No ano em que os assuntos de cunho criminal deram mais ibope do que as novelas de televisão, não é de se admirar que nos últimos dias de dezembro os jornais tenham se ocupado com o instituto do indulto. De repente, o povo brasileiro, ao qual sequer foi dada a chance de conhecer as regras relacionadas às variações gráficas da palavra “porque” - se junto ou separado, com ou sem acento - começou a discutir o porquê do decreto presidencial e do inconformismo ministerial.
O indulto é previsto na Constituição da República como uma das atribuições do Presidente da República (art. 84, XII). Encontra-se elencado entre as causas de extinção da punibilidade previstas no Código Penal, onde também há um capítulo específico sobre o assunto, inserido no título pertinente às penas. Por sua vez, a Lei 7.210/1984 (LEP - Lei de Execução Penal) tratou do tema de forma mais detalhada, complementando as regras da lei maior em matéria criminal. Deve ser entendido como uma clemência estatal, concedida pelo Presidente da República, que, por meio de um decreto, estabelece os requisitos para a aplicação da benesse. Todos os condenados que se ajustarem às condições estipuladas deixarão de ter o dever de cumprir as suas respectivas penas. Nada impede que a iniciativa venha a ser tomada pelo próprio condenado, diretamente, ou por intermédio do Ministério Público, ou do Conselho Penitenciário, ou da autoridade administrativa. Nesses casos, sendo acolhido o requerimento, os efeitos se limitarão à pessoa do agente, não se estendendo a terceiros, ainda que estejam vivenciando situação jurídica idêntica, ou até menos gravosa. Por essa razão, do ponto de vista da iniciativa, o indulto pode ser classificado como coletivo ou individual, sendo que, este último, também pode ser chamado de graça.
É na Lei Magna que encontramos os limites para a concessão do indulto. A regra constitucional veda que condenados por crimes hediondos e equiparados venham ser beneficiados por este instituto. Algumas confusões já foram geradas pelo fato de o legislador, no texto constitucional, ter se referido apenas à anistia e graça (art. 5.º, XLIII, da Constituição da República). Porém o bom senso imperou na hermenêutica do Supremo Tribunal Federal, que concebeu o termo em seu sentido amplo, isto é, leniência por parte do chefe da nação. E não havia como se admitir interpretação diversa, pois se é proibido o benefício de forma isolada (indulto individual ou graça), com mais razão ainda para um número indeterminado de pessoas (indulto coletivo). Por essa razão, foi reconhecida a constitucionalidade do art. 2.º, I, da Lei 8.072/1990, ao ratificar a inaplicabilidade de anistia, graça e indulto quando se tratar de crime hediondo, tráfico, tortura e terrorismo (equiparados ou assemelhados).
Tradicionalmente, o indulto costuma ser concedido no final do ano, próximo das
festas natalinas, não se misturando às regras que dispõem sobre a saída temporária, vulgarmente conhecida como “indulto de Natal”, no qual o juiz pode autorizar presos condenados a passarem um breve período no seio familiar, desde que preenchidas as condições do arts. 123 e 124 da LEP. Para que o indulto propriamente dito possa ser aplicado, basta que o decreto presidencial apresente os respectivos requisitos objetivos e subjetivos, como, por exemplo, o percentual de pena já cumprido e o comportamento do beneficiado.
Diante do caos generalizado enfrentado pelo país, não resta a menor dúvida sobre o caráter impopular de qualquer tipo de indulgência para com os criminosos em geral, especialmente quando o delito atinge o erário. A corrupção endêmica revelada nos últimos anos, somente aprofundou a desigualdade social e a miséria preexistentes. O indulto proferido pelo Presidente Michael Temer, na reta final do seu mandato, causou indignação popular, dominou os noticiários, e criou o ambiente apropriado para que o Ministério Público provocasse a Suprema Corte, e, a partir dela, a imprensa, até que a notícia chegasse às redes sociais, onde foram postados os mais contundentes insultos ao governo. O indulto não pode ser compreendido como um prêmio para criminosos, é o que vem sustentando a Ministra Carmen Lúcia, fazendo ecoar seu discurso por todos os cantos do território nacional. Só não apareceu ainda alguém que, com toda a vênia, questionasse a quem mais seria outorgado o perdão da pena senão aos transgressores da lei, considerados culpados por um delito.
Não obstante as críticas quanto à opção política do governo federal, deve-se ter certo zelo no que tange aos seus aspectos jurídicos. Na legislação não há nada que impeça o Estado de abdicar do direito de punir indivíduos condenados por crimes, independente da quantidade de pena ou da espécie do crime, excetuando-se, é claro, aqueles que possuam a pecha da hediondez. Entretanto, do ponto de vista moral, é perfeitamente compreensível que a opinião pública se mostre escandalizada com a medida, mas não há como se insurgir do mesmo modo no campo da legalidade. Se o projeto de lei que pretendia incluir os crimes de corrupção ativa e corrupção passiva no rol dos crimes hediondos não tivesse sido arquivado em 2013, após as agitações das ruas, então haveria argumentos irrefutáveis para o repúdio do ato em tela. Em contrapartida, assiste razão a quem questiona a extensão do decreto para réus que estavam sob a égide do “sursis” processual, pois estes sequer foram condenados em primeira instância, figurando apenas como simples acusados, sobre os quais o indulto não se aplica. Provavelmente a União usará da velha máxima de “quem pode mais, pode menos”, ou seja, se o Estado tem o poder de liberar das penas pessoas definitivamente condenadas, por que não poderia deixar de julgá-las? Todavia, ainda que nos pareça razoável, o fato é que a hipótese não se encontra abarcada em lei como passível de indulto, nem defendida pela maioria dos doutrinadores. Medida dessa amplitude poderia ter sido tomada por iniciativa do Congresso Nacional pela via da anistia, que atinge não somente as penas, mas o próprio fato delituoso.
Independentemente da solução jurídica a ser confeccionada em breve, o episódio fez com que o tema pudesse ser novamente debatido e reavaliado, assim como ocorreu em 2001, quando o decreto assinado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso colocou em liberdade milhares de detentos, entre eles o ator Guilherme de Pádua, condenado por homicídio duplamente qualificado praticado contra a jovem atriz Daniela Perez, assassinada com dezoito golpes de tesoura. Como na época do cometimento, o referido delito ainda não constava na lista dos crimes hediondos, a medida foi tecnicamente correta, embora seja discutível se conseguiu alcançar igual mérito no campo da moralidade, e se representa aquilo que se entende como senso comum de justiça.
Há quem defenda uma nova regulamentação para a concessão das clemências dispostas em lei, pois carecem de critérios mais rígidos e condizentes com os anseios de uma sociedade que já não está mais disposta a transigir com a criminalidade. Esse grupo comunga da opinião de que o indulto represente o ressaibo de tempos remotos, quando imperadores dotados de divindade decidiam, à luz do arbítrio, a sorte dos seus súditos, as vezes motivados por sentimentos nobres, as vezes pelos mais escusos. Em pleno mundo digital, a aceitação do método de julgar conforme a posição do polegar depende de um poder de abstração bastante significativo. Chegou a hora de refletir sobre até que ponto o ânimo do legislador constituinte sofria influência do checks and balances ou se na verdade estava disposto a preservar determinadas práticas absolutistas que remontam o cenário dos Faraós.
Em posição diametralmente diversa estão aqueles que lamentam pelo esforço no sentido de retirar dos governantes o poder de agir com misericórdia, desacreditando no homem e na sua capacidade de regeneração virtuosa. Não compreendem a razão de a humanidade continuar procurando a cura da delinquência por intermédio da segregação carcerária, como se o malfeitor fosse um ser criado por valores de comunidades alienígenas. Se não for encontrada outra forma conter a criminalidade, chegará o dia em que somente os algozes desfrutarão do privilégio de manter uma vida extramuros.
SERGIO RICARDO DO AMARAL GURGEL é sócio em COSTA, MELO & GURGEL Advogados; autor da Editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GURGEL, Sergio Ricardo do Amaral. Entre indultos e insultos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jan 2018, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/51244/entre-indultos-e-insultos. Acesso em: 25 nov 2024.
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