No agitado abril de 2018, repetiram-se os discursos incentivando a invasão e a apropriação de imóveis, tema que é importantíssimo para cada brasileiro e especialmente caro aos estudiosos da constituição, do direito civil e, óbvia e particularmente, da legislação imobiliária.
Não interessa, ao menos neste rápido comentário, o debate sobre as motivações eleitoreiras, a demagogia, os efetivos objetivos desses arautos; a estultice é sinalizada quando o tema já vem conjugado com a ordem de queimar pneus.
Esses discursos ainda seguem ideários totalitários que morreram – ou deveriam ter morrido – no século passado, exatamente por terem como denominadores comuns as mentiras, a tirania, os crimes inumanos, não funcionarem em benefício do povo de qualquer prisma. Somente mereceriam depósito em museus: que sejam recordados para que os malfeitos não se repitam.
Especificamente quanto à habitação nas cidades, a incitação às invasões – grita clássica desses potentados – não resultou em algo positivo. Ora, qual o meio melhor – factível, pacífico, coerente com os anseios sociais – de incrementar o acesso à moradia? Penso que encontramos, no Brasil, a resposta eficaz e inteligente.
Pesquisemos: essas ideias violentas já tinham sido expostas (não, esses discursos não são novos!) podendo ser lembrado o pensar de Engels que, em 1873, achava que o combate à falta de moradias “só poderá ser feito mediante a expropriação dos atuais possuidores, ou então mediante a acomodação, nessas casas, de trabalhadores sem teto ou trabalhadores aglomerados nas moradias atuais”[1].
Nada diferente das invasões disparadas por “Movimentos”[2] no centro de São Paulo, repelidas por meio de ações de reintegração então movidas pelos proprietários e que mais recentemente motivaram ações possessórias contra os invasores remanescentes, intentadas pelos próprios Movimentos[3]!
Aliás, o autor alemão dizia que: “Está claro como a luz do sol que o Estado atual não pode nem quer remediar o flagelo da falta de moradias. O Estado nada mais é que a totalidade do poder organizado das classes possuidoras, dos proprietários de terras e dos capitalistas em confronto com as classes espoliadas, os agricultores e os trabalhadores. O que não querem os capitalistas individuais (e são só eles que estão em questão aqui, dado que, nesse assunto, o proprietário de terras também aparece, em primeira linha, em sua qualidade de capitalista) tampouco quer o seu Estado”[4].
A prática brasileira mostrou quão torta era essa visão: Estado, capitalistas, moradores, sociedade tiveram, sim, interesse em solucionar a questão. Melhor que isso, por aqui se seguiu caminho frutuoso, conseguindo-se nortear as atividades imobiliárias com bom arcabouço legal.
É fácil provar essa afirmação lembrando a nossa tradição legislativa, visível na sequência de constituições e no Código Civil de 1916, prevendo a aquisição da propriedade por ato entre vivos primordialmente, mas também por usucapião, privilegiada a posse que, além de longa, fosse tranquila, possível naquele código – como no atual – a soma do período do possuidor atual ao do antecessor: é a consolidação da propriedade imóvel de maneira pacífica.
O Código Civil de 2002 não descurou do apego à paz realizada pela legalidade, mas evoluiu, exigindo o exercício do direito de propriedade consoante as finalidades sociais e econômicas, com respeito ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e artístico, sem permitir abusos e sempre atentando às necessidades e aos anseios sociais. Foi acrescido – realce neste voo sobre as opções nacionais – pela Lei 11.481/07, no que diz com a concessão de uso especial para moradia e do direito real de uso.
Este o sucesso conduzido no País: a liberdade e o incentivo, conjugados com a certeza de que cada ato ou contrato se espraia socialmente, por isso merecendo os adequados cuidados. Nessa lógica, o hoje ministro Edson Fachin expôs, tratando do Código Civil de 2002: “Sabe-se que quem contrata não apenas contrata com quem contrata, e que quem pactua não avença tão-somente o que contrata; há uma transformação subjetiva e objetiva relevante nos negócios jurídicos. O novo Código traz a função social do contrato e os princípios de probidade e boa-fé”[5].
Ao longo da história mudaram as necessidades das pessoas, os métodos construtivos, os hábitos, as economias, as características dos negócios, e “com o agravamento do problema habitacional, a superposição de unidades residenciais, profissionais e comerciais e a proliferação crescente de edifícios em regime condominial nas capitais e no interior, todos estavam conscientes da necessidade de um provimento urgente...”, constatou Caio Mario da Silva Pereira[6], concluindo, acerca da Lei 4.591/64: “A nova lei reguladora do Condomínio e Incorporações veio preencher lacuna sempre lamentada e imprimir sistema e ordem à matéria. Todos sentiam a falta, todos reclamavam. E a todos veio a nova lei atender”.
Foi, realmente, perfeita ilustração do êxito que alcança lei que atenda adequadamente ao querer das pessoas, sem foguetório. Prova-se: essa legislação já completou 50 anos e resiste incólume e em funcionamento, como a sociedade deseja.
Não somente nessa esfera do progresso das relações imobiliárias tivemos a adequada atenção legal. Tínhamos um problema: “Após um saudável período de equilíbrio, em que predominou o sistema de livre mercado, preconizado pelo Código Civil, seguiu-se uma fase de forte dirigismo, em que o Estado, através da Lei nº 1.300/50, praticamente paralisou o setor, graças às restrições que impôs aos locadores. Bastou, entretanto, que o choque do petróleo, na década de 1970, voltasse a alimentar a inflação, e adiar os nossos sonhos de ingresso no Primeiro Mundo, para que o Estado voltasse a intervir no mercado, já agora com a Lei nº 6.649/79, que procurava compensar a fraqueza econômica do locatário, tornando-o juridicamente forte”, escreveu Sylvio Capanema de Souza[7].
O desequilíbrio consequente foi danoso (recordam-se os imóveis trancados, os dramas da locação) e a situação teve solução uma década depois, quando, superando a intervenção cujos efeitos claudicavam, a Lei 8.245/91 corporificou alentado desenvolvimento jurisprudencial e a boa doutrina, a resultar no diploma que melhor funcionou ou, mais exatamente, que melhor permitiu a operação das locações (alcançado, por conseguinte, o seu objetivo social), a ponto de nessas décadas ter exigido, tão somente, acréscimos pontuais, modernizadores.
Note-se que essa lei que organizou e incentivou as locações se contrapôs diametralmente ao que era imaginado século e meio atrás naquela borbulhante Europa, desta vez por Mulberger: “Sendo assim, a abolição da moradia de aluguel é uma das aspirações mais fecundas e grandiosas que brota do seio da ideia revolucionária e deve se tornar uma exigência de primeira grandeza por parte da democracia social”[8].
Mais recentemente, se vê nesse passeio sobre as soluções alcançadas pela nossa legislação imobiliária, tivemos a Lei 13.465/17, trazendo importantíssimos instrumentos de regularização fundiária e instituindo o direito de laje, o condomínio urbano simples, o condomínio de lotes, o loteamento de acesso controlado, novamente entregando à sociedade o que ela buscava.
A linha de pensamento e de desenvolvimento expressos na boa legislação nacional trouxe resultados palpáveis, como mostram os números ainda anteriores aos últimos e fortes programas de desenvolvimento habitacional. É o que se conclui do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[9].
De fato, o censo constatou que em 2010 existiam 57,3 milhões de domicílios particulares, contra 44,7 milhões em 2000. Ou seja, a quantidade de domicílios cresceu 28%, crescimento de enorme relevância quando visto que correspondeu a mais que o dobro do crescimento da população: 12,3% na década. Isso significa que mais gente pôde morar adequadamente.
Decorrência – também – da boa legislação mencionada, naquela década a quantidade de apartamentos subiu 43%; as moradias classificadas como “de favor” caíram de 10% para 8% – mais pessoas deixaram de depender de terceiros; os domicílios alugados somaram 10,5 milhões – retratando o cumprimento ao preceito constitucional do direito à moradia.
Na verdade, seguimos hoje – ainda bem, e a estatítica documentou o êxito – nosso próprio e efetivo querer – em vez de copiar os alheios, sendo curioso anotar que, em 1869, mesma época dos estrangeiros antes mencionados, José de Alencar disse: “Um código Civil não é obra da ciência e do talento unicamente; é, sobretudo, a obra dos costumes, das tradições, em uma palavra, a civilização, brilhante ou modesta, de um povo”[10].
É natural concluir que o pensar e o agir mais cautelosos e orientados em moldes realmente mais favoráveis à sociedade trouxeram muito mais benefícios que os discursos estridentes: usar os pneus para rodar, e não para fazer fumaça, se mostrou muito bom.
[1]ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia (“Zur wohnungsfrage”). trad. Nép. 3LS, ob. it. elio Schneider, 1ª ed., São Paulo: Boitempo, p.56, 2015.
[2] Um depoimento: foram várias as invasões em São Paulo seguidas do aluguel, pelos “Movimentos”, das unidades que eram entregues precariamente e em condições insalubres (os prédios estavam às vésperas de serem reformados). Os aluguéis não foram baratos (afinal, eram imóveis bem localizados) e poucos inquilinos sabiam que os contratos verbais seriam rompidos abruptamente, no dia da reintegração de posse judicialmente ordenada...
[3] A desocupação do Cambridge. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 mar. 2018, p. A3.
[4] ENGELS, op. cit., p.100.
[5] FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, p. 331, 2003.
[6] SILVA PEREIRA, Caio Mario. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 9 – prefácio à segunda edição, 1999.
[7] SOUZA, Sylvio Capanema. A lei do inquilinato comentada. 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 3, 2012.
[8] MULBERGER, apud ENGELS, op. cit. p. 3.
[9] www.ibge.gov.br/estatísticas.
[10]ALENCAR, 1869 apud BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Edição histórica, Rio de Janeiro:Ed. Rio, 1976.
(*) artigo selecionado para a Revista Debate Imobiliário, edição inaugural, publicada pelo IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (SP).
Advogado, diretor da Mesa de Debates de Direito Imobiliário (MDDI), sócio correspondente para São Paulo da Associação Brasileira dos Advogados do Mercado Imobiliário (ABAMI)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BUSHATSKY, Jaques. Pneus para queimar ou para rodar? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 ago 2018, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/52102/pneus-para-queimar-ou-para-rodar. Acesso em: 25 nov 2024.
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