O tema das pautas de conciliação, instrução e julgamento em colegiados da Administração Pública, em que pese relevante, não costuma ser objeto de intensas reflexões por parte dos administrados ou mesmo dos gestores públicos.
A questão é, no entanto, bastante complexa e relevante para a efetivação de diversos princípios constitucionais e processuais, a exemplo do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da publicidade e da transparência.
Como é cediço a Constituição Federal prevê que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[...]
LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
[...]
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
Sob esta ótica, não se permite extrair do texto constitucional qualquer interpretação no sentido de que as pautas de conciliação, instrução e julgamento em colegiados da Administração Pública poderia se dar sem a garantia de um processo público, transparente e devido, onde impere a ampla defesa e o contraditório.
A visão, à toda evidência, não é de mera formalidade, mas de materialidade dos princípios constitucionais e processuais em questão. Vale dizer, não basta um cumprimento tipicamente simbólico em detrimento da efetividade real no campo dos fatos sociais.
Por exemplo, imagine-se que a Administração Pública tenha instaurado um processo disciplinar em face de um servidor público com possível penalidade de demissão e este processo permaneceu durante vários meses paralisado. Em determinado momento, o colegiado responsável pela conciliação, instrução e julgamento do referido processo decidiu julgá-lo. Seria razoável supor que o servidor público interessado tomou real ciência da pauta de julgamentos somente porque houve uma publicação no Diário Oficial em plena sexta-feira antes do carnaval, numa página centésima, próximo ao rodapé? Não seria mais adequado intimá-lo pessoalmente?
A mera suposição de que os interessados em determinado julgamento estão cientes deste diante de uma publicação ocorrida no Diário Oficial, por si só, já enseja uma ideia equivocada da materialidade dos princípios constitucionais e processuais que regem a Administração Pública.
Seria razoável impor aos servidores públicos que lessem o Diário Oficial todos os dias da semana durante o ano para vasculhar eventual intimação a respeito de processo administrativo de seu interesse? É óbvio que não.
Outro caso bastante emblemático visto em colegiados da Administração Pública é o cadastramento de processos administrativos com informações lacunosas e genéricas acerca de seu objeto. Irá a julgamento, por exemplo, o processo administrativo nº 9999, cujo interessado é o Poder Executivo Municipal e o tema divulgado se resume a “Informações”.
Ora, informações, demanda, interesse institucional, entre outras expressões, são conceitos jurídicos indeterminados e que comportam absolutamente tudo. Daí haver um verdadeiro abismo entre a teoria e a prática ao se supor que os eventuais interessados em dado processo administrativo ou discussão de interesse público – a sociedade por exemplo – estariam realmente cientes daquela sessão colegiada apenas porque houve uma menção absolutamente genérica em Diário Oficial.
Na mesma esteira, são verificados casos em colegiados onde o processo administrativo praticamente tramita em quase absoluto sigilo, notadamente a partir de uma leitura equivocada da Lei Federal nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação) e da Lei Federal nº 13.460/2017 (Lei da Participação, Proteção e Defesa dos Direitos dos Usuários dos Serviços Públicos da Administração Pública).
Processos administrativos, por exemplo, cadastrados equivocadamente como informação restrita onde, na realidade, são informações públicas de interesse de toda a sociedade e, assim, deveriam ser de amplo conhecimento e transparência de ações.
Também é possível verificar casos em que o resultado do julgamento, por exemplo, foi publicado no Diário Oficial com a mera menção à parte dispositiva da decisão colegiada, sem maiores elementos que possam identificar as razões fáticas e jurídicas fundamentais ao ato decisório. Nem mesmo houve uma publicidade quanto ao modo de obtenção facilitada destas informações, a exemplo da íntegra do voto do relator perante o colegiado.
Nesse toar, uma situação bastante comum que também tem ocorrido em diversos colegiados da Administração Pública é a de processos administrativos apreciados “em mesa”, a partir de uma inconstitucional e ilegal prática de convocação genérica de interessados para as sessões do referido colegiado.
Não raro os colegiados administrativos incluem em suas convocações para pautas de conciliação, instrução e julgamento a menção à possibilidade de julgamento de outros assuntos de interesse institucional. Mas o que seria isso? Logo, todas as sessões deveriam ser rigorosamente acompanhadas pela sociedade e pelos demais administrados, haja vista a iminência possibilidade de uma pauta surpresa?
A partir desta discussão o novo Código de Processo Civil (CPC) foi enfático, aplicando-se subsidiariamente, inclusive, aos processos administrativos, a saber:
Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
Ainda no que tange às pautas de conciliação, instrução e julgamento, o CPC advertiu severamente sobre a necessidade do cumprimento fiel de ritos para uma devida publicidade e transparência dos atos processuais colegiados em sessões, inclusive para a garantia do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório:
Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
[...]
§ 12. A pauta das audiências de conciliação ou de mediação será organizada de modo a respeitar o intervalo mínimo de 20 (vinte) minutos entre o início de uma e o início da seguinte.
Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo:
[...]
§ 9º As pautas deverão ser preparadas com intervalo mínimo de 1 (uma) hora entre as audiências.
Art. 365. A audiência é una e contínua, podendo ser excepcional e justificadamente cindida na ausência de perito ou de testemunha, desde que haja concordância das partes.
Parágrafo único. Diante da impossibilidade de realização da instrução, do debate e do julgamento no mesmo dia, o juiz marcará seu prosseguimento para a data mais próxima possível, em pauta preferencial.
Art. 933. Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de 5 (cinco) dias.
[...]
§ 2º Se a constatação se der em vista dos autos, deverá o juiz que a solicitou encaminhá-los ao relator, que tomará as providências previstas no caput e, em seguida, solicitará a inclusão do feito em pauta para prosseguimento do julgamento, com submissão integral da nova questão aos julgadores.
Art. 934. Em seguida, os autos serão apresentados ao presidente, que designará dia para julgamento, ordenando, em todas as hipóteses previstas neste Livro, a publicação da pauta no órgão oficial.
Art. 935. Entre a data de publicação da pauta e a da sessão de julgamento decorrerá, pelo menos, o prazo de 5 (cinco) dias, incluindo-se em nova pauta os processos que não tenham sido julgados, salvo aqueles cujo julgamento tiver sido expressamente adiado para a primeira sessão seguinte.
§ 1º Às partes será permitida vista dos autos em cartório após a publicação da pauta de julgamento.
§ 2º Afixar-se-á a pauta na entrada da sala em que se realizar a sessão de julgamento.
Art. 940. O relator ou outro juiz que não se considerar habilitado a proferir imediatamente seu voto poderá solicitar vista pelo prazo máximo de 10 (dez) dias, após o qual o recurso será reincluído em pauta para julgamento na sessão seguinte à data da devolução.
§ 1º Se os autos não forem devolvidos tempestivamente ou se não for solicitada pelo juiz prorrogação de prazo de no máximo mais 10 (dez) dias, o presidente do órgão fracionário os requisitará para julgamento do recurso na sessão ordinária subsequente, com publicação da pauta em que for incluído.
Art. 1.021. Contra decisão proferida pelo relator caberá agravo interno para o respectivo órgão colegiado, observadas, quanto ao processamento, as regras do regimento interno do tribunal.
[...]
§ 2º O agravo será dirigido ao relator, que intimará o agravado para manifestar-se sobre o recurso no prazo de 15 (quinze) dias, ao final do qual, não havendo retratação, o relator levá-lo-á a julgamento pelo órgão colegiado, com inclusão em pauta.
Art. 1.024. O juiz julgará os embargos em 5 (cinco) dias.
§ 1º Nos tribunais, o relator apresentará os embargos em mesa na sessão subsequente, proferindo voto, e, não havendo julgamento nessa sessão, será o recurso incluído em pauta automaticamente.
Art. 1.038. O relator poderá:
[...]
§ 2º Transcorrido o prazo para o Ministério Público e remetida cópia do relatório aos demais ministros, haverá inclusão em pauta, devendo ocorrer o julgamento com preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.
Art. 1.067. O art. 275 da Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral) , passa a vigorar com a seguinte redação:
“ Art. 275. São admissíveis embargos de declaração nas hipóteses previstas no Código de Processo Civil .
[...]
§ 4º Nos tribunais:
[...]
II - não havendo julgamento na sessão referida no inciso I, será o recurso incluído em pauta;
A pauta, pois, não é uma mera formalidade processual. Foi extensamente regrada no novo CPC em função de sua relevância. Desse modo, não existe supedâneo constitucional e processual para que demandas sejam apreciadas sem a devida observância das regras e princípios alhures mencionados.
De outro lado, a inobservância destas normas jurídicas se mostra ainda mais gravosa quando os processos administrativos apreciados veiculam matérias de interesse institucional e social que não só permitiriam como também recomendariam a atuação da sociedade enquanto fiscalizadora dos atos administrativos (controle social).
Imagine-se, por exemplo, um processo administrativo apreciado “em mesa” a partir de uma pauta genérica onde outros assuntos de interesse institucional e social poderiam ser julgados, sem que tenha havido a indicação clara e precisa de qual tema estaria apto a ser objeto de análise.
Como uma associação, sindicato, partido político ou entidade não-governamental seriam ouvidos e até mesmo poderiam atuar enquanto agentes sociais fiscalizadores dos atos administrativos se jamais tiveram ciência prévia do assunto a ser debatido naquela sessão colegiada?
Ora, quando viram a decisão colegiada já havia sido tomada!
Aliás, há também uma verdadeira desproporcionalidade em inúmeros colegiados administrativos no que tange à estipulação de prazos exíguos entre a publicidade da pauta da sessão e a sua efetiva realização. Não raro, processos de elevada complexidade e que demandariam uma reflexão profunda dos gestores, da sociedade e dos administrados sobre os temas a serem debatidos são pautados com apenas 2 ou 3 dias de antecedência à sessão, aniquilando ou dificultando bastante a própria preparação destes visado ao ato processual futuro.
E se este processo administrativo a ser apreciado for a alteração de norma jurídica geral e abstrata de interesse de toda a sociedade? Como se dizer que houve garantia de publicidade, transparência, devido processo legal, ampla defesa e contraditório pleno? Como se sustentar ter ocorrido verdadeira participação popular que é essência da democracia e da república?
Nesse toar a doutrina já alertava:
A participação do cidadão no contexto sociopolítico é um bom indicador do desenvolvimento de um povo. Os países mais desenvolvidos tendem a ter um forte controle social, pois os cidadãos preocupam-se pormenorizadamente com a aplicação das verbas públicas. Um controle social forte depende tanto da vontade do povo como da vontade do Estado. Caso o povo não possua bom nível de instrução, não poderá checar se as ações desenvolvidas pelo governo estão ou não consoante o seu desejo, bem como se está havendo ou não respeito às normas aplicáveis à Administração Pública. Quanto mais ignorante for o povo, mais benefícios o gestor mal-intencionado poderá tirar. Por essa razão, era, e em alguns rincões ainda é, comum a manutenção de parcela da população com baixo grau de instrução, pois, assim, esta parcela poderia ser utilizada como fácil massa de manobra, a fim de alavancar votos em eleições futuras.[1]
Ainda, não se pode arguir de modo inconstitucional uma submissão do sistema constitucional às normas de índole infraconstitucional, sob o frágil pretexto para o amparo de tais condutas ora rechaçadas. Ou pior: de índole até infralegal. É o caso dos colegiados que editam regramentos (regimentos internos) e pretendem fazer uma leitura da Constituição Federal a partir deste e não o inverso.
Também não se justifica uma eventual praticidade ou mesmo celeridade para a apreciação de casos perante estes colegiados administrativos como fundamento para tais violações. Ora, primeiramente, a prática administrativa brasileira demonstra ser possível a previsibilidade de pauta dos processos sujeitos à julgamento. Em segundo lugar porque não se pode falar em decisão de mérito justa quando princípios constitucionais e processuais estão sendo violados cabalmente em detrimento dos administrados e da sociedade. Celeridade não é um fim em si mesma nem pode servir de instrumento para atos inconstitucionais e ilegais.
Urge, então, um exercício de autotutela administrativa no âmbito destes colegiados a fim de que sejam corrigidas estas distorções, evitando-se não apenas as violações constitucionais e processuais apontadas, mas também possíveis nulidades futuras de processos apreciados sem o respeito ao ordenamento jurídico.
Portanto, devem ser repensadas as condutas equivocadas de órgãos colegiados da Administração Pública que insistem – dolosa ou culposamente – em atuar em desconformidade com os preceitos constitucionais e processuais.
Como já alertava Norberto Bobbio democracia é o governo do público em público, onde a ideia central indica que o ordenamento jurídico obriga os governantes e gestores públicos a tomarem as suas decisões às claras, onde se permita que os governados e administrados vejam como e onde as tomam.[2]
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. Reflexões sobre as pautas de conciliação, instrução e julgamento em colegiados da Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 fev 2021, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/56141/reflexes-sobre-as-pautas-de-conciliao-instruo-e-julgamento-em-colegiados-da-administrao-pblica. Acesso em: 22 nov 2024.
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