Resumo: A expansão do uso da Internet despertou intenso debate nacional acerca da premência de se regular a rede, em especial por conta dos potenciais perigos e danos proporcionados por esse novo ambiente. Nesse sentido, restou claro que o Brasil precisava de um marco legal. Concebeu-se, assim, a Lei nº 12.965/14, o Marco Civil da Internet. Dentre suas diversas inovações jurídicas, interessa, para os fins do presente trabalho, o regime de responsabilidade civil dos provedores de aplicações de Internet previsto em seu artigo 19, notadamente o regime de exceção previsto em seu aritgo 21 para melhor proteger as vítimas da chamada “pornografia de vingança”. A “pornografia de vingança”, uma das nefastas consequências do desenvolvimento tecnológico, também recebeu regulamentação na esfera penal, com o acréscimo de dois novos tipos penais em 2018.
Sumário: 1. Introdução - 2. Definição de provedores de aplicação de internet - 3. Responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet - 4. Pornografia de Vingança: repercussões nas esferas civil e penal - 5. Conclusão
1. INTRODUÇÃO
Presentes em todas as esferas, a informação e o conhecimento são considerados essenciais para a sociedade e, ao serem transformados pelas atividades humanas, tornam-se recursos fundamentais para formação e manutenção de redes. No contexto de internet, quando se fala em "rede" (network, em inglês), pretende-se analisar sua estrutura, qual seja: uma comunidade não geográfica. A rede agrupa, portanto, um conjunto de participantes autônomos, que se unem por meio de ideias e recursos em torno de valores e interesses compartilhados, sendo utilizadas para a transmissão de informação e conhecimento, mediante as relações entre os atores que as integram. O problema é que, além de benefícios, a união proporcionada pela Internet pode apresentar malefícios.
Com o surgimento da Internet, as relações sociais se consolidam independentes do tempo e/ou espaço. No entanto, mesmo com essa característica independente de presencialidade, as relações em uma rede refletem a realidade ao seu redor e a influência. Até pouco tempo atrás não havia nenhum instituto legal que regulamentasse o uso da Internet no Brasil. Nesse sentido, verificou-se que o Brasil precisava de um mandamento legal que garantisse a internet como um ambiente livre e democrático e que regulamentasse os princípios e deveres para o seu uso[1]. Concebeu-se, assim, o Marco Civil da Internet, a Lei nº 12.965/14, o qual preza, entre outros, pela prevenção da prática dos chamados cibercrimes.
Desde a sua criação, o Marco Civil posicionou o Brasil como vanguarda no debate sobre direitos na rede. O governo italiano, inspirado pela lei brasileira, construiu uma Declaração de Direitos para Internet, a qual estabelece, em seu artigo 2º, que o “acesso à Internet é direito fundamental da pessoa e condição para seu pleno desenvolvimento individual e social”[2]. Especificamente para os fins do presente trabalho, cumpre passar em revista o regime de responsabilidade previsto no artigo 19 do Marco Civil da Internet. Confira-se:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Esta é a regra geral de responsabilidade dos provedores de aplicações de internet pelo conteúdo de terceiros. Todavia, o Marco Civil estabelece também as exceções a esse regime. Dentre elas, destaca-se as hipóteses em que o conteúdo publicado por terceiros implique a “violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado” (artigo 21 do Marco Civil da Internet).
Além das implicações no campo civil, o tema de divulgação de imagens íntimas sem consentimento também ganhou relevância na seara penal, através das inovações trazidas pela Lei nº 13.772 de 2018 e pela Lei nº 13.718/2018, que acrescentaram os artigos 216-B e 218- C ao Código Penal.
2. DEFINIÇÃO DE PROVEDORES DE APLICAÇÃO DE INTERNET
Antes de aprofundar o debate sobre o regime de responsabilidade civil dos provedores de aplicações de Internet nos casos de conteúdo sobre pornografia de vingança, é necessário entender a conceituação legal desses provedores. Diante da multiplicidade de tarefas e serviços que são disponibilizados por meio da Internet, os autores estudiosos do tema divergem entre si sobre a forma de categorização desses provedores. Nesse sentido, em julgado anterior ao Marco Civil da Internet, o Superior Tribunal de Justiça adotava a seguinte divisão:
“Os provedores de serviços de Internet são aqueles que oferecem serviços ligados ao funcionamento dessa rede mundial de computadores, ou por meio dela. Trata-se de gênero do qual são espécies as demais categorias, como: (i) provedores de backbone (espinha dorsal), que detêm estrutura de rede capaz de processar grandes volumes de informação. São os responsáveis pela conectividade da Internet, oferecendo sua infraestrutura a terceiros, que repassam aos usuários finais acesso à rede; (ii) provedores de acesso, que adquirem a infraestrutura dos provedores de backbone e revendem aos usuários finais, possibilitando a estes a conexão com a Internet; (iii) provedores de hospedagem, que armazenam dados de terceiros, conferindo- lhes acesso remoto; (iv) provedores de informação, que produzem as informações divulgadas na Internet; e (v) provedores de conteúdo, que disponibilizam na rede os dados criados ou desenvolvidos pelos provedores de informação ou pelos próprios usuários da web”[3].
O Marco Civil da Internet facilitou essa tarefa e dividiu os prestadores de serviço na internet em apenas duas categorias[4]. Em primeiro momento, tem-se os provedores de conexão à internet, os que fornecem o acesso à Internet. Há, também, os provedores de aplicações de internet, que se dedicam a oferecer funcionalidades acessíveis através da internet. Veja-se a definição dos provedores prevista no art. 5º do Marco Civil da Internet:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: (...)
V - conexão à internet: a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP; (...)
VII - aplicações de internet: o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet; e
Acerca dos provedores de aplicações de internet, vale destacar que, com frequência, publicam e disponibilizam conteúdos escritos e produzidos por seus usuários a exemplo dos blogs, fóruns e sites de relacionamentos, como o Facebook. Portanto, nem toda informação veiculada em sua plataforma é produzida pelo provedor de conteúdo.
Dessa forma, em regra, este último não exerce um controle editorial sobre o conteúdo a ser disponibilizado, exceto em casos que o material é desenvolvido pelos prepostos do provedor, atuando também, nesse caso, como provedores de informação. Referente a aplicação da responsabilidade civil aos provedores, vemos consequências distintas para casos em que o conteúdo é gerado por terceiros ou quando é de conteúdo próprio.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PROVEDORES DE APLICAÇÕES DE INTERNET
A Lei 12.965/14, também conhecida como Marco Civil da Internet, tem como escopo estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet do Brasil. A Lei em questão fora estruturada em torno de três pilares: Liberdade, Privacidade e Neutralidade[5]. Será abordado, a seguir, a relação entre a responsabilidade conferida pelo Marco Civil aos provedores de aplicações de internet por conteúdos postados por terceiros e a garantia ao princípio da liberdade de expressão.
Nesse diapasão, provedores de aplicações de Internet podem ser definidos, conforme o Art. 5, VII como “’o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”. As grandes redes sociais, como o Facebook e o Twitter, são exemplos desses provedores que disponibilizam as mais diversas aplicações na rede. Destarte, o desafio era saber como seria o regime de responsabilização dos provedores de aplicações na Internet quando houvesse um conteúdo lesivo publicado em suas plataformas por terceiros que, em regra, são usuários de seus serviços. Para o estabelecimento desse regime, os legisladores do Marco Civil da Internet precisaram fazer, a priori, uma ponderação entre os danos oriundos do uso de sua rede e, por outro lado, a garantia da liberdade de expressão e da diversidade do discurso na rede. A responsabilidade prevista, então, no art.19 traduz o modo como fora feita a ponderação entre esses direitos supracitados.
A título exemplificativo, caso o legislador tivesse optado pelo regime de responsabilidade objetiva, criar-se-ia a obrigatoriedade de fiscalização, monitoramento e filtragem dos conteúdos postados por seus usuários. Consequentemente, se estaria criando um instrumento de censura à liberdade de expressão, somente permitindo a postagem daquilo que não pudesse gerar qualquer conflito com outrem. O Brasil, assim como a maioria dos países da América Latina, confere uma proteção especial ao direito à liberdade de expressão graças aos períodos autoritários vividos na segunda metade do século XX.
O Superior Tribunal de Justiça, antes mesmo da entrada em vigor do Marco Civil, já havia manifestado posicionamento em sentido semelhante:
3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do Art.14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos.[6]
Em consonância com a jurisprudência da época e os valores constitucionais erigidos com a Carta Magna de 1988, o Marco Civil da Internet entendeu que a responsabilidade objetiva não era compatível com a manutenção da Internet livre, democrática e aberta. Passou-se a avaliar, pois, a responsabilidade subjetiva dos provedores de aplicações de internet. Essa responsabilização pode ser dividida em duas principais correntes: a responsabilidade decorreria (i) do não atendimento de uma notificação extrajudicial cientificando o provedor do conteúdo supostamente lesivo; ou (ii) do não atendimento de uma decisão judicial ordenando a retirada do material[7].
O Marco Civil da Internet desconsiderou a primeira, uma vez que a adoção do notice and takedown significaria imputar aos provedores de aplicações da internet o dever de realizar a ponderação entre os interesses em questão, criando verdadeiros tribunais privados com interesses corporativos[8]. Em relação ao tema, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou da seguinte forma:
Há de se considerar a inviabilidade de se definirem critérios que autorizariam o veto ou o descarte de determinada página. Ante à subjetividade que cerca o dano psicológico e/ou à imagem, seria impossível delimitar parâmetros de que pudessem se valer os provedores para definir se um conteúdo é potencialmente ofensivo. Por outro lado, seria temerário delegar esse juízo de discricionariedade aos provedores. 2
Além disso, é preciso fazer outra consideração: a adoção do notice and takedown de forma extrajudicial faria com que os provedores de aplicações da internet retirassem qualquer conteúdo do ar – ainda que esse fosse julgado apropriado - para evitar eventuais ações de reparações de danos[9]. Destarte, haveria uma ameaça à liberdade de expressão na rede e a pluralidade de discursos.
Assim, com o intuito de privilegiar os valores constitucionais previstos em nossa Carta Magna, a Lei 12.965 consagrou o Poder Judiciário como instância competente para a realização da correta ponderação entre os direitos envolvidos nos conflitos. Assim dispõe o Art. 19 do Marco Civil:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Portanto, os provedores de aplicações de Internet só poderão ser responsabilizados por conteúdo gerado por terceiros quando, após ordem judicial solicitando a exclusão de determinado conteúdo, não tomar as medidas necessárias para a remoção daquele conteúdo considerado lesivo[10]. Entendeu-se que atribuir ao Poder Judiciário a ultima ratio sobre o que deve ou não ser removido era o caminho mais adequado para a conciliação entre os diversos direitos fundamentais em conflito[11]. Convém ressaltar que o Marco Civil da Internet abre duas exceções ao seu regime de responsabilização previsto no Art. 19: a pornografia de vingança e os direitos autorais.
4. PORNOGRAFIA DE VINGANÇA: REPERCUSSÕES NAS ESFERAS CIVIL E PENAL
O Marco Civil da Internet representou um significativo avanço ao combate dos cibercrimes, principalmente no que tange a pornografia de vingança. O artigo 19 desta lei trata sobre a responsabilidade dos provedores de aplicação, o qual estabelece que os provedores somente serão responsabilizados civilmente por danos provenientes de conteúdo de terceiros se, após específica ordem judicial, não tornar indisponível o conteúdo.
Contudo, o artigo 21 apresenta exceções à regra de responsabilização imposta pelo artigo acima. Dentro dessas exceções encontra-se a pornografia de vingança. Segundo a doutrina, essa situação ocorre quando “alguém divulga, insere e/ou expõe, sem autorização dos retratados, em quaisquer ferramentas da rede, fotos e/ou vídeos com cenas íntimas, nudez ou prática de ato sexual que foram registrados ou enviados em confiança ao parceiro”[12]. Da mesma forma, Vitória Buzzi afirma que:
“O “termo pornografia de vingança”, tradução da expressão em inglês “revenge porn”, nomeia o ato de disseminar, sobre tudo na internet, fotos e\ou vídeos privados de uma pessoa, sem a sua autorização, contendo cenas de nudez ou sexo com objetivo de expô-la através da rápida viralização do conteúdo, e assim causar estragos sociais e emocionais na vida da vítima”[13].
Caso o conteúdo questionado contenha cenas de nudez, o provedor terá o dever de retirar do ar o material após a notificação extrajudicial da vítima[14]. Dessa forma, o art. 21 impõe responsabilidade subsidiária ao provedor de aplicações pela a violação da intimidade perante as situações de pornografia de vingança (cenas de nudez ou atos sexuais indevidos), se, após receber notificação, não indisponibilizar o conteúdo. Esta notificação, sob pena de nulidade, deverá conter elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante[15].
Veja-se a redação do referido dispositivo:
Art. 21 - O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido
Portanto, o provedor deve agir assim que receber notificação extrajudicial informando da divulgação desse tipo de conteúdo. A notificação deve, portanto, conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade[16]. Diante disso, a jurisprudência tem exigido da parte ofendida a indicação precisa do endereço das páginas (URL) onde o conteúdo lesivo se encontra disponibilizado ou armazenado, para impor a remoção desse conteúdo ao provedor responsável pelo local, com base no parágrafo 1º do artigo 19 do Marco Civil. Sobre o conceito de URL, o STJ se manifestou da seguinte forma:
“URL é a sigla que corresponde à expressão Universal Resource Locator, que em português significa localizador universal de recursos. Trata-se de um endereço virtual, isto é, diretrizes que indicam o caminho até determinado site ou página. Dessa forma, com base na URL fornecida pelo recorrente, foi possível ao GOOGLE localizar especificamente a página na qual havia sido inserido o material de conteúdo ofensivo.”[17]
O fundamento para a necessidade de se informar o URL é a impossibilidade técnica de o provedor controlar todo o conteúdo inserido em sua plataforma. No REsp nº 1.629.255/SP, a Ministra Nancy Andrighi tratou da necessidade de indicação de URL para remoção do conteúdo ora controvertido:
“(...) a indicação clara e específica de sua localização na Internet é essencial, seja por meio de uma notificação do particular seja por meio de uma ordem judicial. Em qualquer hipótese, essa indicação deve ser feita por meio do URL, que é um endereço virtual, isto é, diretrizes que indicam o caminho até determinado site ou página onde se encontra o conteúdo considerado ilegal ou ofensivo. Essa necessidade está expressa na redação conferida ao §1o do art. 19 do Marco Civil da Internet, ao dispor sobre os requisitos de validade da própria ordem judicial que determina a retirada do conteúdo infringente. (...) A necessidade de indicação do localizador URL não é apenas uma garantia aos provedores de aplicação, como forma de reduzir eventuais questões relacionadas à liberdade de expressão, mas também é um critério seguro para verificar o cumprimento das decisões judiciais que determinarem a remoção de conteúdo na Internet. Conferindo precisão às ordens judiciais, torna-se mais difícil ao requerido escusar-se de seu cumprimento. Em sentido contrário, em hipóteses com ordens vagas e imprecisas, as discussões sobre a obediência ao Juízo e quanto à aplicação de multa diária serão arrastadas sem necessidade até os Tribunais Superiores. Por esses motivos, o Marco Civil da Internet elenca, entre os requisitos de validade da ordem judicial para a retirada de conteúdo infringente, a “identificação clara e específica do conteúdo”, sob pena de nulidade.”[18]
Em outro julgado, a Corte novamente entendeu pela necessidade de indicação dos URLs. Confira-se:
“(...) sendo certo que os autores da demanda não indicaram as URLS que corresponderiam especificamente ao(s) vídeo(s) de conteúdo ofensivo à imagem de seu falecido familiar e que a Corte local, ao negar provimento ao agravo interposto contra a decisão deferitória do pedido de antecipação de tutela por eles formulado, terminou por impor a ora recorrente obrigação impossível – consistente na remoção não apenas do vídeo denominado “duas escolhas diferentes, duas mortes”, mas também de “todos os congêneres, sob quaisquer títulos em que se veicule idêntico conteúdo, em todo o site Facebook”, independentemente da indicação de suas respectivas mencionadas URLs -, impõe-se o provimento do recurso especial intentado para o fim de cassar a decisão do juízo de primeiro grau impugnada pelo agravo de instrumento (art. 522 do CPC) que deu origem aos presentes autos”.[19]
Em outros termos, quando o conteúdo postado por terceiros envolver imagem íntima sem autorização, a responsabilização do provedor não se daria pelo conteúdo em si, mas pela inércia em agir e remover o conteúdo após receber uma notificação extrajudicial por parte da vítima. Dessa forma, ele responderá subsidiariamente pelo dano causado[20]. O entendimento dos tribunais brasileiros já está, em sua maioria, em conformidade com o Marco Civil. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proferiu um importante julgado a respeito do tema. Em resumo, o caso trata-se da divulgação não autorizada de fotos íntimas da autora pelo seu ex-companheiro após o término da relação. O tribunal decidiu pela responsabilidade do réu acerca da divulgação das imagens da ex-companheira. Veja-se:
APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ADESIVO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. EXPOSIÇÃO DE FOTOS ÍNTIMAS NA INTERNET. OFENSA À INTIMIDADE E PRIVACIDADE. DANO À IMAGEM CONFIGURADO. VERBA INDENIZATÓRIA MAJORADA. 1. Incontroverso nos autos a autoria do ato lícito atribuída ao réu em face do conjunto probatório juntado, pois restou demonstrado que o envio das fotos partiu do computador do demandado. 2. Ainda que a autora tenha ingenuamente confiado em seu então namorado, deixando-se fotografar em posições eróticas, houve quebra de confiança da parte do réu, que divulgou as imagens por motivo de vingança, conduta esta que está a merecer firme reprovação ética e jurídica. 3. Quantum indenizatório majorado para R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), por se mostrar adequado às circunstâncias dos autos e à capacidade econômica do réu, compensando suficientemente à vítima e ao mesmo tempo para desestimular condutas semelhantes. APELAÇÃO DO RÉU DESPROVIDA E RECURSO ADESIVO DA AUTORA PROVIDO[21]. (Apelação Cível Nº 70065184418, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eugênio Facchini Neto, Julgado em 26/08/2015). (TJ-RS - AC: 70065184418 RS, Relator: Eugênio Facchini Neto, Data de Julgamento: 26/08/2015, Nona Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 28/08/2015).
Ante ao exposto, tendo em vista o grande número de mulheres que têm a sua privacidade exposta na internet, a redação do artigo 21 mostrou-se de extrema importância, principalmente na atual década, na qual o uso de redes sociais para disseminação de conteúdo teve um significativo aumento.
No âmbito penal, duas importantes alterações normativas acerca do tema em debate vieram em 2018. Nesse sentido, a Lei nº 13.718/2018 inseriu o art. 218-C ao Código Penal. De acordo com o dispositivo em questão, constitui crime:
Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia;
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave; Aumento de pena (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Por sua vez, a Lei nº 13.772/2018 criou o tipo penal do art. 216-B do Código Penal, segundo o qual é crime:
Art. 216-B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes;
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa;
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo. (Incluído pela Lei nº 13.772, de 2018)
Portanto, verifica-se que, em razão da sensibilidade do tema, o ordenamento jurídico brasileiro busca proteger as vítimas nas mais diversas esferas. Na realidade, verifica-se que o público que mais sofre com tais condutas é o público feminino, sendo certo que, na maior parte dos casos, a divulgação ocorre em razão de alguma retaliação por um ex-companheiro. Mostra-se acertado a postura do legislador em (i) definir um regime particular de responsabilidade civil para facilitar a remoção do conteúdo da internet; e (ii) criminalizar as condutas daqueles que compartilham, de forma indevida, conteúdo íntimo alheio sem autorização.
4. CONCLUSÃO
Apesar de ter revolucionado a forma pela qual as pessoas se relacionam, a Internet, para além de suas qualidades, também pode ter impactos negativos em seus usuários. Por essa razão, mostrou-se necessária a criação de um regramento que possibilitasse, também no ambiente virtual, o respeito aos princípios e valores positivados na Constituição da República de 1988. Nessa direção, agiu bem o legislador ao aprovar o Marco Civil da Internet (Lei Federal nº 12.965/2014). Ao antecipar algumas questões maléficas proporcionadas pela Internet, o Marco Civil excepcionou o regime geral de responsabilidade dos provedores de aplicações de internet por conteúdo de terceiros.
Dessa forma, quando o conteúdo envolver “divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado”, o provedor de aplicações de internet deverá retirar imediatamente o conteúdo após notificação extrajudicial, sob pena de responsabilização solidária. É certo que, em qualquer caso, a notificação deverá conter identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente.
Além da seara civil, as vítimas encontram-se também resguardadas na esfera penal. Em 2018, foram incluídos no código penal dois novos tipos penais, que criminalizam as seguintes condutas: (i) “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia” (art. 218-C); e (ii) “Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes“(art. 216-B).
REFERÊNCIAS
BOTTINO, Celina. LEMOS, Ronaldo. SOUZA, Carlos Affonso. Marco Civil da Internet: jurisprudência comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
BUZZI, Vitória de Macedo. Pornografia da Vingança: Contexto histórico-social e abordagem no direito brasileiro. Florianópolis. Empório do Direito, 2015, p. 29
LEMOS, Ronaldo. A Internet brasileira precisa de marco regulatório civil. Tecnologia UOL, 22 mai. 2007. Disponível em: https://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/05/22/ult4213u98.jhtm. Acesso em: 10.01.2021.
SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: Construção e Aplicação. Editar, 2016.
TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. Direito à Imagem na Internet: Estudo sobre o tratamento do Marco Civil da Internet para os Casos de Divulgação de Imagem Íntima. Revista de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: RT, Vol 15. Ano 5, Abr-jun 2018, p. 93-127.
[1] LEMOS, Ronaldo. Internet brasileira precisa de marco regulatório civil. Tecnologia UOL, 22 mai. 2007. Disponível em: https://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/05/22/ult4213u98.jhtm. Acesso em: 10.01.2021.
[2] SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: Construção e Aplicação. Editar, 2016.
[3] STJ, Recurso Especial nº 1.316.921/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi; julgado em 26.06.2012.
[4] SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: Construção e Aplicação. Editar, 2016. p. 76.
[5] SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: Construção e Aplicação. Editar, 2016. p. 77.
[6] STJ, REsp 1308830/RS, rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 8.5.2012. Vide REsp 1316921/RJ, rel. Min. Nancy Andrighj, j. em 26.6.2012.
[7] SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: Construção e Aplicação. Editar, 2016. p. 80.
[8] SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Op. Cit. p. 81.
[9] No ponto, o Superior Tribunal de Justiça já definiu que “(...) caso todas as denúncias fossem acolhidas, açodadamente, tão somente para que o provedor se esquivasse de ações como a presente, correr-se-ia o risco de um mal maior, o de censura, com violação da liberdade de expressão e pensamento (art. 220, § 2o, da Constituição Federal).” STJ, 3ª T., REsp. 1.568.935 – RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 05.04.2016, DJe 13.04.2016
[10] No ponto, Chiara de Teffé afirma: “(...) visando assegurar a liberdade e evitar a censura privada, optou-se por se estabelecer um regime de responsabilidade subjetiva por omissão do provedor de aplicações da internet que não retira o conteúdo ofensivo após a devida notificação judicial. Portanto, a mera notificação extra judicial, em regra (as exceções serão vistas a seguir), não ensejará o dever jurídico de retirada do material questionado. O judiciário foi considerado a instância legitima para analisar e definir se um dado conteúdo deve ou não ser removido de uma plataforma. Todavia, vale mencionar que a remoção de conteúdo não depende exclusivamente de ordem judicial, de forma que o provedor poderá, a qualquer momento, optar por retirar o conteúdo, de acordo com os seus termos de uso, quando poderá eventualmente responder por conduta própria. conforme já decidido pelo superior tribunal de justiça em diversos momentos, não constitui atividade intrínseca da rede social a fiscalização prévia dos conteúdos que são postados em sua plataforma de modo que não se pode reputar defeituoso o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos.”. TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. Direito à Imagem na Internet: Estudo sobre o tratamento do Marco Civil da Internet para os Casos de Divulgação de Imagem Intima. Revista de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: RT, Vol 15. Ano 5, Abr-jun 2018, p. 93-127.
[11] SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Op. Cit. p.82.
[12] BOTTINO, Celina. LEMOS, Ronaldo. SOUZA, Carlos Affonso. Marco Civil da Internet: jurisprudência comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
[13] BUZZI, Vitória de Macedo. Pornografia da Vingança: Contexto histórico-social e abordagem no direito brasileiro. Florianópolis. Empório do Direito, 2015, p. 29.
[14] BOTTINO, Celina. LEMOS, Ronaldo. SOUZA, Carlos Affonso. Marco Civil da Internet: jurisprudência comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
[15] Artigo 21, parágrafo único, Lei 12.965/2014.
[16] TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. Op. Cit.
[17] STJ, 3ª Turma, REsp no 1.193.764/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 14.12.2010, DJe em 08.08.2011.
[18] STJ, 3ª T., Resp. 1.629.255/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.08.2017, DJe 25.08.2017.
[19] STJ, AgInt no Agravo em Recurso Especial 956.396/MG, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 19.04.2017, DJe 11.05.2017
[20] TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. Op. Cit.
[21] TJRS, Apelação Cível Nº 70065184418, Nona Câmara Cível, Relator Des. Eugênio Facchini Neto, Julgado em 26/08/2015.
Artigo publicado em 03/11/2021 e republicado em 28/06/2024
Defensor Público do Estado de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pós graduado em direitos humanos pela Faculdade CERS, pós graduado em direito constitucional pela Faculdade Legale, pós graduado em direito do consumidor pela Faculdade Legale. Autor do livro Coleção Defensoria Pública - Ponto a Ponto - Execução Penal e Criminologia - 1ª Edição 2021
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAIA, Erick de Figueiredo. Repercussões penais e civis da divulgação de imagens íntimas não autorizadas na internet Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jun 2024, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57355/repercusses-penais-e-civis-da-divulgao-de-imagens-ntimas-no-autorizadas-na-internet. Acesso em: 21 nov 2024.
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