RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo estudar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas no direito brasileiro sob a perspectiva da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas é assunto há muito debatido no âmbito da doutrina e dos tribunais e desafia a teoria clássica do delito. No direito brasileiro, está prevista no art. 225, § 3º da Constituição Federal e foi regulamentada pela lei nº 9.605/98. O Superior Tribunal de Justiça possuía entendimento de que para que uma pessoa jurídica fosse responsabilizada penalmente seria necessário a aplicação da teoria da dupla imputação. Esse cenário foi alterado com julgamento do Recurso Extraordinário nº 548.181/PR, no qual estabeleceu-se que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é independente da responsabilidade penal das pessoas físicas. Essa nova perspectiva enseja a revisão da teoria do crime para que possa compreender os crimes praticados por esse entes.
Palavras-chave: responsabilidade penal, pessoa jurídica, teoria do crime, Constituição Federal, Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo realizar uma análise sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, apresentando as bases teóricas em que se funda, assim como as correntes doutrinárias que se posicionam contra e a favor, e o atual entendimento dos tribunais superiores sobre a matéria.
Em primeiro momento será feito um estudo sobre a natureza das pessoas jurídicas tendo como norte as teorias da ficção legal e da realidade técnica, cunhadas no âmbito do direito privado.
Posteriormente serão estudados os sistemas francês, anglo-saxão e espanhol de responsabilidade penal das pessoas jurídicas, apontando os respectivos marcos legais e delineando as peculiaridades de cada um.
Já com foco no direito brasileiro, serão apresentados os fundamentos legais e constitucionais sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, assim como os entendimentos doutrinários diante de tais preceitos.
Ultrapassado esse aspecto, empreender-se-á uma incursão sobre a possibilidade de se atribuir responsabilidade penal às pessoas jurídicas sob o ponto de vista da conduta, da culpabilidade e do princípio da personalidade da pena.
Por derradeiro, será apresentado o novo paradigma da responsabilidade penal das pessoas jurídicas tendo em vista a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Em sede conclusiva, serão expostas as impressões alcançadas diante do estudo realizado ao longo do trabalho, assim como a repercussão desse novo entendimento diante da tradicional teoria do crime.
2 NATUREZA DAS PESSOAS JURÍDICAS
As pessoas jurídicas foram idealizadas e criadas para atender as necessidades humanas em vários aspectos de sua vida social, tais como a produção de riquezas, fé, caridade e recreação.
Para atingir tais finalidades e permitir a atuação do homem por meio dessas entidades, a elas a lei atribuiu personalidade jurídica distinta da dos seus integrantes, possibilitando, assim, que as pessoas jurídicas se tornassem sujeito de direitos e obrigações na ordem civil.
O questionamento sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas remete à discussão sobre a natureza jurídica dessas entidades. Nesse aspecto Eugênio Raul Zaffaroni[1] esclarece:
Pode-se afirmar, portanto, que o debate ao redor deste tema, (responsabilidade ou irresponsabilidade) reproduz em boa parte no direito penal a antiga discussão do direito privado acerca da teoria da realidade (GIERKE) ou da ficção (SAVIGNY) a respeito das pessoas jurídicas (tradução livre).
No entanto, nem sempre há uma relação entre a teoria da realidade e responsabilidade e teoria da ficção e irresponsabilidade, conforme se depreende do ordenamento jurídico de outros países.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, apesar de prevalecer a teoria da ficção, é admitida a responsabilidade penal. De outro modo nos países em que é adotado o Civil Law, de uma forma geral, em que predomina a adoção da teoria da realidade, o direito não caminhou para reconhecer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas[2].
Entre os países que adotam o Civil Law excetua-se a França que passou a admitir a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. No direito francês há uma estreita correlação entre a adoção da teoria da realidade objetiva e a responsabilidade penal. Assim, uma vez reconhecido que as pessoas jurídicas são reais, e não mera ficção, e possuem, portanto, vontade própria, nada obsta que a elas também seja imputável um ilícito penal.
A respeito da natureza jurídica dessas entidades, Sílvio Rodrigues[3] aponta quatro principais teorias: a) ficção legal; b) realidade objetiva; c) realidade técnica; d) institucionalista de Hauriou.
Não obstante, para o presente trabalho mostra-se relevante apenas o estudo das duas principais teorias: teoria da ficção legal e teoria da realidade objetiva.
2.1 Teoria da ficção legal
Para a teoria da ficção legal, defendida por Savigny, a personalidade da pessoa jurídica seria uma abstração, artificialmente criada pela lei e por isso mesmo considerada uma ficção legal. Careceria, desse modo, de uma existência real[4].
Paulo Nader[5] acrescenta que a teoria da ficção tem suas bases no direito Canônico e esclarece:
A premissa de pensamento consiste na ideia de que é preciso ser pessoa natural para possuir direitos e contrair deveres. O conjunto de pessoas, por natureza, não possui personalidade jurídica. Esta lhe é conferida por lei e como ficção. As pessoas jurídicas configuram procedimento técnico, artificial, pois são seres irreais, imaginários. A mesma ficção que leva o Estado a negar a personalidade jurídica a determinadas classes de pessoas, como a dos escravos, ou, como no passado, aos estrangeiros, e a atribuir a seres não humanos aqueles atributos, pode aplicar-se a grupos de pessoas.
Desse modo, as pessoas jurídicas não possuiriam uma existência real, mas somente legal, sendo obra apenas do intelecto humano. Portanto, a lei lhe reconheceria existência e lhe atribuiria personalidade jurídica somente como instrumento de atuação do próprio homem e para a consecução dos seus fins, mas não porque existente no plano real.
Sob a perspectiva do direito penal, para essa teoria, a pessoa jurídica não poderia ser sujeito ativo de um crime uma vez que consistiria em mera abstração legal. Ademais a sua vontade decorreria da vontade de um representante ou de um certo número destes. Assim, os crimes a princípio imputáveis à pessoa jurídica, são, em última análise, praticados sempre pelas pessoas físicas que a integram, sendo irrelevante, para tanto, que a motivação do ilícito seja o interesse perseguido pela corporação[6].
2.2 Teoria da realidade objetiva
A teoria da realidade objetiva, também denominada de orgânica, teve entre seus idealizadores a presença de Otto von Gierke, Regelsberg, Endermann, Mitteis e Von Büllow.
Essa corrente, de modo diametralmente oposto à teoria da ficção, preceitua que a pessoa jurídica não é mera ficção legal, mas uma realidade viva equiparável a uma pessoa física. Do mesmo modo que as pessoas físicas, elas são providas de vontade que é expressada por meio de seus órgãos. Assim, excetuando-se as relações que por sua natureza são incompatíveis com as pessoas jurídicas, em tudo sua capacidade se assemelha a das pessoas físicas.
A esse respeito, Caio Mário da Silva Pereira[7] ensina que:
Diante desta situação, advém a conveniência de aceitar o jurista a personalidade real destes seres criados para atuar no campo do direito, e admitir que são dotados de personalidade e providos de capacidade e de existência independente, em inteira semelhança com a pessoa natural, como esta vivendo e procedendo, como esta sujeito ativo ou passivo das relações jurídicas. Não há necessidade de criar artifícios nem de buscar alhures a sede de sua capacidade de direito. Ao revés, a pessoa jurídica tem em si, como tal a sua própria personalidade, exprime a sua própria vontade, é titular de seus próprios direitos, e, portanto, é uma realidade no mundo jurídico.
Desse modo, aplicando-se a teoria da realidade objetiva ao direito penal, pode-se concluir que por ser detentora de vontade própria, a pessoa jurídica está apta a ser o sujeito ativo de um crime, não se diferenciando, assim, de uma pessoa física[8]. Atualmente, no direito privado, tem prevalecido essa teoria, entendendo-se a pessoa jurídica com uma realidade e não apenas como mera ficção[9].
3 SISTEMAS DE RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS JURÍDICAS
No presente tópico serão abordados os principais sistemas de responsabilidade da pessoa jurídica (sistema francês, sistema anglo-saxão e sistema espanhol) ressaltando-se suas características e distinções.
3.1 Sistema francês
Em 1994, com a entrada em vigor do Código Penal de 1992, a França passa a admitir de forma definitiva a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Assim, o art. 121-2 do Código Penal Francês dispõe: “As pessoas morais, com exclusão do Estado, são responsáveis penalmente segundo as regras dos arts. 121-4 a 121-7 e nos casos previsto pelos seus órgãos ou representantes”[10].
Desse modo, todas as pessoas jurídicas podem ser responsabilizadas criminalmente, excetuando-se o Estado e as coletividades territoriais, podendo estas responderem penalmente nos casos de concessão de serviço público.
É mister observar que o direito francês cuidou de adaptar sua legislação à nova realidade jurídica, de modo que se tornasse coerente a nova disposição do Código Penal, consagrando-se nessas alterações inclusive normas de caráter processual. Essas alterações foram implementadas de forma substancial pela Lei nº 92-1336/92 (Lei de adaptação) e pelo decreto 93-726/93 (dispõe sobre a execução das penas aplicáveis às pessoas jurídicas)[11].
Ressalte-se que em razão do princípio da especialidade, desdobramento do princípio da legalidade, as pessoas jurídicas somente podem ser responsabilizadas pelos crimes nos quais haja previsão expressa, algo similar a sistemática dos crimes culposos no direito brasileiro.
Assim, a legislação penal francesa elenca uma série de ilícitos que podem ser praticados por esses entes, conforme esclarece Luiz Regis Prado[12]:
Nesse sentido, o Código Penal e leis especiais elencam uma série de infrações, utilizando a técnica legislativa que se segue: o crime contra a humanidade vem insculpido no artigo 212-1, e o artigo 213-3 do Código Penal reza que as pessoas morais podem ser declaradas responsáveis penalmente por crimes contra a humanidade. De sorte que vem ela referida para um grande número de delitos e de contravenções, tais como: homicídio culposo (art. 221-7, CP); lesão corporal culposa (art. 222-21, CP); tráfico de entorpecentes (art. 222-42, CP); racismo (art. 225-4, CP); lenocínio e tráfico de mulheres (art. 225-12, CP); furto (art. 311-16, CP); extorsão (art. 312-15, CP); estelionato (art. 313-9, CP); apropriação indébita (art. 314-12, CP); receptação (art. 321-12, CP); atentado aos sistemas de tratamento automatizado de dados (art. 323-6, CP); traição, espionagem, terrorismo (arts. 414-7, 422-5, CP); corrupção ativa, tráfico de influência, usurpação de funções (art. 433-25); crimes de falsidade (arts. 441-12, 442-14, 443-8, CP); crimes contra a administração da justiça (art. 434-47); violação de disposições relativas à venda e à troca (arts. R 633-1 a R 633-3); abandono de lixo e rejeitos (arts. R 632-1, R 635-8); infrações ao Código de Mineração (art. 143, CM); direito autoral (art. 335-8, Código da Propriedade Intelectual); infrações econômicas em matéria de concorrência e de preço (art. 52-2, Ordenação 86-1243); infrações em matéria de tratamento de dejetos (art. 24-1 da Lei 75-633); poluição hídrica (art. 28-1 da Lei 92-3) e atmosférica (art. 7-1 da Lei 61-842); infrações em matéria de pesquisa biomédica (art. L 209-19-1 do Código da Saúde Pública); trabalho clandestino (art. L 364-6 do Código do Trabalho) e emprego ilegal de mão de obra estrangeira (art. L 364-10 do Código do Trabalho).
Além de previsão expressa na lei, para a responsabilização penal das pessoas jurídicas devem concorrer duas condições: o crime ser praticado por órgão ou representante da pessoa jurídica e a infração ter sido praticada à sua conta, compreendendo-se essa expressão como a atuação no interesse daquela[13].
Tais condições caracterizam o que se denomina responsabilidade penal por ricochete, na precisa lição de Luiz Regis Prado[14]:
Trata-se da teoria da responsabilidade penal por ricochete, de empréstimo, subsequente ou por procuração, que é explicada através do mecanismo denominado emprunt de criminalité, feito à pessoa física pela pessoa jurídica, e que tem como suporte obrigatório à intervenção humana. Noutro dizer: a responsabilidade penal da pessoa moral está condicionada à pratica de um fato punível suscetível de ser reprovado a uma pessoa física. Desse caráter subsequente ou de empréstimo resulta importante consequência: a infração penal imputada a uma pessoa jurídica será quase sempre igualmente imputável a uma pessoa física. Isso quer dizer: a responsabilidade da primeira pressupõe a da segunda'. É exatamente essa simbiose entre pessoa física e jurídica que legitima o empréstimo de criminalidade. A pessoa física personifica a jurídica (órgãos ou representantes), é onipresente, como sua consciência e cérebro. Todavia, não vale a assertiva para as infrações culposas ou contravencionais: aqui é possível a imputação direta à pessoa jurídica, sem o concurso de uma pessoa natural.
Observa-se, portanto, que o coeficiente subjetivo de culpabilidade é atendido pelo que o autor denomina de responsabilidade penal por ricochete ou por empréstimo, em que a vontade da pessoa jurídica coincide com a da pessoa física que a representa.
No que tange às sanções, o Código Penal Francês elencou um rol de penas aplicáveis às pessoas jurídicas:
Como não poderia deixar de ser, o Código Penal gaulês estatui expressamente um rol de sanções criminais aplicáveis à pessoa jurídica (art.131-39, CPF). Afirma-se a primazia, entre os objetivos da pena, no novo texto penal, da intimidação e retribuição. Entre as sanções podem ser mencionadas as seguintes: a multa (cujo máximo é o quíntuplo do previsto para a pessoa física); a interdição definitiva ou temporária de exercer uma ou várias atividades profissionais ou sociais; o controle judiciário por cinco anos ou mais; o fechamento definitivo ou temporário do estabelecimento utilizado para a prática do delito; a exclusão definitiva ou temporária dos mercados públicos; a interdição por cinco anos ou mais do direito de emitir cheques; a confiscação do objeto do crime; a publicação da decisão judicial e a dissolução. Esta última é reservada para as infrações mais graves (v.g., crime contra a humanidade, tráfico de drogas, estelionato, extorsão, terrorismo, moeda falsa).
Ademais restaram vedadas as penas de dissolução e de controle judiciário das pessoas jurídicas de direito público, dos partidos políticos e dos sindicatos profissionais.
3.2 Sistema anglo-saxão
No direito anglo-saxão a responsabilidade penal das pessoas jurídicas teve sua origem nos tribunais ingleses, os quais, em primeiro momento só a admitiam para os crimes omissivos culposos (non feasance) e mais tarde para os crimes comissivos dolosos (misfeasance)[15].
Somente em 1889, por meio do interpretation act[16] a responsabilidade penal das pessoas jurídicas foi incorporada à legislação inglesa, que passou a compreender dentro do termo “pessoas” não só as pessoas naturais, mas também os entes coletivos:
2- (1.) Na interpretação das leis aplicáveis a um delito punível em sede de acusação ou depois de condenação sumária, se contido em uma lei aprovada antes ou depois da vigência desta Lei, a expressão "pessoa" deve, salvo disposição expressa em contrário, incluir uma pessoa coletiva (tradução livre).
Inicialmente, somente se aplicava a responsabilidade das pessoas jurídicas às infrações punidas com sanções menos graves e que não dependiam da comprovação de culpa, regulatory offences (public welfare offences). Somente em 1940 foi ampliado o rol de infrações a que as pessoas jurídicas estariam sujeitas, alcançando os crimes de qualquer natureza desde que compatíveis com a sua condição [17].
Para a responsabilização das pessoas jurídicas o direito inglês, em regra, exige os elementos objetivo (actus reus) e subjetivo (mens rea) do crime. Não obstante, em certos casos, admite a responsabilidade penal objetiva – strict liability, (independentemente de dolo ou culpa) e também por fato de terceiro (vicarious liability), o que, em última análise, também consiste em responsabilidade penal objetiva.
Para a imputação de um delito, levando em consideração o elemento subjetivo, da pessoa jurídica adota-se a teoria da identificação (identification theory). Nesse aspecto vale-se mais uma vez das lições de Luis Regis Prado[18]:
Para se imputar a prática de um fato punível e o eventual elemento subjetivo (vontade) à pessoa jurídica é indispensável uma ação ou omissão do ser humano. Isso impõe que se lance mão de um artifício para atribuir à pessoa jurídica os atos de uma pessoa física: “um salto” da pessoa física para a jurídica. O fundamento penal encontrado está na teoria da identificação (identification theory) – identificação do controlling mind –, originária da jurisprudência cível (acórdão da House of Lords, 1915), que acabou por alcançar a área criminal, em 1944. O juiz ou tribunal deve procurar identificar a pessoa que “não seja um empregado ou agente, cuja sociedade seja responsável pelo fato em decorrência de uma relação hierárquica, mas qualquer um que a torne responsável porque o ato incriminado é o próprio ato da sociedade”. Tem-se, portanto, que a pessoa natural “não fala, não atua para a sociedade; ela atua enquanto sociedade, e a vontade que dirige suas ações é a vontade da própria sociedade”. Ela é a personificação do ente coletivo; sua vontade é a vontade dele. Como examinado, essa doutrina deu lugar à ideia de que a culpa de certas pessoas físicas pode ser imputada a uma pessoa jurídica como sua culpa própria ou pessoal (personal liability), numa verdadeira e total identificação.
Nos Estados Unidos, de modo geral, a responsabilização criminal das pessoas jurídicas segue sistemática similar ao direito inglês, conforme é possível se depreender das disposições do Código Criminal Federal[19]:
Art. 402. 1. Definição da responsabilidade. Uma sociedade anônima (corporation) pode ser penalmente condenada por: a) qualquer delito praticado na realização dos negócios, sobre a base de uma conduta executada, autorizada, estimulada, ordenada, ratificada ou imprudentemente tolerada, em transgressão a um dever de manter uma supervisão efetiva sobre as atividades de uma das pessoas que em seguida são enumeradas, ou um acordo de mais de uma delas.
Art. 403. Outras sociedades ou associações. Uma sociedade ou associação pode ser penalmente condenada nas circunstâncias exigidas pelo art. 402, em relação às sociedades anônimas.
O Model Penal Code, desenvolvido pelo American Law Institute, cujo objetivo é estimular e auxiliar a padronização da legislação penal americana, alinha-se às disposições do Código Criminal Federal[20]: “Art. 2.07.1. Uma sociedade anônima pode ser condenada pela prática de um delito se: c) a prática do delito foi autorizada, solicitada, ordenada, ou executada pela direção ou por um alto funcionário (gerente) atuando em representação da sociedade e durante o emprego” (tradução livre).
3.3 Sistema espanhol
Na Espanha, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas foi regulada pela primeira vez no art. 31 bis do Código Penal de 2010, instituído pela Ley Orgânica/2010, que reformou o Código Penal de 1995[21].
Artigo 31 bis.
1. Nos casos previstos neste Código, as pessoas jurídicas são criminalmente responsáveis:
a) pelos crimes cometidos em nome ou por conta destas, e em seu benefício direto ou indireto, por seus representantes legais ou por aqueles que atuando individualmente ou na qualidade de membro de um órgão da pessoa jurídica, estão autorizados a tomar decisões ou ostentem poderes de organização e controle.
b) pelos crimes cometidos no exercício de atividades sociais, por conta e em benefício direto ou indireto destas, por quem, estando sob a autoridade dos indivíduos mencionados no parágrafo anterior, podiam praticar atos que violem gravemente os deveres de supervisão, vigilância e controle da respectiva atividade observadas circunstâncias específicas do caso.
2. Se o crime foi cometido pelas pessoas mencionadas na alínea a) do item anterior, a pessoa jurídica não será responsável se estiverem reunidas as seguintes condições:
1ª o órgão de administração tenha adotado e executado com eficácia, antes que o crime tenha sido cometido, modelos organizacionais e de gestão, que incluem medidas de vigilância e controle aptas a prevenir crimes da mesma natureza ou de reduzir significativamente o risco da sua prática;
2ª a supervisão do funcionamento e cumprimento do modelo de prevenção implementadas tenha sido atribuídos a um órgão da pessoa jurídica, com poderes autônomos de iniciativa e controle ou que possua o encargo legal de supervisionar a efetividade dos controles internos pessoa jurídica;
3ª os autores individuais ter cometido o crime violando de forma fraudulenta de os modelos de organização e de prevenção e;
4ª não tenha havido uma omissão ou exercício insuficiente das respectivas funções de supervisão, vigilância e controle por parte do organismo ao qual se refere a condição 2ª.
Nos casos em que as circunstâncias acima referidas anteriormente apenas possam ser parcialmente acreditadas, tal fato será avaliado para fins de atenuação da pena.
3. Nas pessoas jurídicas de pequenas dimensões, as funções de supervisão a que ser refere a condição 2ª do item 2 poderão ser assumidas diretamente pelo órgão de administração. Para estes fins, são pessoas jurídicas de pequena dimensão aquelas que, pela lei aplicável, estão autorizadas a apresentar relatórios abreviados de ganhos e perdas.
4. Se o delito foi cometido pelas pessoas mencionadas na alínea b) do item 1, a pessoa jurídica não será responsável se, antes do crime, adotou e implementou um modelo eficaz organização e gestão que é adequado para prevenir crimes da natureza dos que foram cometidos ou para reduzir significativamente o risco de sua prática.
Neste caso, também será aplicável atenuação prevista no parágrafo segundo do item 2 do presente artigo. (tradução livre)
Desse modo, o Código Penal espanhol estabelece a responsabilidade penal das pessoas jurídicas para dois casos. Em um primeiro momento a pessoa jurídica responde pelos atos praticados pelas pessoas que possuem o poder de direção da entidade. No segundo momento a responsabilidade é atribuída às pessoas jurídicas em razão dos atos praticados pelas pessoas físicas que estejam no exercício das atividades sociais, por conta e em proveito desta, nos casos em que os administradores ou representantes legais não tenham cumprido o respectivo dever de controle e supervisão, considerando-se as circunstâncias do caso.[22]
Na Espanha, a exemplo do que ocorreu na França, adotou-se o princípio da especialidade para a responsabilização das pessoas jurídicas, de modo que estas somente estão sujeitas aos crimes aos quais a lei expressamente se refere. Aqui também restou excluída responsabilidade penal do Estado.
Diferentemente do Direito Penal Francês, o Código Penal Espanhol não previu a responsabilidade penal das pessoas jurídicas para os crimes culposos.
Para Luiz Regis Prado, tratando-se de um modelo de responsabilidade penal indireta (por atribuição), o Código Penal espanhol instituiu um verdadeiro modelo de responsabilidade por fato alheio, que o seria incompatível o a definição legal de crime prevista no art. 10 daquele diploma legal[23].
4 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS DA RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS JURÍDICAS NO DIREITO BRASILEIRO
A responsabilidade penal das pessoas jurídicas encontra fundamento de forma expressa no art. 225, § 3º da Constituição da República[24], com o seguinte teor: “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.
De forma menos expressa, o art. 173, §5º da Constituição
República estabelece a responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular nos seguintes termos: “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.
A doutrina tem se divido a respeito do entendimento a ser adotado diante de ambos dispositivos constitucionais, mormente o art. 225, §3º.
Arthur Migliari[25] entende que a Constituição consagrou a responsabilidade penal das pessoas jurídicas[26], verbis:
O que se tem é uma nova ordem constitucional permitindo que, nos casos específicos previsto na Constituição Federal (arts. 173 e 225), para que possa aumentar o leque de atuação do Direito Penal, se atinja a pessoa jurídica, em sua responsabilidade penal, juntamente com a de seus dirigentes (art. 2º).
(…)
Desse modo, com a modificação preexistente na Constituição Federal, abrindo o leque de opções para a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, nos artigos 173 e 225, nada mais coerente que as normas infraconstitucionais fossem adaptadas ao preceito maior insculpido na Constituição, já que os preceitos do Código Penal e legislações extravagantes são perfeitamente adaptáveis, as quais, aliás, devem estar sempre ajustadas ao quadro maior previsto na Carta Política de um pais.
Luis Regis Prado, por sua vez, adota posicionamento em sentido contrário. Sustenta que a própria norma teria estabelecido uma correlação significativa - conduta/pessoa física, atividade/pessoa jurídica. Desse modo, apenas as pessoas físicas poderiam praticar crimes, uma vez que somente elas possuem consciência e vontade, integrantes da conduta. As pessoas jurídicas, de outro modo, não praticam condutas, mas desenvolve uma atividade, que, em caso de violação à lei, podem sofrer a aplicação de uma sanção administrativa[27].
Esta conclusão seria corroborada pelo disposto no art. 173, § 5º da Constituição da República ao dispor que as pessoas jurídicas sujeitam-se às punições que sejam compatíveis com a sua natureza, não se enquadrando nessa dimensão, portanto, as sanções penais.
Acrescenta, ainda, que este entendimento guarda pertinência com a principiologia constitucional, ressaltando-se os princípios da culpabilidade e da personalidade, e que, em razão disto, o art. 3º da Lei nº 9.605/98[28] afigura-se inconstitucional[29]:
Não obstante, em rigor, diante da configuração do ordenamento jurídico brasileiro – em especial do subsistema penal – e dos princípios constitucionais penais que o regem (v.g princípios da personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima etc). E que são reafirmados pela vigência daquele, fica extremamente difícil não admitir a inconstitucionalidade desse artigo, exemplo claro da responsabilidade penal por fato alheio.
Aderindo ao coro dos que não admitem a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas na Constituição da República, René Ariel Dotti[30] se manifesta nos seguintes termos:
(…)
Logo a criminalização da pessoa jurídica, como forma de responsabilidade penal impessoal é inconstitucional: as normas do art. 173, §5º e do art. 225, § 3º da Constituição, não instituíram – nem autorizaram o legislador ordinário a instituir – a exceção da responsabilidade penal da pessoa jurídica.
(…)
Rebatendo a argumentação de que a Constituição teria estabelecido uma correlação significativa entre conduta e pessoa física e atividade e pessoa jurídica, posicionamento adotado por Luis Regis prado, Fernando Galvão[31] aduz que em uma interpretação lógico sistemática ou teleológica tal ponto de vista não se sustenta:
A estrutura do dispositivo deixa claro que os infratores estarão sujeitos a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Em aposto explicativo, fica esclarecido que os infratores podem ser pessoas físicas ou jurídicas. Por outro lado, o entendimento de que a Constituição teria deferido tratamento distinto às pessoas físicas e jurídicas levaria a concluir, também, que as responsabilidades da pessoa física ficariam restritas às sanções penais e a obrigação de reparar os danos. O que não é correto. Com certeza a pessoa física pode ser responsabilizada administrativamente pela lesão ao meio ambiente. Prova disto são as multas instituídas pelo Decreto 3.179, de 21 de setembro de 1999, que regulamenta a Lei º 9.605/98 e estabelece os parâmetros da responsabilidade administrativa para os casos de lesão ao meio ambiente.
Não obstante os debates acadêmicos sobre a existência de previsão constitucional para a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, foi editada a Lei nº 9.605/98 (Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências) cujo o art. 3º possui o seguinte teor: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”.
O art. 21 da mesma Lei estabelece que são aplicáveis às pessoas jurídicas as penas de multa, restritivas de direito e prestação de serviços à comunidade.
O art. 22, por sua vez, discrimina como restritivas de direito as seguintes penas: a) suspensão parcial ou total de atividades; b) interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; c) proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações.
O art. 23 fixa como penas de prestação de serviços à comunidade as seguintes: a) custeio de programas e de projetos ambientais; b) execução de obras de recuperação de áreas degradadas; c) manutenção de espaços públicos e; d) contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.
Encerrando o tratamento das penas aplicáveis às pessoas jurídicas o art. 24 da Lei estabelece que:
Art. 24 A pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional.
É importante observar que a Lei nº 9.605/2005 não trouxe nos tipos penais o preceito secundário referente às pessoas jurídicas (fixação de pena), mas somente para as pessoas físicas.
Ademais, ao estabelecer as penas aplicáveis às pessoas jurídicas (art. 21), deixou de estabelecer os critérios de aplicação e os limites mínimos e máximos das sanções elencadas.
A respeito disso, Luís Paulo Sirvinskas argumenta[32]:
Não constam nos tipos penais as penas aplicáveis às pessoas jurídicas, mas só às pessoas físicas. Assim, como aplicar as penas contidas na parte geral da lei às pessoas jurídicas? Como fazer a integração da parte geral à parte especial? Como fazer a dosimetria da pena? O legislador não estaria colocando nas mãos do juiz um poder que não lhe incumbe ao permitir fazer a integração das penas contidas na parte geral à parte especial? O Juiz não poderia impor a pena à pessoa jurídica sem respeitar um patamar entre o mínimo e o máximo, podendo, inclusive, determinar o fechamento da empresa com consequências graves e irreversíveis à sociedade? A pessoa jurídica não tem direito de saber de antemão a pena aplicável entre o mínimo e um máximo, bem como os tipos penais atribuídos à pessoa jurídica? As penas atribuídas às pessoas jurídicas seriam substitutivas das penas privativas de liberdade contidas na parte especial? Essa falta de integração não estaria ferindo o princípio da legalidade e da proporcionalidade da pena?
Além de atentar contra os princípios da legalidade e da proporcionalidade, a sistemática adotada pela Lei 9.605/1998, ofende, em última análise o princípio da individualização da pena.
Nesse aspecto, insta esclarecer que a individualização da pena ocorre em três momentos distintos.
Primeiramente a lei deve prever para cada um dos tipos penais a pena e o quantum em abstrato é aplicável (individualização legislativa). Ex: “Art. 55. Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa”.
No segundo momento, o juiz, dentro dos parâmetros legalmente previstos, deve aplicar a pena que reputa mais adequada ao caso (individualização judicial).
Por último, em sede de execução, a pena deve ser cumprida de acordo com as particularidades do réu e o seu desempenho durante o cumprimento (individualização executória). Ex: progressão de regime, liberdade condicional, remição da pena[33].
Desse modo, constata-se que a Lei nº 9.605/2005 violou o princípio da individualização da pena em sua perspectiva legislativa, o que, inexoravelmente, repercute nas demais instâncias, judicial e executória.
Além disso, de forma diversa o do que ocorreu no Código Penal Francês, não foi adotado o princípio da especialidade, no qual se estabelece expressamente quais os crimes são aplicáveis às pessoas jurídicas. Desse modo, parte-se do pressuposto de que as pessoas jurídicas estão sujeitas a todos os crimes previstos na Lei 9.605/2005, o que acarreta insegurança jurídica tendo em vista o casuísmo em se identificar quais crimes poderiam ser praticados por pessoas jurídicas (crimes compatíveis a respectiva natureza).
Outro aspecto que o legislador brasileiro passou ao largo refere-se à criação de uma norma processual específica para os crimes praticados pelas pessoas jurídicas. Mais uma vez serve como parâmetro o Direito Francês.
Na França foi editada a denominada Lei de Adaptação (Lei nº 92-1336/1992) cujo escopo cingia-se à harmonização processual à responsabilização penal das pessoas jurídicas.
A ausência de normas processuais específicas levanta uma série de indagações que podem colocar em risco o princípio constitucional do devido processo legal. René Ariel Dotti[34] apresenta as seguintes questões:
(…)
Quem prestará em nome do “réu” ou da “ré” o interrogatório? Ou o sistema legal dispensará em tal hipótese o interrogatório que, além de meio geral de prova é, também um elemento de defesa? Como se tornará efetiva a investigação policial ou mesmo a instrução criminal se a pessoa jurídica tiver vários centros de atividade e que o fato típico tenha sido gerado por mais de um deles? Quais as testemunhas a serem ouvidas, principalmente se a ré tiver também domicílio em outras comarcas do Estado e do País? E se for transnacional?
(…)
Sob o prisma das garantias constitucionais, Sérgio Salomão Shecaria[35] perquiri:
(...)
O réu, diferentemente da testemunha ou do perito, não está obrigado a dizer a verdade. Entretanto, no interrogatório da pessoa jurídica, realizado com a oitiva de seu representante legal ou até por preposto, estaria ele resguardado pelas garantias constitucionais da ampla defesa ou figuraria como simples testemunha, sujeita ao cometimento de crime caso calasse ou faltasse com a verdade?
(…)
Para essas e outras indagações Ada Pellegrini Grinover apresentou uma série de respostas e concluiu:
Em conclusão, parece que nenhuma falta fez a ausência de regras processuais específicas quanto à responsabilização penal da pessoa jurídica. O ordenamento jurídico deve ser visto com um todo e nele se encontram as respostas adequadas para o tratamento da questão, observadas, naturalmente, as diferenças que existem entre as diversas disciplinas.
Observa-se, portanto, que a despeito da responsabilidade penal das pessoas jurídicas para os crimes ambientais ter sido implantada no direito brasileiro, a legislação correspondente carece de mecanismos que proporcionem maior segurança jurídica, assegurem os direitos e garantias fundamentais e lhe confiram maior eficácia.
Por derradeiro, no tange ao art. 173, § 5º da norma constitucional, ainda recai dúvidas contundentes se com essa previsão quis também o legislador possibilitar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas para os crimes praticados em detrimento da ordem econômica e financeira e contra a economia popular, fato que inequivocamente contribuiu para não ter sido editada lei a respeito do tema.
5 A POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DAS PESSOAS JURÍDICAS SOB O PONTO E VISTA DA CONDUTA, DA CULPABILIDADE E DO PRINCÍPIO DA PERSONALIDASDE DA PENA
A análise sobre a possibilidade de se atribuir responsabilidade penal às pessoas jurídicas encontra obstáculos, segundo parte da doutrina[36], num contraponto com a teoria do crime, há muito cunhada no direito penal, mormente no que diz respeito aos aspectos da conduta, culpabilidade, e personalidade da pena, razão pela qual serão objeto desse estudo.
5.1 Conduta
A conduta, pode ser conceituada como ação ou comportamento humano. Rogério[37] Greco apresenta o seguinte conceito:
A ação, ou conduta, compreende qualquer comportamento humano comissivo (positivo) ou omissivo (negativo), podendo ser ainda dolosa (quando o agente quer ou assume o risco de produzir o resultado) ou culposa (quando o agente infringe o seu dever de cuidado, atuando com negligência, imprudência ou imperícia.
Calcado na premissa de que a conduta é um comportamento humano, Cézar Roberto Bitencourt nega a possibilidade da prática de crime pelas pessoas jurídicas. Esclarece que mesmo adotando uma perspectiva realista da pessoa jurídica não seria possível equiparar a vontade desta à vontade humana[38].
É importante observar que em muitos ordenamentos jurídicos que admitem a responsorialidade penal das pessoas jurídicas há uma vinculação entre esta e da pessoa física, sem a qual aquela não poderia sofrer sanção penal. É o que observa, por exemplo, no direito francês que expressamente adotou a teoria do ricochete.
Algo similar ocorria no Brasil por meio da teoria dupla imputação cunhada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o que restou alterado pelo julgamento Recurso Extraordinário nº 548.181/PR[39], em que a Suprema Corte brasileira desvinculou a responsabilidade penal das pessoas jurídicas da responsabilidade das pessoas físicas.
Na linha do que restou decidido pelo STF, Carlos Gómez-Jara Díez aduz que determinadas organizações atingem certo nível de complexidade que, assim como ocorre com o psique humano – passam a denotar caracteres de autorreferencialidade, autocondução e autodeterminação. Assim, o dolo e negligência empresarial estariam materializados em determinado conhecimento organizacional do risco empresarial. Desse modo, o conhecimento organizacional não seria caracterizado pela soma dos conhecimentos individuais das pessoas que integram a pessoa jurídica, mas pela relação entre esses elementos de conhecimento[40].
Nessa linha Sérgio Salomão Shecaira explica[41]:
Verifica-se então que este último, o sentimento pessoal, capaz de provocar ações individuais no indivíduo desligado do grupo, desaparece, e cede lugar a outro, ao sentimento coletivo, que é, também, capaz de provocar ações. Porém, como ambas as ações, a individual e a coletiva, se executam, objetivamente, por meio do homem, acontece que este poderá executar alguma, pela qual não seja responsável individualmente, porque ela é o resultado de uma necessidade coletiva. Esse raciocínio de Afonso Arinos permite pensar em uma vontade, não no sentido próprio com se atribui ao ser humano, resultante da existência natural, mas sim em um plano sociológico, eis que a existência da empresa decorre de sua formação surgida no seio da sociedade legítima.
Registre-se que essa perspectiva alinha-se aos preceitos da teoria realidade objetiva, já estudada em tópico específico, dado que a vontade da pessoa jurídica deve ser considerada totalmente impendente das pessoas físicas que a compõem ou administram, mostrando-se, dessa forma, não se tratar de mera ficção.
5.2 Culpabilidade
A culpabilidade, segundo a teoria tripartida, é o terceiro elemento do crime, sendo antecedido pela tipicidade e pela ilicitude (antijuridicidade), assim, não sendo culpável o autor do fato, não há que se falar em crime.
Segundo Cézar Roberto Bitencourt[42], a culpabilidade é uma reprovação pessoal do agente do fato considerada a possibilidade que possuía no momento da ação ou da omissão de determinar-se de outra maneira.
Na mesma linha, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli esclarecem que uma conduta é culpável quando é reprovável ao autor a realização desta conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse[43].
A doutrina em geral apresenta como elementos da culpabilidade os seguintes: imputabilidade, possibilidade de conhecimento da ilicitude (potencial consciência da ilicitude), exigibilidade de obediência ao direito (exigibilidade de conduta diversa).
A imputabilidade é a capacidade de ser culpável caracterizada por um aspecto cognoscivo e outro volitivo, ou seja, a capacidade de compreender como ilícita uma determinada conduta e de determinar a respectiva vontade diante dessa compreensão[44].
A possibilidade conhecimento da ilicitude, por sua vez, refere-se ao conhecimento da ilicitude do fato ou à possibilidade de atingir esse conhecimento. Inexistindo esse elemento aperfeiçoa-se o que se denomina erro de proibição (excludente de culpabilidade).[45]
Por derradeiro, a exigibilidade de obediência ao direito consubstancia-se pelo poder que o agente possuía ao tempo da ação ou da omissão de determina-se de acordo ou em desacordo com a norma jurídica[46].
Observa-se, portanto, que a culpabilidade, ao menos em sua concepção tradicional, está estritamente vinculada ao aspecto psicológico da conduta, o que seria de difícil compreensão quando o autor do ilícito for pessoa jurídica. Por esse motivo, parte da doutrina tem defendido que não seria possível imputar responsabilidade penal às pessoas jurídicas, já que carentes do elemento psicológico, inerente ao ser humano.
Por estarem atreladas ao aspecto psicológico do agente, a conduta e a culpabilidade na responsabilidade penal das pessoas jurídicas enfrentam dificuldade similar, qual seja a existência de consciência e vontade daquele ente, assim como a reprovabilidade do seu agir calcado nesses elementos.
Conforme será demonstrado no subtópico abaixo, a doutrina e a jurisprudência tem evoluído para superar essa aparente incompatibilidade entre a natureza da pessoa jurídica e a responsabilidade penal.
5.2.1 Conceito construtivista de culpabilidade empresarial
O conceito construtivista da culpabilidade empresarial, defendido por Carlos Gómez-Jara Díez[47], afastando-se da concepção tradicional de culpabilidade, está fundamentado na organização empresarial e na cultura empresarial de cumprimento das leis (compliance programs).
Para teoria construtivista da culpabilidade as pessoas jurídicas compõem-se de comunicações que fazem as vezes de consciência das pessoas naturais (equivalente funcional). Assim, os atos realizados dentro do contexto social sujeitam-se, se típicos e antijurídicos, a um juízo de reprovabilidade.
Desse modo, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas não estaria vinculada à responsabilização de uma pessoa física, consoante o que estabelecia a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça até o julgamento do Recurso Extraordinário nº 548.181/PR (teoria do ricochete do direito francês), já que aquelas são possuidoras de culpabilidade própria.
O autor defende que para ocorrer a responsabilidade penal das pessoas jurídicas deveriam ser respondidas as seguintes perguntas: 1) atuou a pessoa física na representação da pessoa jurídica; 2) atuou a pessoa física em benefício da pessoa jurídica; 3) possuía a pessoa jurídica uma organização adequada ao Direito; 4) possuía a pessoa jurídica uma cultura empresarial de cumprimento da legalidade ambiental.
Aduz que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, baseada na organização empresarial e na cultura empresarial é mais justa e mais eficaz:
É mais justo, porque distingue adequadamente entre cidadãos corporativos fiéis ao Direito e aqueles que não o são – seria injusto considerar iguais duas empresas, uma com um sistema de conformidade (compliance) efetivo, e outra que carece e qualquer compliance. E é eficaz porque ao permitir às empresas evitar a responsabilidade penal mediante uma organização correta e uma cultura de cumprimento da legalidade, estas realizarão grandes esforços para implementar sistemas de organização e cultura conformes às normas do Direito brasileiro.
Não se está aqui dizendo que o conceito de culpabilidade apresentado neste tópico está isento de críticas, mas que vai ao encontro do atual entendimento do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, adequando a tradicional teoria da culpabilidade a já positivada responsabilidade penal das pessoas jurídicas, sem a necessidade de se socorrer a um mecanismo de dupla imputação.
Por derradeiro, é de se observar que esse conceito já foi adotado na jurisprudência brasileira. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em julgamento da Apelação Criminal nº 0010064-78.2005.404.7200[48], apresentou de forma expressa, como fundamento da respectiva decisão, o conceito construtivista de culpabilidade. Na decisão o Tribunal afastou o sistema da dupla imputação (teoria do ricochete) para possibilitar a continuidade da ação penal somente em relação à pessoa jurídica, uma vez que a culpabilidade da pessoa física estava extinta em razão da ocorrência da prescrição.
Entendeu o Tribunal, adotando a doutrina de Carlos Gomez-Jara Diéz, que as pessoas jurídicas são “sujeitos de direito como sistemas autopoiéticos (sistemas autônomos e autorreferenciados), capazes de engendrar a si mesmos no contexto social e de interagir com base no todo comunicativo que integram”.
5.3 Princípio da personalidade da pena
O princípio da personalidade da pena encontra-se delineado no art. 5º, XLV da Constituição da República: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.
Pelo teor desse princípio a pena não poderá atingir pessoas diversas daquela a quem foi destinada. Cite-se por exemplo a pena de multa. Imposta a multa ao condenado, nenhuma outra pessoa poderá ser responsabilizada por ela, ainda que este não possua condições financeiras. O texto constitucional excetua duas hipóteses: a obrigação de reparar o dano e o perdimento de bens. A rigor, não se trata de exceções porque ainda nessas hipóteses a pena não atingirá o patrimônio de terceiro, mas sim aquele que pertencia ao de cujus.
Como visto, esse princípio é apresentado como obstáculo à atribuição de responsabilidade penal às pessoas jurídicas, uma vez que sua condenação poderia atingir indiretamente pessoas inocentes, a exemplo dos sócios que votaram contra decisão mas foram vencidos ou aqueles que não tiveram participação no cometimento do delito.
Em sentido contrário, Sérgio Salomão Shecaira[49] aduz que a existência desse princípio constitucional não afasta a repercussão indireta da condenação em terceiros, mesmo nos casos responsabilidade penal das pessoas físicas. Cita como exemplo a condenação de um pai que é arrimo de família. Uma vez preso, sua esposa e descendentes se veriam privados da renda que os sustenta. Do mesmo modo ocorreria na aplicação das penas de proibição de exercício de cargo, função ou atividade pública. Ocorreria também repercussão indireta da pena no caso de aplicação de multa que inevitavelmente recairiam sobre o patrimônio do casal.
De forma similar ocorreria nos casos de aplicação de pena às pessoas jurídicas. De forma indireta os sócios inocentes estariam sujeitos aos efeitos da pena aplicada à aquela.
Portanto, é forçoso reconhecer que o argumento de que a responsabilização penal das pessoas jurídicas afrontaria do princípio da personalidade da pena não se sustenta
Observa-se que o texto normativo buscou, em verdade, proibir a aplicação direta de penas a pessoas alheias a prática do delito, e não afastar a incidência indireta dos efeitos da pena em outras pessoas, o que na prática se mostraria pouco factível.
6 A RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS JURÍDICAS NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 548.181/PR E IMPLICAÇÕES NOS JULGAMENTOS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Conforme já dito alhures, o Superior Tribunal de Justiça, tendo vista o disposto no parágrafo único do art. 3º da lei nº 9.605/98, cunhou a denominada teoria da dupla imputação, que guarda similaridade com a teoria do ricochete do direito francês. Entendia aquela Corte que a pessoa jurídica deveria ser denunciada conjuntamente com a pessoa física, uma vez que aquela careceria de vontade própria, tomando-se por empréstimo, assim, o elemento subjetivo da pessoa física. A respeito do tema cita-se o seguinte arresto:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. ART. 38, DA LEI N.º 9.605/98. DENÚNCIA OFERECIDA SOMENTE CONTRA PESSOA JURÍDICA. ILEGALIDADE. RECURSO PROVIDO. PEDIDOS ALTERNATIVOS PREJUDICADOS. 1. Para a validade da tramitação de feito criminal em que se apura o cometimento de delito ambiental, na peça exordial devem ser denunciados tanto a pessoa jurídica como a pessoa física (sistema ou teoria da dupla imputação). Isso porque a responsabilização penal da pessoa jurídica não pode ser desassociada da pessoa física – quem pratica a conduta com elemento subjetivo próprio. 2. Oferecida denúncia somente contra a pessoa jurídica, falta pressuposto para que o processo-crime desenvolva-se corretamente[50].
(…)
Não obstante esse ter sido um entendimento que contou com a ampla aceitação dos tribunais brasileiros, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento realizado no Recurso Extraordinário nº 548.181/PR, de relatoria da Min. Rosa Weber, julgado em 06 de agosto de 2013, admitiu a responsabilização penal de pessoa jurídica independentemente da responsabilidade penal da pessoa física. Entendeu a Corte que a Constituição da República, ao atribuir responsabilidade penal às pessoas jurídicas, não a condicinou à responsabilidade penal simultânea dos respectivos dirigentes, o que implicaria indevida restrição a norma constitucional, verbis:
EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação. 2. As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta. 3. Condicionar a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental. 4. A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual. 5. Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido. (RE 548181/ PR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Julgamento: 06/08/2013, Órgão Julgador: Primeira Turma)
Nesse julgamento a Ministra Relatora, Rosa Weber, esclareceu que condicionar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas à da pessoa física, significaria o esvaziamento da teleologia da norma, que foi criada justamente com a finalidade de superar a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de se comprovar que a ordem criminosa teve origem em determinada pessoa física, pois, em muitos casos as responsabilidades internas são diluídas ou parcializadas. E assim afirmou: “Ao se necessitar desta mesma comprovação para a responsabilização da pessoa jurídica estar-se-ia criando instituto inaplicável, que esbarraria nas mesmas dificuldades que ensejaram a sua criação”.
Portanto, a adoção da teoria da dupla imputação implicaria quase em subordinar a responsabilização penal das pessoas jurídicas à condenação da pessoa física, já que, por um critério de coerência, a absolvição desta afastaria também a responsabilidade daquela.
Esse entendimento gerou grande repercussão e levou o Superior Tribunal de Justiça a alterar o entendimento até então consolidado, de modo a afastar a necessária aplicação da Teoria da Dupla Imputação para os crimes praticados por pessoa jurídica, conforme se verifica do julgamento do RMS nº 39.173/BA[51], julgado em 06 de agosto de 2015, verbis:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA POR CRIME AMBIENTAL: DESNECESSIDADE DE DUPLA IMPUTAÇÃO CONCOMITANTE À PESSOA FÍSICA E À PESSOA JURÍDICA.
1. Conforme orientação da 1ª Turma do STF, "O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação." (RE 548181, Relatora Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 6/8/2013, acórdão eletrônico DJe-213, divulg. 29/10/2014, public. 30/10/2014).
2. Tem-se, assim, que é possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome. Precedentes desta Corte.
3. A personalidade fictícia atribuída à pessoa jurídica não pode servir de artifício para a prática de condutas espúrias por parte das pessoas naturais responsáveis pela sua condução.
4. Recurso ordinário a que se nega provimento.
Nesse julgamento é possível verificar de forma explícita a alteração do entendimento do Superior Tribunal de Justiça para alinhar-se ao entendimento da Suprema Corte.
Assim, em razão da sistemática dos recursos repetitivos, os demais tribunais brasileiros tendem a adotar essa corrente de modo que não mais se considere como obrigatória a concomitante responsabilização da pessoa física e da pessoa jurídica para que a esta possa ser imputada uma infração penal.
7 CONCLUSÃO
Conforme o exposto, constatou-se que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é tema de grande controvérsia doutrinária. No Brasil, apesar da doutrina majoritária se manifestar pela impossibilidade das pessoas jurídicas praticarem crime, a Constituição da República trouxe essa previsão no art. 225, §3º e no art. 173, § 5º, o que restou corroborado com o advento da Lei nº 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
Verificou-se ainda que a lei nº 9.605/98, não consagrou todas as balizas necessárias à responsabilização penal das pessoas jurídicas. Consoante ao que restou demonstrado ao longo do presente artigo, a referida lei não trouxe normas processuais específicas para as pessoas jurídicas, não definiu o quantum em abstrato das penas aplicáveis as essas pessoas, e deixou de assinalar quais os delitos seriam a elas aplicáveis (princípio da especialidade).
Essas omissões impõem à doutrina e à jurisprudência o trabalho de construir uma estrutura jurídica capaz de propiciar o devido processo legal assim como assegurar as demais garantias constitucionais, tais como individualização da pena.
Retomando o debate sobre a possibilidade de se atribuir responsabilidade penal às pessoas jurídicas, registrou-se que o Superior Tribunal de Justiça sempre se manifestou pela possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas pela prática de crimes ambientais. Não obstante, possuía entendimento consolidado que para o recebimento da denúncia e consequente sentença condenatória, deveria ser aplicada a Teoria da dupla Imputação, uma vez que o elemento volitivo seria atributo exclusivo das pessoas físicas.
Tal entendimento, como visto, não foi acatado pelo Supremo Tribunal Federal que no julgamento do Recurso Extraordinário nº 548.181/PR de relatoria da Ministra Rosa Weber, assentou que a Constituição da República não condicionou a responsabilidade penal das pessoas jurídicas à das pessoas físicas. A partir desse julgamento o Superior Tribunal de Justiça alterou seu entendimento para alinhar-se ao que decidiu a Suprema Corte.
Diante dessa compreensão, vislumbra-se a necessidade de atribuir novos contornos à teoria do crime, antes calcada somente na pessoa física, para que os conceitos de vontade (dolo e culpa) e culpabilidade adotem uma nova dimensão, de maneira a compreender as pessoas jurídicas como sujeito ativo de um crime.
Nesse aspecto, o conceito construtivista de culpabilidade empresarial para a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, delineado ao longo desse trabalho, pode vir ocupar papel de relevância na colmatação da teoria clássica de modo a conformá-la à nova realidade.
Conclui-se, portanto, que o entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal, não só atesta a previsão constitucional de responsabilidade penal das pessoas jurídicas, como esclarece que ela independe da imputação do mesmo fato a uma pessoa física. Ademais, cumpre o importante papel de fomentar a reformulação da tradicional teoria do crime, para que se adéque ao novo paradigma.
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[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Parecer a Nilo Batista sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. In: Prado, Luiz Regis; Dotti, René Ariel (coord). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.49.
[2] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Método, 2003, p. 100.
[4] GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 20 ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010, p. 145.
[5] NADER, Paulo. Curso de direito civil: parte geral. 9ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013, v. 1, p. 207-208.
[6] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Método, 2003, p. 101.
[7] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil, teoria geral de direito civil. 22ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, v. 1, p.309.
[8] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Método, 2003, p. 103.
[9] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Método, 2003, p. 103.
[10] KIST, Ataide. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Editora de Direito, 1999, p. 132.
[11] KIST, Ataide. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Editora de Direito, 1999, p. 133.
[12] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: Fundamentos e Implicações, 2012. Disponível em: < http://www.professorregisprado.com/Artigos/Luiz%20Regis%20Prado/Responsabilidade%20Penal%20da%20Pessoa%20Jur%EDdica%20-%20Direito%20Penal%20do%20Ambiente.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2015.
[13] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Método, 2003, p. 64.
[14] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: Fundamentos e Implicações, 2012. Disponível em: < http://www.professorregisprado.com/Artigos/Luiz%20Regis%20Prado/Responsabilidade%20Penal%20da%20Pessoa%20Jur%EDdica%20-%20Direito%20Penal%20do%20Ambiente.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2015.
[15] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Método, 2003, p. 52.
[16] INGLATERRA. Interpretatoin act. 1889. Disponível em: <http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1889/63/pdfs/ukpga_18890063_en.pdf>. Acesso em: 15 dez 2015.
[17] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: Fundamentos e Implicações, 2012. Disponível em: < http://www.professorregisprado.com/Artigos/Luiz%20Regis%20Prado/Responsabilidade%20Penal%20da%20Pessoa%20Jur%EDdica%20-%20Direito%20Penal%20do%20Ambiente.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2015.
[18] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: Fundamentos e Implicações, 2012. Disponível em: < http://www.professorregisprado.com/Artigos/Luiz%20Regis%20Prado/Responsabilidade%20Penal%20da%20Pessoa%20Jur%EDdica%20-%20Direito%20Penal%20do%20Ambiente.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2015.
[19] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: Fundamentos e Implicações, 2012. Disponível em: < http://www.professorregisprado.com/Artigos/Luiz%20Regis%20Prado/Responsabilidade%20Penal%20da%20Pessoa%20Jur%EDdica%20-%20Direito%20Penal%20do%20Ambiente.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2015.
[20] Estados Unidos da America. Model Penal Code, 1962. Disponível em: <http://www.icla.up.ac.za/images/un/use-of-force/western-europe-others/UnitedStatesofAmerica/Model%20Penal%20Code%20United%20States%20of%20America%201962.pdf>. Acesso em: 21 dez 2015.
[21] Espanha. Código Penal y legislación complementaria. 2015. Disponível em: < file:///C:/Downloads/BOE-038_Codigo_Penal_y_legislacion_complementaria.pdf>. Acesso em: 21 dez 2015.
[22] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: Fundamentos e Implicações, 2012. Disponível em: < http://www.professorregisprado.com/Artigos/Luiz%20Regis%20Prado/Responsabilidade%20Penal%20da%20Pessoa%20Jur%EDdica%20-%20Direito%20Penal%20do%20Ambiente.pdf>. Acesso em: 12 jan 2016.
[23] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: Fundamentos e Implicações, 2012. Disponível em: < http://www.professorregisprado.com/Artigos/Luiz%20Regis%20Prado/Responsabilidade%20Penal%20da%20Pessoa%20Jur%EDdica%20-%20Direito%20Penal%20do%20Ambiente.pdf>. Acesso em: 12 jan 2016.
[24] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 23 fev. 2016.
[26] No mesmo sentido: GALVÃO, Fernando. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 6/7.
[27] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In: Prado, Luiz Regis; Dotti, René Ariel (coord). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 151 e 152.
[28] BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L9605.htm>. Acesso em: 23 fev 2016.
[29] PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In: Prado, Luiz Regis; Dotti, René Ariel (coord). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 151 e 152.
[30] DOTTI, René Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurídica. In: Prado, Luiz Regis; Dotti, René Ariel (coord). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 170.
[31] GALVÃO, Fernando. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 6/7.
[32] SIRVINSKAS, Luís Paulo. A Tutela penal do meio ambiente: breves considerações atinentes à Lei n. 9.605, de 12-2-98. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 23/24.
[34] DOTTI, René Ariel. A incapacidade criminal da pessoa jurídica. In: Prado, Luiz Regis; Dotti, René Ariel (coord). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 188.
[35] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Método, 2003, p.169.
[37] GRECO. Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 17ª ed. Niterói-RJ: Impetus, 2015, p. 204.
[38] BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 273-274.
[39] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso extraordinário n. 548.181/ PR. Recorrente: Ministério Público Federal. Recorrido: Petróleo Brasileiro S/A Relatora: Ministra, Brasília, 06 de agosto de 2013. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, n. 213/2014, p. 148, out. 2014.
[40] DIÉZ. Carlos Gómez-Jara. O conceito construtivista de culpabilidade empresarial para a responsabilidade penal das pessoas jurídicas: exposição e resposta às críticas formuladas. Revista de Ciências criminais, São Paulo, v. 21, n. 100, p. 415-451, 2013.
[41] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Método, 2003, p. 110.
[42] BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 404-405.
[43] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 539.
[44] BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 407-408.
[45] BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 408-409.
[46] BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 409-410.
[47] DIÉZ. Carlos Gómez-Jara. O conceito construtivista de culpabilidade empresarial para a responsabilidade penal das pessoas jurídicas: exposição e resposta às críticas formuladas. Revista de Ciências criminais, São Paulo, v. 21, n. 100, p. 415-451, 2013.
[48] BRASIL. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Apelação criminal n. 0010064-78..2005.404.7200/SC. Apelante: Ministério Público Federal. Recorrido: P.P.C. S/A. Relator: Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz. Porto Alegre, 21 de agosto de 2012.Diário Eletrônico da Justiça Federal, Porto Alegre, ano 7, n. 196, p. 452-454, set. 2012.
[49] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2ª ed. São Paulo: Método, 2003, p. 104-105.
[50] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso ordinário em mandado de segurança n. 37.293 - SP Recorrente: Arauco Forest Brasil S/A. Recorrido: Ministério Público Do Estado De São Paulo. Relatora: Ministra Laurita Vaz. Brasília ,02 de maio de 2013.Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, n. 1282 mai 2013.
[51].BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso ordinário em mandado de segurança n. 39.173 - BA Recorrente: Petróleo Brasileiro S/A Petrobras. Recorrido: União. Relator: Reynaldo Soares da Fonseca, 06 de agosto de 2015.Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, n. 1794, ago 2015.
Artigo publicado em 07/02/2022 e republicado em 21/03/2024
Procurador do Estado na Procuradoria Geral do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SALES, EDUARDO SANTOS. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas: um novo paradigma diante do Recurso Extraordinário nº 548.181/PR Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 mar 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58060/a-responsabilidade-penal-das-pessoas-jurdicas-um-novo-paradigma-diante-do-recurso-extraordinrio-n-548-181-pr. Acesso em: 22 nov 2024.
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