00, 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_20/artigos/FranciscoDias_rev20.htm>. Acesso em: 11 fev. 2014.
TRF5, Rel. Desembargador Francisco Cavalcanti, Apelação Criminal n. 6597, DJe. 15.02.2013.
[1] SOARES, Antônio Carlos Martins. A extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 6.
[2] FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Curso de direito penal tributário brasileiro. São Paulo: Malheiros. 2010, p. 25.
[3] Idem, ibidem, p. 25.
[4] Idem, ibidem., p. 29.
[5] Idem, ibidem., p. 31-32.
[6] SOARES, Antônio Carlos Martins. op. cit., nota 1, p. 14-15.
[7] FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. op. cit., nota 2, p. 35-36.
[8] Idem, ibidem., p. 36-37.
[9] Idem, ibidem., p. 21.
[10] ARAÚJO, Marisa Almeida. No Percurso do Discurso Legitimador do Direito Penal Tributário: o Crime de Fraude Fiscal – Reflexões. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2010, p. 8.
[11] PRADO, Luiz Régis. Direito penal econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 404.
[12] Idem, ibidem, p. 404.
[13] MARQUES, Renan do Valle Melo. A natureza jurídica da interferência da instância administrativa no crime estabelecido no art. 1º da lei 8.137/90. João Pessoa: Sal e Terra. 2011, p. 21.
[14] SOUSA, Ercias Ridrigues de, 2002. Crimes contra a ordem tributária. Breve análise da Lei nº 8.137/90. Jus Navegandi, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. <http://jus.com.br/artigos/3310>. Acesso em: 13 nov. 2013.
[15] TEIXEIRA, Francisco Dias. Crime contra a Previdência Social em face da Lei n º 9.983/00, 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_20/artigos/FranciscoDias_rev20.htm>. Acesso em: 11 fev. 2014.
[16] IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 17. ed. rev. amp e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 475.
[17] FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. op. cit., nota 2, p. 43.
[18] Idem, ibidem, p. 43.
[19] PRADO, Luiz Régis. op. cit., nota 11, p. 411.
[20] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 4ª ed. rev. atual; e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 988.
[21] SOARES, Antônio Carlos Martins. op. cit., nota 1 p. 58.
[22] SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 726.
[23] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de divergência em recurso especial. EResp. 1.296.631 RN. Relator: Laurita Vaz. Julgado em 11 de setembro de 2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/infojur/doc.jsp>. Acesso em: 29.11.2013.
[24] DELMANTO, Celso. et al. Código penal comentado. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 609.
[25] SOUZA, Cristiane Castro Carvalho de. O delito de apropriação indébita previdenciária e o processo administrativo fiscal. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.51508&seo=1>. Acesso em: 26 jul. 2016.
[26] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. 23. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2005,p. 293.
[27] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial. Resp. 125.423 SE. Relator: Edson Vidigal. Julgado em 13 de outubro de 1998. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=199700212181&pv=010000000000&tp=51>. Acesso em: 24.11.2013.
[28] TRF5, Rel. Desembargador Francisco Cavalcanti, Apelação Criminal n. 6597, DJe. 15.02.2013.
[29] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental no recurso especial. Ag no Resp. 1113701 PR. Relator: Nilson Naves. Julgado em 15 de setembro de 2009. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revistaeletronica/inteiroteor?num_registro=200900608503&data=14/12/2009>. Acesso em: 27.11.2013.
[30] DELMANTO, Celso. et al. op. cit., nota 24, p. 963.
[31] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial: dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359-H). 5. ed. rev. e atual. São Paulo: saraiva, 2007, p. 519. 3 v.
Advogado da União. Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Danillo Vilar. Crimes fiscais e ilícito tributário: evolução histórica e distinção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/47199/crimes-fiscais-e-ilicito-tributario-evolucao-historica-e-distincao. Acesso em: 22 dez 2024.
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