INTRODUÇÃO
Dentro do âmbito do Direito Administrativo, há intenso debate sobre os contornos referentes à intervenção do Estado na propriedade, ocasião em que os entes federados, por diversos meios previstos no ordenamento jurídico, adentram na esfera do particular, restringindo ou ordenando o exercício de direitos sobre a liberdade e a propriedade.
Sob essa perspectiva, existem diversos institutos atrelados a este tema específico, a exemplo das limitações administrativas e da desapropriação, destacando-se esta última, tendo em vista constituir um dos instrumentos mais agressivos por meio de que o Estado interfere na órbita do administrado. Então, nesse tema, fica evidenciada a manifestação do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
Nesse ponto, analisando o período da república brasileira, desde a Constituição de 1891, há previsões sobre o direito de propriedade e a desapropriação, estabelecendo para o Estado a possibilidade de transferir a si o domínio particular em caso de necessidade, ou utilidade pública, mediante indemnização prévia (art. 72, §17). Tal instituto foi reproduzido, de forma contínua, nas constituições seguintes, havendo diversos artigos da Constituição Federal de 1988, a qual trouxe novos contornos acerca do tema.
Desse modo, a partir da promulgação da Constituição Cidadã, deu-se ênfase à função social da propriedade, especialmente com a previsão das desapropriações para fins de reforma agrária para imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (art. 184), além da desapropriação de imóvel urbano caso o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, não promova seu adequado aproveitamento (art. 182, §4º, III). Assim, percebe-se a intenção de o constituinte utilizar o aludido instituto como forma de estimular o adequado exercício do direito de propriedade, relegado à categoria de direito fundamental disposto no art. 5º, XXII.
Em seguida, é mister destacar os entendimentos recentes acerca da desapropriação, especialmente a indireta, a qual constitui verdadeiro esbulho promovido pela Administração Pública no domínio particular, fazendo surgir ao proprietário, após a incorporação do imóvel à Fazenda Pública, nos termos do art. 35 do Decreto-lei 3.365/1941, o direito à indenização correspondente.
Sob essa perspectiva, faz-se necessária a análise minuciosa do entendimento tanto da doutrina, quanto dos tribunais acerca da matéria, de modo a subsidiar a melhor compreensão dos aspectos correlatos.
1. LINHAS GERAIS SOBRE A DESAPROPRIAÇÃO SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Preambularmente, é válido destacar o conceito dado pela doutrina sobre o instituto da desapropriação, a exemplo do entendimento de Edilson Nobre Júnior[1]:
Entende-se por expropriação a perda da propriedade particular, ou o seu esvaziamento (minoração da substância), para o Estado ou seus entes delegados, por uma razão de utilidade ou necessidade pública, ou interesse social, mediante o pagamento de justa e prévia indenização em dinheiro, excetuadas as situações excepcionais das reformas agrárias (art. 184, CF) e urbana (art. 182, 2º, CF), em cuja quitação são utilizados títulos públicos.
Desse modo, a desapropriação, modalidade de internação estatal na propriedade, constitui manifestação da supremacia do interesse público sobre o particular. Isso porque, a partir de certas hipóteses, a exemplo da existência de utilidade pública ou interesse social, o Estado pode subtrair bens do patrimônio do administrado, desde que observados os requisitos constitucionais e legais correspondentes.
Sob essa perspectiva, Celso Antônio Bandeira de Mello[2] enfatiza a natureza jurídica de aquisição originária da desapropriação, vez que, além de prescindir da concordância do particular para efetivá-la. Por tal razão, a referida aquisição de propriedade não se acha vinculada a qualquer título jurídico do proprietário anterior.
Nesse contexto, apesar de a Constituição Federal de 1988 estipular, no art. 5º, XXIV, a regra da indenização prévia, a desapropriação indireta constitui gravoso e ilícito apossamento público de propriedade particular, oportunidade em que o Estado despreza o devido processo legal respectivo. Assim sendo, o particular, que se encontra em estado de sujeição em razão do domínio eminente do Estado sobre todos os bens situados em seu território, tem agravado seu status quando o ente exerce o referido domínio de maneira ilícita e inconstitucional.
Nesse sentido, a respeito do domínio eminente, o qual também serve de fundamento à intervenção estatal na propriedade, principalmente à desapropriação, é relevante trazer o entendimento do administrativista Hely Lopes Meireles[3], que assevera:
O domínio eminente é o poder político pelo qual o Estado submete à sua vontade todas as coisas de seu território. É uma das manifestações da Soberania interna; não é direito de propriedade. Como expressão da Soberania Nacional, não encontra limites senão no ordenamento jurídico-constitucional estabelecido pelo próprio Estado. Esse domínio alcança não só os bens pertencentes às entidades públicas como a propriedade privada e as coisas inapropriáveis, de interesse público.
(...)
Em nome do domínio eminente é que são estabelecidas as limitações ao uso da propriedade privada, as servidões administrativas, a desapropriação, as medidas de polícia e o regime jurídico especial de certos bens particulares de interesse público.
Esse poder superior (eminente) que o Estado mantém sobre todas as coisas existentes em seu território não se confunde com o direito de propriedade que o mesmo Estado exerce sobre as coisas que lhe pertencem por aquisição civil ou administrativa. Aquele é um domínio geral e potencial sobre bens alheios; este é uni domínio específico e efetivo sobre bens próprios do Estado, o que o caracteriza como um domínio patrimonial, no sentido de incidir sobre os bens que lhe pertencem.
Em sequência, enfatize-se que, para disciplinar o tema, à míngua de legislação específica, utiliza-se o Decreto-lei 3.365/1941, editado pelo então Presidente da República Getúlio Vargas, à época do Estado Novo, para dispor sobre desapropriações por utilidade pública. Nesse contexto, o art. 35 prevê a impossibilidade de reintegração de posse após a incorporação do imóvel objeto da desapropriação indireta à Fazenda Pública:
Art. 35. Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos.
Dessa forma, pode-se perceber a evidente ampliação da vantagem estatal em face do particular ao promover a desapropriação indireta, vez que, momentaneamente, não precisou observar o devido processo legal, com edição de decreto expropriatório, tampouco o pagamento, de indenização prévia.
Diante da flagrante abusividade decorrente da desapropriação indireta, há intenso debate na doutrina e nos tribunais sobre o tema, a seguir analisado, especialmente sobre prescrição e indenizações judiciais referentes ao instituto.
2. CONTROVÉRSIAS SOBRE A DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA NA JURISPRUDÊNCIA
Preambularmente, é interessante analisar aspectos sobre a prescrição da pretensão do particular quanto à indenização correspondente à desapropriação indireta. Isso porque, com base no art. 189 do Código Civil de 2002, violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, com o decurso do prazo previsto em lei.
Dito isso, vale dizer que, à época do Código Civil de 1916, aplicava-se o prazo prescricional de vinte anos, tendo o STJ, inclusive, sedimentado o referido entendimento no Enunciado 119 de sua Súmula. Em seguida, o art. 10, parágrafo único, do Decreto-lei 3.365/1941, alterado pela Medida Provisória 2.193/01, reduziu o prazo prescricional para cinco anos, porém a vigência do dispositivo foi suspensa por meio de liminar deferida pelo STF nos autos da ADI 2.260/DF, cujo foi acórdão publicado no DOU de 02/08/2002, restabelecendo-se o entendimento jurisprudencial anterior sobre no sentido da prescrição vintenária.
Posteriormente, com a edição do Código Civil de 2002, surgiu novo debate sobre o referido prazo, tendo em vista a redução de prazo prescricional para quinze anos, conforme o art. 1.238 do referido diploma. Além disso, houve redução para dez anos, prevista no parágrafo único deste artigo, caso possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Assim sendo, em 2013, o STJ, por meio do Informativo de Jurisprudência n. 523[4], divulgou precedente que pacificou o entendimento sobre o tema naquela Corte, no sentido da aplicação à desapropriação indireta do prazo de usucapião especial de dez anos:
DIREITO ADMINISTRATIVO. PRAZO PRESCRICIONAL NA HIPÓTESE DE PRETENSÃO INDENIZATÓRIA DECORRENTE DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA.
A pretensão indenizatória decorrente de desapropriação indireta prescreve em vinte anos na vigência do CC/1916 e em dez anos na vigência do CC/2002, respeitada a regra de transição prevista no art. 2.028 do CC/2002. De início, cumpre ressaltar que a ação de desapropriação indireta possui natureza real e, enquanto não transcorrido o prazo para aquisição da propriedade por usucapião, ante a impossibilidade de reivindicar a coisa, subsiste a pretensão indenizatória em relação ao preço correspondente ao bem objeto do apossamento administrativo. Com base nessa premissa e com fundamento no art. 550 do CC/1916 - dispositivo legal cujo teor prevê prazo de usucapião -, o STJ firmou a orientação de que "a ação de desapropriação indireta prescreve em vinte anos" (Súmula 119/STJ). O CC/2002, entretanto, reduziu o prazo da usucapião extraordinária para quinze anos (art. 1.238, caput) e previu a possibilidade de aplicação do prazo de dez anos nos casos em que o possuidor tenha estabelecido no imóvel sua moradia habitual ou realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Assim, considerando que a desapropriação indireta pressupõe a realização de obras pelo poder público ou sua destinação em função da utilidade pública ou do interesse social, com fundamento no atual Código Civil, o prazo prescricional aplicável às desapropriações indiretas passou a ser de dez anos.
REsp 1.300.442-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 18/6/2013.
Tal discussão possui reflexos variados, a exemplo da renúncia tácita ao prazo prescricional, a qual ocorre quando a Administração Pública, apesar de já consumada a prescrição, pratica ato incompatível com tal situação, a exemplo da publicação da publicação de decreto de desapropriação após a ocorrência de prescrição.
Sob outra perspectiva, é relevante tratar sobre a questão da indenização prévia, a qual é regra quando se trata de desapropriação, no âmbito dos processos judiciais por meio dos quais os particulares lesados pela desapropriação indireta pretendem mover suas pretensões. Isso porque, conforme dito, a regra é a indenização prévia, justa e em dinheiro, por força do art. 5º, XXIV da CF, porém, como é sabido, os pagamentos devidos pela Fazenda Pública em virtude de sentença judiciária é feito por meio de precatórios ou requisições de pequeno valor.
Note-se que existe verdadeiro conflito, vez que o Estado, apesar de cometer flagrante ilegalidade ao promover a desapropriação indireta, acabaria preterindo a regra constitucional de indenização prévia e em dinheiro. Tal contradição acaba por estimular a mencionada conduta estatal ilícita, vez que o ente federado, caso observasse o devido processo legal, estaria em posição menos vantajosa que a relativa à desapropriação indireta.
Inclusive, existe o RE 922.144/MG[5], de relatoria do Min. Luís Roberto Barroso, com repercussão geral reconhecida pelo STF, pendente de julgamento, por meio do qual se pretende analisar a compatibilidade entre a garantia de justa e prévia indenização em dinheiro e o regime de precatórios.
Dito isso, fica clara a relevância da desapropriação indireta dentro do Direito Administrativo, no âmbito doutrinário e jurisprudencial, tendo em vista sua caríssima importância no cotidiano da Administração Pública e dos administrados.
CONCLUSÃO
Diante de tudo exposto, viu-se que, dentre as formas de intervenção do Estado na propriedade, destaca-se a desapropriação, a qual possui diversas modalidades, como por utilidade pública ou interesse social. Nesse sentido, enfatizaram-se as previsões da Constituição Federal de 1988 acerca do instituto, especificamente o disposto no art. 5º, XXIV, o qual determina a regra da indenização prévia, justa e em dinheiro.
Em seguida, analisou-se a natureza jurídica da desapropriação, qual seja, de aquisição originária da propriedade, vez que independe da vontade do proprietário, tampouco se acha vinculada a título jurídico anterior. Nesse contexto, fundamentou-se o referido instituto na supremacia do interesse público sobre o particular, bem como no domínio eminente de que o Estado dispõe sobre os bens que se encontram em seu território.
No tocante à análise doutrinária, foram trazidos conceitos e ponderações de diversos administrativistas, no sentido de guarnecer a explanação com argumentação consistente e balizada.
Além disso, também foram importantes as menções ao entendimento dos tribunais acerca da matéria, especialmente quanto aos prazos prescricionais aplicáveis à desapropriação indireta, assim como a compatibilidade entre a garantia constitucional de justa e prévia indenização em dinheiro e o regime de precatórios, conforme processos sob jurisdição do STJ e STF, respectivamente.
Portanto, ficou clara a relevância do tema para a doutrina e a jurisprudência, além da presença de pendências cotidianas no âmbito da Administração Pública, vez que casos concretos envolvendo a matéria são recorrentes. Desse modo, o presente estudo serve de instrumento para a análise desses diversos pontos controversos sobre o instituto da desapropriação indireta no ordenamento jurídico brasileiro.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
- BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no julgamento do REsp 1.300.442-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 18/6/2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/SearchBRS?b=INFJ&livre=@COD=%270523%27&tipo=informativo>.
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Movimentação processual do Recurso Extraordinário de n. 922.144/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=922144&classe=RE-RG&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
- JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 10. ed. São Paulo: RT, 2014.
- MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
- MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed., rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2010.
- NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Desapropriação para fins de reforma agrária. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 194, p. 77-96, abr. 1993.
- NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Princípios da desapropriação. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 209, p. 121-141, jul. 1997.
[1] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Princípios da desapropriação. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 209, p. 123, jul. 1997. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/47047/46032>. Acesso em: 04 Jan. 2018.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 27. ed., rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 871-872.
[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 634.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no julgamento do REsp 1.300.442-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 18/6/2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/SearchBRS?b=INFJ&livre=@COD=%270523%27&tipo=informativo>. Acesso em: 05 Jan. 2018.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Movimentação processual do Recurso Extraordinário de n. 922.144/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=922144&classe=RE-RG&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: Acesso em: 05 Jan. 2018.
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2014.2). Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2018). Advogado inscrito na OAB/PE entre 2015 e 2019. Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco - TJPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Kaio César Queiroz Silva. Pontos sobre a desapropriação indireta no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jan 2020, 05:02. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/54098/pontos-sobre-a-desapropriao-indireta-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 nov 2024.
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