RESUMO: O presente trabalho analisa a utilização pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do princípio da dignidade humana como fundamento para reconhecimento da repercussão geral em recursos extraordinários, bem como sua invocação para a própria solução de mérito de recursos com repercussão geral reconhecida. A ausência de especificação legal do que seriam situações com relevância econômica, econômica, política, social ou jurídica, para fins de reconhecimento da repercussão geral, cria espaço para utilização postulado da dignidade na fundamentação relativamente à relevância dos temas. Analisar-se-á precedentes do STF a fim de compreender como a Corte brasileira tem alocado e valorado o princípio da dignidade humana no julgamento de recursos extraordinários sob a sistemática da repercussão geral.
Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal – dignidade da pessoa humana – recursos extraordinários – repercussão geral.
Sumário: 1. Introdução; 2. Histórico, conceito e funções de Dignidade Humana; 3. Da sistemática da Repercussão Geral; 4. Dignidade Humana para o Supremo Tribunal Federal; 4.1 - Utilização do princípio da dignidade humana para reconhecimento da repercussão geral em recursos extraordinários; 4.2 - Utilização do princípio dignidade humana como fundamento da decisão de mérito em recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida; 5. Considerações finais; 6. Referências.
1. Introdução
O princípio da dignidade humana, alçado constitucionalmente como fundamento do Estado brasileiro, constitui vetor máximo interpretativo a nortear a atuação dos Poderes Públicos, bem como valor a ser observado na relação entre particulares.
No âmbito judicial brasileiro, o postulado da dignidade humana, em diversas oportunidades, tem sido invocado para solução das mais diferentes controvérsias. A menção ao postulado é tão presente, que, por algumas vezes, verifica-se, inclusive, seu uso banalizado sem a devida fundamentação e enquadramento ao caso concreto.
O Supremo Tribunal Federal (STF), usualmente, recorre ao princípio da dignidade humana como valor guia para suas decisões em casos mais complexos, como o fez quando da análise da possibilidade de pesquisas com células tronco embrionárias, das uniões homoafetivas e da interrupção da gestação de fetos anencefálicos.
Conforme previsão constitucional, a Suprema Corte brasileira, para além da atribuição de aferir, em controle concentrado, a constitucionalidade de Leis, possui ampla competência recursal e criminal, de modo que se tornou Tribunal que julga elevadíssimo número de demandas das mais diversas temáticas.
Para fins de filtragem processual e garantir que o STF examinasse apenas as grandes questões do país, a Emenda Constitucional nº 45/2004 incluiu, como requisito de admissibilidade recursal, a necessidade de a questão constitucional trazida nos recursos extraordinários possuir repercussão geral, isto é, trazer relevante aspecto econômico, político, social ou jurídico.
Neste estudo, analisar-se-á a utilização pelo STF do princípio da dignidade humana como fundamento para reconhecimento da repercussão geral em recursos extraordinários, bem como sua invocação para a própria solução de mérito de recursos com repercussão geral reconhecida.
Mostra-se relevante proceder à análise de precedentes da Suprema Corte que utilizaram o princípio da dignidade humana, a fim averiguar como o Tribunal tem compreendido e alocado o postulado, especificamente, na solução de controvérsias recursais.
Diante da falta de especificação constitucional ou legal do que seriam situações com relevância econômica, econômica, política, social ou jurídica, o postulado da dignidade ganha espaço para preencher lacunas e respaldar a fundamentação relativamente à repercussão geral dos temas em julgamento, seja no seu reconhecimento ou propriamente na análise meritória do recurso.
Não obstante os julgados em sede controle concentrado de constitucionalidade tenham mais visibilidade, inegável o impacto provocado, especificamente, pelas decisões da Corte em recursos extraordinários sob a sistemática da repercussão geral, ante a relevância das matérias decididas e o efeito multiplicador decorrente dos julgamentos.
2. Histórico, conceito e funções de Dignidade Humana
A palavra dignitas era utilizada na Roma Antiga para qualificar determinadas pessoas em razão de seu status pessoal, função ou cargos ocupados, de modo a garantir a apenas certos membros da sociedade tratamento favorecido, respeitoso e diferenciado dos demais componentes do grupo[1].
Na idade média, o filósofo cristão Tomás de Aquino trazia a noção de que a dignidade humana se fundamentava no fato de ser o homem feito à imagem e semelhança de Deus e, em razão de sua criação divina, ser detentor de autodeterminação e liberdade por sua própria natureza[2].
Nesse contexto, observava-se a plena possibilidade de diferenciação entre as pessoas em razão do berço, origem e função ocupada socialmente, pelo que o tratamento a ser dispensado ao indivíduo dependeria de sua posição hierárquica na sociedade. Nessa toada, leciona Luís Roberto Barroso[3]:
Até o final do século XVIII a dignidade ainda não estava relacionada com os direitos humanos. De fato, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ela estava entrelaçada com ocupações e posições públicas; nos Estados Unidos, as referências à dignidade nos Artigos Federalistas, por exemplo, diziam respeito a cargos, ao governo ou a nação como um todo. Portanto, na cultura ocidental, começando com os romanos e chegando até o século XVIII, o primeiro sentido atribuído à dignidade – enquanto categorização dos indivíduos – estava associado a um status superior, uma posição ou classificação social mais alta. Como se percebe, a dignidade em seu sentido pré-moderno pressupunha uma sociedade hierarquizada, na qual a desigualdade entre diferentes categorias de indivíduos era parte constitutiva dos arranjos institucionais. De modo geral, a dignidade era equivalente à nobreza, implicando em tratamento especial, direitos exclusivos e privilégios.
A ideia da dignidade como valor universal só ganhou relevo com o iluminismo, sendo atribuível a Immanuel kant[4], a mais considerável formulação sobre o tema, ao teorizar que as pessoas, diferentemente das coisas e dos animais, não têm preço, mas dignidade, constituindo fins em si mesmas e detentoras de autonomia, enquanto seres racionais.
Somente no final da segunda década do século XX que a dignidade humana começou a aparecer nos documentos jurídicos, com a Constituição do México (1917) e a Constituição Alemã da República de Weimar (1919)[5].
Depois da Segunda Guerra Mundial e das atrocidades cometidas no período, assimilou-se o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos[6].
Diversos documentos internacionais, como a Carta das Nações Unidas de 1945, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 passaram a prever expressamente o postulado da dignidade.
No caso brasileiro, a primeira constituição a trazer a previsão de dignidade foi a de 1934 que, com influência da Constituição de Weimar, em seu art. 115, estabelecia que a ordem econômica deve possibilitar a todos existência digna. As constituições posteriores (1946, 1967, EC 1/69), excetuada a de 1937, trouxeram a mesma orientação, no sentido de a dignidade humana ser garantida pela ordem econômica.
A Constituição de 1988, em seu art. 1º, elencou a dignidade da pessoa humana como fundamento da república brasileira. O princípio aparece expressamente, também, no art. 226, 7º, como fundamento ao planejamento familiar e, mais adiante, nos artigos 227 e 230, há previsão de proteção às crianças, adolescentes, jovens e idosos, de forma assegurar-lhes vida digna.
Ao elencar o princípio da dignidade humana como fundamento do Estado Brasileiro, nota-se a extrema importância atribuída pelo constituinte originário ao princípio, que pretendeu pautá-lo como valor central e verdadeiro alicerce de todo arcabouço constitucional.
José Afonso da Silva[7] ensina que dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.
Ao seu turno, sobre o conceito da dignidade humana, leciona Barroso[8] que:
“grosso modo, esta é a minha concepção minimalista: dignidade humana identifica (1) o valor intrínseco de todos os seres humanos, assim como (2) a autonomia de cada indivíduo, (3) limitada por algumas restrições legitimas impostas a ela em nome dos valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário).”
Para Jesus Gonzales Perez[9], a dignidade é o grau ou categoria que corresponde ao homem como dotado de inteligência e liberdade, diferente e superior a tudo o que foi criado, o que implica um tratamento conforme a sua natureza humana. Já Antônio Enrique Pérez Luño[10] apresenta a dignidade humana como princípio fundador dos direitos humanos e acentua sua importância nas relações sociais, tratando-se de princípio que limita a esfera individual de cada um, estabelecendo um mínimo invulnerável.
Há certa dificuldade doutrinária em conceituar o princípio da dignidade, ante a abrangência e vagueza do postulado prescrito no texto constitucional. Consoante Emerson Garcia[11], não há delimitação clara do conceito de dignidade humana, em razão da “necessidade de integração por um juízo de valor, temporal e espacialmente localizado, primordialmente realizado à luz da situação concreta”.
A polissemia do conceito jurídico de dignidade, por vezes, acarreta a banalização e utilização atécnica do princípio, de forma que é necessária a cuidadosa interpretação do caso concreto para preservação do núcleo fundamental da dignidade.
Em âmbito jurisdicional, a imprecisão dos contornos da dignidade humana ocasiona muitas vezes a utilização abusiva ou sem parâmetros do postulado constitucional, que fica a cargo exclusivo da interpretação pessoal do julgador.
Não raro se observam julgados com condenações ao Estado a determinadas obrigações prestacionais (medicamentos, tratamentos de saúde, prestações assistenciais), sem maiores fundamentações ou justificativas, aduzindo que determinada ação estatal é necessária para o resguardo à dignidade.
Virgílio Afonso da Silva[12] denomina “hipertrofia da dignidade” o fenômeno de seu uso banalizado a toda e qualquer demanda que poderia ser solucionada com base em outras normas constitucionais ou infraconstitucionais. A utilização do princípio, a depender da criatividade do julgador, acarreta o desprestígio do instituto, de modo a aumentar sua função simbólica em detrimento da normativa.
O Supremo Tribunal Federal, em diversos precedentes, utiliza-se do princípio da dignidade da pessoa humana de forma ascendente, desde a promulgação da Constituição 1988. Como regra geral, as decisões da Suprema Corte brasileira apontam para a escolha da alternativa que se demonstre mais adequada às exigências da dignidade da pessoa humana[13].
Diante da relevância das matérias decididas e o efeito multiplicador presentes nos recursos extraordinários julgados na sistemática da repercussão geral, embora os julgados em sede controle concentrado de constitucionalidade tenham mais destaque e visibilidade, merece análise a utilização pelo STF do princípio da dignidade humana nestes casos.
3. Da sistemática da Repercussão Geral
A partir da segunda guerra mundial, houve ascensão institucional do Poder Judiciário, importando aumento expressivo da demanda por prestação jurisdicional. Nesse contexto, Tribunais de todo o mundo depararam-se com grandes volumes de processos, o que ensejou a implementação de “filtros de relevância” em países, como Alemanha, Argentina, Austrália, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, Japão e Reino Unido. A necessidade de um filtro de relevância também foi sentida no Brasil, devido ao assoberbamento do STF, especialmente quanto aos recursos extraordinários. Inicialmente, implementou-se no Regimento Interno do STF a arguição de relevância, que perdurou até a criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que poderia reduzir o número de demandas ao STF. Porém, a criação do STJ, não foi capaz de desafogar o STF[14].
Foi instituído pela EC 45/2004 novo filtro de relevância, na forma do instituto da repercussão geral, como mecanismo de admissibilidade recursal, que visa autorizar a ‘subida’ ao STF apenas das demandas judiciais que possuírem relevância social, jurídica, política ou econômica.
Com sua criação, objetivou-se a diminuição do volume demandas a serem julgadas pela Suprema Corte brasileira, a fim de que fossem julgadas apenas as grandes questões constitucionais em debate no país. Nas palavras de Teresa Wambier[15], o filtro faz com que o STF atenda “à sua verdadeira função, que é zelar pelo direito objetivo – sua eficácia, sua inteireza e a uniformidade de sua interpretação na mexida em que os temas trazidos à discussão tenha relevância para a Nação.”
No âmbito infraconstitucional, o Código de Processo Civil de 2015, ao regulamentar o dispositivo constitucional, não promoveu a definição exata do que seria a repercussão geral, prevendo, tão somente, de forma abstrata, no §1º do art. 1035, que “para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.”
Denota-se da previsão legal que a questão constitucional em debate no recurso extraordinário deverá possuir relevo sobre segmentos ponderáveis da sociedade, sob um ou mais de um pontos de vista, não se limitando à proteção dos interesses das partes envolvidas[16].
A temática em análise deve afetar um grande número de pessoas, tratar de assuntos significativos e transcender os interesses pessoais das partes processuais envolvidas[17].
Segundo Cândido Rangel Dinamarco[18], caracteriza-se a repercussão geral quando a questão em debate ultrapassa os limites subjetivos da causa, envolve controvérsias que estão além do direito individual das partes, cuja decisão não se confine à esfera de direitos exclusivamente dos litigantes e possa ser útil a grupos inteiros ou a uma grande quantidade de pessoas.
Diante da abertura do conceito do que seriam os temas com relevância econômica, política, social ou jurídica, que acabam ficando a cargo de interpretação dos julgadores, o princípio da dignidade humana encontra amplo espaço para servir de embasamento e fundamento das decisões judiciais, a justificar se discussão ultrapassa, ou não, o interesse das partes do litígio.
A forma que a Suprema Corte compreende e utiliza o princípio da dignidade humana em recursos com repercussão geral reconhecida, considerando o efeito multiplicador do julgado nesta sistemática, possui o viés aumentar ou mitigar o nível de proteção à pessoa
4. Dignidade Humana para o Supremo Tribunal Federal
É no exercício de atribuição jurisdicional do Supremo Tribunal Federal que o sentido e alcance atribuído à dignidade da pessoa humana assumem feição particularmente relevante, tendo em vista o caráter vinculativo e diretivo da jurisprudência daquele que vem a ocupar a condição de guardião da Constituição[19].
Em sede de controle concentrado, recorrendo ao postulado da dignidade, o STF já decidiu temas de extrema relevância, como: Inconstitucionalidade da proibição de doação de sangue por homens homossexuais (ADI 5543); Possibilidade de pesquisa com células tronco embrionárias (ADI 3510); Reconhecimento da união estável de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar (ADI 4277); Reconhecimento do estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro (ADPF 347); Possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencéfalos (ADPF 54), dentre outros.
Malgrado as decisões proferidas em sede controle concentrado de constitucionalidade possuam maior ressalto no meio jurídico, importa examinar o uso do princípio da dignidade humana pelo Supremo Tribunal Federal para reconhecimento de repercussão geral e no próprio julgamento de mérito recursal, sobretudo ao se considerar a relevância das matérias em discussão e efeito multiplicador decorrente.
4.1 - Utilização do princípio da dignidade humana para reconhecimento da repercussão geral em recursos extraordinários
No RE 886.131/MG - RG, sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso, o plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu haver repercussão geral na discussão se a vedação à posse em cargo público de candidato que esteve acometido de doença grave, mas que não apresenta sintomas atuais de restrição laboral, viola os princípios da isonomia, da dignidade humana e do amplo acesso a cargos públicos.
Na referida demanda judicial, candidata aprovada na fase de provas do concurso para o cargo de oficial judiciário do TJMG, possuía histórico de doença grave (neoplasia mamária), foi tratada cirurgicamente, por quimioterapia e radioterapia, estando, na data da inspeção médica, assintomática há dezoito meses. A candidata apresentou laudos particulares apontando sua aptidão para o desempenho do cargo.
A junta médica do TJMG julgou-a inapta com base no Manual de Perícias do TJMG que exigia que o término do tratamento se desse há pelo menos cinco anos (carência de cura). Em primeira instância, a candidata teve sentença de procedência resguardando seu direito à posse no cargo, porém a sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça mineiro, que reputou adequada a inaptidão apontada pela perícia oficial.
No caso, o STF entendeu que matéria possui repercussão geral sob os pontos de vista político, na medida em que envolve diretrizes de contratação de servidores públicos, e social, pois são inúmeras as pessoas já acometidas de doenças graves que vêm a prestar concurso públicos, sendo necessário aferir se a vedação à posse violaria a dignidade humana.
Observa-se, no referido precedente, que a Corte concluiu pela presença de repercussão geral, no campo político e social, para fins de avaliar se há ou não violação à dignidade humana – e a outros princípios – na conduta Administrativa que veda o acesso a cargo públicos.
Em outro caso, ARE 959.620/RS - RG, Relator Ministro Edson Fachin, o Plenário reconheceu a repercussão geral da análise sobre a adoção de práticas e regras vexatórias com a revista íntima para o ingresso em estabelecimento prisional.
O debate versa sobre a possível ilicitude da prova obtida a partir da revista íntima e/ou vexatória de visitantes para ingresso em estabelecimento prisional, por ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana e pela proteção aos direitos fundamentais à intimidade, honra e imagem das pessoas.
A repercussão geral foi reconhecida pelo fato de o debate versar sobre dignidade humana e intimidade, de forma a haver manifesta relevância social e jurídica, que transcende os limites subjetivos da causa.
No RE 1.058.333/PR - RG, relatado pelo Ministro Luiz Fux, reconheceu-se a repercussão geral do debate acerca da possibilidade de remarcação de teste de aptidão física, independentemente de previsão no edital do concurso, para candidata gestante.
No referido litígio, questionava-se acórdão do Tribunal de Justiça local que garantiu o direito à remarcação a uma candidata que não compareceu ao exame físico, que constituía etapa do certame para o cargo de Policial Militar do Estado do Paraná, em razão da gravidez de 24 semanas.
O STF entendeu haver relevância da matéria sob os pontos de vista social e jurídico, bem como a transcendência da questão, em razão do litígio versar sobre direito à igualdade, à dignidade humana e à liberdade reprodutiva.
A dignidade humana também serviu de fundamento para a admissibilidade do RE 670.422/RS - RG, Relator Ministro Dias Toffoli, em que se discutia a possibilidade de o transgênero alterar seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil.
Na mencionada causa, os juízos de primeiro e segundo grau entenderam ser essencial a realização de cirurgia de redesignação sexual para o deferimento da alteração do assentamento civil relativo ao sexo, o que ensejou a interposição de recurso extraordinário ao Supremo.
Foi reconhecida a repercussão geral da discussão ante a relevância jurídica e social do tema, que extrapola os interesses subjetivos das partes. Fundamentou-se que o tema é relevante, pois necessário o julgamento acerca da possibilidade de convivência entre os princípios da dignidade e intimidade com princípios da veracidade dos registros públicos e publicidade.
Em pesquisa no acervo de julgados do STF[20], constata-se que não há precedente da Corte que tenha invocado a dignidade humana para fins de reconhecimento da relevância sob ponto de vista econômico, o que, obviamente, não impossibilita a invocação, em precedentes futuros, da dignidade em casos relativos à economia, até porque, assegurar a todos existência digna é objetivo constitucional expresso da ordem econômica nacional (cf. art. 170 da CF/88).
Dos julgados colacionados, constata-se que, na ótica da Corte, quaisquer possibilidades de vulneração ao postulado da dignidade da pessoa humana (fundamento da república) servem como fortes argumentos para o reconhecimento da repercussão geral da controvérsia.
Conforme consignado, inexiste parâmetro matemático para que determinada discussão seja considerada relevante, o que acarreta atribuição à Corte de ampla liberdade argumentativa para reconhecimento da repercussão. A jurisprudência apresentada indica que, ocorrendo possibilidade de violação à condição de dignidade humana, que possa atingir sujeitos além das partes do processo, haverá presunção de relevância do debate recursal.
4.2 - Utilização do princípio dignidade humana como fundamento da decisão de mérito em recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida
Ultrapassada a fase de reconhecimento da repercussão geral, assim como na admissibilidade recursal, no julgamento meritório de recursos extraordinários com repercussão reconhecida, por diversas vezes, a Suprema Corte recorre ao postulado da dignidade como fundamento de suas decisões.
No RE 898.450/SP - RG, Relator Ministro Luiz Fux, o plenário do STF, julgou inconstitucional a proibição de tatuagens a candidatos a cargo público estabelecida em leis e editais de concurso público. No referido julgado, deu-se provimento a recurso extraordinário interposto por candidato ao cargo de soldado da Polícia Militar de São Paulo eliminado em razão de possuir tatuagem na perna.
Entendeu a Corte haver ofensa à dignidade humana e à liberdade de expressão no ato de impossibilitar o acesso a cargos públicos decorrente de o candidato possuir tatuagem. Fixou-se a seguinte tese de repercussão geral (Tema 838): “Editais de concurso público não podem estabelecer restrição a pessoas com tatuagem, salvo situações excepcionais, em razão de conteúdo que viole valores constitucionais”.
Em outro julgado, RE 778.889/PE - RG, Relator Ministro Roberto Barroso, a controvérsia era relativa a ação proposta por servidora pública que obteve a guarda provisória de criança para fins de adoção, sendo-lhe concedida a licença maternidade de trinta dias, prorrogada por mais quinze dias. A servidora impetrou mandado de segurança pleiteando a concessão de licença de cento e vinte dias, sob o fundamento de que esta é a previsão constitucional para a gestante.
A decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região foi desfavorável ao pleito da servidora pelo fundamento de que os direitos da mãe adotante são diferentes dos direitos da mãe gestante.
No julgamento do recurso extraordinário, foi reconhecido o direito da recorrente ao prazo remanescente da licença, a fim de que o tempo total de fruição do benefício, computado o período já usufruído, fosse de cento e oitenta dias de serviço remunerado.
A equiparação respaldou-se na interpretação sistemática da Constituição à luz da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre filhos biológicos e adotados, da doutrina da proteção integral e do interesse superior do menor. Fixou-se a seguinte tese de repercussão geral (Tema 782): “Os prazos da licença adotante não podem ser inferiores ao prazo da licença gestante, o mesmo valendo para as respectivas prorrogações. Em relação à licença adotante, não é possível fixar prazos diversos em função da idade da criança adotada”.
Em outro interessante precedente, o Plenário, no RE 791.961/PR - RG, Relator Ministro Dias Toffoli, assentou que é vedada simultaneidade entre a percepção da aposentadoria especial e o exercício de atividade especial, seja essa última aquela que deu causa à aposentação precoce ou não.
A tese vencedora reconheceu a constitucionalidade do artigo 57, § 8º, da Lei 8.213/91, assentando que a aposentadoria especial possui caráter protetivo, que visa à preservação da saúde do trabalhador, de modo que permitir que continue no trabalho especial após aposentadoria contraria o propósito do benefício.
A Corte reconheceu que a norma se presta ao resguardo do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como os direitos à saúde, à vida, ao ambiente de trabalho equilibrado e à redução dos riscos inerentes ao trabalho. Fixou-se a seguinte tese de repercussão geral (Tema 709):
“(i) [é] constitucional a vedação de continuidade da percepção de aposentadoria especial se o beneficiário permanece laborando em atividade especial ou a ela retorna, seja essa atividade especial aquela que ensejou a aposentação precoce ou não; (ii) nas hipóteses em que o segurado solicitar a aposentadoria e continuar a exercer o labor especial, a data de início do benefício será a data de entrada do requerimento, remontando a esse marco, inclusive, os efeitos financeiros; efetivada, contudo, seja na via administrativa, seja na judicial, a implantação do benefício, uma vez verificada a continuidade ou o retorno ao labor nocivo, cessará o benefício previdenciário em questão.
Neste caso específico - demonstrando que a amplitude da dignidade autoriza sua invocação por lados opostos do debate - o princípio da dignidade humana foi utilizado também pela corrente divergente (vencida), aberta pelo Ministro Edson Fachin, que considerou a proibição desproporcional para o trabalhador. Para o Ministro, estabelecer aos segurados que gozam de aposentadoria especial restrição similar aos que recebem aposentadoria por invalidez representaria grave ofensa à dignidade humana.
Dos precedentes trazidos, vislumbra-se que, não obstante o princípio da dignidade seja aberto e polissêmico, o STF invoca-o constantemente para solução das controvérsias, dando-lhe concretude e materialização, o que enseja maior compreensão do postulado.
Na análise do mérito recursal, o STF, tal qual no juízo de admissibilidade, como regra geral, reconhece o caráter de valor fundamental e de guia máximo interpretativo do princípio da dignidade humana, decidindo no sentido de assegurar a preservação de seu núcleo essencial, ainda que em ponderação com outros direitos fundamentais.
5 - Considerações finais
A partir da contextualização do tema e análise dos precedentes colacionados, observou-se que o Supremo Tribunal Federal, em número significativo de julgados, aloca o princípio da dignidade humana como guia interpretativo principal e valor máximo necessário a proteger outros direitos fundamentais.
No caso do específico do julgamento de recursos extraordinários, como não há critérios exatos, constitucionais ou legais, para o enquadramento de tema como relevante ou não para fins de reconhecimento repercussão geral, cabe ao julgador ampla liberdade na construção de seu raciocínio a demonstrar que o tema ultrapassa a esfera de interesses das partes em litígio.
Neste ponto, o princípio da dignidade humana encontra amplo espaço para aplicação, como fundamento principal ou acessório, ao reconhecimento da presença de repercussão geral do debate.
Do estudo de julgados da corte, infere-se que a posição adotada pelo STF é no sentido de que possíveis violações à dignidade da pessoa humana são fundamentos robustos para o reconhecimento repercussão geral da controvérsia, haja vista se tratar de princípio fundamental da república brasileira. Em outras palavras, a jurisprudência apresentada indica que, ocorrendo vulneração à condição de dignidade humana que possa atingir sujeitos além das partes do processo, haverá presunção de relevância do debate recursal.
Ultrapassado o juízo de reconhecimento da repercussão, nas discussões de mérito dos recursos extraordinários, observou-se que a utilização pela Corte do postulado da dignidade humana é igualmente recorrente e, assim como no juízo de admissibilidade, como regra geral, decide-se a controvérsia com a finalidade de preservação do núcleo essencial da dignidade.
Portanto, vislumbra-se que, não obstante o princípio da dignidade seja aberto e polissêmico, o Supremo Tribunal Federal invoca-o constantemente para solução das controvérsias recursais julgadas sob a sistemática de repercussão geral, dando ao postulado concretude e densificação.
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[5] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. 1ª ed. 5. Reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 19.
[6] Comparato, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 68-69.
[7] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43. ed. São Paulo: Malheiros, 2020. p. 106.
[8] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. 1. ed. 5. Reimpressão Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 72.
[10] PÉRES LUÑO, A. E., Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 5. ed. Madri: Técnos, 1995. p. 318.
[11] GARCIA, Emerson. Dignidade da Pessoa Humana: referenciais metodológicos e regime jurídico. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 21, 2005, p. 85.
[12] SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 193-196.
[13] COELHO MARQUES, P., & CAMARGO MASSAÚ, G. (2020). Dignidade Humana e o Supremo Tribunal Federal. Revista Direitos Culturais, 15(37), 145-161. 2020. DOI: https://doi.org/10.20912/rdc.v15i37.206
[14] BARROSO, Luís Roberto; REGO, Frederico Montedonio. Como salvar o sistema de repercussão geral: transparência, eficiência e realismo na escolha do que o supremo tribunal federal vai julgar. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Volume 7, Número 3, Dez/2017. DOI: https://doi.org/10.5102/rbpp.v7i3.4824
[15] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2008. p. 292.
[16] RODRIGUES NETTO, Nelson. A Aplicação da Repercussão Geral da Questão Constitucional no Recurso Extraordinário consoante a Lei n° 11.418/06. Revista Dialética do Direito Processual. São Paulo: abril, v. 30, n. 49, 2007, p. 116
[17] TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 324-325.
[18] DINAMARCO , Cândido Rangel. O processo civil na reforma constitucional do Poder Judiciário. Revista Jurídica Unicoc, Ribeirão Preto, v. 2. 2005. p 6-7.
[19] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: Flávia Piovesan; Inês Virgínia Prado. (org). Impacto das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Jurisprudência do STF. 2. ed. Salvador. Juspodivm, 2020. v1, p. 51.
[20] Consulta relativos a julgados publicados até dez/2020. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. http://portal.stf.jus.br/jurisprudencia. Acesso em 28/12/2020.
Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de pesquisa Constituição e Democracia. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG (2007). Pós-graduado em Direito Notarial pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro - UGF/RJ (2009). Membro do Grupo de Pesquisa em Política e Direito da Universidade de Brasília (UnB). Analista Judiciário, Área Judiciária, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVARENGA, Aislan Arley Pereira de. A utilização do princípio da dignidade humana no julgamento de recursos extraordinários sob a sistemática da repercussão geral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jan 2021, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/56047/a-utilizao-do-princpio-da-dignidade-humana-no-julgamento-de-recursos-extraordinrios-sob-a-sistemtica-da-repercusso-geral. Acesso em: 24 nov 2024.
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