Resumo: Analisa-se, neste brevíssimo estudo, os principais aspectos do tema referente à cooperação jurídica internacional em matéria penal no contexto da Convenção Sobre o Cibercrime, também conhecida como Convenção de Budapeste, tratado de abrangência internacional adotado no âmbito do Conselho da Europa e ainda não plenamente ratificado pelo Brasil, que confere prioridade aos Estados partes para a implementação de uma política criminal comum, que objetiva a proteção da sociedade contra a criminalidade no ciberespaço, por intermédio de uma legislação adequada e do incremento da cooperação jurídica entre os Estados para fins de investigação e persecução das recorrentes condutas delitivas praticadas por meio de sistemas informáticos.
Palavras-chave: Cooperação Internacional. Criminalidade Cibernética. Conselho da Europa. Tratado Internacional.
Abstract: This brief study analyzes the main aspects of the theme concerning international legal cooperation in criminal matters in the context of the Convention on Cybercrime, also known as the Budapest Convention, an international treaty adopted by the Council of Europe and not yet fully ratified by Brazil, which gives priority to the states parties for the implementation of a common criminal policy that aims to protect society against criminality in cyberspace, through appropriate legislation and increased legal cooperation between states for the purpose of investigation and prosecution of recurrent criminal conducts committed through computer systems.
Keywords: International Cooperation. Cyber Crime. Council of Europe. International Treaty.
Sumário: Introdução. 1. Advento de Uma Convenção Internacional Sobre (e Contra) a Criminalidade Cibernética. 2. Elementos Estruturais e Cooperação Jurídica Internacional na Convenção de Budapeste. 3. Investigação e Persecução Penal de Crimes Cibernéticos no Âmbito Nacional. 4. Conclusão. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O estudo aqui apresentado tem por fim esclarecer os principais elementos relativos à cooperação jurídica internacional em matéria penal no contexto da Convenção Sobre o Cibercrime, também conhecida como Convenção de Budapeste, tratado internacional adotado pelo Conselho da Europa no ano de 2001, cujo eixo de aplicação finca-se no combate global à vultosa criminalidade praticada no chamado ciberespaço, e que, enfim, encontra-se atualmente em processo formal de incorporação no Brasil.
Como forma de facilitar a compreensão sobre o tema, parte-se do princípio, em que enunciou-se a necessidade de se elaborar uma convenção internacional hábil a intensificar a cooperação entre Estados diante das profundas mudanças provocadas pela digitalização, pela convergência e pela globalização permanente das redes informáticas.
Traz-se, em seguida, uma descrição da estrutura da Convenção de Budapeste, partindo dos elementos contidos no texto do próprio tratado, que consagra diversas especificidades pertinentes à prática de infrações penais em redes informáticas e de informação eletrônica, passando-se à análise da cooperação jurídica internacional em matéria penal entre Estados e indústria privada como medida de contenção à cibercriminalidade.
Em última análise, apresenta-se o estado atual do assunto referente à investigação e à persecução penal no âmbito nacional, especialmente no contexto legislativo, bem como a quantas anda a discussão em torno da urgência de se adotar internamente a Convenção de Budapeste, haja vista que os sistemas informáticos, no Brasil, tem sido meio hábil para a prática de diversas e específicas formas de delitos, o que implica na ausência de instrumental jurídico apto a permitir uma persecução penal efetiva, no aumento da insegurança no ciberespaço e na redobrada dificuldade no plano da prevenção.
1. ADVENTO DE UMA CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE (E CONTRA) A CRIMINALIDADE CIBERNÉTICA
A chamada cibercriminalidade é, na atualidade, mais do que uma realidade. Tal como um vírus que somente necessita de um ambiente ou de um organismo vivo para fortalecer-se e espalhar-se, o crime encontrou no ciberespaço o ambiente e organismo propício para transformar-se, exatamente como afirmou Alfredo Niceforo há exatos cento e vinte anos na obra La Transformación Del Delito en la Sociedad Moderna, de 1902, no sentido de que “o crime não morre: transforma-se” (1902, p. 03).
A criminalidade tradicional, de sangue, das esquinas e dos subúrbios, não perdeu espaço; continua tão intensa quanto outrora. Mas o progresso técnico deu lugar à adoção de novas técnicas que permitem a produção de resultados igualmente lesivos, o que fez surgir modalidades delitivas dolosas que se projetam sobre os espaços abertos pela tecnologia. E, seguramente, a criminalidade associada aos meios informáticos e à Internet é sem dúvidas o mais evidente traço de tal evolução.
Sabe-se que a Internet teve origem na década de 1960 do século XX, como uma forma de os pesquisadores do governo norte-americano compartilharem informações. Outro elemento preponderante na formação da Internet foi o Guerra Fria. O lançamento do satélite Sputnik pela União Soviética estimulou o Departamento de Defesa dos Estados Unidos a considerar informações que ainda poderiam ser disseminadas, mesmo após um possível ataque nuclear, o que findou levando à formação da ARPANET (Advanced Research Projects Agency Network, ou Rede de Agências de Projetos de Pesquisa Avançada), rede que acabou evoluindo para o que hoje é conhecida como Internet.
No entanto, considera-se 1º de janeiro de 1983 como o aniversário oficial da Internet, pois antes disso as redes de computadores não tinham uma maneira padrão de se comunicarem e, no referido dia, um novo protocolo de comunicação foi estabelecido, denominado Protocolo de Controle de Transferência/Protocolo de Rede (TCP/IP). Isso permitiu que diferentes tipos de computadores em diferentes redes “interagissem” entre si, de forma que a ARPANET e a Defense Data Network mudaram oficialmente para o padrão TCP/IP em 1º de janeiro de 1983, daí o dito nascimento da Internet.
Na atualidade, a Internet é uma infraestrutura de informação ultradifundida. Sua história é complexa e envolve diversos aspectos, desde os tecnológicos aos organizacionais e comunitários. E sua influência atinge não apenas os campos técnicos das comunicações por intermédio de redes de computadores, mas toda a sociedade, à medida que avança-se em direção ao uso crescente de ferramentas online para realizar comércio eletrônico, aquisição de informações e operações comunitárias.
E a poder de expansão dos meios de comunicação no que passou a denominar-se de ciberespaço não demorou a servir de instrumento para a disseminação e criação de condutas delitivas em suas mais variadas formas, do crime organizado ao estelionato, de crimes sexuais (alguns dos quais somente se consumam via Internet) à lavagem de dinheiro. Um mundo cibernético paralelo e criminógeno tem nas redes computacionais um ambiente perfeito, tão mais problemático se visualizar-se a questão no plano global, haja vista que o ciberespaço facilita a prática de um número considerável de condutas entre diferentes países que, a princípio, haveriam de ficar presos às amarras de suas jurisdições.
Consoante precisa observação de Jesús-María Silva Sánchez (2011, p. 36):
O progresso técnico dá lugar, no âmbito da delinquência dolosa tradicional (a cometida com dolo direto ou de primeiro grau), a adoção de novas técnicas como instrumento que lhe permite produzir resultados especialmente lesivos; assim mesmo, surgem modalidades delitivas dolosas de novo cunho que se projetam sobre os espaços abertos pela tecnologia. A criminalidade, associada aos meios informativos e à internet (a chamada ciberdelinquência), é, seguramente, o maior exemplo de tal evolução. Nessa medida, acresce-se inegavelmente a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada, que operam internacionalmente e constituem claramente um dos novos riscos para os indivíduos (e os Estados).
Mas a comunidade internacional não poderia permanecer inerte diante de tão flagrante disseminação. Enquanto o cibercrime e outras ofensas que envolvem evidências eletrônicas em sistemas computacionais prosperam, além de as evidências passarem a ser armazenadas em servidores presentes em jurisdições estrangeiras, múltiplas e às vezes desconhecidas, os sistemas de aplicação da lei findam por encontrar barreiras nos limites territoriais, de forma que apenas uma pequena parcela dos crimes cibernéticos denunciados às autoridades da justiça criminal conduz a processos judiciais e condenações e, na maioria das vezes, as vítimas não obtém a justiça necessária.
Sendo certo que o cibercrime transita pelas redes há pelo menos 50 anos, do ponto de vista do Direito Penal e Processual Penal, tornou-se suficientemente importante como justificativa para um tratado internacional vinculativo, pelo que o Conselho da Europa (Council of Europe) começou a trabalhar nas respostas da justiça criminal ao crime cibernético a partir de meados da década de 1980, percebendo que a questão do cibercrime estava muito além das fronteiras de um único Estado.
Em 1997, então, o Conselho da Europa decidiu que chegara o momento de negociar um tratado internacional vinculante sobre o crime cibernético. Os Estados membros do Conselho da Europa, juntamente com Canadá, Japão, África do Sul e Estados Unidos da América, mobilizaram-se para constituir uma convenção internacional cujo eixo central seria o caráter prioritário, uma política criminal comum, com o objetivo de proteger a sociedade contra a criminalidade no ciberespaço, designadamente, por intermédio da adoção de legislação adequada e da melhoria da cooperação internacional.
Então, em 23 de novembro de 2001, na cidade de Budapeste, Hungria, foi adotada a denominada Convenção Sobre o Crime Cibernético, ou Convenção de Budapeste, sendo que, a partir deste ponto, passou a ser o acordo internacional mais relevante sobre crimes cibernéticos e evidências eletrônicas, que prevê a criminalização de infrações contra e praticada por meio de computadores, ferramentas de direito processual para proteger provas eletrônicas e, especialmente, instrumentos específicos para a cooperação internacional entre os Estados partes para fins de investigação e persecução penal.
De acordo com o Conselho da Europa, não se trata tão somente de um tratado sobre crimes cibernéticos. Também permite o exercício de poderes processuais e de mecanismo de cooperação internacional em relação a qualquer delito que implique prova eletrônica. Por isso, graças à sua linguagem neutra em termos de tecnologia, a Convenção de Budapeste tem fornecido respostas aos desafios complexos do crime no ciberespaço desde 2001 e, mais de vinte anos depois, continua ser o principal tratado internacional em matéria de crimes praticados no ciberespaço, com ambição global e está em constante evolução.
Por conta disso, desde o ano de 2001, a Convenção de Budapeste está aberta à adesão de qualquer país que esteja preparado para implementar suas disposições e se engajar na cooperação internacional, e muitos Estados fizeram e fazem uso de tal possibilidade, e com o Brasil não poderia ser diferente, embora um tanto tardiamente, como se observará.
Assim, tem-se que a Convenção sobre Crime Cibernético moldou, de várias maneiras, a resposta da justiça criminal internacional ao crime cibernético e às evidências eletrônicas, bem como no que refere aos instrumentos de captação de tais evidências. A referida Convenção teve impacto em todas as regiões do mundo, permitindo que os Estados apliquem este tratado na prática e se envolvam em uma cooperação internacional eficaz.
Conforme dados colhidos no sítio do Conselho da Europa, desde 2001, a legislação de crimes cibernéticos em todo o mundo foi consideravelmente moldada pela Convenção de Budapeste, direta ou indiretamente. Assim, em junho de 2021:
i) cerca de 124 Estados (ou 64% dos Estados-Membros da ONU) parecem ter tido disposições do Direito Penal substantivo cobrindo infrações contra e por meio de computadores amplamente implementadas, ou seja, eles adotaram disposições nacionais específicas correspondentes à maioria dos crimes substantivos artigos da Convenção de Budapeste;
ii) cerca de 48% dos Estados tinham poderes procedimentais específicos, em grande parte instituídos, semelhantes aos da Convenção de Budapeste;
iii) 40% dos Estados Membros da ONU eram Partes ou Signatários da Convenção de Budapeste ou haviam sido convidados a aderir. Esses 77 Estados eram, portanto, membros ou observadores do Comitê de Convenção sobre Crimes Cibernéticos. Há um progresso consistente em termos de afiliação.
Além disso, observa-se um forte diálogo dos Estados partes ou dos assim chamados pretensos Estados partes (os Estados observadores da Convenção de Budapeste, tal como o Brasil o foi por longos anos) com o Conselho da Europa, haja vista que há um Comitê da Convenção de Crimes Cibernéticos formado por uma grande rede de profissionais que participam de atividades de capacitação e que podem convocar uns aos outros quando necessário na investigação e no julgamento de casos que são de natureza transnacional, de modo que o benefício desses relacionamentos é incomensurável.
Ainda na diretriz do Conselho da Europa, a Convenção de Budapeste prevê mecanismos de cooperação internacional acessíveis a todas as Partes. Exemplos:
Um Estado parte observou que, como um país pequeno e pobre, não poderia encontrar os recursos para negociar todos os acordos bilaterais de que precisaria para obter dados eletrônicos rapidamente de todos os países dos quais pudesse precisar de assistência. No entanto, assim que aderiu à Convenção, dezenas de países parceiros foram imediatamente obrigados a prestar assistência. Esta perspectiva de conexões imediatas para possibilitar assistência foi um fator crucial na decisão deste país de buscar adesão.
Outro Estado parte acrescentou que, “uma vez que a maioria dos ataques cibernéticos são de natureza transnacional, a Convenção de Budapeste é indispensável para investigar os perpetradores de forma eficaz, especialmente para países pequenos, que não têm prestadores de serviços internacionais baseados em sua própria jurisdição”.
Desta feita, para o Conselho da Europa, os Estados que solicitam adesão podem se tornar países prioritários para programas de capacitação, cuja assistência técnica visa facilitar a plena implementação da Convenção, melhorar a capacidade de investigações e processos internos e aumentar a capacidade de cooperação internacional. Há doadores que estão frequentemente fornecendo recursos para apoiar os países neste empreendimento, em particular por meio do Escritório do Programa de Cibercrime do Conselho da Europa (C-PROC), constatando-se que, entre os meses de outubro de 2020 a setembro de 2021, o C-PROC apoiou cerca de 500 atividades em todo o mundo.
Os exemplos descritos abaixo podem ilustrar que, para os Estados comprometidos em aderir à Convenção de Budapeste, um apoio consistente está disponível para permitir que tais Estados apliquem a Convenção na prática e se envolvam em uma cooperação jurídica internacional em matéria penal eficaz:
i) O Sri Lanka adotou sua Lei de Crimes Informáticos em 2007. Essa lei foi amplamente modelada na Convenção de Budapeste. Em 2015, o Sri Lanka foi convidado a aderir à Convenção e tornou-se Parte deste tratado. Isso permitiu a implementação de um grande número de atividades com foco particular no treinamento de policiais, promotores e juízes no Sri Lanka. Em 2021, o Sri Lanka não é apenas um país prioritário que recebe apoio, mas também serve como um centro por meio do qual compartilha sua experiência e especialistas do Sri Lanka agora estão treinando profissionais em outros países da região da Ásia/Pacífico.
ii) Em 2011, o Senegal solicitou adesão à Convenção de Budapeste e foi convidado a aderir. Em 2017, o Senegal tornou-se parte da Convenção de Budapeste. A partir de 2013, o Senegal foi um país prioritário do projeto C-PROC GLACY, e em 2016 também se tornou um centro regional no âmbito do projeto GLACY+, compartilhando sua experiência com outros países da região.
iii) A República Dominicana adotou a Lei 53-07 sobre Crimes e Delitos de Alta Tecnologia, publicada em 23 de abril de 2007, que se baseia na Convenção de Budapeste. Em 2013, tornou-se o primeiro país da América Latina a aderir a este tratado como um partido. Em 2016, a República Dominicana não só se tornou um país prioritário do projeto GLACY +, mas também um centro para a América Latina e o Caribe.
Colocando em perspectiva tais situações, é fácil notar que a Convenção sobre Cibercriminalidade do Conselho da Europa serve como uma diretriz para qualquer país que esteja desenvolvendo ou tenha a intenção de desenvolver uma legislação nacional abrangente contra o crime cibernético e com uma estrutura de apoio para a cooperação internacional entre os Estados partes da Convenção.
Como reforço, a Convenção de Budapeste é complementada por um Protocolo Sobre Xenofobia e Racismo Cometidos por Meio de Sistemas de Computador, assinado em Estrasburgo em 28 de janeiro de 2003 e entrou em vigência em 1º de março de 2006, contando com 16 artigos e organizados em 04 capítulos que dispõem sobre a criminalização da disseminação informática de caráter racista e xenofóbico, assim como sobre a criminalização de ameaças e insultos movidos por racismo e xenofobia.
Um segundo Protocolo Adicional à Convenção de Budapeste atualmente está em discussão no Conselho da Europa, que trata do aprimoramento da cooperação e divulgação de evidências eletrônicas. Segundo o Conselho da Europa, o Protocolo fornecerá ferramentas inovadoras para obter a divulgação de evidências eletrônicas, em especial: 1) Cooperação direta com prestadores de serviços (Artigos 6 e 7); 2) Formas aceleradas de cooperação entre as partes para a divulgação de informações de assinantes e dados de tráfego (Artigo 8); 3) Cooperação e divulgação rápida em situações de emergência (Artigos 9 e 10); 4) Ferramentas adicionais para assistência mútua (Artigos 11 e 12); e 5) Proteção de dados e outras salvaguardas do estado de direito (Artigos 13 e 14). Este Segundo Protocolo foi adotado em novembro de 2021 e prevê-se que seja aberto para assinatura em março de 2022.
Portanto, o advento de uma convenção internacional sobre e contra a criminalidade cibernética tem na Convenção de Budapeste seu mais eficiente e principal instrumento, sendo o primeiro tratado internacional sobre crimes cometidos por intermédio da Internet e outras redes de computadores, lidando particularmente com violações de direitos autorais, fraude relacionada a computadores, pornografia infantil e violações de segurança de rede, além de conter uma série de procedimentos para buscas em redes de computadores e interceptação, somados aos mecanismos de cooperação jurídica internacional.
E isso porque, até o momento, a Convenção de Budapeste continua sendo o tratado internacional vinculante mais relevante sobre crimes cibernéticos e evidências eletrônicas, utilizando-se preponderantemente de uma linguagem neutra em termos de tecnologia, não sendo apenas uma Convenção contra o crime cibernético, pois permite a utilização de poderes processuais e instrumentos de cooperação internacional em relação a qualquer ato infracional que implique prova eletrônica, cobrindo uma ampla gama de crimes e suas disposições são aplicáveis a botnets, phishing, terrorismo virtual, roubo de identidade, malware, spam, DDOS, ataques de infraestrutura crítica, interferência eleitoral, ciberviolência, etc.
Neste contexto, a Convenção prevê três esperas de incidência: (i) a criminalização da conduta, variando de acesso ilegal, interferência de dados e sistemas a fraude relacionada a computadores e pornografia infantil; (ii) ferramentas de direito processual para tornar a investigação de crimes cibernéticos e a obtenção de provas eletrônicas mais eficazes, sujeitas a condições e salvaguardas, e (iii) cooperação jurídica internacional eficaz.
Dados do Conselho da Europa sugerem que, até o momento, 66 países assinaram a Convenção de Budapeste, sendo que diversos Estados foram convidados a aderir ao Tratado, prática que evidencia o diálogo cooperacional antes indicado. Junto a esse quadro, cerca de 150 países já cooperaram nos termos da Convenção e, até 30 de junho de 2021, 158 Estados no mundo já usaram a Convenção de Budapeste como uma diretriz ou fonte para a revitalização de sua legislação doméstica.
Entre os países convidados a aderir está o Brasil, o que se deu em 2019. Desde então, o país também tem utilizado a Convenção como inspiração para aperfeiçoar a legislação interna, uma vez que não há uma lei específica que regule de forma isolada questões relacionadas à prática de crimes cibernéticos.
Coerente, para além disso, que o Brasil não poderia permanecer anos a fio somente como mero observador da Convenção de Budapeste. Algo haveria de ser feito, e rápido, considerando a supermassiva utilização das redes informáticas no Brasil em todas as esferas da sociedade, dos negócios lícitos à mera interação entre pessoas, das fraudes cibernéticas às mais nocivas “condutas sexuais virtuais”.
Prosseguindo neste contexto, em boa hora, em 15 de dezembro de 2021, o Brasil aprovou a sua adesão à Convenção sobre o Crime Cibernético. Após passar pela Câmara dos Deputados, onde foi aprovado o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 255/21, o texto foi encaminhado ao Senado Federal, conforme rito formal de aprovação de tratados internacionais, casa na qual o Projeto de Decreto Legislativo 255/2021 também obteve aprovação, após o que se encontra em processo de promulgação interna.
O texto da Convenção de Budapeste foi aprovado no Congresso Nacional por intermédio do Decreto Legislativo nº 37 de 16/12/2021, que entrou em vigor na data de sua publicação e publicado no Diário Oficial da União de 17/12/2021.
Embora mais de vinte anos tenham se passado desde o advento da Convenção de Budapeste no ano de 2001 pelo Conselho da Europa, enfim, pouco resta para que o dito tratado internacional passe a ter aplicação no âmbito interno brasileiro, sendo certo que a iniciativa brasileira em ser parte da Convenção de Budapeste em muito contribuirá para o revigoramento da legislação interna sobre a proteção das redes (o que tem na Lei nº 12.965, de 2014, Marco Civil da Internet, uma importante estrutura legislativa para tal fim) e, principalmente, para o combate à criminalidade das redes computacionais e ao fortalecimento da cooperação internacional nessa área e da coordenação/diálogo entre os países.
2. ELEMENTOS ESTRUTURAIS E COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL NA CONVENÇÃO DE BUDAPESTE
Ponto central da Convenção de Budapeste é o relativo aos instrumentos processuais e à cooperação jurídica internacional. Antes disso, porém, é necessário apresentar os elementos estruturais gerais da Convenção.
Bom que se diga que, no ato de se analisar um texto de um tratado internacional, em sua grande maioria deve-se dar especial atenção aos Considerandos do tratado. As considerações iniciais do tratado normalmente demonstram de forma direta a finalidade do acordo, os motivos que levaram ao acordo e o âmbito de proteção da norma internacional, percebendo-se dos Considerandos ao quê, a como e a quem se destina o tratado.
No caso da Convenção de Budapeste, o Preâmbulo evidencia que “o objetivo do Conselho da Europa é realizar uma união mais estreita entre os seus membros”, de forma a se intensificar a cooperação entre os Estados partes da Convenção.
Outra preocupação do Conselho da Europa exposta no Preâmbulo da Convenção é aquela relacionada às “profundas mudanças provocadas pela digitalização, pela convergência e pela globalização permanente das redes informáticas” e, por conta disso, a existência de um risco de que as redes informáticas e a informação eletrônica sejam igualmente utilizadas para cometer infrações criminais e o fato de que as provas dessas infrações sejam armazenadas e transmitidas por intermédio da Internet.
Os Considerandos também demonstram que reconheceu-se “a necessidade de uma cooperação entre os Estados e a indústria privada no combate à cibercriminalidade, bem como a necessidade de proteger os interesses legítimos ligados ao uso e desenvolvimento das tecnologias da informação”.
Neste ponto, já desde o princípio, é possível atentar para a questão de que a Convenção de Budapeste deu especial atenção às redes privadas, haja vista que basicamente nelas reside grande parte da criação e transmissão de conteúdos por meio da Internet, necessitando-se que haja o implemento de cooperação entre os Estados (no contexto público) e as empresas (no plano privado), o que a Convenção deixa expressamente assentado.
Outrossim, como não poderia deixar de ser, o Preâmbulo da Convenção assenta a necessidade de acreditar-se à cooperação jurídica internacional em matéria penal um meio acrescido, rápido e eficaz para “uma luta efetiva contra a cibercriminalidade”.
Junto a essa observação, bom que se diga que a cooperação jurídica internacional em matéria penal na Europa há muito avança, o que pode ser cotejado na seguinte passagem dos Considerandos da Convenção:
Tendo em conta as convenções existentes do Conselho da Europa sobre a cooperação em matéria penal, bem como outros tratados similares celebrados entre os Estados membros do Conselho da Europa e outros Estados, e sublinhando que a presente Convenção tem por finalidade complementar as referidas convenções, de modo a tornar mais eficazes as investigações e as ações penais relativas a infracções penais relacionadas com sistemas e dados informáticos, bem como permitir a recolha de provas em forma eletrônica de uma infracção penal.
Observa-se que há um claro objetivo da Convenção em empregar esforços mútuos entre os Estados partes para fazer avançar as medidas para a implementação de uma rede cooperativa hábil tendo devidamente em conta as exigências específicas da luta contra a cibercriminalidade, a fim de aproximar as legislações nacionais e de permitir a utilização de meios de investigação eficazes em matérias de crimes informáticos.
Deste modo, feita essa breve apresentação, verifica-se que no geral, a Convenção de Budapeste tem 48 artigos, cuja organização é disposta em quatro capítulos: Capítulo I – Terminologia; Capítulo II – Medidas a Tomar a Nível Nacional; Capítulo III – Cooperação Internacional; e Capítulo IV – Disposições Finais.
No corpo da Convenção há normas de Direito Penal material e processual, divididas entre as Seções 1 e 2 do Capítulo II, sendo que pelas normas de Direito Penal material cada Parte adotará as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias para estabelecer como infração penal, no seu direito interno, o acesso intencional e ilegítimo à totalidade ou a parte de um sistema informático (Artigo 2º), e pelas normas de Direito Processual cada parte adotará as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias, para instituir os poderes e procedimentos para fins de investigação ou de procedimento penal (Artigo 14º).
Esta parte da Convenção de Budapeste concilia a visão de uma Internet livre, onde a informação pode fluir livremente e ser acessada e compartilhada, com a necessidade de uma resposta eficaz da justiça criminal em casos de uso indevido. As restrições são definidas de forma restrita: apenas infrações criminais específicas são investigadas e processadas, e dados específicos que são necessários como provas em processos criminais específicos são protegidas sob proteção dos direitos humanos e do estado de direito.
A Convenção abrange tanto os crimes cibernéticos classificados de “próprios” (crimes voltados à inviolabilidade e uso indevido de dados e informações cibernéticas em si, como o acesso não autorizado) quanto os “impróprios” (crimes contra bens jurídicos diversos cometidos por meio da informática, como, por exemplo, crimes contra a honra, armazenamento de imagens de pedofilia, violação a direitos autorais on-line).
Como o título do artigo deixa expresso, o ponto fulcral de análise é aquele pertinente ao Capítulo III da Convenção de Budapeste, que dispõe sobre as normas de cooperação jurídica internacional em matéria penal, dos artigos 23º ao 35º.
Para fins didáticos, conceitua-se cooperação jurídica internacional em matéria penal como o “conjunto de medidas e mecanismos pelos quais órgãos competentes dos Estados solicitam e prestam auxílio recíproco para realizar, em seu território, atos pré-processuais ou processuais que interessem à jurisdição estrangeira na esfera criminal” (ABADE, 2013, p. 27). Objetiva-se, assim, a facilitação do direito de acesso à justiça penal, por intermédio da colaboração entre Estados, pois os meios digitais não respeitam fronteiras.
Feito esse esclarecimento, analisando o texto convencional, a matéria relativa à cooperação jurídica internacional é inicialmente regida por princípios gerais, pelo que
As Partes cooperarão entre si, em conformidade com as disposições do presente capítulo, em aplicação dos instrumentos internacionais pertinentes sobre a cooperação internacional em matéria penal, de acordos celebrados com base nas legislações uniformes ou recíprocas, e do seu direito nacional, na medida mais ampla possível, para efeitos de investigações ou de procedimentos relativos a infracções penais relacionadas com sistemas e dados informáticos, ou para recolher provas sob a forma eletrônica de uma infração penal (Artigo 23º).
A Seção 1 do Capítulo III é dividida em títulos, assim sendo: Título 1 – Princípios gerais relativos à cooperação internacional: Princípios gerais relativos à cooperação internacional (Artigo 23º); Título 2 – Princípios relativos à extradição: Extradição (Artigo 24º); Título 3 – Princípios Gerais relativos ao auxílio mútuo: Princípios gerais relativos ao auxílio mútuo (Artigo 25º); e Título 4 – Procedimentos relativos aos pedidos de auxílio mútuo na ausência de acordos internacionais aplicáveis: Procedimentos relativos aos pedidos de auxílio mútuo na ausência de acordos internacionais aplicáveis (Artigo 27º).
Já a Seção 2 enuncia as disposições específicas sobre a cooperação jurídica internacional em matéria penal, também dividida em títulos, quais sejam: Título 1 – Auxílio mútuo em matéria de medidas provisórias; Título 2 – Auxílio mútuo relativamente a poderes de investigação; e Título 3 – Rede 24/7.
A primeira espécie cooperacional disposta na Convenção de Budapeste é a extradição. Esta é “espécie da cooperação jurídica internacional em matéria penal que visa a entrega de indivíduo para determinado Estado solicitante, para fins de submissão a processo penal ou à execução de pena criminal” (ABADE, 2013, p. 50).
O princípio da dupla punibilidade se faz também presente em matéria extradicional, pois os dispositivos da Convenção somente são aplicados “desde que sejam puníveis na legislação de duas Partes envolvidas, por uma pena privativa de liberdade por um período máximo de, pelo menos um ano ou através de uma pena mais grave” (Artigo 24º, 1. a).
Por sua vez, o artigo 24º, 3, dispõe que:
3. Quando uma Parte condicionar a extradição à existência de um tratado e receba um pedido de extradição de outra Parte com a qual não tenha celebrado qualquer tratado de extradição, pode considerar a presente Convenção como base jurídica para a extradição relativamente a qualquer infracção penal referida no n.º 1 do presente artigo.
Além disso, as Partes que não condicionem a extradição à existência de um tratado, reconhecerão entre si as infrações penais referidas no n.º 1 do presente artigo como infrações passíveis de extradição (Artigo 24º, 4) e a extradição ficará sujeita às condições previstas pelo direito interno da Parte requerida ou pelos tratados de extradição aplicáveis, incluindo os fundamentos com base nos quais a Parte requerida pode recusar a extradição (Artigo 24º, 5).
Sendo assim, o regime extradicional previsto na Convenção de Budapeste deve, no Brasil, obedecer à sistemática prevista na Constituição Federal de 1988, em seus arts. 5º, incisos LI e LII, e 102, inciso, I, “g”; na Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), arts. 81 a 99; no Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017, arts. 262 a 280; e na Portaria 217, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, de 27 de fevereiro de 2018, cujo objetivo é o aprimoramento do fluxo de tramitação dos pedidos de extradição, com a previsão dos procedimentos da extradição passiva (artigo 7º a 15) e ativa (artigo 21 a 25).
Prosseguindo, o artigo 25º da Convenção trata do auxílio mútuo. Este tem por objetivo a celeridade na troca de informações e documentos, para efeito de investigações ou de procedimentos relativos à infrações relacionadas com os sistemas e dados informáticos, ou para efeitos de recolhimento de provas (Artigo 25º, 1).
Em caso de urgência, cada Parte pode formular os pedidos de auxílio mútuo ou comunicações com ele relacionadas, por intermédio de meios de comunicação rápidos, tais como o fax ou o correio eletrônico, desde que tais meios ofereçam condições de segurança e de autenticação (incluindo, se necessário, o uso da encriptação) com posterior confirmação oficial sempre que o Estado requerido o exigir. O Estado requerido aceitará o pedido e responderá por meio de qualquer desses meios de comunicação rápidos (Artigo 25º, 3).
Da mesma forma, as normas de direito interno dos Estados devem ditar as condições a que se sujeitarão os pedidos de auxílio mútuo, incluindo os fundamentos com base nos quais o Estado parte pode recusar um pedido de cooperação via auxílio mútuo, o que não deve ser interpretado de modo absoluto, pois a Convenção veda que o Estado parte exerça seu direito de recusa somente com base na alegação de ser a infração de natureza fiscal (Artigo 25º, 4).
Outro ponto relevante, simetricamente à extradição, é que
5. Quando em conformidade com as disposições do presente capítulo, a Parte requerida estiver autorizada a subordinar o auxílio mútuo à existência de dupla incriminação, esta condição será considerada como satisfeita se o comportamento que constitui a infração relativamente à qual foi efetuado o pedido de auxílio, for qualificado como infração penal pelo seu direito interno, quer o direito interno classifique ou não a infração na mesma categoria de infrações ou a designe ou não pela mesma terminologia que o direito da Parte requerente (Artigo 25º, 5).
De forma inovadora, a Convenção estabelece em seu artigo 26º, 1, o procedimento de informação espontânea, que consiste na faculdade de um Estado parte poder comunicar a outro Estado parte, dentro dos limites da sua legislação nacional e na ausência de pedido prévio, informações obtidas no quadro das suas próprias investigações, sempre que considerar que tal pode ajudar a Parte destinatária a iniciar ou a levar a cabo investigações ou procedimentos relativos a infracções penais.
A este procedimento pode ser atribuída grande importância, especialmente em se tratando de crimes informáticos de caráter transnacional, que lesionam bens jurídicos em diferentes jurisdições, o que demonstra que a Convenção almeja a máxima efetividade dos meios cooperacionais entre Estados.
Ainda, a Convenção de Budapeste traz um título específico sobre os procedimentos relativos aos pedidos de auxílio mútuo caso ausente acordos internacionais aplicáveis entre os Estados partes interessados. Segundo consta do artigo 27º, 1:
1. Na ausência de tratado de auxílio mútuo ou de acordo de que se baseie em legislação uniforme ou recíproca em vigor entre a Parte requerente e a Parte requerida, serão aplicáveis as disposições dos n.ºs 2 a 9 do presente artigo. Não serão aplicáveis se existir um tratado, um acordo, ou legislação deste tipo, a menos que as Partes em causa decidam aplicar em sua substituição o presente artigo no todo ou em parte.
O artigo 28º dispõe sobre as medidas de confidencialidade e restrição de utilização pois, na ausência de tratados ou acordos de auxílio judiciário mútuo celebrados com base em legislações uniformes ou recíprocas em vigor entre a Parte requerente e a Parte requerida, serão aplicáveis as disposições em questão. Por outro lado, estas não serão aplicáveis quando exista um tratado, um acordo ou legislação daquele tipo, exceto se as Partes envolvidas decidirem aplicar em sua substituição a presente disposição no todo ou em parte.
O procedimento de auxílio mútuo (sem dúvidas o mais relevante do ponto de vista dos propósitos da Convenção de Budapeste), têm disposições específicas na Seção 2 que trata do auxílio mútuo em matéria de medidas provisórias.
O artigo 29º, como medida de urgência, enuncia sobre a conservação de dados informáticos armazenados, dispondo que uma Parte pode pedir a outra Parte que ordene ou obtenha de outra forma a conservação rápida dos dados armazenados por meio de um sistema informático, que se encontre no território da outra Parte, e relativamente aos quais a Parte requerente pretenda apresentar um pedido de auxílio mútuo para fins de busca ou de acesso similar, apreensão ou obtenção por meio similar, ou divulgação dos dados.
Tal pedido há de especificar:
a) A autoridade que pede a conservação; b) A infração que é objeto de investigação criminal ou de procedimento e uma breve exposição dos fatos relacionados; c) Os dados informáticos armazenados a conservar e a sua relação com a infracção; d) Todas as informações disponíveis que permitam identificar o responsável pelos dados informáticos armazenados ou a localização do sistema informático; e) A necessidade da medida de conservação; e f) Que a Parte tenciona apresentar um pedido de assistência mútua com vista à busca ou outra forma de acesso, apreensão ou obtenção semelhante, ou divulgação dos dados informáticos armazenados.
Neste caso, a Convenção de Budapeste deixa claro que a dupla incriminação não é exigida como condição prévia à conservação dos dados informáticos, sendo certo que a medida visa justamente à conservação das informações coletadas.
Contudo, em seu artigo 29º, 4, determina-se que:
Uma Parte que exija a dupla incriminação como condição necessária para responder a um pedido de auxílio mútuo para fins de busca ou acesso semelhante, apreensão ou obtenção por meio semelhante, ou a divulgação dos dados, pode, no que diz respeito a outras infracções diferentes das estabelecidas em conformidade com os artigos 2º a 11º da presente Convenção, reservar-se o direito de recusar o pedido de conservação ao abrigo do presente artigo, se tiver razões para crer que no momento da divulgação, a condição de dupla incriminação não pode ser preenchida.
Além disso, um pedido de conservação só pode ser recusado se: a) O pedido respeitar a infrações consideradas pela Parte requerida como infrações políticas ou com elas conexas; ou b) A Parte requerida considerar que o cumprimento do pedido pode atentar contra a sua soberania, segurança, ordem pública ou qualquer outro interesse essencial (Artigo 29º, 5).
Quando a Parte requerida considerar que a simples conservação não é suficiente para garantir a disponibilidade futura dos dados, bem como que comprometerá a confidencialidade da investigação relativa à Parte requerente, ou a prejudicará de outra forma, informará prontamente a Parte requerente que decidirá, então, se o pedido deve, ainda assim, ser executado (Artigo 29º, 6).
O artigo 30º trata da divulgação expedita dos dados de tráfego conservados. Esta medida tem em vista identificar o fornecedor de serviços em outro Estado parte e a via por meio da qual houve a transmissão de dados relativos ao tráfego de dados informáticos armazenados na forma do artigo 29º, cabendo à Parte requerida divulgar rapidamente à Parte requerente uma quantidade suficiente de dados relativos ao tráfego.
Contudo, a mencionada divulgação de dados de tráfego pode ser recusada nos seguintes casos: a) Se o pedido respeitar a uma infração considerada pela Parte requerida como infração de natureza política ou com ela conexa; ou b) Se a Parte requerida considerar que o cumprimento do pedido pode atentar contra a sua soberania, segurança, ordem pública ou qualquer outro interesse essencial.
Cabe notar aqui, assim como expressamente previsto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942, art. 17), que as medidas previstas na Convenção de Budapeste hão de respeitar a soberania nacional, a ordem pública ou outro interesse essencial do Estado parte, devendo ser de pronto inadmitida caso viole a quaisquer desses fundamentos.
Para além disso, no Título 2, tem-se novamente previsão específica sobre o auxílio mútuo relativamente a poderes de investigação dos Estados partes. O artigo 31º prevê sobre o auxílio mútuo relativamente ao acesso de dados informáticos armazenados:
1. Uma Parte pode pedir a outra Parte para investigar ou aceder de forma semelhante, apreender, ou obter de forma semelhante, e divulgar dados armazenados por meio de sistema informático que se encontre no território dessa outra Parte, incluindo os dados conservados em conformidade com o artigo 29º.
Nesta hipótese, o pedido deve ser satisfeito o mais rapidamente possível nos casos em que: a) Existam motivos para crer que os dados relevantes são especialmente vulneráveis à perda ou modificação; ou b) Os instrumentos, acordos e legislação prevejam uma cooperação rápida (Artigo 31º, 3).
Aos Estados partes da Convenção de Budapeste garante-se também o acesso transfronteiriço a dados armazenados, com consentimento ou quando são acessíveis ao público (Artigo 32º). Quanto a isso, uma parte pode, sem a autorização de outra Parte: a) Aceder a dados informáticos armazenados acessíveis ao público (fonte aberta), seja qual for a localização geográfica desses dados; ou b) aceder ou receber, através de um sistema informático situado no seu território, dados informáticos armazenados situados no território de outra Parte, se obtiver o consentimento legal e voluntário da pessoa legalmente autorizada a divulgar esses dados, através deste sistema informático.
Há previsão, ainda, do auxílio mútuo relativamente à recolha de dados de tráfego em tempo real (Artigo 33º), pelo qual os Estados partes concederão entre si o auxílio mútuo no que diz respeito à recolha, em tempo real, de dados de tráfego associados a comunicações específicas transmitidas no seu território por meio de um sistema informático, cujo procedimento regular-se-á pelas condições previstas no direito interno da Parte interessada.
Já o artigo 34º dispõe acerca do auxílio mútuo em matéria de interceptação de dados de conteúdo, de modo que as Partes interessadas concederão auxílio judiciário mútuo, na medida em que é permitido pelos tratados e pelas legislações aplicáveis no que diz respeito à recolha ou ao registro, em tempo real, de dados relativos ao conteúdo de comunicações específicas transmitidas por meio de um sistema informático.
Por fim, fechando o sistema de cooperação jurídica internacional em matéria penal disposto pela Convenção de Budapeste, há o procedimento chamado Rede 24/7 (Artigo 35º). Pelo que já se extrai da denominação, cada Estado parte designará um ponto de contato disponível 24 horas por dias, 07 dias por semana, a fim de assegurar a prestação de assistência imediata a investigações ou procedimentos respeitantes a infrações penais relacionadas com dados e sistemas informáticos, ou a fim de recolher provas, sob forma eletrônica, de uma infração penal.
Este sistema incluirá a facilitação ou, se o direito e práticas internas o permitirem, a aplicação direta das seguintes medidas: a) A prestação de aconselhamento técnico; b) A conservação de dados em conformidade com os artigos 29º e 30º; e c) A recolha de provas, informações de caráter jurídico e localização de suspeitos.
Frise-se que este procedimento é inovador em matéria de cooperação jurídica internacional no âmbito penal, não havendo outro tratado internacional que preveja sistemática semelhante de captação de provas e, mais do que isso, visa a extrema eficiência por parte dos Estados e autoridades judiciais e policiais no trato dos dados informáticos pertinentes à investigações de delitos praticados no ciberespaço, local no qual, devido a sua difusão, provas e outros elementos podem facilmente perder-se.
Desta feita, “ainda não há uma verdadeira lei de regência para a assistência jurídica mútua em matéria penal” (ARAS, 2019, p. 423), mas os procedimentos cooperacionais dispostos na Convenção de Budapeste (especialmente as medidas específicas de auxílio mútuo e a Rede 24/7) podem em muito contribuir para o progresso de investigações e a posterior persecução penal que visam justamente conter a cibercriminalidade. Faltando tão somente a promulgação por intermédio de ato do Poder Executivo federal, espera-se que a internalização do tratado possa incrementar o sistema cooperacional penal brasileiro.
3. INVESTIGAÇÃO E PERSECUÇÃO PENAL DE CRIMES CIBERNÉTICOS NO ÂMBITO NACIONAL
Do já exposto, percebe-se que a necessidade de internalizar a Convenção de Budapeste no Brasil tem por fim tornar o sistema investigativo e persecutório mais eficientes e condizentes com a evolução do próprio ciberespaço. E há um número incalculável de condutas ilícitas sendo praticadas diariamente por meio de redes informáticas.
Por exemplo, na avaliação do Grupo de Apoio Sobre Criminalidade Cibernética do Ministério Público Federal, o aumento do número de casos de crimes cibernéticos durante a pandemia da Covid-19 está associado ao crescente mercado de comercialização de dados pessoais, à baixa educação digital da população brasileira e ao aumento do uso da tecnologia para atividades que antes eram realizadas presencialmente.
Neste plano, a implementação da cooperação internacional no tema da criminalidade cibernética é estratégica e prioritária, já que impacta não somente na resolução e na repressão dos delitos cometidos na rede ou por meio da Internet, mas também toda a gama de crimes que envolvem a obtenção de dados e provas digitais.
No Brasil, no plano da criminalidade cibernética, os sistemas investigativos e de persecução penal se deparam com as mais diversas formas criminosas, mais há algumas que se destacam, devido à reiteração constante.
Assim, tem-se o estelionato e furto eletrônicos, comumente praticados por meio de fraudes bancárias (arts. 155, §§ 3º e 4º, II, e 171, do CP); invasão de dispositivo informático e furto de dados (art. 154-A, do CP); falsificação e supressão de dados (arts. 297, 298, 299, 313-A, 313-B do CP); armazenamento, produção, troca, publicação de vídeos e imagens contendo pornografia infanto-juvenil (arts. 241 e 241-A, do ECA); assédio e aliciamento de crianças (art. 241-D, do ECA); ameaça (art. 147 do CP); cyberbullying, que inclui a criação e publicação de perfis falsos, veiculação de ofensas em blogs e comunidades virtuais (arts. 138, 139, 140 do CP); interrupção de serviço (art. 266, §1º, do CP ); incitação e apologia de crime (art. 266, §1º, do CP); crimes de ódio (art. 20 da Lei 7.716/89); e crimes contra a propriedade intelectual e artística (art. 184 do CP e Lei 9609/98).
No ano de 2012, a Lei nº 12.737, que dispôs sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, alterou o Código Penal para inserir o art. 154-A, que tipifica o crime de invasão de dispositivo informático, com o seguinte texto: “Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”, cuja pena era de detenção, de 03 (três) meses a 01 (um) ano, e multa.
Já no ano de 2021, foi aprovada a Lei n° 14.155, para tornar mais graves os crimes de violação de dispositivo informático, furto e estelionato cometidos de forma eletrônica ou pela internet, que alterou o mencionado art. 154-A e elevou a pena para reclusão, de 01 (um) a 04 (quatro) anos, e multa. Além disso, inseriu os §§4º-B e 4º-C no art. 154-A, o primeiro para prever que a pena é de reclusão, de 04 (quatro) a 08 (oito) anos, e multa, se o furto mediante fraude é cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de computadores, com ou sem a violação de mecanismo de segurança ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo, e o segundo, considerada a pena prevista no §4º-B e a relevância do resultado gravoso, para aumentar de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do território nacional; e aumentar de 1/3 (um terço) ao dobro, se o crime é praticado contra idoso ou vulnerável.
Para fins de investigação e persecução penal, o Brasil não possui legislação específica para reprimir as condutas praticadas no ciberespaço, valendo-se preponderantemente do que dispõe o Código Penal e a legislação extravagante e, para acessar dados informáticos, há o que previsto na Lei nº 9.296/96, que trata da interceptação de dados telemáticos.
Medida de grande valia é aquela prevista na Seção V-A, inserida por meio da Lei nº 13.441/2017, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), dispondo sobre a infiltração de agentes de polícia para a investigação de crimes contra a dignidade sexual de criança e de adolescente, em especial no âmbito virtual, tal qual prevê o art. 190-A, sobre a infiltração de agentes de polícia na Internet com o fim de investigar os crimes previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do mesmo ECA, assim como aqueles previstos nos arts. 154-A, 217-A, 218, 218-A e 218-B do Código Penal.
Também, no mesmo sentido, o art. 10-A da Lei nº 12.850/2013 dispõe sobre a infiltração de agentes policiais virtuais a fim de investigar os crimes pertinentes à organizações criminosas, assim dispondo:
Art. 10-A. Será admitida a ação de agentes de polícia infiltrados virtuais, obedecidos os requisitos do caput do art. 10, na internet, com o fim de investigar os crimes previstos nesta Lei e a eles conexos, praticados por organizações criminosas, desde que demonstrada sua necessidade e indicados o alcance das tarefas dos policiais, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e, quando possível, os dados de conexão ou cadastrais que permitam a identificação dessas pessoas.
Diante do exposto, pode-se vislumbrar o quanto a legislação brasileira já avançou em termos de repressão à criminalidade praticada no ciberespaço, muito embora ainda haja lacunas e vácuos legais a serem preenchidos, especialmente quando se trata da captação de provas e elementos informativos pelos órgãos de investigação.
O Ministério Público Federal, por exemplo, considerando sua intensa atuação em crimes de natureza transnacional praticados por meio de redes computacionais, empreendeu esforços para que fosse aprovada no Brasil a Convenção de Budapeste, haja vista que o ingresso do Brasil no tratado em questão trará grandes benefícios à justiça brasileira, dentre eles, estão a melhoria do arcabouço legal relacionado ao combate a crimes cometidos na Internet, ampliação das hipóteses de cooperação internacional e o fomento a ações de capacitação e aprimoramento dos agentes públicos que lidam com a temática.
Para o Ministério Público Federal, a Convenção Sobre o Cibercrime é útil não somente para a persecução de crimes cibernéticos, mas principalmente para a obtenção das provas digitais que estão presentes em quase todos os delitos.
Nos casos em que o crime cometido extrapola a jurisdição brasileira, a obtenção de tais informações depende de cooperação internacional, que necessita ser ágil e eficiente a fim de que as provas não se pereçam ou sejam omitidas por quem as detém, sendo certo que a Convenção conta com um instrumento eficaz para a aquisição de tais provas, que é a Rede 24/7, utilizada por todos os países que aderiram a Convenção.
Logo, é possível antever que aprovação e internalização da Convenção de Budapeste pode auxiliar e muito nos procedimentos de investigação e persecução de crimes cibernéticos, em especial quando a conduta tem caráter transfronteiriço.
Assim sendo, poderá ser possível tomar a Convenção de Budapeste como “espelho” para o incremento da legislação nacional sobre o combate à cibercriminalidade, tal como já o fez diversos países desde o ano de 2001, quando a Convenção foi adotada, tendo sido já ratificada por diversos países da América do Sul, tais como Argentina (ratificou, em 05/06/2018), Chile (ratificou, em 20/04/2017), Costa Rica (ratificou, em 22/09/2017), República Dominicana (ratificou, em 07/02/2013), Panamá (ratificou, em 05/03/2014), Paraguai (ratificou, em 30/07/1018), e Colômbia (aprovou o projeto de lei para aderir à Convenção do Cibercrime).
CONCLUSÃO
Por fim, o texto apresentado (de cunho descritivo e praticamente acrítico) pretendeu demonstrar qual é a finalidade e efetividade da aplicação dos instrumentos de cooperação jurídica internacional em matéria penal da Convenção Sobre o Cibercrime, ou Convenção de Budapeste, tratado internacional adotado sob os auspícios do Conselho da Europa que, desde o início, mostrou-se receptivo para com os demais países que não integram o bloco regional europeu, incluindo o Brasil.
A Convenção de Budapeste dá um passo relevante no campo da cooperação jurídica internacional em matéria penal (que no contexto brasileiro aparentemente necessita de mais amparo normativo para ter eficaz e célere aplicação), possibilitando e facilitando a cooperação com os países signatários, mesmo com aqueles com os quais o Brasil não possui acordo bilateral de cooperação em matéria penal.
Somado a isso, como se observou, os Estados partes da Convenção de Budapeste tem acesso a programas de capacitação e aprimoramento no campo das investigações e persecução de crimes cibernéticos, havendo diversos projetos em andamento no Conselho da Europa (C-Proc), cujo orçamento próprio e específico é direcionado a esses programas, abrangendo inclusive Estados da América Latina, o que permitiria às forças policiais de investigação, Ministérios Públicos (Federal e Estaduais) e membros do Poder Judiciário brasileiro o acesso a tais canais de aperfeiçoamento em matéria de crimes cibernéticos.
Hoje, considerando o exponencial e flagrante crescimento tanto da criminalidade individual quanto da organizada por intermédio de redes informáticas, conformando as previsões da Lei nº 12.965/2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil (conhecida como “Lei do Marco Civil da Internet”), que inclusive tem previsão expressa sobre a captação de provas em qualquer lugar do planeta, a adesão do Brasil à Convenção de Budapeste somente tem a beneficiar os órgãos internos de investigação e persecução penal, que diariamente necessitam angariar esforços para combater um tipo de criminalidade que jamais morre, mas somente se transforma.
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Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos pelo Centro Universitário e Faculdades Uniftec (UNIFTEC). Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Faculdade Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Pesquisador com concentração em Direito e Processo Penal Internacional, Cooperação Jurídica Internacional e Direitos Humanos. Graduado em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Porto Velho/RO (ILES/ULBRA). Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado de Rondônia. E-mail: [email protected].
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCEZ, Junior D. S.. Breves Anotações Sobre a Cooperação Jurídica Internacional na Convenção de Budapeste e a Investigação e Persecução de Crimes Cibernéticos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2022, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58147/breves-anotaes-sobre-a-cooperao-jurdica-internacional-na-conveno-de-budapeste-e-a-investigao-e-persecuo-de-crimes-cibernticos. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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