RESUMO: O presente artigo visa analisar o apadrinhamento afetivo como instrumento de garantia e proteção dos direitos de crianças e adolescentes em instituições brasileiras de acolhimento com remotas possibilidades de serem adotadas. Inicialmente, realiza uma abordagem acerca do direito fundamental ao convívio familiar e comunitário de crianças e adolescentes e a possibilidade de construção de vínculos socioafetivos. Em seguida, compreende-se como o apadrinhamento afetivo pode ser um instrumento de promoção e garantia do direito à convivência familiar e comunitária para crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional.
Palavras-chave: Direitos de Crianças e Adolescentes. Direito Fundamental à Convivência Familiar e Comunitária. Apadrinhamento Afetivo.
INTRODUÇÃO
Resguardar os direitos da infância e da juventude é um dos grandes desafios enfrentados pela sociedade brasileira. As violações aos direitos que asseguram a proteção de crianças e adolescentes ocorrem de maneira constante e reiterada, enquanto muitos ainda fecham os olhos para o fato de que os mais afetados são aqueles que se encontram em um status de quase absoluto esquecimento: a juventude em situação de acolhimento institucional.
O estabelecimento de perfis restritos e, em certa medida excludentes, pelos pretendentes à adoção, com preferências que dificultam a colocação em família substituta e a inserção em um contexto familiar de crianças em idade mais avançada e adolescentes. Nesse contexto, buscando resgatar estes infantes de uma vida restrita à realidade das instituições e possibilitando a criação de vínculos afetivos a partir das relações intra familiares e comunitárias, desenvolveu-se o programa de apadrinhamento afetivo.
Trata-se de programa voltado para crianças e adolescentes em situação de acolhimento, sem possibilidades de retorno ao núcleo familiar natural e com baixa probabilidade de serem inseridas em família substituta através da adoção, estimulando a construção e manutenção de vínculos afetivos seguros e duradouros entre estes infantes e aqueles que desejam se voluntariar como padrinhos e madrinhas.
É, portanto um mecanismo desenvolvido para proporcionar a convivência familiar e comunitária a esse grupo de crianças e adolescentes com pouca ou nenhuma chance de serem adotados, priorizando a construção de laços familiares e vínculos permanentes àqueles que anseiam por referências afetivas.
Diante dessa realidade vivenciada nos acolhimentos institucionais em todo o país, o projeto de apadrinhamento afetivo surge como uma esperança para as crianças e os adolescentes com reduzida probabilidade de serem inseridas em família substituta. E tal se dá, porque as adoções tardias ocorrem em situações excepcionais, e o que se vê com frequência são crianças e adolescentes crescendo nas instituições de acolhimento e tendo esses lugares como única referência de lar.
Desse modo, verifica-se a relevância da tentativa de inserção desta juventude em famílias substitutas por meio do apadrinhamento afetivo, buscando efetivar a proteção dos direitos da infância e da juventude em caráter prioritário.
Em razão disso, busca-se analisar e compreender o apadrinhamento afetivo como instrumento capaz de legitimar a proteção dos direitos de crianças e adolescentes em instituições brasileiras de acolhimento institucional, com remotas possibilidades de serem adotadas, notadamente do direito ao convívio familiar e comunitário na construção de vínculo afetivo familiar e comunitário.
1. O DIREITO FUNDAMENTAL À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA E A CONSTRUÇÃO DE VÍNCULOS SOCIOAFETIVOS
O direito fundamental de crianças e adolescentes ao convívio familiar e comunitário elenca o rol de direitos expressamente previstos na Constituição Federal, bem como por normas infraconstitucionais, sendo a principal delas o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), além de estar firmado em tratados e convenções internacionais, pautando-se, entre outros, nos princípios basilares da prioridade absoluta e do melhor interesse da criança e do adolescente, elementos garantidores de sua legitimação.
Encontra-se o direito à convivência familiar e comunitária no mesmo patamar dos direitos fundamentais à vida, à dignidade, à liberdade e demais direitos civis, políticos e sociais trazidos pelo Texto Maior, o que denota a relevância jurídica e a atenção que o legislador constituinte deu à proteção das crianças e dos adolescentes, adotando a teoria da proteção integral, segundo a qual crianças e adolescentes são sujeitos que titularizam direitos ao passo em que demandam maior proteção da família, do Estado e da sociedade em razão de sua condição de pessoas em desenvolvimento e, portanto, suscetíveis a situações de maior vulnerabilidade.
Sob essa perspectiva, Bittencourt, entendendo que a Constituição resguarda o direito à proteção integral de crianças e adolescentes e compreendendo a necessidade de um olhar mais atento no sentido de efetivar tal premissa, bem destaca que:
[...] O princípio do melhor interesse coloca a criança ou o adolescente em um patamar de superioridade jurídica, quando seus interesses colidem com os de pessoas adultas, vale dizer, a proteção da criança determina que sejam contrariadas vontades e expectativas de adultos, ainda que sejam seus genitores e parentes. Esta prevalência se sustenta no fato de ser a criança e o adolescente uma pessoa em formação, que deve ser defendida com a urgência necessária para que tenha condições favoráveis de crescimento, enquanto ainda vive a infância ou a adolescência.[1]
Nessa senda, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em compasso com a Carta Magna, igualmente reconhece a essencialidade da intervenção familiar, estatal e social para garantir o direito à convivência familiar e comunitária ao dispor em seu artigo 4º, caput, que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade a efetivação dos direitos referentes à convivência familiar e comunitária”.
No mesmo contexto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, dispõe em seu artigo 16.3 que “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”, bem como a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, traz em seu artigo 17 que a “família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado”.
Outrossim, a Convenção sobre os Direitos da Criança além de estabelecer em seu preâmbulo que “a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão”, também dispõe que:
[...] A família como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros e, em particular, das crianças, deve receber a proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade.[2]
Acerca do direito à convivência familiar, Maciel assevera que se trata de direito inerente à vida humana, destinado à toda pessoa para viver em um espaço de construção de afeto e cuidado mútuos, e que ganha maior relevância quando se trata de crianças e adolescentes enquanto indivíduos em formação[3]. No que se refere ao direito à convivência comunitária, a autora compreende que:
[...] Constitui uma interseção imperativa com aquele outro, de maneira que somente com a presença de ambos haverá um bom e saudável desenvolvimento do ser humano em processo de formação. A criança e o adolescente, com o passar dos anos, ampliam os seus relacionamentos e passam a viver experiências próprias fora do âmbito familiar que lhe auxiliarão no incremento da personalidade e do caráter. Neste ponto, a convivência escolar, religiosa e recreativa deve ser incentivada e facilitada pelos pais. Estes espaços complementares do ambiente doméstico constituem pontos de identificação importantes, inclusive para a proteção e o amparo do infante, mormente quando perdido o referencial familiar. Na comunidade, ainda, a criança e o adolescente poderão desenvolver os seus direitos como cidadãos.[4]
Assim, a materialização destes direitos advém dos vínculos provenientes das relações familiares e sociais na modernidade, que encontram alicerce, cada vez mais, nos sentimentos recíprocos de carinho, afeto, respeito e cumplicidade, sendo tais elementos muito mais relevantes e sólidos na construção de relações interpessoais do que a ligação biológica propriamente dita. Abordando essa temática, Teixeira ensina que:
[...] É no interior famíliar que se reproduz a primeira organização social, onde se aprende valores como respeito, integridade e todas as regras de convivência. É nesse âmbito mais privado que as pessoas travam as primeiras experiências da vida pública, da co-existência, da cidadania, da inclusão ou da exclusão, dos conflitos, dos erros e dos acertos. A família é o lugar estratégico onde ocorrem os conflitos entre o público e o privado, cujas fronteiras deerminam o modo de ser dos indivíduos, que variam de acordo com os discursos predominantes em cada época histórica e suas respectivas gerações.[5]
O ambiente familiar, portanto, é o núcleo das relações interpessoais onde os indivíduos nele inseridos estão conectados, primordialmente, pelo afeto, sendo esse o elemento central que os une e que permite a formação estruturas familiares plúrimas e diversas, distanciando-se de um formato de família institucionalmente conservadora, hierarquizada e biológica, acercando-se da construção de vínculos pautados pela socioafetividade, dinamizando, democratizando e tornando mais igualitário esse espaço de encontro[6].
Nesse ponto, obsta pontuar que, com o advento da atual Constituição Federal houve uma relevante mudança de paradigmas no que tange à formação familiar, pois o casamento deixou de ser o objeto central de proteção, passando a instituição familiar, seja ela derivada do matrimônio ou não, a assumir posição central[7].
Desse modo, considerando as relevantes e cotidianas alterações nos aspectos social, econômico, político e cultural, e consequentes reflexos no cenário jurídico nacional, a família deixa de ser patriarcal para tornar-se nuclear. Esse novo referencial de família tem por escopo dar legitimidade à família eudemonista, cujo principal elemento é a construção de laços de solidariedade provenientes do afeto na organização familiar, visando alcançar a realização plena e integral de seus membros por meio da reciprocidade de comunhão e de respeito[8].
Sobre o tema, Engels preleciona “que a família deve progredir na medida em que progrida a sociedade, que deve modificar-se na medida em que a sociedade se modifique; como sucedeu até agora. A família é produto do sistema social e refletirá o estado de cultura desse sistema”[9].
Nesse contexto, a família deixa de ser uma entidade política para ser reconhecida como uma reunião de pessoas ligadas pelo afeto e pela assistência mútua, por um espaço onde haja estabilidade e responsabilidade social, que permita o desenvolvimento de personalidades, criando assim um espaço de harmonia e compartilhamento de sentimentos e vivências.
Portanto, pode-se dizer que a Constituição de 1988 passa a aferir a família em sua esfera sociológica, na medida em que reconhece que, em havendo uma pluralidade de formas de constituição familiar, todas merecem tratamento isonômico. Reconhecendo essas mudanças que acompanham o processo evolutivo das relações interp
Diante da valorização jurídica do afeto nas relações familiares, a convivência familiar é fundamental para o surgimento do estado de filiação alicerçado em sentimentos de afetividade, demonstrando, dessa forma, que a existência de tais vínculos não advém unicamente da relação sexual entre os genitores, ou seja, não se reconhece a entidade familiar apenas entre aqueles que possuem laços de sangue, senão também admite que se origine de outras formas, cuja premissa encontra respaldo jurídico no artigo 1.593 do Código Civil ao dispor que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. Ademais, assevera que:
Com a incorporação da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente assentou-se no mundo jurídico o reconhecimento da chamada “parentalidade afetiva”, que surge fora do vínculo consanguíneo, pois nasce do coração, dos sentimentos e afetos cultivados. Derivada do latim affectus, a palavra afeto possui a conotação de sentimento, ternura e afeição de uma pessoa por outra. A filiação socioafetiva possui seu esteio na cláusula geral de tutela da personalidade humana, que a salvaguarda como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade da criança. Esta condição, não raras vezes, é encontrada na história familiar de crianças e adolescentes privados da convivência com os genitores, através do acolhimento, que se identificam como filhos de pessoas que delas cuidam e com elas estreitam laços de afeto. Então, sob a ótica do princípio da afetividade surgem novas configurações de filiação.[10]
Nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, crianças e adolescentes devem, preferencialmente, crescer no seio da sua família natural, sendo este o local adequado para o seu desenvolvimento sadio, local de proteção, de afeto, de amor e de cuidado, sendo excepcional a sua colocação em família substituta ou em acolhimento institucional, a fim de assegurar o seu desenvolvimento integral[11].
Todavia, apesar de tais previsões legais, as violações a esses direitos são corriqueiras na realidade das instituições de acolhimento brasileiras, tendo em vista que nesses locais se observa, com frequência, crianças e adolescentes em uma situação de institucionalização prolongada, que ali se encontram há mais de dois anos, sem qualquer manutenção de vínculos com a família natural ou extensa e sem possibilidades de retorno para esse núcleo familiar e que tampouco foram destituídas do poder familiar, o que as impede de serem colocadas em uma família substituta, ou seja, encontram-se no limbo jurídico, crescendo em acolhimentos institucionais e ansiando por um lugar que possam reconhecer como lar. Sobre essa temática, Weber aponta que:
A institucionalização de crianças é um dispositivo jurídico-técnico-policial que pretendia ter o objetivo de "proteger a infância". Na realidade, o que ocorre é simplesmente o afastamento de crianças e adolescentes marginalizados (carentes, abandonados, doentes, infratores, etc.) do convívio social. Após o internamento de crianças, medida que deveria ser tomada como recurso extremo por curto período, existe uma probabilidade bastante grande da ocorrência do abandono nas instituições. Embora em termos jurídicos o abandono seja caracterizado pela falta, ação ou omissão dos pais ou quando é destituído dos pais o seu pátrio poder em virtude de uma sentença judicial, considero que quando uma criança ou um adolescente são colocados em um estabelecimento em regime de internato e não são assistidos pela família, ou seja, não têm uma relação de continuidade com a família, são abandonados, ainda que não o sejam em termos jurídicos.[12]
Acelerar os trâmites para encontrar um lar para crianças e adolescentes em situação de acolhimento deve ser a grande preocupação do Estado; no entanto, tal procedimento é, em regra, burocrático e moroso, tendo em vista que a tentativa exaustiva e demorada – e muitas vezes fracassada - de reinserção na família natural ou extensa acaba gerando incerteza e insegurança quanto ao tempo de institucionalização desses infantes e jovens, uma vez que não há um prazo limite para serem executadas medidas para mantê-los junto à família biológica e, enquanto isso, o processo de destituição do poder familiar vai sendo adiado, assim como o direito fundamental à convivência familiar e comunitária.[13]
Denota-se que a elevada quantidade de infantes e jovens crescendo em instituições de acolhimento, diminuindo as possibilidades de colocação em um núcleo familiar substituto, uma vez que grande parcela daqueles que desejam adotar no Brasil estabelecem perfis excludentes, com preferências, por exemplo, de sexo, etnia e idade, o que dificulta ainda mais a saída de crianças e adolescentes da realidade institucionalizada, privando-os do direito à convivência familiar e comunitária.
Desse modo, não reconhecer o vínculo afetivo como um instrumento fundador do núcleo familiar nos dias atuais representa relevante retrocesso social e vai de encontro a toda a moderna doutrina acerca do tema, que reconhece e legitima essa nova formação de família pautada na essência dos sentimentos humanos e no desejo mútuo e recíproco de compartilhar, conjugar e conviver, sendo o programa de apadrinhamento afetivo um instrumento que busca efetivar essa construção de novos vínculos familiares e comunitários em prol de crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional.
2. O APADRINHAMENTO AFETIVO COMO GARANTIA DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL
A colocação em instituição de acolhimento pode trazer consigo o abandono afetivo. Crianças e adolescentes que se encontram nessa condição anseiam por um lar de amor e reconhecimento e o desejo de serem inseridos em um núcleo familiar os acompanha durante toda a trajetória do acolhimento institucional, trajetória esta que, em muitos casos, se estende por grande parte da infância e toda a adolescência.
O apadrinhamento afetivo surge como uma busca pela promoção de vínculos afetivos seguros e prolongados entre jovens institucionalizados e aqueles que se voluntariam para serem padrinhos e madrinhas.
O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária conceitua o apadrinhamento afetivo como:
Programa, por meio do qual, pessoas da comunidade contribuem para o desenvolvimento de crianças e adolescentes em Acolhimento Institucional, seja por meio do estabelecimento de vínculos afetivos significativos, seja por meio de contribuição financeira. Os programas de apadrinhamento afetivo têm como objetivo desenvolver estratégias e ações que possibilitem e estimulem a construção e manutenção de vínculos afetivos individualizados e duradouros entre crianças e/ou adolescentes abrigados e padrinhos/madrinhas voluntários, previamente selecionados e preparados, ampliando, assim, a rede de apoio afetivo, social e comunitário para além do abrigo. Não se trata, portanto, de modalidade de acolhimento.[14]
Desse modo, infere-se que tem como objetivo central proporcionar o convívio familiar e comunitário a crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional, sem possibilidades de serem reinseridas no núcleo familiar natural e com reduzida probabilidade de serem colocadas em uma família substituta por não se encaixarem no perfil nacional de adoção[15].
A depender da faixa etária e de suas vivências passadas, crianças e adolescentes colocados em acolhimentos institucionais necessitam de atenção direcionada e de cuidados especiais e personalizados a fim de verem estimulados os seus potenciais, bem como de terem atendidas as suas necessidades afetivas, métodos estes nem sempre colocados em prática nesses locais, razão pela qual a institucionalização prolongada pode afetar o desenvolvimento global dos que ali se encontram. Nesse sentido:
O espaço institucional não é o meio natural para o favorecimento do desenvolvimento integral da criança, a qual passa a ser cuidada por pessoas que até então não conhecia e cujos referenciais, muitas vezes, encontram-se dissociados de seu contexto social e familiar. O desrespeito a estes princípios, associados à carência de estimulação, de vínculos afetivos e de atenção emocional, gera prejuízos evidentes e inevitáveis que, como visto, afetam o desenvolvimento global da criança. A institucionalização prolongada impede a ocorrência de condições favoráveis ao bom desenvolvimento da criança. A falta da vida em família dificulta a atenção individualizada, o que constitui obstáculo ao pleno desenvolvimento das potencialidades biopsicossociais da criança.[16]
Assim, partindo do desejo de sanar as violações ao direito à convivência familiar e comunitária e buscando reduzir os efeitos que a colocação em acolhimento institucional pode trazer para as crianças e os adolescentes que se encontram submetidos à essa situação, é que o programa de apadrinhamento afetivo foi desenvolvimento e implementado em vários Estados do país.
O programa é voltado para crianças e adolescentes sem perspectiva de serem inseridas em um núcleo familiar, com o objetivo de encontrar um padrinho ou madrinha para cada uma delas que irão acompanhar o desenvolvimento dos apadrinhados, orientando-os, participando de suas vidas e contribuindo para a construção de sua autonomia social e uma referência familiar.
Portanto, é uma forma de amenizar a ausência de vínculos afetivos de crianças e adolescentes que vivem em instituições de acolhimento, bem como de reduzir as angústias e aflições que surgem inevitavelmente com o passar do tempo ao se verem desamparados emocionalmente, com pouca ou nenhuma perspectiva de serem inseridos em família substituta.
Válido destacar que, no Brasil, ainda não há uma legislação que disponha sobre o apadrinhamento afetivo e, portanto, não existem regras determinando um padrão a ser seguido para executá-lo. Entretanto, apesar dessa ausência normativa, o programa visa, em regra, atingir crianças a partir de 5 ou 6 anos de idade – essa faixa etária varia para mais ou para menos a depender da situação dos infantes institucionalizados em cada Estado – e adolescentes, grupos de irmãos e aqueles que apresentam algum problema de saúde, fatores estes que os colocam à margem do perfil estabelecido por aqueles que pretendem adotar.
Confome lição de Zerbinatti e Kemmelmeier, o programa de apadrinhamento afetivo surgiu a partir da influência que as mudanças e transformações em torno dos arranjos familiares e da proteção ao convívio familiar e comunitário provocaram na seara dos direitos da infância e da juventude e o definem como:
Um novo programa [...] que surge com o intuito de permitir que crianças em situação de acolhimento institucional tenham outras referências de vida e de comunidade além da dos profissionais que com elas convivem, proporcionar relações dentro de uma família nas quais terão novos exemplos de participação familiar e de cidadania dentro da sociedade.[17]
É inegável a relevância de um programa como o apadrinhamento afetivo, que traz consigo a capacidade de mudar a trajetória da vida de indivíduos que estão transitando por uma fase de mudanças, de descobertas, assumindo personalidades, um momento no qual a presença de adultos que contribuam para a formação do caráter e da autonomia social e que permitam a inserção destes infantes e jovens nos mais heterogêneos espaços sociais é fundamental, afinal, conforme lição de Cuneo, uma instituição de acolhimento “por mais que haja uma atmosfera de ambiência familiar artificialmente criada, somente uma relação familiar propicia um sentimento de intimidade, cumplicidade e um convívio mais afetuoso, personalizado e individualizado”[18].
Assim, para crianças e adolescentes apadrinhados afetivamente, os padrinhos e madrinhas representam o referencial de família fora das instituições de acolhimento. Essa relação proporciona uma vivência e convivência positiva para ambos, contribuindo para a redução do abandono e fazendo ressurgir a autoestima em razão da oportunidade de serem assistidos por quem deseje oferecer-lhes afeto, carinho, amor e cuidado.
Por fim, conclui-se que apadrinhamento afetivo é uma iniciativa que visa estimular a construção e a manutenção de relações de afeto sólidas e que se prolonguem no tempo entre crianças e adolescentes e seus padrinhos e madrinhas, proporcionando-lhes conviver com pessoas externas aos muros das instituições de acolhimento, na presença de adultos que sejam referência de ser humano, que estimulem o desenvolvimento salutar e que influenciem positivamente na formação do seu caráter e da sua personalidade, produzindo impacto transformador em suas vidas e, assim, garantindo a efetivação do direito fundamental à convivência familiar e comunitária.
CONCLUSÃO
A construção do vínculo afetivo familiar para as crianças e adolescentes reside no fato de que a elas é garantido constitucionalmente o direito à convivência familiar e comunitária, mas o que se observa, em regra, nos acolhimentos institucionais, são infantes e jovens crescendo sem qualquer referência de lar.
Nesse sentido, é que o contato com um núcleo familiar intermediado pelo programa de apadrinhamento afetivo proporciona o nascimento de um vínculo afetivo externo aos acolhimentos institucionais, viabilizando a inserção social de infantes e jovens em um contexto familiar que irá interferir diretamente no desenvolvimento das suas relações interpessoais.
Outrossim, o programa de apadrinhamento afetivo, direcionado à crianças e adolescentes em situação de acolhimento e com remotas possibilidades de serem adotadas, é um instrumento que possibilita a criação de laços familiares e vínculos afetivos, na medida em que proporciona a estas crianças e adolescentes o contato com uma realidade distinta da que presenciam nos acolhimentos institucionais, qual seja a ausência do afeto e do cuidado oferecidos em um núcleo familiar.
REFERÊNCIAS
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[1] BITTENCOURT, Sávio. A nova lei de adoção: do abandono à garantia do direito à convivência familiar e comunitária. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 38-39.
[2] BRASIL. Decreto nº 99710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Convenção sobre os Direitos da Criança. Brasília, DF.
[3] MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 78.
[4] MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 78.
[5] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 12.
[8] VIANNA, Roberta Carvalho. O instituto da família e a valorização do afeto como princípio norteador das novas espécies da instituição no ordenamento jurídico brasileiro. 2011, online.
[9] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 91.
[10] MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 93.
[11] Art. 19, ECA. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016)
[14] BRASIL. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília, DF, 2006.
[16] CUNEO, Mônica Rodrigues. Abrigamento prolongado: os filhos do esquecimento: A institucionalização prolongada de crianças e as marcas que ficam. Censo da População Infanto Juvenil Abrigada no Estado do Rio de Janeiro. 2022.
[17] ZERBINATTI, Aline Gabrielle; KEMMELMEIER, Verônica Suzuki. Padrinhos afetivos: da motivação à vivência. 2014.
[18] CUNEO, Mônica Rodrigues. Abrigamento prolongado: os filhos do esquecimento: A institucionalização prolongada de crianças e as marcas que ficam. Censo da População Infanto Juvenil Abrigada no Estado do Rio de Janeiro. 2022.
Advogada pós-graduada
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, Livia Martins Nunes. O apadrinhamento afetivo como instrumento para a garantia do direito fundamental de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jun 2022, 04:04. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58781/o-apadrinhamento-afetivo-como-instrumento-para-a-garantia-do-direito-fundamental-de-crianas-e-adolescentes-convivncia-familiar-e-comunitria. Acesso em: 04 dez 2024.
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