RESUMO: É possível verificar que decisões em primeira instância, acórdão em segunda instância e a jurisprudência dos tribunais superiores ao discorrerem sobre a importância da devida aplicação da Lei nº 9296/96 demonstram que o bem maior a ser tutelado é a garantia da privacidade e sigilo de dados dos elementos constituintes da comunicação. Sendo a aplicação da lei em comento exceção, logo constitucionalmente aplicável somente mediante ordem judicial. Evidente que a lei fora publicada em 1996 e seu corpo sofreu com a desatualização social ao longo do tempo. Desse modo, com o estágio evolutivo das telecomunicações hoje, seus critérios e sua aplicação encontram suporte fático para a garantia da segurança pública no que diz respeito ao processo penal? Mostrar a importância dessa atualização é o foco dessa pesquisa que, arrolando bibliográfica e documentalmente, os critérios determinados na letra legal, desenvolverá sua evolução ao longo da história culminando na avaliação dos critérios legais à realidade da prática processual penal.
Palavras-chave: Processo penal. Investigação criminal. Interceptação telefônica. Interceptação telemática. Autorização judicial.
ABSTRACT: It is possible to verify that decisions at first instance, judgment at second instance and the jurisprudence of higher courts when discussing the importance of the proper application of Law No. 9296/96 demonstrate that the greatest asset to be protected is the guarantee of privacy and confidentiality of data of the constituent elements of communication. As the application of the law is an exception, then constitutionally applicable only by court order. It is evident that the law was published in 1996 and its body suffered from the social downgrading over time. Thus, with the evolutionary stage of telecommunications today, do its criteria and its application find factual support for guaranteeing public safety with regard to criminal proceedings? Showing the importance of this update is the focus of this research that, listing the criteria determined in the legal letter, bibliographically and documentally, will develop its evolution throughout history, culminating in the evaluation of the legal criteria to the reality of the criminal procedural practice.
Keywords: Criminal proceedings. Criminal investigation. Telephone intercept. Telematic intercept. court authorization.
SUMÁRIO: 1INTRODUÇÃO, 2DESENVOLVIMENTO, 3INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E TELEMÁTICA: 3.1 Conceituação legal, 3.2 Critérios legais, 3.3 Critérios legais destacados na jurisprudência, 4 DA POLÍCIA JUDICIÁRIA E SEU INQUÉRITO: 4.1 Do inquérito policial, 5 DA EVOLUÇÃO DOS MEIOS COMUNICATIVOS: 5.1 Da necessidade de evolução dos mecanismos investigativos para a persecução criminal, 5.2 Da atualidade da questão da interceptação telemática, 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa versa sobre a importância da atualização dos critérios que autorizam as interceptações telefônicas e telemáticas nos processos em que o investigado, age de modo a dificultar o prosseguimento investigativo processual.
O bem maior tutelado constitucionalmente, nesse caso, é o direito à privacidade e o dever do Estado, imposto pela carta magna, de não interferir na vida particular de seus representados.
Em contraponto, observa-se que, na sociedade atual, há necessidade de priorização às práticas Estatais de repressão e combate a atividade criminosa cuja evolução, no Brasil, tornou-se fato quotidiano atingindo uma natureza quase cultural.
Exemplificando o fato acima exposto, aplicando a técnica da observação assistemática, verificou-se a origem, nos presídios do Rio de Janeiro, do Comando Vermelho (CV), recentemente no Amazonas a fusão do Primeiro Comando da Capital (PCC), com origem nos presídios em São Paulo, com a Família do Norte (FDN), facção criminosa dissidente do CV e atuante no Amazonas, formando o Primeiro Comando do Norte (PCN), mostram que em grande parte a estrutura do crime vem se organizando e demonstra aspectos de evolução social.
Pode-se deduzir que, as organizações criminosas como as citadas acima, para a atuação em diversas áreas do país utilizam-se de uma estrutura comunicativa robusta e avançada.
Recursos para a manutenção em sigilo dessas atividades são muitos. É de conhecimento geral que aplicativos como Whatsapp, Telegram, Messenger e outros similares, possuem tecnologia de criptografia de ponta a ponta. Ou seja, procuram resguardar com mais segurança à privacidade das comunicações entre duas pessoas.
Não se questiona, nem é objeto dessa pesquisa a legalidade e aplicação desse nível de segurança nos serviços de telecomunicação. Mas com o avanço desse nível segurança para o usuário comum, as organizações criminosas também se beneficiam na proteção de seus atos.
Por esse viés, os critérios para o deferimento de interceptação telefônica e telemática se adequam a realidade das investigações criminais? Esses critérios vêm acompanhando o avanço tecnológico das telecomunicações?
Com este arcabouço apresentado, esta pesquisa visa mostrar a importância da atualização regular dos critérios que autorizam as interceptações telefônicas e telemáticas, diante da evolução tecnológica dos sistemas de comunicação relativos aos procedimentos que instruem o processo criminal.
De modo que para atingir a essa finalidade, desenvolver-se-á a evolução histórica dos princípios protetores do direito à privacidade; se identificará os critérios aplicados no ordenamento jurídico brasileiro; se inferirá da jurisprudência regional e nacional os critérios aplicados; validar-se-á, de acordo com o atual estágio da evolução tecnológica criptográfica, se os critérios estão sendo atingidos; e se avaliará se esses critérios, de fato, se adequam à realidade.
Para que fossem atingidos os objetivos, geral e específicos, a natureza da pesquisa empregada, por ser descritiva, concentrou-se na exploração bibliográfica e documental sobre o fenômeno observado.
Sendo o fenômeno observado igual ao objeto da pesquisa – os critérios empregados na autorização das interceptações telefônica e telemática – a exploração bibliográfica expos quais são e como são empregados, enquanto a exploração documental, em grande parte realizada nos sítios eletrônicos dos tribunais regional e superiores, relacionaram esses critérios com a prática.
Como consequência, ao fim da pesquisa espera-se contribuir no alargamento da discussão atual instrumentalizando uma avaliação clara da relação entre a evolução tecnológica na área de telecomunicações e a necessidade de atualização dos paradigmas que garantem ao Estado a manutenção da ordem e segurança de sua população.
2 DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO
À época em que o direito de governar se confundia com a natureza divina do governante, o poder do Estado era soberano e inquestionável, pois do contrário haveria o questionamento ou oposição às determinações divinas e “a justiça divina e a justiça natural são, por sua essência, constantes e invariáveis (…)” (BECCARIA, 2000).
Desse modo, sendo constante e invariável, deduz-se seu absolutismo. E à medido que “o velho pensamento, pré-científico cedeu o passo a uma forma de pensar despida de ideias, quase mágica”, (JASPERS, 1976) socialmente o conceito de Estado evoluiu, deixou de centrar-se no divino e concentrou-se na figura de um homem que detinha os poderes para dirigir as vontades da população que se encontram dentro das delimitações territoriais de sua jurisdição
Dessa evolução a sociedade saiu do sistema político baseado no divino e, portanto, absoluto, cuja representação áurea pode ser resumida na frase que é atribuída ao Rei-Sol, Rei Luis XIV que reinou a França no período de 1638 a 1715, no original “Je suis la Loi, Je suis l'Etat; l'Etat c'est moi” que em tradução livre para o português afirma “Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu”. Fuks contextualiza o significado dessa frase analisando o raciocínio que condensa a lógica da monarquia absolutista, pois “estava nas mãos do Rei o controle de todos os aspectos fundamentais do seu território” e todas as decisões vitais ao governo eram direcionadas ao monarca (2019).
Com a ascensão da valorização dos direitos individuais, os defensores do Estado Absolutista, em maioria, acabaram cedendo espaço a um modo diferente de organização estatal. Carvalho explica essa evolução como a equivalência do Estado ao direito, com a constituição de uma personalidade jurídica (1999, p.41). Há um enxugamento dos direitos do Estado e de seus governantes, “aparecem as Constituições escritas, como instrumento de racionalização do poder e de renovação do pacto social dos contratualistas” (ibidem, p.46).
Souza afirma que “a institucionalização do Estado de Direito de modo coerente (…) ocorreu depois da Revolução Francesa, nos Estados liberais do século passado [XIX], fundados precisamente na doutrina do ‘império da lei’” (1984, p.26).
Logo, os deveres e direitos do Estado, de toda a administração, passaram a restringir-se dentro daquilo que estivesse regido pela Lei, não por vontade divina, ou pela vontade do Príncipe, mas estabelecido em um texto que após aprovado depois do devido processo legal – processo legislativo – deve valor como obrigação para todos dentro dos seus limites jurisdicionais (MEIRELLES, 1991, p.78).
No Brasil, Silva ensina que “a concepção liberal do Estado de Direito servira de apoio aos direitos do homem, convertendo súditos em cidadãos livres” (2000, p.117). Visando resguardar os direitos dos cidadãos, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988 (CF/88) em seu Título II – dos direitos e garantias fundamentais, Capítulo I – dos direitos e deveres individuais e coletivos por seu art. 5º, inciso XII de maneira inalterável defende:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Observa-se assim que quaisquer esforços no sentido de autorizar medida que viole cláusula pétrea da constituição é inconstitucional, todavia, para fins de “investigação criminal ou instrução processual penal” surge uma exceção.
Tal exceção não fere a ordem da evolução do pensamento protecionista que a Carta Magna tutela, mas visa, piamente, a proteção da sociedade dos males que a mente humana é capaz de se auto afligir nas condutas criminosas. A própria motivação para a manutenção da exceção que é a interceptação telefônica, demonstra a importância de sua aplicação quando não cabem mais outros recursos para a persecução criminal.
O caminho adotado pela CF/88 é o da liberação restritiva ou do recurso investigativo objeto desse estudo, ou seja, “todos os direitos fundamentais devem ser submetidos a um juízo de ponderação quando entram em rota de colisão com outros direitos fundamentais” (LIMA, 2020), dando maior relevância aqueles que possuem a prioridade in casu.
Desse modo, as garantias, em harmonia com os fundamentos da CF/88, não são absolutas, e nem poderiam ser devido ao mau uso, ou sua má invocação por indivíduos que não usam de boa-fé - os criminosos (idem, p. 513).
Em razão da necessidade de alargar melhor a regulamentação do tema, o legislador apresentou a lei nº 9.296 de 24 de julho de 1996 (Lei nº 9.296/96 - Lei das interceptações telefônicas), que vem regulamentando o assunto e direciona grande parte das decisões judiciais sobre o tema.
Esta lei sofreu atualizações recentes em 2019 com as leis nº 13.869 e 13.964 que lhe incluíram alguns artigos e alteraram a redação de outros, mas sem modificar substancialmente o conteúdo.
3 INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E TELEMÁTICA
3.1 Conceituação legal
A análise semântica da nomenclatura do termo empregado pela lei das interceptações telefônicas inicia o percurso do que se deseja conceituar nesta pesquisa. Têm-se em seu artigo 1º versa sobre “a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza (…)” ( BRASIL, 1996).
De acordo com o que dispõe o dicionário Aurélio (2000, p.395), dentre outros significados, o verbo interceptar significa “(…) 2. Reter, deter (o que era destinado a outrem). (…) 4. Captar.” Desse modo, em acordo com o que dispõe a letra da lei, interceptação telefônica significa a captação ou detenção de mensagens (chamadas) telefônicas entre dois ou mais interlocutores.
Todavia, o termo empregado tem sua interpretação estendida por força do que dispõe o parágrafo único do art. 1º da lei em comento: “O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática.” (BRASIL, 1996). Gomes e Maciel (2018, p. 92) explicam que o legislador conceituou de modo genérico os demais modos de comunicação empregando o termo “telemática” por se tratar da ciência que estuda as comunicações “de dados, sinais, imagens, escritos, e informações por meio do uso de combinado de informática”. Ou seja, ao utilizar o termo telemática, o legislador se referia às telecomunicações em suas mais variadas formas, com ênfase ao meio informatizado e suas ramificações, evoluções (idem).
3.2 Critérios legais
Com o advento do Estado Democrático de Direito e com a consequente garantia de direitos fundamentais, o que inclui o direito a privacidade. Sendo o Brasil signatário do Pacto de São José da Costa Rica, por força do Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992 seu artigo 11, 2 (BRASIL, 1992) determina que:
Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
Em conformidade com o que a CF/88 regula em seu art. 5º, XII atribuindo à interceptação a natureza super excepcional – “é inviolável o sigilo (…) salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que que a lei estabelecer (…)” (BRSAIL, 1988). De modo que, na lei das interceptações telefônicas, o artigo 2º trata como nulas, ou “não admitidas” as interceptações que atendam a qualquer das seguintes hipóteses (BRASIL, 1996):
I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;
II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
III - o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.
Além dos critérios de clareza, indicação e qualificação dos investigados, conforme o parágrafo único do art. 2º (idem).
Logo, para que haja a determinação judicial da interceptação o juiz deverá verificar o atendimento aos critérios materiais, em cada caso, se há indícios razoáveis de autoria ou pelo menos de participação dos indivíduos; se, de fato, não é possível obter provas por outros meios; e se o fato a ser investigado é tipo penal punido com pena de reclusão.
3.3 Critérios legais destacados na jurisprudência
A observação da letra legal apenas em sua essência não demonstra a efetividade de sua aplicação. De modo que para medir sua eficiência se faz importantíssimo destacar como os critérios para o deferimento da medida em estudo são ponderados pelos órgãos jurisdicionais.
No Tribunal do Justiça do Amazonas (TJ/AM), sob a relatoria do Meritíssimo Juiz de Direito Cezar Luiz Bandiera (2021, p. 11), a egrégia corte acordou:
Não há nulidade, quando as interceptações telefônicas cumprem os requisitos previstos na Lei nº 9.296/1996. Ademais, no processo penal brasileiro, a nulidade somente se solidifica quando comprovado o prejuízo para a parte, nos termos do art. 563 do CPP.
No curso do processo criminal oriundo da operação anastasis, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, ratificou a decisão do juízo de primeiro grau que autorizou e depois prorrogou sucessivas a interceptação telefônica naquele processo. Nas palavras do Ministro Rogério Schietti Cruz (2021, p.3):
VI. O Juiz de primeiro grau, além de haver justificado a imprescindibilidade das interceptações telefônicas, também destacou que, à época dos fatos, havia ciência da existência de um grupo criminoso que agia de maneira organizada, com o envolvimento de diversas pessoas, inclusive menores de idade, para a narcotraficância, o que evidenciou a necessidade de adoção da medida invasiva, a fim de subsidiar as investigações das infrações penais.
Uníssono a essas decisões verifica-se também como apontam os acórdãos no Supremo Tribunal Federal (STF). No Habeas Corpus 161.488 de Minas Gerais, nas palavras do relator Ministro Marco Aurélio:
(…) o afastamento do sigilo de comunicações (…) aludiu às razões expostas na representação da autoridade policial e manifestação do Ministério Público (…) revelado indícios razoáveis de envolvimento na prática de tráfico de drogas e associação para o tráfico. Indicou especificamente a linha telefônica relacionada a Marcelo e autorizou a quebra referente ao aplicativo Blackberry. (…) concluindo ausentes outros meios visando obter prova do cometimento dos crimes. Foram preenchidos os requisitos versados na Lei nº 9.296/1996.
Tanto em nível estadual quanto federal, respeitadas as competências jurisdicionais, verifica-se que os critérios são aplicados em acordo com o que se dispõe na CF/88. Lima (2020, p. 527) afirma que “o provimento que autoriza a interceptação tem natureza cautelar” e está condicionada à prévia autorização judicial.
Como se subsumi dos corpos decisórios expostos acima, encontram-se presentes o fumus comissi delicti e o periculum in mora. No primeiro critério é necessária a concorrência de elementos determinantes da existência de um crime, posto que justificará o sacrifício de direito fundamental à intimidade (idem). No segundo caso, deverá ser ponderado “o risco ou prejuízo que a não realização imediata da diligência poderá acarretar” para o processo (ibidem).
Para a ser considerada lícita a interceptação telefônica, além dos requisitos constitucionais, “ordem judicial, forma da lei, investigação criminal ou processual”, os pressupostos do art. 2º da Lei da Interceptação telefônica, que são os mínimos para a garantia de que a interceptação “não será empregada em qualquer caso e sem critérios seguros”, (GOMES, MACIEL, 2018 p.104).
4 DA POLÍCIA JUDICIÁRIA E SEU INQUÉRITO
Embora receba o nome de polícia judiciária, a polícia investigativa é extensão do Poder Executivo e seu objetivo é de auxiliar o Poder Judiciário no cumprimento de medidas que tenham por escopo o esclarecimento de fatos referentes ao cometimento ou não de delitos (LIMA, 2020, p.567).
Logo, por ser extensão da administração pública, deve-se pautar pelos mesmos princípios, dentre eles, e nesse caso o que se destaca, o princípio da eficiência dos atos administrativos, que afirma que as ações da administração devam se pautar a cumprir um fim específico e que, em concomitância aos princípios da economia e celeridade, possam atingir sua finalidade do melhor modo e com o uso mínimo de recursos (COUTO, 2011, p.102).
A principal atividade da polícia judicial é investigar e essa ação se instrumentaliza no inquérito policial. Guimarães (2014, p.426) empresta o conceito mais simples que se pode utilizar no momento para explicar esse instrumento como “conjunto de diligências da Polícia Judiciária, colhendo indícios e informações para apurar a prática de ilícito penal e sua autoria”.
É importante ainda esclarecer que nessa fase, o procedimento tem natureza inquisitória e sigilosa, ou seja, o seu curso, geralmente, não é público e não se admite o contraditório, posto que visam exclusivamente a apuração de fatos (idem).
Gomes (2020, p.79) afirma que após, analisar a legislação infraconstitucional pátria em vigor, conclui-se que o sistema investigativo, praticado na competência da polícia judiciária, no Brasil é o inquisitório”.
4.1 Do inquérito policial
O Decreto-Lei nº 3689 de 3 de outubro de 1941 que institui o Código de Processo Penal (CPP) no seu Livro I que trata do Processo em Geral e especificamente no Título II – do inquérito policial, detalha os procedimentos para a instauração e prosseguimento ou não do processo investigativo (BRASIL, 1941).
Não é escopo desta pesquisa esmiuçar o desenvolvimento desses procedimentos, todavia é importante destacar algumas de suas propriedades impostas pelo CPP.
As peças do inquérito policial serão conectadas em um só processo escrito, portanto formal, e deverão ser assinadas pela autoridade policial (art. 8º CPP). Terá o prazo de 10 (dez) dias se o réu estiver preso e 30 (trinta) dias quando estiver solto (art. 10 CPP). Um relatório minucioso de todo o apurado será enviado ao juiz competente (art. 10, §1º CPP). Se necessário para esclarecimento, a autoridade policial poderá requerer ao juiz a devolução do inquérito para “ulteriores diligências” caso em que serão realizadas dentro do prazo marcado pelo juiz (art. 10, §3º CPP), nesse último caso, ocorre o início da demonstração de que o inquérito policial possui uma característica informativa e não necessariamente probatória, fato corroborado pelo art.; 12 CPP que determina que “o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra” (BRASIL, 1941).
É imperioso ressaltar que, embora o inquérito policial possa esclarecer sobre fatos e autorias criminais, a autoridade policial não é o titular da ação penal, pois nos crimes de ação pública é o Ministério Público seu titular, dando início ao processo penal com a Denúncia (art. 24 CPP) (idem).
Nesse sentido, uma vez que se evidencia a necessidade da produção de provas por meio de interceptação telefônica ou telemática, esta deverá ocorrer primariamente em corpo de processo penal já instaurado, visto que os critérios que regem a permissão da produção deste tipo de prova determinam a autorização pelo juiz.
Logo, as interceptações telefônicas e/ou telemáticas, em sede de inquérito policial poderão não possuir natureza probatória, mas apenas informativa. Esse fato pode ser subsumido nas palavras de Bandiera (AMAZONAS, 2021) ao fundamentar a manutenção das provas oriundas de interceptação telefônica em fase inquisitória, in verbis:
(…) afasto a alegada nulidade e acrescento que a peça inquisitiva é meramente informativa e nada impede que o Juízo se baseia nas investigações. O que não se aceita é que sejam exclusivas na confirmação dos crimes.
5 DA EVOLUÇÃO DOS MEIOS COMUNICATIVOS
Vergastado o tema da imprescindibilidade da manutenção do direito à privacidade, ao redor do mundo, inúmeras empresas de informática e telecomunicação aceleram trabalhos para garantir a manutenção da privacidade e sigilo de informações de diversas pessoas. Corrobora esse fato o implemento de políticas empresariais como a desenvolvida pela empresa estrangeira The TOR Project Inc que afirma como objetivo principal “ter uma forma de usar a internet com o máximo de privacidade possível” com a crença comum de que “os usuários da Internet devem ter acesso privado a uma web sem censura”. Estabelecendo sua missão de (TOR, 2021):
Proteger os direitos humanos e liberdades por meio da criação e implementação de tecnologias de anonimato e privacidade livres e de código aberto, provendo apoio a seu uso e disponibilidade irrestritos. Ao mesmo tempo, contribuímos para o avanço de sua compreensão científica e popular.
Seguindo políticas similares à da TOR Project Inc diversas empresas de telemática desenvolvem processos de comunicação com criptografia de ponta a ponta, em que os dados da comunicação são codificados entre um a ponta da comunicação (emissor) até e outra ponta (receptor). Na hipótese de uma interceptação de dados, estes deverão estar codificados (encriptados) e a chave para decriptação estaria apenas acessível às duas pontas da comunicação. Nesse caso, nem os provedores do serviço teriam acesso ao conteúdo das comunicações.
Fazem uso desta tecnologia empresas como Facebook, proprietária do mensageiro eletrônico WhatsApp, Telegram, Signal e outros mensageiros eletrônicos. Essas e outras empresas investem altas somas de dinheiro e tempo para garantir que seus usuários tenham a acesso à proteção de seus dados.
Verifica-se assim, que hodiernamente a proteção à privacidade não se limita à troca de correspondências (cartas e demais documentos), telefonia e seus congêneres (fax, SMS, PBAX), mas também, com o implemento do acesso à internet, à dados transmitidos e recebidos via web.
5.1 Da necessidade da evolução dos mecanismos investigativos para a persecução criminal
Não se trata em ir ao lado oposto do ordenamento jurídico, buscando o entendimento diferente do que está submetido a lei, está expresso que a interceptação somente será possível com autorização judicial.
Todavia, no desenvolvimento da investigação, há situações que impedem o avanço da produção de provas. Vezes que os cometedores de crimes, na tentativa de se manterem escondidos utilizam-se dos meios permitidos ao público para a manutenção de seu anonimato. Assim, se há o risco de uma interceptação telefônica, já utilizam mais telefones e sim aplicativos de mensagens eletrônicas que inviabilizam a interceptação das comunicações.
Lima (2018, p.520) explica que hoje o uso do telefone celular deixou de ser apenas para a realização de chamadas – conversação – a longa distância para permitir o acesso a múltiplas funções como forma de comunicação, textos, gravações de áudio, vídeos, imagens etc. Tudo isso de modo tão simples e acessível quanto realizar uma ligação.
Diante de um aparato tecnológico tão acessível e robusto do ponto de vista da segurança dos dados que não ajuda interceptar determinado número de telefone, em dispositivo móvel, se não é possível acompanhar, ter acesso ao uso de aplicativo utilizado na comunicação por voz ou escrita.
Gomes e Maciel (2021, p.55) explicam que no século passado a comunicação telefônica abrangia apenas a conversação oral, enquanto nos dias atuais com a internet e o desenvolvimento de tecnologias de transmissão de dados cada vez mais velozes, o conceito de telefonia mudou drasticamente, logo, “o mundo jurídico deve enfocar a expressão [telefonia] (atualizando-se permanentemente) ”.
Diante desse cenário, sabendo que a comunicação está sendo feita através de aplicativos, que utiliza forma bastante parecida com à telefonia convencional, para fazer ligações, que os tribunais, e a suprema corte consideram válidas, e possíveis a interceptação de dados e telemáticas. Verifica-se assim a necessidade da manutenção da atualização dos critérios que autorizam e mantém as interceptações.
5.2 Da atualidade da questão da interceptação telemática
O embate sobre a interceptação telemática surgiu quando da aplicação da novel Lei nº 12.965 de 23 de abril de 2014 que estabeleceu os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, conhecida como o Marco Civil da Internet, com a veterana lei de interceptação telefônica.
Em dois processos distintos, em comarcas distintas ao longo do território nacional brasileiro, ao destaque temporal não concomitantes, dois juízes, ao determinar a interceptação telemática em contas de WhatsApp para produção de provas em seus respectivos processos, tiveram suas determinações não cumpridas pela empresa desenvolvedora do aplicativo, momento posterior em que aplicaram a penalidade de suspender o uso do aplicativo em todo território nacional, como forma de constranger a empresa a obedecer as determinações judiciais.
Com a aplicação das penalidades previstas no Marco Civil da Internet, iniciou-se uma enorme discussão sobre a abrangência e viabilidade da interceptação telemática para a instrução criminal. Pois se de um lado é possível sua autorização, por outro lado, o recurso de criptografia de ponta a ponta torna quase impossível sua aplicação. E a responsabilização e possível penalização dos fornecedores do serviço também ficam prejudicadas em razão da inviabilidade técnica, pois nem mesmo os provedores do serviço teriam acesso à chave decriptadora do conteúdo da comunicação.
Os fatos acima trazidos encontram-se em fase de discussão no STF na Ação Direita de Inconstitucionalidade ADI nº 5527 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF nº 403 cujos objetos respectivamente são a interpretação constitucional de dispositivos da Lei 12.965/2014, para suspender o funcionamento desses aplicativos e o questionamento da decisão do juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias no Rio de Janeiro, que suspendeu o serviço de aplicativo mensageiro.
Nesse sentido a relatora do ADI nº 5527 a Ministra Rosa Weber votou pelo entendimento de que a Lei 12.965\2014, não pode ser utilizada para suspender os aplicativos de mensagens, como WhatsApp, segundo ela os art.12, Inc. III, que fala da suspensão temporária das atividade , e o inciso IV, da Proibição de exercício das atividades que envolvam os atos também previstos no art. 11; remetem à suspensão de atividades de operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicação previstas no art. 11, da lei de Marco civil da internet, não podem servir de argumento para paralização total de um aplicativo, como foi entendido alguns juízes de primeira instância que proferiram decisões que suspenderam o funcionamento do aplicativo em 2016 e 2017.
Noutro turno, o Ministro Luiz Edson Fachin, nos autos da ADPF nº 403, votou pela inconstitucionalidade sem redução de texto do art. 7º, II, e 12, III, ambos do Marco Civil da Internet, para a afastar qualquer interpretação do dispositivo que autorize ordem judicial que exija acesso excepcional a conteúdo de mensagem criptografada ponta-a-ponta ou que, por qualquer outro meio, enfraqueça a proteção criptográfica de aplicações da internet.
Ferreira (2021, p.14) afirma que se mantida a linha de raciocínio apresentada nos autos da ADPF nº 403 “criminosos no Brasil estariam protegidos pela criptografia”, pois se a determinação judicial não efetiva a interceptação do fluxo, também não teria capacidade o Poder Judiciário sancionar eventual descumprimento da ordem.
Verifica-se que há uma discrepância entre o que se espera da aplicação legal da prática jurisdicional. Claro, que quando muito explícitas as circunstâncias fáticas, dificilmente se denegará o poder à autoridade policial no curso da instrução criminal, pois nas palavras do Ministro Celso de Mello (STF, 1999, p.89) “não há no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto”.
Isso se acentua quando há relevante interesse público e aplicação dos termos estabelecidos pela própria CF/88. Nesse ínterim as palavras do Ministro Celso de Mello, reforçam (idem):
O estatuto Constitucional das liberdades públicas, (…) permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantias pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.
Desse modo, verifica-se que há no ordenamento jurídico brasileiro espaço para o avanço criterioso dos meios para que se coíbam práticas criminosas partindo do ponto em que se avançam nas tecnologias os três Poderes Estatais possam responder com celeridade e eficiência na prestação de sua tutela legal.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O arrolamento bibliográfico e documental realizado pela pesquisa, tornou evidente a necessidade da manutenção dos critérios que autorizam as interceptações telefônicas e telemáticas, pois a história corrobora que o avanço da sociedade para a utilização de tecnologias telemáticas mais rápidas, eficiente e seguras aprofundam-se nas relações sociais que abraçam cada vez mais os serviços on-line (bancos, redes de venda e compra, serviços de entrega etc.).
Os critérios que hoje são utilizados foram estabelecidos há mais de vinte anos atrás, embora houvesse à época condições de imaginar como seria o futuro, o emprego de termos genéricos, no corpo da Lei de Interceptações Telefônicas evidenciam sua caducidade quando comparados com o estágio evolutivo das comunicações atuais.
Isso se reflete na jurisprudência que se pacifica no que diz respeito à interceptação de comunicação por meios tradicionais, a exemplos, telefone e correspondências físicas, mas encontram óbice em ambientes virtuais de troca de mensagens, por possuírem a garantia de segurança de dados mais robusta que, em geral, impede o implemento Estatal da interceptação de dados nesse meio.
Óbvio salientar que nesse respeito, abusando da garantia fundamental do direito ao sigilo, privacidade, anonimato, as organizações criminosas se locupletam. Restando ao Poder Público criar alternativas que minimizem esse abuso na busca de meios preventivos e, no combate, a criação de técnicas que estruturem de modernidade as práticas já empregadas de investigação.
Questões como o virtual conflito entre a Lei de Interceptação e o Marco Civil da Internet apenas comprovam que, ao avaliar a contemporaneidade dos critérios empregados na autorização das interceptações estas mostram-se vagas e pouco propensas a garantir o fim da persecução criminal.
Isso só reforça que o Poder Judiciário deve se apressar em atualizar seus paradigmas visando acompanhar a realidade do desenvolvimento telemático. O Poder Legislativo deveria observar com mais seriedade a regulamentação dos métodos empregados pelo Estado na aplicação administrativa da justiça. E por fim o Poder Executivo, visando a manutenção da segurança e ordem pública, deveria investir com mais seriedade na formação pessoal e tecnológica da polícia judiciária.
7 REFERÊNCIAS
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Artigo publicado no 17 de novembro de 2021 e republicado em 01/10/2024.
Graduado do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, GEDEON VELOSO DOS. A importância da atualização dos critérios que autorizam as interceptações telefônica e telemática para a instrução dos processos penais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 ago 2024, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57468/a-importncia-da-atualizao-dos-critrios-que-autorizam-as-interceptaes-telefnica-e-telemtica-para-a-instruo-dos-processos-penais. Acesso em: 23 nov 2024.
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