LETÍCIA LOURENÇO SANGALETO TERRON
(orientadora)
RESUMO: O presente trabalho apresenta uma abordagem sobre crimes virtuais cometidos contra crianças, tendo como o principal foco, o estupro virtual, dissertando sobre a qualificação do crime de estupro no ambiente cibernético, onde o autor se aproveita da vulnerabilidade da vítima com o fim de satisfazer a sua lascívia, tal pratica também se relaciona ao crime de pornografia infantil, uma vez que ao aliciar menores a reproduzirem atos libidinosos e posteriormente armazenando tais conteúdos o agente da conduta passa a cometer também o crime tipificado no Estatuto da Criança e do adolescente, por fim, as formas de combate e repressão as violações dos direitos garantidos pela constituição e pelas legislações especiais que protegem as crianças. O presente projeto fora produzido baseado em pesquisas na internet, livros da biblioteca institucional e artigos científicos utilizando de metodologia dedutiva. Conclui-se que o objetivo deste trabalho é expor os perigos da internet a uma criança e evidenciar determinadas medidas que os tutores devem tomar para evitar que seus filhos sejam vítimas de tamanha crueldade, instruindo também como proceder em tais casos.
Palavras Chaves: Estupro. Criança. Virtual. Vulnerabilidade. Pornografia.
ABSTRACT: The present work presents an approach on virtual crimes committed against children, having as the main focus, the virtual rape, disserting on the qualification of the crime of rape in the cyber environment, where the author takes advantage of the victim's vulnerability in order to satisfy the their lewdness, such practice is also related to the crime of child pornography, since by enticing minors to reproduce libidinous acts and later storing such contents, the conduct agent starts to also commit the crime typified in the Child and Adolescent Statute, finally , ways of combating and repressing violations of rights guaranteed by the constitution and by special legislation that protects children. This project was produced based on internet research, books from the institutional library and scientific articles. The objective of this work is to expose the dangers of the internet to a child and highlight certain measures that guardians must take to prevent their children from being victims of such cruelty, also instructing how to proceed in such cases.
Key Words: Rape. Child. Virtual. Vulnerability. Pornography.
A internet se tornou uma ferramenta essencial para a sociedade, principalmente em tempos de pandemia do COVID-19. Por conta do isolamento social foi necessário adaptar diversas tarefas cotidianas ao mundo virtual, seja o trabalho que passou a ser em home office, ou a utilização do Ensino Remoto para o aprendizado, coisas essas que só puderam ser alcançadas graças a tecnologia.
Com a intensa expansão do cyber espaço e o uso intensivo das redes sociais, junto das facilidades proporcionadas, também se criou uma imensa área para a prática de crimes, principalmente de cunho sexual, pela possibilidade do anonimato os delinquentes criam mais confiança para a sua prática, por acreditarem estar protegidos de investigações.
Tais crimes de cunho sexual possuem como principal alvo os menores de idade, que por conta de sua vulnerabilidade e falta de proteção, acabam se tornando “presas” fáceis para os denominados predadores sexuais.
Diante do anonimato proporcionado pela internet, pessoas mal-intencionadas, se camuflam como crianças e adolescentes, esses indivíduos se aproximam das possíveis vítimas, na tentativa de ganhar sua confiança para aliciar os menores a práticas de sexting, que consiste na troca e compartilhamento de conteúdo e mensagens eróticas tais como vídeos, fotos e recados
O sexting por si só não é uma prática delituosa, quando praticado com uma pessoa maior de idade e que não seja vulnerável. Quando se trata de crimes contra a Criança e o Adolescente, tal ato já se configura como uma infração ao artigo 241 – B do Estatuto da Criança e do Adolescente, como o crime de Pornografia Infantil.
Quando o infrator adquiri tais conteúdos já pode ser considerado o Estupro de Vulnerável uma vez que mesmo com o consentimento do menor de idade, a lei não o considera capaz de exercer sua liberdade sexual, configurando então o crime nos ditames do artigo 217 do Código Penal que passou a possibilitar tal entendimento através da alteração pela Lei 12.015/09.
Sendo assim o presente estudo tem como finalidade analisar o artigo 213 e 217 do Código Penal, as alterações no crime de Estupro realizados pela Lei 12.015/09 e a adequação para o ambiente virtual através da interpretação dos atos libidinosos pelo entendimento doutrinário, juntamente com a jurisprudência dos casos julgados, discorrendo sobre a prática do crime de Estupro Virtual contra Crianças, apontando as formas de execução, os riscos e o aumento dos casos durante a pandemia, as possíveis consequências de tal crime, tanto para adultos quanto para menores de idade que ainda estão em desenvolvimento psicológico, assim como os métodos de proteção e combate oferecidos pela lei brasileira e pelos sites de comunicação social, para a assegurar a dignidade, honra e segurança das crianças e adolescentes no âmbito virtual.
Antes de adentrarmos no tema da pesquisa, é necessário introduzirmos o termo Crimes Virtuais ou Crimes Cibernéticos, a fim de não ocorrer dúvidas quanto a execução de um delito dentro das redes e os delitos cometidos no mundo real.
Os Crimes virtuais advêm de uma grande expansão da área da informática. Com os avanços tecnológicos e sociais e a criação de ferramentas de comunicação, como as redes sociais, facilitou-se o relacionamento entre pessoas do mundo todo. Toda essa modernização também chegou à área dos delitos que se adaptaram para o ambiente virtual.
Entende-se por crime cibernético toda a atividade criminosa feita através de um computador ou que tenha por alvo algo que só poderá ser acessado em um, seja uma rede de computador, um dispositivo ou dados armazenados.
Seguindo este pensamento, aduz Augusto Rossini:
[...] o conceito de “delito informático” poderia ser talhado como aquela conduta típica e ilícita, constitutiva de crime ou contravenção, dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva, praticada por pessoa física ou jurídica, com o uso da informática, em ambiente de rede ou fora dele, e que ofenda, direta ou indiretamente, a segurança informática, que tem por elementos a integridade, a disponibilidade a confidencialidade. (ROSSINI, 2004, p. 110)
Os tipos mais comuns de crimes cibernéticos são relacionados a informações, como dados financeiros, muitas das vezes com a intensão de extorquir uma empresa. Alguns crimes somente são possíveis através de um computador, outros se moldaram a tal evolução se adaptando a esta ferramenta, como o próprio crime de estupro virtual, que como estupro já era dado como crime pela redação do Artigo 213 do CP, sendo que a partir da alteração 12.015/09 passou-se a interpretar outros atos libidinosos que podem ser praticados pela internet.
2.2 Crime de estupro e atos libidinosos
Quando se fala em crime de estupro muita das vezes pode ocorrer uma confusão com o termo, isso porque ainda se tem como senso comum que estupro apenas ocorre quando há a conjunção carnal (cópula pênis-vagina), tal como configurava a lei até pouco tempo.
O crime de estupro existe desde os primórdios do ordenamento jurídico no Brasil, hoje configurado pelo Código Penal através da redação da Lei nº. 12.015/09, fora ampliado a sua interpretação devida as mudanças feitas no artigo 213 e todos os seus derivados como o 217, o que acarretou novas interpretações quanto ao dispositivo, ocasionando a possibilidade de extensão da aplicação deste.
Com a alteração o crime de estupro foi inserido dentro dos denominados “Crimes contra a Liberdade Sexual”, o qual dispõe o Artigo 213:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena: - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
§1.º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§2.º Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
(BRASIL, 2009)
Com a entrada dos atos libidinosos a lei, foi criada uma ampla gama de possibilidade da consumação do delito de estupro. O novo texto prevê que o constrangimento seja a “alguém”, tornando possível que qualquer pessoa seja vítima, inclusive homens cis e transexuais e não somente as mulheres, seguindo a mesma linha de raciocínio para o polo ativo do crime. Já não mais se configura como estupro apenas a conjunção carnal, a partir desta alteração enquadra-se no delito diversas outras práticas que tenham por objetivo a satisfação da lascívia, dado no texto como “atos libidinosos”.
O objetivo do Legislador na criação do crime de estupro é proteger a liberdade sexual da vítima, seu poder de escolha sobre fazer ou não, como dispõem Gusmão (2001, p. 35) “a liberdade sexual é representada por sua característica maior que é o consentimento. Quando violada a liberdade sexual, impedindo que a vítima exerça o poder desse consentimento, afeta o direito sobre o seu corpo, tornando-se assim um crime”. Nessa mesma linha de pensamento complementa Bitencourt (2012, p. 51) que “para configurar o estupro é necessário o dissenso (não consentimento) sincero e positivo da vítima durante todo o ato sexual, ou seja, uma reação efetiva à vontade do agente de com ele ter conjunção carnal”. No caso em que a negativa não é sincera ou se depois de resistir, consentiu o ato sexual, não se fala em crime de estupro.
A doutrina classifica o delito da seguinte maneira:
Trata-se de crime comum (aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa), plurissubsistente (costuma se realizar por meio de vários atos), comissivo (decorre de uma atividade positiva do agente “constranger”) e, excepcionalmente, comissivo por omissão (quando o resultado deveria ser impedido pelos garantes – art. 13, § 2º, do CP), de forma vinculada (somente pode ser cometido pelos meios de execução previstos no tipo penal: violência ou grave ameaça), material (só se perfaz com a produção do resultado conjunção carnal ou outro ato libidinoso), de dano (só se consuma com a efetiva lesão ao bem jurídico protegido, a liberdade sexual da vítima), instantâneo (uma vez consumado, está encerrado, a consumação não se prolonga), monossubjetivo (pode ser praticado por um único agente), doloso (conquanto a previsão de modalidade culposa), não transeunte (quando praticado de forma que deixa vestígios), ou transeunte – quando praticado de forma que não deixa vestígios (MAGGIO, 2013, p. 01).
Para tratar de crimes contra a liberdade sexual é fundamental a compreensão do artigo 213, pois este é o principal percursor do título penal, conforme apontado por Queiroz (2011): ‘’O estupro é o tipo penal fundamental, relativamente aos demais crimes contra a liberdade sexual (assédio etc.), que são acessórios, razão pela qual ocorrência desses últimos pressupõe a não incidência do tipo principal.’’. Dessa forma compreende-se o destaque do crime de Estupro perante os demais artigos dos crimes contra a liberdade sexual, por se tratar de um Dispositivo “norteador”.
O Legislador busca trazer um conceito mais amplo para o crime de estupro ao adicionar os chamados Atos Libidinosos, que pelo Código Penal é divido em dois tipos, sendo o 1º e mais conhecido a conjunção carnal, sendo a introdução completa ou incompleta do pênis na vagina e o 2º tipo introduzido recentemente ao dispositivo que consiste nos outros atos, estes que são quaisquer formas do autor do delito em satisfazer a sua lascívia.
Os outros atos são considerados desde atos “simples” como por exemplo o toque, a masturbação ou um beijo lascivo, popularmente dito como beijo de língua, até práticas mais gravosas, que não eram alcançadas na redação anterior, como o coito anal, ou sexo oral dentre outras diversas ações que podem ser pretendidas pelo infrator, desde que, através dela ele satisfaça a sua lascívia.
O objetivo da lei de estupro é tutelar o bem jurídico da liberdade sexual, o direito de escolher quando, com quem e como praticar atos de cunho sexual, logo foi de suma importância e urgência a implementação de tal regra ao crime de estupro, uma vez que, assim como a conjunção carnal, estes atos também atentam contra a liberdade sexual do indivíduo pois há o constrangimento da vítima. Segundo Maggio o constrangimento, verbo do crime, significa obrigar, coagir, compelir ou forçar a vítima através da violência ou da grave ameaça (2013), o que leva a possibilidade do crime sem a conjunção carnal.
3.1 Estupro x Estupro de Vulnerável
Para o tema em questão é importante ressaltar que abordaremos o artigo 217-A do Código Penal, que aborda o crime de Estupro de Vulnerável. A vulnerabilidade está atrelada a pessoas que não possuem aptidão psicológica ou física e assim capacidade para compreensão da prática do ato libidinoso.
Configura o art. 217-A:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1 o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2 o (VETADO) (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 3 o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 4 o Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
(BRASIL, 2009)
A diferença entre ambos os dispositivos legais está no Discernimento e na Vulnerabilidade da Vítima.
O Código Penal considera vulnerável as seguintes pessoas:
a) Pessoa menor de 14 anos;
b) Pessoa que, por enfermidade mental, não tiver o necessário discernimento para a prática do ato;
c) Pessoa que, por deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para a prática do ato;
d) Pessoa que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.
Para ser configurada a conduta descrita no artigo 213 é necessário o discernimento da vítima, ou seja, somente se enquadrara ao delito quando a pessoa tem a capacidade para tomar decisão e compreender a conduta, o que gera a capacidade de a pessoa consentir ou não com o ato sexual. Já no art. 217-A o consentimento é irrelevante, pois a vítima não possui o discernimento necessário para compreender a condutam, conforme cita Queiroz (2011) “Quando se tratar de estupro de vulnerável, o consentimento eventualmente dado pelo ofendido é, em princípio, juridicamente irrelevante, porque inválido.”
Sendo assim observa-se que diferente do estupro que tem como elemento o constrangimento e o não consentimento da vítima através de violência ou grave ameaça, o crime de estupro de vulnerável se enquadra como delito mesmo quando há o aceite, uma vez que ela não possui capacidade para compreender o que está ocorrendo, sendo assim, basta ocorrer o ato libidinoso para se enquadrar a conduta delituosa.
Explicada as alterações feitas pela Lei 12.015/09, passamos para o entendimento de como é possível o crime de estupro ser plausível em ambiente virtual. O estupro virtual é fruto do avanço tecnológico, com o avanço da internet e o aumento massivo de novas formas de se relacionar tais como as mídias sociais (Facebook, Twitter, Instagram, Whatsapp etc.) o crime de estupro se “modernizou” e hoje pode ser praticado também através do cyber espaço.
Ao citar “(...)praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” a lei abre interpretação para que se enquadre o crime de forma cibernética. Mesmo que não haja o termo “virtual” no Código penal, é amplamente aceito por juristas tal possibilidade, uma vez que haja o constrangimento da vítima e o ato libidinoso pelo qual o autor do crime satisfaça sua lascívia.
Camargo (2019) esclarece que na ocorrência do crime de estupro virtual o autor diferente do crime de estupro físico, não utiliza da força bruta, mas sim da violência e domínio psicológico, utilizando de chantagens ameaças chegando ao constrangimento da vítima. Sendo assim havendo o constrangimento da vítima e a falta de consentimento, configura-se o crime de estupro.
Assim conceitua-se estupro virtual: “se caracteriza pela ameaça ou coação através da internet para o cometimento de todo e qualquer ato libidinoso. Ou até mesmo, o uso de imagens usadas para chantagear a outra parte” (CAMARGO, 2019, p. 01).
O seguinte caso é um exemplo: uma pessoa, ao conhecer outra em uma rede social passa a trocar mensagens, após algum tempo, iniciam-se os flertes e acreditando se tratar de uma pessoa bem-intencionada, a vítima acaba por enviar fotos intimas. O agente ao obter a foto, passa a ameaçar a vítima de expor o conteúdo, obrigando assim a dona da foto a satisfazer a lascívia do autor, se masturbando através de vídeos ou durante uma chamada.
Nota-se que no caso, ao destrincharmos o dispositivo legal, há todos os pressupostos da lei para a aplicação do entendimento do crime no âmbito virtual, há o constrangimento da vítima, uma vez que lhe foi tirada a sua liberdade sexual, foi lhe retirado o poder de escolha de fazer ou não aquele ato, mediante violência ou grave ameaça, visto que há a ameaça através da chantagem do compartilhamento do conteúdo e pôr fim a prática do ato libidinoso, que foi os vídeos e a chamada de vídeo exigida pelo autor.
Não restam dúvidas que nesse caso, há sim o crime de estupro na sua forma cibernética, mesmo que no texto da lei não haja o termo. Não há diferenças entre o resultado de ambas as práticas, seja a física ou a virtual, a vítima não teve poder de escolha, pois ali havia a utilização da violência, de forma psicológica e as ameaças de divulgação. O objetivo da lei nos crimes sexuais é de proteger a liberdade sexual, o que claramente foi violado no caso exemplificado
Por mais que engatinhe o reconhecimento desse tipo de estupro no cenário jurídico atual, não podemos negligenciá-lo ignorando sua tipicidade, devendo, entretanto, ser punido como tal, pois a dignidade sexual do ser humano é uma só, ainda que figurando em dois mundos diferentes (o real e o virtual). DENIS CARAMIGO (2016)
Ainda que seja recente o engajamento da adequação da norma ao ambiente virtual, conclui-se a necessidade de termos uma forma de proteção das vítimas ao contexto inserido, não deixando como meros crimes de importunação, para uma ação que pode ter consequências desastrosas para a vítima.
Atualmente a tecnologia é parte fundamental do desenvolvimento de muitas crianças e adolescentes que exploram o universo virtual, para aprender, se divertir, produzir ou conversar, mas junto da imensidade de possibilidades que a internet proporciona aos jovens muitos acabam se expondo em situações de vulnerabilidade e risco.
Como a internet fornece a possibilidade do anonimato muitos adultos utilizam de tal fruto para cometer delitos ao acreditarem estar totalmente ir rastreáveis, a partir disso passam a manter contato com crianças e adolescentes, fingindo ter a mesma faixa-etária através de perfis fakes.
Após ganhar a confiança dos menores de idade, os condutores as convencem de serem mais íntimos e aproveitando da ingenuidade das vítimas passa a pedir fotos e vídeos de teor sexual. Tal conduta ocorre com facilidade pois muitas das vezes a vítima não chega a notar a prática do ato, ou não possui discernimento da ilicitude do ato.
Até aqui, o autor já está cometendo um crime gravíssimo, uma vez armazenado os conteúdos íntimos das vítimas já se configuram o delito de pornografia infantil de acordo com ECA no seu Art. 241-B, o qual dispõe adquirir, possuir ou armazenar em qualquer meio, a pornografia infantil.
Além disso, só o aliciamento de crianças, por qualquer meio que seja, que tenha como objetivo de fazê-las se exibirem de forma pornográfica já é punível com pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa.
O autor do crime sempre busca novos materiais, e para isso, a partir do momento em que o vulnerável começa a recusar os pedidos do estuprador, que já estava cometendo o crime, já que como dito anteriormente, o consentimento da vítima nesses casos é irrelevante, ele passa a uma conduta mais grave, ameaçando a vítima da divulgação das fotos íntimas começando ataques e abusos psicológicos. A vítima por medo tanto das ameaças do autor como a possibilidade de ter sua intimidade exposta, passa a acatar aos pedidos.
O primeiro caso registrado do crime de Estupro Virtual no Brasil foi em Teresina, Piauí em 2017 apenas 4 anos atrás. Nesta situação o namorado obrigava sua companheira a gravar vídeos se masturbando, caso contrário ele iria expor os vídeos que tinha nas redes sociais, o mesmo foi preso após uma denúncia da sua ex-namorada. O juiz do Caso, Luiz de Moura, entendeu que o estupro foi consolidado pois a ofendida, mediante coação moral irresistível, foi obrigada a realizar as ordens do autor.
Com o então julgamento inédito no país, esse tema ganhou grande destaque sendo pauta de diversas discussões desde então, alguns juristas como D’urso(2020, p. 01) afirmam: “este julgado é mais um marco na história da Justiça e do Direito Digital, tratando-se de uma decisão que consolida mais ainda a questão do estupro virtual no Brasil, tema ainda controverso”.
Outro caso conhecido, com elementos de pornografia infantil e estupro de vulnerável como ditos possíveis nesse estudo, foi de um estudante de 24 anos, de Porto Alegre/RS, se comunicava com um menino de 10 anos, de São Paulo/SP, via internet. Por meio de uma rede social, e de um software de áudio e vídeo, o acusado mantinha conversas de cunho sexual com a vítima, inclusive, sem roupa. O assédio foi descoberto pelo pai da vítima, que fez a denúncia. A investigação levou à prisão do estudante e à descoberta de que ele também armazenava cerca de 12 mil imagens contendo pornografia infantil (D´URSO, 2020, p. 02).
Neste caso a Juíza Tatiana Gischkow Golbert, da 6ª vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre, condenou o ator do crime tanto pelo crime de Estupro, tendo em vista as práticas de atos libidinosos, por meio virtual com o menor de 14 anos, como os crimes de aquisição, posse ou armazenamento de material pornográfico, Artigo 214-B do ECA, e pelo crime de aliciamento/assédio de menores para exibição pornográfica, Artigo 241-D, também do mesmo Estatuto.
A Desembargadora do TJ/RS Fabianne Breton Baisch, citou que as provas além de deixarem claras as práticas do assédio e a demonstração nítida intenção da prática dos atos libidinosos, como de fato concretizados 2 vezes, conforme afirma a relatora (Proc. 70080331317). A defesa ainda tentou recurso em alegação de que o autor do crime não possuía conhecimento da idade da vítima e que a mesma aparentava ser mais velha, porém a magistrada refutou a tese, pois segundo ela as fotos das redes sociais da vítima revelavam nitidamente a sua idade.
Dessa forma a Desembargadora manteve a condenação fixando a pena em 12 anos, 9 meses e 20 dias de Reclusão apoiada pela Desembargadora Naele Ochoa Piazzeta e Dálvio Leite Dias, a primeira que acrescentou:
Debruçando-me sobre os autos, deparei-me com um agente de extrema periculosidade, estudante de importante Universidade deste Estado, utilizando-se das redes sociais e de sua ardileza para atrair o impúbere e com ele praticar os atos descritos na exordial, ferindo gravemente sua dignidade sexual e existindo indícios da execução de outros delitos em circunstâncias semelhantes. (…) Diante de tais informações, existindo indícios de que se trata de verdadeiro predador sexual, em muito diferenciado dos demais casos que esta Corte costumeiramente examina, inviável cogitar da aplicação da atenuante da tentativa como forma de observar a proporcionalidade entre fato típico e sanção.(TJ/RS 70.080.331.317)
Vale expor também o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça que se alinha ao julgado:
Inspirada nesse mandamento constitucional, a Quinta Turma deste Superior Tribunal de Justiça, em recente precedente de Relatoria do em. Min. Joel Ilan Paciornik, lembrou que “a maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido”. Destacou-se, ali, que o “estupro de vulnerável pode ser caracterizado ainda que sem contato físico”. Na assentada, esta relatoria ainda salientou que “o conceito de estupro apresentado na denúncia (sem contato físico) é compatível com a intenção do legislador ao alterar as regras a respeito de estupro, com o objetivo de proteger o menor vulnerável. Segundo o ministro, é impensável supor que a criança não sofreu abalos emocionais em decorrência do abuso”. (Notícia extraída do sítio eletrônico do STJ, cuja veiculação ocorrera no dia 3/8/2016)” (AgRg no REsp 1.819.419/MT, j. 19/09/2019).
Diante do exposto, conclui-se que é valido e já utilizável o crime de estupro em ambiente virtual, perante a utilização da doutrina majoritária na jurisprudência.
O crime de estupro pode causar danos irreparáveis ao psicológico da vítima, principalmente quando crianças. Ainda que gravosos muita das vezes esses crimes não são denunciados, principalmente quando acometidos virtualmente, isso porque de um ponto de vista sociológico, desde o momento em que ocorre o crime, até o momento da queixa na Delegacia a vítima passa por um constrangimento enorme e toma aquele ato como vergonhoso, ainda que não seja sua culpa.
O problema se torna severamente problemático principalmente quando vem a público. As vítimas desse constrangimento não recebem o devido apoio, seja dentro da família, da escola ou do trabalho, são tidas como culpadas pelo acontecimento, ainda mais quando crianças, que por não terem o discernimento necessário, ao invés de amparadas são amplamente atacadas e julgadas, sofrendo perguntas como “Por que você fez isso?” “A culpa é sua, deveria tomar cuidado com quem fala!” esses questionamentos e acusações fazem com que a vítima se sinta culpada e com medo de novos ataques, não prossiga com a denúncia, o medo da represália popular muita das vezes faz com que a vítima acabe acatando as ordens do autor do delito ao invés de prestar queixa.
Nesse sentido, temos o entendimento de Konder Comparato:
O impacto de um estupro pode ser devastador, pois se trata de uma experiência “extremamente desmoralizadora, despersonalizada e degradante”. […] E as vítimas de estupro têm repetida tendência de virem a apresentar (a curto e longo prazo) transtornos psiquiátricos, especialmente o TEPT, depressão, transtornos fóbico-ansiosos, transtornos relacionados a abuso de substâncias psicoativas, transtornos de personalidade, transtornos dissociativos, transtornos de somatização e transtornos alimentares (COMPARATO, 2007 apud JUNIOR, 2018, p. 03)
Para crianças, esse efeito é ainda mais devastador, uma vez que já não possuindo o necessário conhecimento e por estar na sua fase de desenvolvimento tanto físico como psicológico, acabam adquirindo traumas não somente proveniente da prática do autor, mas dos ataques populares. Tal falta de amparo acaba por gerar problemas psicológicos graves como depressão, ansiedade, pânico entre outros distúrbios que se não tiverem a devida atenção podem até mesmo levar a morte da vítima, através de um suicídio.
Dessa forma, é evidente que o crime de estupro virtual deixa marcas profundas na vítima, e na sociedade, uma vez que os seus integrantes sentem desprotegidos e acuados frente a uma possibilidade de terem a sua liberdade sexual desrespeitada ou violentada e ainda por cima exposta, causando uma onda de insegurança social e jurídica.
5.2 Aumento de casos e prevenção
Com o isolamento social, o número de crianças e o tempo que passam na internet teve um aumento estrondoso, de acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, as denúncias de exposição de crianças e adolescentes na internet ocupa o 5º lugar no ranking de crimes mais denunciados ao disque 100 no ano de 2020.
Alguns dados do CEACrim (Coordenadoria de Estatísticas e Análise Criminal) demonstram que os crimes praticados em ambiente virtual cresceram cerca de 265% no ano de 2020 em relação ao ano anterior.
Em entrevista à Cultura o Coordenador da CyberGaeco Richard Gantus Encinas analisa que o cenário do isolamento social e a potencialização do uso do ciberespaço, aumentou a exposição de menores de idade nas redes sociais. Para Richard, os adolescentes acabam por esquecer as consequências que um conteúdo em situação sexual pode ocasionar, ressalta ainda que tais atitudes podem acabar, involuntariamente, por alimentar a indústria de pornografia infantil.
O coordenador ainda ressalta a necessidade do monitoramento dos pais, para que sejam evitadas tais condutas, algumas das formas de prevenção estão na fiscalização dos sites que as crianças acessam, que podem ser facilmente bloqueados através de aplicativos próprios para a segurança infantil.
Algumas redes sociais já preocupadas com tais explorações, passaram a desenvolver métodos de proteção aos seus usuários, um dos exemplos é o Instagram que recentemente criou uma cartilha de políticas de segurança para menores de idade. Atualmente adultos não poderão enviar mensagens para menores que não os possuam em sua lista de amigos, a rede também disponibilizara uma notificação de comportamento potencialmente suspeitos a aqueles perfis que estiverem com condutas tendenciosas a exploração infantil.
Ressalta-se que, ao ocorrer o crime, em hipótese alguma deve-se culpar a vítima pelo ocorrido. Como exposto anteriormente, este é um caso totalmente delicado, a pessoa que sofreu o constrangimento já está devastada e sofrer ataques vindo daqueles que neste momento deveriam estar amparando, irá apenas agravar o caso dela.
A indicação de psicólogos e especialistas é de que as pessoas próximas a vítima, principalmente os pais, ajudem ela a passar por esse processo, desde a queixa, até as eventuais represálias, estupro é um crime sério com consequências irreparáveis.
O Brasil ainda enfrenta grandes problemas em relação a estrutura de redes e segurança pois a medida que a tecnologia avança os crimes virtuais aumentam proporcionalmente e ainda somos um país com escassez de mão de obra qualificada para esse trabalho, porém os esforços não são nulos e existem diversos programas e iniciativas para evitar tais atrocidades. A campanha Reconecte do Ministério da Família tem como objetivo fortalecer os vínculos familiares, ajudando os pais a conscientizarem seus filhos e manterem uma navegação segura e saudável nas redes.
Diante do exposto, é imprescindível a compreensão da necessidade do monitoramento das atividades das crianças dentro do meio tecnológico. A internet é uma ferramenta maravilhosa que se usada de maneira correta pode abrir diversas oportunidades de conhecimento, divertimento e socialização, mas para isso é necessário que estejamos sempre atentos aos indivíduos que utilizam de tais facilidades para a prática de delitos, principalmente aqueles que se aproveitam da vulnerabilidade das vítimas.
Embora tenha obtido um avanço significativo com a criação das leis Lei Carolina Dieckmann, o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de dados o Brasil ainda é um país que caminha para a segurança digital, isso não significa que criminosos sairão impunes, a tecnologia tem facilitado a investigações de crimes através do rastreamento de IP.
Sendo assim, conclui-se que com os avanços tecnológicos na área de segurança e investigação de crimes cibernéticos juntamente da adaptação das legislações e os cuidados necessários por parte dos usuários, principalmente o monitoramento dos pais sobre seus filhos, somos capazes de melhorar cada vez mais o mundo virtual, para que se torne um ambiente seguro e saudável para todos.
ASSOCIADOS, Posocco Advogados. O que é estupro virtual? 2017. Disponível em: https://posocco.jusbrasil.com.br/noticias/497174996/o-que-e-estupro-virtual. Acesso em: 28 maio 2021.
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Artigo publicado em 30/06/2022 e republicado em 11/10/2024
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Santa Fé do Sul (UNIFUNEC)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, HUGO WILLIAM. Crimes virtuais contra as crianças: estupro virtual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 out 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58785/crimes-virtuais-contra-as-crianas-estupro-virtual. Acesso em: 21 nov 2024.
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