É assente no cenário nacional a grande preocupação dos cidadãos brasileiros com relação ao modo de organização da Administração Pública, bem como sobre os resultados práticos advindos do formato atual de estruturação do setor público.
Essa exigência social quanto a um serviço público mais eficiente se intensificou nos últimos anos, notadamente após a redemocratização do Brasil na década de 80, catalisada, hoje, pela massificação das redes sociais.
Nesse viés, o caminho da Administração Pública atual não pode – nem poderá – ser destoante de práticas modernas pautadas num contexto valorativo que garanta a plena eficiência do setor público.
A título de exemplo, são inadmissíveis nos tempos hodiernos os gastos excessivos com trâmites processuais físicos e obsoletos, notadamente quando o meio eletrônico se mostra mais econômico e eficiente.
Justamente no mesmo sentido é a lição doutrinária administrativista:
[...] as críticas reiteradas ao Estado e ao modelo de Administração Pública brasileiros são, em geral, justas, e remontam a razões históricas profundas, que levaram a dominação do aparato estatal por elites sociais que, ao dirigir a atuação administrativa em favor de seus próprios interesses, promoveram a reprodução de um modelo exclusivista e ineficiente no tocante à prestação de serviços públicos à população.[1]
Quando a esse ponto dos interesses manifestamente escusos que muitas vezes permeiam a visão da gestão pública brasileira, é importante mencionar o célebre relato do escritor alagoano Graciliano Ramos, quando fora gestor do Município de Palmeira dos Índios, no Estado de Alagoas:
Evitei emaranhar-me em teias de aranha. Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos. Não me entendi com esses.
Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável; há quem não compreenda que um acto administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisas tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos. Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas.
Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos.[2]
Fixadas essas premissas, cumpre ressaltar a relevância do Decreto Federal nº 10.609/2021 que instituiu a Política Nacional de Modernização do Estado e o Fórum Nacional de Modernização do Estado, instrumentos que visam a combater exatamente os males apontados pelo escritor Graça, como comumente se chama Graciliano Ramos. Este novo olhar da Administração Pública Federal surgiu após intensos debates ocorridos a partir de 2019, consoante informações oficiais de fontes governamentais, saber:
Ainda de acordo com o Secretário, o Moderniza Brasil começou com uma pesquisa objetiva sobre a percepção dos servidores públicos e da iniciativa privada em relação ao tema em 2019. Na época, foram recebidas cerca de 3.500 respostas. “A partir daí, fizemos entrevistas com todos os secretários executivos do Poder Executivo Federal. Para isso, tivemos toda uma parceria. Contratamos a Enap, que trouxe o Ipea, com pesquisadores de altíssimo nível e que nos ajudaram a imprimir uma metodologia que nos permitiu, ao final, decompor todas essas visões e gerar um relatório que sustenta a proposta de um decreto que cria a Política”, detalhou.[3]
Segundo a citada norma editada em 2021:
Art. 1º Fica instituída a Política Nacional de Modernização do Estado - Moderniza Brasil, com a finalidade de direcionar os esforços governamentais para aumentar a eficiência e modernizar a administração pública, a prestação de serviços e o ambiente de negócios para melhor atender às necessidades dos cidadãos.
Art. 2º A Política Nacional de Modernização do Estado tem por objetivos a integração, a articulação, o monitoramento e a avaliação de políticas, programas, ações e iniciativas de modernização do Poder Executivo federal.
Parágrafo único. Para consecução dos objetivos de que trata ocaput, poderão ser firmadas parcerias com os outros Poderes, os entes federativos, os organismos internacionais e a iniciativa privada.
Art. 3º São princípios da Política Nacional de Modernização do Estado:
I - o foco nas necessidades dos cidadãos;
II - a simplificação normativa e administrativa;
III - a confiabilidade na relação Estado-cidadão;
IV - a inovação governamental;
V - a transparência na atuação do Estado;
VI - a efetividade na gestão pública;
VII - a competitividade dos setores público e privado; e
VIII - a perenidade das iniciativas de modernização.
Art. 4º São diretrizes da Política Nacional de Modernização do Estado:
I - direcionar a atuação governamental para a entrega de resultados com foco nos cidadãos;
II - buscar o alinhamento institucional entre os atores envolvidos na política de modernização;
III - promover um Estado moderno e ágil, capaz de atuar, de forma tempestiva e assertiva, frente aos desafios contemporâneos e às situações emergenciais;
IV - viabilizar a simplificação de normativos, procedimentos, processos e estruturas administrativas;
V - assegurar a segurança jurídica necessária à inovação na gestão das políticas públicas e à dinamização do ambiente de negócios;
VI - aprimorar as capacidades dos servidores públicos e das instituições;
VII - ampliar o acesso e a qualidade dos serviços públicos; e
VIII - promover a transformação digital da gestão e dos serviços.
Art. 5º A Política Nacional de Modernização do Estado será implementada com observância aos seguintes eixos temáticos:
I - ambiente de negócios próspero - ampliação da competitividade, do investimento e da produtividade, por meio da redução das barreiras ao empreendedorismo, da inovação e da simplificação do arcabouço regulatório;
II - capacidades do Estado moderno - aprimoramento do capital humano, da governança pública e da infraestrutura do Estado, para atuar de modo ágil e eficiente;
III - evolução dos serviços públicos - desburocratização e simplificação na prestação dos serviços públicos, com ampliação da efetividade na ação governamental, de modo a garantir o atendimento das necessidades da sociedade;
IV - cooperação e articulação entre agentes públicos e privados - articulação com entes públicos e privados para a transferência de conhecimento, o fortalecimento das iniciativas existentes e a construção colaborativa e integrada de soluções inovadoras nacionais e locais de modernização do Estado; e
V - governo e sociedade digital - transformação digital do País, com atenção à governança de dados, à internet das coisas, à digitalização da economia, à digitalização de serviços, à integração das bases e à estrutura de conectividade.
Art. 6º São instrumentos da Política Nacional de Modernização do Estado, sem prejuízo de outros a serem constituídos, observados os seus princípios, diretrizes e eixos:
I - Plano Nacional de Modernização do Estado - Plano da Modernização; e
II - Selo Nacional de Modernização do Estado - Selo da Modernização.
§ 1º O Plano da Modernização definirá os objetivos específicos, os indicadores, as ações e a forma de implementação da Política Nacional de Modernização do Estado e será atualizado a cada dois anos.
§ 2º O Selo da Modernização terá o objetivo de identificar, certificar e incentivar as iniciativas de modernização.
Art. 7º Fica instituído o Fórum Nacional de Modernização do Estado, órgão consultivo, responsável pelo apoio na articulação, implementação, monitoramento e avaliação da Política Nacional de Modernização do Estado.
Art. 8º Ao Fórum Nacional de Modernização do Estado compete:
I - apoiar e incentivar a integração das ações e iniciativas adotadas pelo Poder Executivo federal, pelos outros Poderes, pelos entes federativos, pelos organismos internacionais e pela iniciativa privada que envolvam a temática de modernização do Estado;
II - propor a adoção de modelos e estratégias nacionais ou internacionais que envolvam a temática de modernização do Estado;
III - apoiar a elaboração do Plano da Modernização;
IV - aprovar a metodologia de concessão do Selo da Modernização às iniciativas que envolvam a temática de modernização do Estado implementadas pelo Poder Executivo federal, pelos outros Poderes, pelos entes federativos, pelos organismos internacionais e pela iniciativa privada, instituir outros incentivos às iniciativas de modernização e avaliar a composição da carteira de projetos com o Selo;
V - acompanhar e incorporar ao Plano da Modernização as ações que visem à modernização da prestação de serviços públicos e do ambiente de negócios, à desburocratização e à simplificação administrativas;
VI - propor e apoiar a elaboração de estudos sobre pessoal da administração pública federal em consonância com as iniciativas de racionalização da estrutura governamental, observadas as competências do Ministério da Economia; e
VII - promover a unificação, nos assuntos que envolvam a temática de modernização do Estado, a política de comunicação integrada e articulada dos órgãos referidos no art. 9º e os planos de comunicação existentes na administração pública federal, observadas as competências do Ministério das Comunicações.[4]
A par disso, o referido ato normativo, acaso realmente efetivado, trará inúmeras inovações e benefícios ao funcionamento da Administração Pública, consoante apontado em seu próprio texto de modo autoexplicativo.
Obviamente que esta perspectiva disruptiva na Administração Pública, proposta pelo Decreto Federal nº 10.609/2021, imprescinde de uma correspondente mudança de mindset, notadamente por parte dos gestores públicos. Uma alteração completa de mentalidade acerca do futuro do país.
Não há campo fértil para se tratar, por exemplo, de governo e sociedade digital na esteira da transformação digital do País, com atenção à governança de dados, à internet das coisas, à digitalização da economia, à digitalização de serviços, à integração das bases e à estrutura de conectividade; quando o gestor público sequer compreende a relevância da tecnologia para a atividade administrativa.
Determinados assuntos precisam evoluir, mas não só em textos prescritivos. É necessária uma mudança radical e profunda do modo como as realidades do setor público são enfrentadas. E, por isso, a principal transformação é conceitual, não meramente textual e simbólica, mas libertária e concreta no âmago do pensamento humano.
A liberdade criativa do gestor público – e de seus colaboradores – precisa ser estimulada, não cerceada. Profissionais que promovem soluções diferentes para os problemas cotidianos não podem ser taxados pejorativamente como desconectados da realidade. A incompreensão da maioria obsoleta não justifica a sabotagem de novas ideias apontadas pela minoria empreendedora no setor público.
Justamente nisto reside a essência do Decreto Federal nº 10.609/2021: estimular um novo caminho para a Administração Pública. Um trilhar que somente atingirá o êxito pretendido se não houver a contaminação com o comportamento ultrapassado, defasado e falido do modelo de gestão pública já fadado ao insucesso.
Não é porque algo tem determinado modo de execução há 50 anos no setor público que está imune a mudanças, conforme frisou o mestre Graça. Não se constroem casas hoje como nos anos 50. Mas se insiste, em muitos casos, em fazer Administração Pública num modelo estéril de meados do século passado.
Isto, decididamente, não tem mais sustentação jurídica ou administrativa. É descabido ver gestores públicos atuando à revelia de noções mínimas de planejamento estratégico no ano de 2021. Ou confundindo uma sigla IA (inteligência artificial) com uma fabricante de veículos automotores.
Espera-se, assim, que o espírito inovador do Decreto Federal nº 10.609/2021 se espalhe por toda a Administração Pública e não seja apenas um projeto específico do Poder Executivo Federal. Todo o país necessita desse choque de realidade na busca por um serviço público de excelência.
Enfim, a mudança no seio da Administração Pública deve correr, nos limites normativos, mas sem o receio do rompimento conceitual com o passado. Neste momento vale lembrar a singular clareza de Graciliano Ramos:
Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.[5]
Então que bem seja utilizado e revirado o Decreto Federal 10.609/2021, pois, como frisado pelo velho Graça: “[...] nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer”. Esta é uma lição de gestão pública, mas também de vida e literatura, a qual não é demasiado que cada servidor público a exercite em seu cotidiano. Faz-se urgente o movimento, afastando-se de uma vez por todas a apatia do ultrapassado.
[1] MIRAGEM, Bruno. A nova administração pública e o direito administrativo. 2. ed. São Paulo: RT, 2013. p. 23.
[2] In Relatório do Prefeito de Palmeira dos Índios ao Governador do Estado de Alagoas, referente ao ano de 1928. Disponível em: <https://www.tnh1.com.br/fileadmin/user_upload/especiais/licoes-graciliano-ramos-tempos-lava-jato/img/relatorio-01.pdf>. Acesso em 30 jan 2021.
[3] BRASIL. Presidência da República. Conheça a trajetória de construção do Moderniza Brasil. Disponível em: <https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2020/setembro-1/conheca-a-trajetoria-de-construcao-do-moderniza-brasil>. Acesso em 30 jan 2021.
[4] BRASIL. Planalto. Decreto Federal nº 10.609/2021. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Decreto/D10609.htm>. Acesso em 30 jan 2021.
[5] In Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 12.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. Moderniza Brasil e Graciliano Ramos: um guia para o futuro da Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 fev 2021, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/56136/moderniza-brasil-e-graciliano-ramos-um-guia-para-o-futuro-da-administrao-pblica. Acesso em: 22 nov 2024.
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