RESUMO: O tráfico de órgãos tem se mostrado como uma problemática de ordem internacional com ramificações observadas em diversos outros crimes como o tráfico de pessoas, o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, bem como incentivo à prostituição. Neste contexto a identificação de legislações próprias que possam embasar as práticas preventivas e punitivas contra este crime se torna foco de pesquisas, auxiliando a sociedade no enfrentamento destas ocorrências. Através do levantamento bibliográfico e documental acerca do tema foi possível identificar uma série de orientações internacionais e legislações nacionais que se apresentam como base para as concepções a serem formadas sobre o tráfico de órgãos, bem como as possibilidades de tipificação penal deste crime no território nacional e em virtude dele. Foi possível verificar que mesmo sem uma legislação própria que trate explicitamente sobre a temática, o ordenamento jurídico brasileiro tem demonstrado avanços neste sentido, bem como possui uma série de legislações que podem abarcar a problemática do tráfico de órgãos.
PALAVRAS-CHAVE: Tráfico de pessoas. Tráfico de órgãos. Lei do transplante.
ABSTRACT: Organ trafficking has been shown to be an international issue with ramifications observed in several other crimes such as human trafficking, sexual abuse and exploitation of children and adolescents, as well as encouraging prostitution. In this context, the identification of specific legislation that can support preventive and punitive practices against this crime becomes the focus of research, helping society to deal with these occurrences. Through the bibliographic and documental survey on the subject, it was possible to identify a series of international guidelines and national legislation that are presented as a basis for the conceptions to be formed about the trafficking of organs, as well as the possibilities of criminal classification of this crime in the national territory and by virtue of it. It was possible to verify that even without its own legislation that explicitly addresses the issue, the Brazilian legal system has shown advances in this regard, as well as having a series of legislations that can cover the issue of organ trafficking.
KEYWORDS: Trafficking in Persons. Organ trafficking. Transplant law
O tráfico de órgãos tem se apresentado como uma problemática de larga escala em todo o mundo, sendo um tema recorrente à diversos estudos em várias áreas do conhecimento sendo de suma importância sua relevância no meio jurídico.
Os dados deste crime no mundo demonstram a necessidade do investimento nestes estudos, bem como da investidura em políticas de enfrentamento ao tráfico de órgãos, principalmente por se tratar de uma violação dos direitos humanos básicos. De acordo com Gomes e Obregon (2018) cerca de 5% a 10% dos transplantes de órgãos realizados no mundo ocorrem de forma ilegal, o que denota um percentual elevado que deve ser enfrentado.
Segundo Passos (2016) outro dado importante à análise da questão do tráfico de órgãos é a movimentação milionária que este mercado impõe. O autor afirma que a Organização Mundial de Saúde estima que cerca de 600 bilhões de dólares são movimentados neste tipo de mercado.
O objetivo geral desta pesquisa é analisar o tráfico de órgãos humano à luz do ordenamento jurídico brasileiro, propondo como objetivos específicos: identificar os princípios, direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal do Brasil de 1988 violados com o tráfico de órgãos, comparar o Protocolo de Palermo, a Declaração de Istambul e a legislação jurídico-penal brasileira no que tange ao tráfico de órgãos e seu enfrentamento, e apontar os tipos penais do tráfico de órgãos em consonância com a legislação específica brasileira e suas implicações jurídicas
Trata-se, de uma temática relevante, devido a diversas ocorrências e dificuldades para combater este crime, tanto no âmbito nacional quanto internacional. Neste sentido, este estudo se justifica como possibilidade de aprofundar o conhecimento acerca do tráfico de órgãos humanos à luz do ordenamento jurídico brasileiro, contribuindo para a formação de acadêmicos do curso de Direito, bem como colaborar com profissionais da área ou áreas afins que buscam se apropriar das nuances que permeiam o referido tema.
Para a pesquisa, foi utilizado o método dedutivo, que segundo Provdanov e Freitas (2013), busca explicitar o conteúdo do geral para o particular, chegando a uma conclusão. Gil (2010), por sua vez, salienta que este método se consubstancia na construção lógica, a partir de duas premissas que servirão como fundamento para uma terceira, denominada de conclusão.
Para a constituição deste trabalho foram realizadas buscas por periódicos e produções científicas em bases de dados científicos, bem como na legislação vigente, doutrina e jurisprudências relativas à temática proposta. Para tanto, serão realizadas buscas na base de dados científicos e jurídicos a partir de palavras-chave relevantes como, “tráfico de pessoas”, “tráfico de órgãos” e “lei do transplante”.Após a pesquisa e coleta de dados, foi realizada a seleção e análise dos achados científicos e jurídicos.
1 O TRÁFICO DE ÓRGÃOS COMO VIOLAÇÃO DE DIREITOS E DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL
De acordo com Novo (2019), a Declaração Universal de Direitos Humanos não trata de forma direta o tráfico de órgãos, porém é possível a compreensão desta problemática através da análise de artigos que podem ser aplicados nestes casos.Partindo da premissa de que o tráfico de órgãos consiste em uma prática criminosa uma vez que promove a violação do corpo humano, é possível apresentar no texto de tal declaração os artigos quarto e quinto
Artigo 4°
Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.
Artigo 5°
Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (UNESCO, 1978).
No que tange ao artigo que versa acerca da escravatura e afins, Sprandel e Dias (2010), esclarecem que o tráfico de órgãos pode ser considerado uma complicação pertinente à escravidão, uma vez que a comercialização de órgãos em geral ocorre sob a submissão do indivíduo que possui o órgão.
É notado assim que quando se associa o tráfico de órgãos à escravidão é de suma importância a compreensão de que esta segunda em geral pode ser uma das formas de subserviência do escravizado, uma vez que sua condição inferior faz com que este seja colocado na situação de fornecedor de órgão.
Gueraldi e Dias (2014) afirma que em consideração à situação dos refugiados que procuram o Brasil como local seguro é salutar a compreensão desta problemática como um potencializador do tráfico de órgãos no país. Para os autores no que tange ao contexto das pessoas refugiadas no Brasil é salutar a compreensão de que as vulnerabilidades que a cercam devem se apresentar como uma questão de interesse coletivo para que as mesmas não sejam vitimas do tráfico de órgãos.
Observa-se neste contexto que a condição de refugiado em solo brasileiro elevada de forma considerável as possibilidades de vitimização dos mesmos no que tange ao tráfico de órgãos, uma vez que estes indivíduos se encontram em maior vulnerabilidade, e tem se apresentado em grande número no país
É salutar a evidência de que o tráfico de pessoas não deve ser relacionado somente ao tráfico de órgãos, mas que suas ramificações se aprofundam no turismo sexual, abuso e exploração de menores e contrabando de pessoas, além da promoção da prostituição (SALES; ALENCAR, 2008).
Um documento internacional que merece destaque no que tange à discussão acerca do tráfico de órgãos é a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO, 2005). Tal declaração é reconhecida como um documento primordial voltado para as práticas que envolvam seres humanos e a vida, o que se encaixa de forma completa na questão do tráfico de órgãos.
Os objetivos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO, 2005), dispostos em seu artigo segundo, explicitam de forma ampla as mais diversas possibilidades de atuação no campo da bioética e dos direitos humanos, os quais
(i) prover uma estrutura universal de princípios e procedimentos para orientar os Estados na formulação de sua legislação, políticas ou outros instrumentos no campo da bioética;
(ii) orientar as ações de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas públicas e privadas;
(iii) promover o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, assegurando o respeito pela vida dos seres humanos e pelas liberdades fundamentais, de forma consistente com a legislação internacional de direitos humanos;
(iv) reconhecer a importância da liberdade da pesquisa científica e os benefícios resultantes dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, evidenciando, ao mesmo tempo, a necessidade de que tais pesquisas e desenvolvimentos ocorram conforme os princípios éticos dispostos nesta Declaração e respeitem a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais;
O primeiro objetivo ao esclarecer acerca da necessidade de atuação prática dos Estados em relação à construção de políticas que assegurem que práticas ilícitas que envolvam a bioética, como o tráfico de órgãos, não se perpetuem. O segundo objetivo tem um caráter mais direcionado à esclarecimentos e orientações voltadas para a sensibilização de todas as classes da sociedade, sendo possível associar à causa do tráfico de órgãos quando se trata de orientar na identificação e denúncia.
No terceiro objetivo o foco ainda é o incentivo a promoção e respeito aos seres humanos e sua dignidade, o que é amplamente associável ao tráfico de órgãos quando se trata de respeitar o corpo humano e a dignidade que a ele pertence. Já o quarto objetivo se mostra pertinente à causa do enfrentamento do tráfico de órgãos ao identificar a importância nos estudos e ações de enfrentamento.
Outros objetivos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO, 2005) se apresentam como
(v) promover o diálogo multidisciplinar e pluralístico sobre questões bioéticas entre todos os interessados e na sociedade como um todo;
(vi) promover o acesso eqüitativo aos desenvolvimentos médicos, científicos e tecnológicos, assim como a maior difusão possível e o rápido compartilhamento de conhecimento relativo a tais desenvolvimentos e a participação nos benefícios, com particular atenção às necessidades de países em desenvolvimento;
(vii) salvaguardar e promover os interesses das gerações presentes e futuras; e
(viii) ressaltar a importância da biodiversidade e sua conservação como uma preocupação comum da humanidade.
No objetivo quinto é possível identificar novamente a importância da participação da sociedade nas questões de bioética o que se aplica ao tráfico de órgãos. O sexto objetivo trata do incentivo às pesquisas e difusão de conhecimentos em relação à bioética. E finalmente os objetivos sétimo e oitavo tratam justamente acerca da importância e do reconhecimento da bioética como forma de respeito à ciência.
Sobre o tráfico de órgãos em si, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO, 2005) cita em seu artigo 21, em relação às Práticas Transnacionais que “Os Estados devem tomar medidas adequadas, em níveis nacional e internacional, para combater o bioterrorismo e o tráfico ilícito de órgãos, tecidos, amostras, recursos genéticos e materiais genéticos”.
Neste sentido é importante a ressalva da participação do Brasil na escrita do texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos uma vez que demonstrou a importância que o enfrentamento a tal crime tem para o país.
De acordo com Pacelli e Costa (2013) a Constituição Federal da República, consolida a importante ideia de um Estado Constitucional regulamentador das formas de controle dos poderes públicos. Em continuidade, traz ainda a definição dos princípios, direitos e garantias fundamentais que regem o país.
Ao tratar dos princípios fundamentais, a CF/1988 preconiza em seu Art. 1º, incisos I a V, que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Neste sentido, sob a análise dos objetivos deste estudo é importante ressaltar que, no que tange o tráfico de órgãos, bem como todos seus pormenores, o direito brasileiro esclarece a cerca da violação de direitos no que tange ao comércio de órgãos, principalmente por violar o princípio básico dignidade da pessoa humana.
Em relação aos princípios, direitos e garantias é notado que se constituem principalmente na base do direito brasileiro, apresentando-se como as normas e a seguridade necessária para o povo brasileiro.
Destaca-se que o § 1º do Art. 5º da CF/88 estabelece a aplicação imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais a fim de evitar a inobservância destes preceitos.
Corroborando com dispositivo legal mencionado, Silva (2001, p. 5) aduz que “[...] embora todos (os fundamentos) reflitam na interpretação e aplicação das leis penais e processuais, destacam-se a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político para modificar a forma de análise dos fatos de interesse jurídico-penal”.
Em relação aos direitos e garantias constitucionais, Junior (2013) afirma que estes fundamentos são aplicados de forma igualitária e que esta premissa deve ser respeitada como tal, uma vez que se configuram direitos fundamentais. Para Tavares ( 2018) estas garantias são aquelas que sustentam a legalidade dos atos jurídicos, bem como asseguram os direitos dos cidadãos.
Em primeira instância é importante atentar para violação do direito constitucional à vida, conforme previsto no artigo quinto da CF (BRASIL, 1988), especialmente no inciso III
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
[...]
Sobre a violação de direitos constitucionais brasileiros, Bilia et al. (2018)esclarece que através do tráfico de pessoas é possível apontar os direitos violados do ser humano no que concerne ao tráfico de órgãos, uma vez que o mercado especializado nesta prática é categórico ao quebrar com os parâmetros de direitos dos cidadãos.
Nota-se que a violação dos direitos humanos inerente ao tráfico de órgãos se mostra uma realidade de que necessita de intervenção em decorrência de toda uma rede instaurada em torno desta prática, que desconsidera os direitos fundamentais dos cidadãos.
Além do Decreto nº 5.017/2004, tem-se a Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016 que trouxe em seu bojo a ampliação do rol de situações que podem configurar tráfico de pessoas, revogando os artigos 231 e 231-A do Código Penal brasileiro vigente (BRASIL, 1940), além de criar o artigo 149-A que inclui, dentre outras, a remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo como nova forma de exploração (BRASIL, 2016a).
Neste sentido é importante identificar quais são os tratados internacionais que tratam sobre a problemática do tráfico de órgãos, bem como reconhecer de que forma a legislação brasileira encara esta prática.
O primeiro ponto a ser verificado é a concepção acerca de tráfico de órgãos como forma de compreensão básica da problemática. O Protocolo de Palermo, enquanto documento público voltado diretamente para tratar acerca da temática de tráfico de pessoas, afirma que esta prática
[...] consiste no recrutamento, transporte, transferência, refúgio ou recepção de pessoas vivas ou mortas ou dos respectivos órgãos por intermédio de ameaça ou utilização da força ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade, ou da oferta ou recepção por terceiros de pagamentos ou benefícios no sentido de conseguir a transferência de controlo sobre o potencial doador, para fins de exploração através da remoção de órgãos para transplante (ANDRADE, 2011, p. 2).
A questão do mercado clandestino de órgãos também é apresentada por Silva (2017). Segundo o autor afirma que esta problemática se apresenta como uma questão a ser discutida em âmbito mundial, uma vez que este mercado tem um fluxo internacional, no qual pessoas são levadas para outros países com o intuito de terem seus órgãos extraídos.
Alencar (2007) afirmou que o Protocolo de Palermo é o marco inicial da discussão à nível internacional acerca do tráfico de pessoas, principalmente por se tratar da defesa de mulheres e crianças, expandindo sua aplicação a todos os indivíduos a posteriori, o que é considerado um grande avanço nas políticas internacionais.Matte (2017) afirma que de fato o Protocolo de Palermo não trata de forma mais direta acerca do tráfico de órgãos, o que é justificado pela sua objetividade no que tange ao tráfico de pessoas, mas que não pode ser desconsiderado mediante sua relevância para a temática.
Sobre isto, Melo (2016) afirma que a prevenção se apresenta como um grande desafio mediante a complexidade da problemática e da falta de engajamento efetivo do poder público. Para tanto o autor cita a importância de implementação de políticas públicas de sensibilização e combate, bem como a necessidade de parcerias com entidades da sociedade civil neste processo, uma vez que estas se encontram mais próximas da realidade das vítimas e possuem contato direto com as mesmas, o que facilita a identificação de ocorrências.
Neste sentido é importante reconhecer a relevância deste protocolo para as orientações a serem tomadas em relação ao tráfico de órgãos, uma vez que foi instituído com o intuito de organizar poderes no enfrentamento ao tráfico de pessoas de diversas formas.
Outro documento utilizado como referencia no enfrentamento ao tráfico de órgãos é a Declaração de Istambul, a qual foi instituída em 2008 com o intuito efetivamente do combate a esta problemática.
A Declaração de Istambul (ONU, 2008) compreende por tráfico de pessoas
[...] o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos (p. 2).
Em relação à Declaração de Istambul, Matte (2017) apresenta tal documento como uma forma de sanar as peculiaridades não abordadas pelo Protocolo de Palermo acerca do tráfico de órgãos, o que é o principal objetivo do documento, uma vez que fora observada a necessidade de aprofundamento nesta especificidade do tráfico de pessoas.
Andrade (2011) e Rzatki (2018) afirmam que a evolução entre o Protocolo de Palermo e a Declaração de Istambul é crucial no que tange à políticas de enfrentamento ao tráfico de órgãos uma vez que é notada uma maior efetivação de metodologias no segundo documento, como por exemplo a garantia de oferta de atendimento médico e psicológico, bem como custeios aos doadores vivos e aos que faleceram e deixaram familiares.
A legislação brasileira, através do Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940), leciona em seu artigo 149 – A que o tráfico de pessoas se caracteriza por
Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual.
Ainda em relação à políticas de enfrentamento, Teresi (2012) afirma que no âmbito governamental é possível identificar a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas, a qual conta com núcleos, postos e comitês de enfrentamento próprios para tal prática, bem como os serviços de atendimento, acolhida e apoio às vítimas resgatadas em situações identificadas como tráfico.
Enquanto signatário tanto da Declaração de Istambul quanto do Protocolo de Palermo, o Brasil no ano de 2016 passou a penalizar de forma mais efetiva aos que são condenados pelo crime de tráfico de pessoas e de órgãos, através do artigo 149-A (BRASIL, 1940) que tem como intuito ampliar as definições apresentadas anteriormente e estender o tráfico de órgãos como forma desta prática, e deixa claro a posição da legislação brasileira.
É importante ressaltar que a não existência de leis específicas em território nacional para a prática do tráfico de pessoas não exime os agentes executores de culpa, uma vez que ao se tornar signatário do Protocolo de Palermo e da Declaração de Istambul, o Brasil se comprometeu com a corte internacional em realizar ações de caráter preventivo e punitivo em relação ao tráfico de órgãos.
Neste sentido é importante a identificação nas leis brasileiras acerca do tema, partindo do estudo mais aprofundado do Código Penal(BRASIL, 1940), que até dezembro de 2016 tipificava o tráfico de pessoas nos artigos 231 e 231-A, conforme Quadro 1.
Quadro 1 – Tipificação Penal do Tráfico de Pessoas segundo o Código Penal brasileiro até dezembro de 2016
Tráfico internacional |
Art. 231, Código Penal
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– Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro.
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Tráfico interno
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Art. 231-A, Código Penal
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– Agenciar, aliciar, comprar a pessoa traficada. – Transportar, transferir, alojar a pessoa traficada tendo conhecimento desta condição. – Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual. – Agenciar, aliciar, comprar a pessoa traficada. – Transportar, transferir, alojar a pessoa traficada tendo conhecimento desta condição. |
Fonte: Brasil (2017b), adaptado.
É importante ressaltar que não é identificado no texto dos artigos citados qualquer alusão ao tráfico de órgãos, o que fora determinante na implementação do artigo 149-A em 2016, o qual passou a versar acerca desta especificidade de tráfico humano, além de outras legislações, conforme demonstrado no Quadro 2.
Quadro 2 – Tipificação Penal correlata ao Tráfico de Pessoas
Redução a condição análoga à de escravo
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Art. 149, Código Penal |
– Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. |
Crimes contra a criança e adolescente |
Art. 238, ECA |
– Prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa. |
Art. 239, ECA |
– Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro. |
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Crimes contra a Lei de Transplante |
Art. 15, Lei n° 9.434/97 |
– Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano. – Promover, intermediar, facilitar ou auferir vantagem com a transação. |
Fonte: Brasil (2017b), adaptado.
Em relação ao Código Penal é possível identificar que no Artigo 149, a penalidade, bem como suas especificidades, a serem aplicadas em casos de condenação por tráfico de pessoas são:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.
É salutar atentar, até então, para o caráter punitivo da legislação brasileira, o que se apresenta somente como um viés estabelecido pelos tratados internacionais, uma vez que estes também versam sobre a necessidade de movimentos públicos de prevenção como meio de enfrentamento ao tráfico de órgãos.
Sobre isto, Maimeri e Obregón (2017), a revogação dos artigos anteriores pela Lei 13.344/2016 (BRASIL, 2016b) demonstra um avanço imensurável na legislação brasileira no que tange ao enfrentamento do tráfico de pessoas e de órgãos, pois apresenta dispositivos fortes de combate e prevenção destes atos, como a penalidade mais específica, obedecendo as orientações do Protocolo de Palermo e os direcionamentos da Declaração de Istambul.
A Lei 13.344/2016 (BRASIL, 2016b) também acrescentou os artigos 13-A e 13-B ao Código Processual Penal
Art. 11. O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido dos seguintes arts. 13-A e 13- B: Art. 13-A. Nos crimes previstos nos arts. 148, 149 e 149-A, no § 3º do art. 158 e no art. 159 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e no art. 239 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderá requisitar, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos. Parágrafo único. A requisição, que será atendida no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, conterá: I - o nome da autoridade requisitante; II - o número do inquérito policial; e III - a identificação da unidade de polícia judiciária responsável pela investigação.
Observa-se novamente que com tal alteração é possível notar que há uma facilitação de acesso a informações por parte do poder público acerca de dados cadastrais tanto de vítimas quanto de agressores, o que promove uma rápida ação em casos suspeitos ou identificados de tráfico de pessoas.
Outra tipificação penal possível é identificada nas ações contra a Lei de Transplantes (BRASIL, 1997) que ao dispor acerca da doação de órgãos, tecidos ou quaisquer outras partes do corpo humano, seja em vida ou após a morte, com o intuito de transplante ou para tratamentos de saúde, também versa acerca do comércio das partes do corpo humano.
É importante o conhecimento do que é legislado em relação a doação de órgãos para compreensão do contrário a esta prática. Na Lei de Transplantes (BRASIL, 1997), capítulo II são dispostos as definições e peculiaridades acerca de transplantes post mortem
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina[...].
Art. 4o A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.
Art. 5º A remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa juridicamente incapaz poderá ser feita desde que permitida expressamente por ambos os pais, ou por seus responsáveis legais.
Art. 6º É vedada a remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoas não identificadas.
Em relação à extração de partes do corpo humano de indivíduos vivos a Lei de Transplantes (BRASIL, 1997), em seu capítulo III afirma que
Art. 9o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.
§ 1º (VETADO)
§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.
§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada.
§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização.
§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde.
§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.
§ 8º O autotransplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais.
Art. 9o-A É garantido a toda mulher o acesso a informações sobre as possibilidades e os benefícios da doação voluntária de sangue do cordão umbilical e placentário durante o período de consultas pré-natais e no momento da realização do parto.
Evidencia-se que nos casos de indivíduos vivos que queiram doar partes do seu corpo algumas condições são colocadas sendo primordial a gratuidade do ato, por isso a nominação de doação.
Outra forma de tipificar penalmente o tráfico de órgãos é com artigos 238 e 239 da Seção II que versa sobre os crimes em espécie no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990):
Art. 238. Prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa:
Pena - reclusão de um a quatro anos, e multa.
Parágrafo único. Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva a paga ou recompensa.
Art. 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro:
Pena - reclusão de quatro a seis anos, e multa.
Parágrafo único. Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Observa-se tratar exclusivamente de casos acerca do tráfico de pessoas, não especificando o tráfico de órgãos, porém é sabido que muitos dos casos de tráfico de crianças tem como finalidade a extração de órgãos, e na ausência da legislação mais determinante sobre o tráfico de órgãos, o Estatuto da Criança e do Adolescente também é fonte de tipificação em território nacional.
Outra forma de tipificar o tráfico de órgãos é através da Lei 12.850/2013(BRASIL, 2013), a qual versa sobre organizações criminosas e pode ser associada a tal ato uma vez que na maioria dos casos de tráfico de órgãos há uma rede organizada que atua nesse ponto.
Esta lei, no capítulo I, artigo 1º afirma que
Art. 1o Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado.
§ 1o Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
Nota-se que ao definir o que se trata por organização criminosa, a legislação esclarece sobre o agrupamento de pessoas com fins ilícitos com a intenção de obter vantagens. É observado também que tal prática pode ser considerada aplicável nos casos de tráfico de órgãos mediante a eminência do caso e a associação a casos de tráfico de pessoas com redes especializadas na prática.
Sobre isto, Gomes (2018) afirma que as associações criminosas que atuam na máfia do tráfico de órgãos devem ser reconhecidas mediante sua atuação ilícita frente à dignidade da pessoa humana e a prática de atos criminosos que atuam diretamente contra pessoas, que em geral encontram-se em condição de vulnerabilidade e que, em razão dela, são submetidas à situações como o tráfico de pessoas e por conseguinte ao tráfico de órgãos.
Observa-se que ainda que povoe o imaginário coletivo, as associações voltadas para o tráfico de pessoas são cada vez mais identificadas como grupamentos de indivíduos atuantes neste nicho, sendo de suma importância a intervenção legal para a identificação e criminalização das mesmas.
Com o estudo acerca do ordenamento jurídico brasileiro no que tange ao tráfico de drogas foi possível evidenciar uma série de questões que necessitam de compreensão, uma vez que amparam os questionamentos e a pesquisa mais aprofundada sobre a problemática.
Foi notado no primeiro documento que não há qualquer menção ao tráfico de órgãos em si, porém ao versar acerca do direito a vida, dignidade e outros assuntos sobre a vida humana, já se qualifica para embasamento de assuntos relacionados ao tema. Ao passo que foi verificado que a declaração específica sobre bioética tem em seu texto a especificidade do tráfico de órgãos, o que demonstra a necessidade em compreender este problema sob esta ótica em específico.
Na observância dos tratados internacionais, foi constatado que tanto o Protocolo de Palermo quanto a Declaração de Istambul são documentos importantes para verificação de determinações acerca do enfrentamento tanto do tráfico de pessoas para os mais diversos fins, quanto para o tráfico de órgãos em si, respectivamente.
Sobre o ordenamento jurídico brasileiro foi verificado que não há uma legislação exclusiva sobre o tráfico de órgãos, mas que leis diversas podem ser aplicadas como forma punitiva nesta problemática, como o Estatuto da Criança e do Adolescente por exemplo. Neste contexto também foi verificado que a Lei de Transplantes é considerada uma conquista valorosa, uma vez que no seu corpo também explicita questões pertinentes à problemática.
Assim, é possível afirmar ao fim desta pesquisa que se faz necessária uma melhor investidura no âmbito jurídico brasileiro no que tange à problemática do tráfico de órgãos, uma vez que, mesmo sendo notada uma melhoria neste aspecto com visível interesse em embasar legalmente as punições à tal prática, ainda não há uma determinação legal que ampare de forma mais rígida ações de enfrentamento de caráter tanto preventivo quanto punitivo.
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Graduando(a) do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NERIS, Fabricio Da Silva. Tráfico de órgãos humanos e a violação ao ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2021, 05:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57660/trfico-de-rgos-humanos-e-a-violao-ao-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 nov 2024.
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