Resumo: o presente trabalho tem por objetivo a análise dos impactos causados pelas prerrogativas processuais da Fazenda Pública presentes na certificação e efetivação dos direitos tutelados pela ação civil pública, a fim de se verificar a razoabilidade da existência destas vantagens processuais. Para tanto, inicialmente, serão estudados o surgimento do processo coletivo no Brasil e o desenvolvimento da ação civil pública, bem como os bens por ela tutelados, com o fito de demonstrar a importância desta ação. Em seguida, serão tratadas as principais prerrogativas processuais conferidas ao Poder Público, na fase de conhecimento da ação civil pública, analisando-as e destacando o seu fundamento de existência e a sua extensão. Na sequência, será feita uma análise de dados colhidos de ações civis públicas, objetivando-se, mesmo que ilustrativamente, aproximar a presente análise ao plano empírico, e não apenas teórico, para verificar os impactos causados pelas prerrogativas estudadas. Por fim, valendo-se das conclusões retiradas da análise destes dados e do que foi trabalhado nos capítulos anteriores, discutir-se-á a influência das vantagens processuais e a razoabilidade da sua existência, concluindo-se que tais prerrogativas constituem óbices à efetivação dos direitos coletivos em sentido amplo, que muitas vezes constituem direitos fundamentais, razão pela qual as prerrogativas processuais do Poder Público devem ceder em prol da célere efetivação dos direitos transindividuais.
Palavras-chave: Processo coletivo. Ação civil pública. Prerrogativas processuais. Fazenda Pública. Direitos transindividuais. Direitos fundamentais.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 DO PROCESSO COLETIVO E DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. 2.1 Surgimento do Processo Coletivo e Formação do Microssistema Processual Coletivo no Brasil. 2.2 Do conceito de Processo Coletivo. 2.3 Da importância do Processo Coletivo para a Garantia do Acesso à Justiça. 2.4 A Ação Civil Pública. 3 PRERROGATIVAS PROCESSUAIS DA FAZENDA PÚBLICA NA FASE DE CONHECIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. 3.1 Introdução. 3.2 Destinatários das Prerrogativas Processuais da Fazenda Pública. 3.3 Fundamentos das Prerrogativas Processuais da Fazenda Pública. 3.4 Reexame Necessário. 3.5 Prerrogativas Processuais Conferidas pela Lei 8.437/1992. 3.6 Prazos Dilatados de que Dispõe a Fazenda Pública.4 IMPACTOS DAS PRERROGATIVAS PROCESSUAIS DA FAZENDA PÚBLICA NA CERTIFICAÇÃO E EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS TUTELADOS PELA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A RAZOABILIDADE DA SUA EXISTÊNCIA NESTE TIPO DE AÇÃO. 4.1 Introdução. 4.2 Análise dos dados colhidos dos processos iniciados por ações civis públicas ajuizadas pela Procuradoria da República em Sergipe para obter o fornecimento de água potável a comunidades indígenas e comunidades quilombolas, entre os anos de 2012 e 2015. 4.2.1 Análise dos dados do processo de número 0006798-89.2012.4.05.8500. 4.2.2 Da análise dos dados do processo de número 0801265-48.2014.4.05.8500. 4.2.3 Da análise dos dados do processo de número 0801482-91.2014.4.05.8500. 4.2.4 Conclusões das analyses.4.3 A irrazoabilidade das prerrogativas processuais do Estado na ação civil pública. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
Instituída pela Lei 7.347/1985, a ação civil pública é o instrumento processual de tutela de interesses transindividuais mais importante, dentre as ações coletivas que temos atualmente. Esta ação surge num contexto de desenvolvimento da disciplina do processo coletivo no Brasil, que passa a ser necessária para oferecer respostas jurisdicionais satisfatórias às lesões e ameaças de lesões dos direitos coletivos que passaram a ser paulatinamente consagrados. Isto porque toda a processualística civil até então estava voltada a promover a tutela de direitos individuais, razão pela qual fez-se necessário o desenvolvimento do processo coletivo, que tem como ação de maior destaque e utilização a ação civil pública.
Desta maneira, o primeiro capítulo deste trabalho buscou tratar sobre o desenvolvimento do processo coletivo no Brasil, o surgimento da ação civil pública e o seu objeto de tutela, a fim de demonstrar a importância que esta ação possui, bem como a natureza dos bens por ela tutelados.
Grande parte dos interesses tutelados pela ação civil pública impõem ao Estado obrigações perante a sociedade de promover políticas e ações para a sua efetivação, de modo que muitas ações civis públicas são propostas contra os entes do Poder Público, para a proteção destes direitos. Contudo, o legislador criou algumas prerrogativas processuais em favor da Fazenda Pública, algumas específicas para este tipo de ação e outras, não. Nesse sentido, no segundo capítulo, buscou-se analisar os fundamentos e a extensão destas vantagens processuais, bem como as principais prerrogativas aplicáveis à ação civil pública, durante a sua fase de conhecimento.
Ante o que foi trabalhado nestes dois capítulos, o capítulo terceiro se destina a analisar a influência que estas prerrogativas processuais possuem sobre a certificação e a efetivação dos direitos tutelados pela ação civil pública, na sua fase de conhecimento, assim como a razoabilidade da existência destas vantagens processuais, considerando e cotejando os fundamentos de sua existência com a natureza e a importância dos interesses defendidos pela ACP.
A fim de possibilitar uma análise mais concreta da influência das prerrogativas processuais, em que pese servir de forma tão somente ilustrativa e não conclusiva, neste capítulo foram analisados dados de ações civis públicas ajuizadas pela Procuradoria da República em Sergipe para obter o fornecimento de água potável a comunidades indígenas e quilombolas, cuja delimitação foi feita antes da análise no terceiro capítulo.
É este, portanto, o objetivo do presente trabalho: refletir sobre a influência das prerrogativas processuais da Fazenda Pública na fase de conhecimento da ação civil pública, assim como discutir a razoabilidade da existência de tais vantagens processuais em uma ação que se destina à tutela de interesses metaindividuais, que muitas vezes se caracterizam como direitos fundamentais.
O Código de Processo Civil de 1973, editado sob forte influência ideológica do liberalismo individualista, foi projetado para atender demandas e resolver conflitos de natureza meramente individual, não tendo o legislador desta codificação feito a previsão de instrumentos de tutela coletiva, seja quando se afirma e se pleiteia a defesa de direitos pertencentes a uma coletividade (processo coletivo ativo), seja quando se almeja o reconhecimento de um estado de sujeição coletivo (processo coletivo passivo).
Isso se deve a uma forte influência da ideologia do liberalismo e do iluminismo, que inspirou o direito processual, e mantém sua influência até os dias atuais. Com efeito, tais ideologias tinham como principal preocupação a defesa da propriedade e o respeito à livre iniciativa e autonomia dos indivíduos, que deveria ser defendida apenas individualmente, em que somente o titular do interesse atingido poderia vir a juízo tutelá-lo.
Dessa maneira, os códigos processuais, orientados por tais ideologias, centraram-se em prover meios de defesa individual de direitos individuais, expurgando qualquer instrumento que promovesse a defesa coletiva de interesses, bem como deixando de reconhecer a tutela de interesses metaindividuais, assim considerados aqueles pertencentes a uma dada coletividade.
“O direito ao processo como conhecemos hoje, foi fortemente influenciado pelo liberalismo e pelo iluminismo. A partir do século XVII, com a difusão do método cartesiano e da lógica ramista na Europa continental, foi cristalizada a ideia da propriedade individual, da autonomia da vontade e do direito de agir como atributos exclusivos do titular do direito privado, único soberano sobre o próprio destino do direito subjetivo individual (base de todo o sistema). Só o titular do direito lesado cabia decidir se propunha ou não a demanda. Era o início dos Estados-Nação, da vinculação da jurisdição à soberania estatal e da futura ‘Era dos Códigos’. Neste projeto jurídico não havia mais espaço para o direito da coletividade no sistema, as preocupações sistemáticas voltavam-se apenas para o indivíduo, a formação de sua personalidade jurídica, seus bens, suas relações familiares e a sucessão patrimonial.” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2014, p. 24)
Para Fredie Didier Jr. e Hermes Zanetti Jr., o Código Civil de 1916, conhecido como Código de Beviláqua, foi “como uma missa dos mortos encomendada para as tutelas coletivas” (2014, p. 24). Isto porque foi este código que refletiu no ordenamento jurídico brasileiro a influência do iluminismo, que, na Europa, conduziu à “Era dos Códigos”. O Código Civil de Beviláqua foi a primeira codificação elaborada no Brasil e procurava romper com qualquer influência jurídica de Portugal sobre o direito brasileiro.
Nesse sentido, o Código Civil de 1916 foi arquitetado para retirar qualquer vestígio da influência europeia sobre a ordem jurídica brasileira que estava a se instalar e necessitava se autoafirmar como uma ordem soberana, afastando qualquer resquício do colonialismo. Dentre as medidas pensadas para tanto, estava a eliminação dos meios de tutela coletiva. Conforme explica Rodrigo Reis Mazzei, citado por Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. “segundo as próprias palavras do condutor daquela codificação (de índole individualista), teve a intenção de extinguir as ações populares que remanesciam no nosso sistema jurídico”. (2014, p. 24).
Destarte, o desejo do legislador do Código de 1916, de purificar o sistema jurídico brasileiro de qualquer resquício que fizesse lembrar o período em que o Brasil estava sob o domínio português, dentre elas a forma de tutela coletiva de direitos, somado à marcante influência da ideologia iluminista, centrada na tutela de interesses patrimoniais de forma unicamente individual levou a que a Codificação de Beviláqua representasse um fim temporário para as ações coletivas no direito brasileiro.
Tal postura do Código restava clara pela dicção do seu art. 76, que assim estabelecia:
Art. 76: Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico, ou moral.
Parágrafo único – O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou à sua família.
Foi dessa maneira que o Código Civil de 1916 buscou atingir o seu objetivo de dar autonomia ao sistema jurídico brasileiro em relação ao direito português, expurgando qualquer resquício da ordem jurídica portuguesa, dentre elas a possibilidade de defesa coletiva de direitos e de defesa de direitos coletivos, notadamente as ações populares, que foram herdadas da tradição romana. É o que afirmam Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.:
“Com isto foram atingidas não só a ação popular como conhecemos hoje, mas todas as demais tutelas coletivas, todo o gênero das demandas em que o titular do direito material não fosse um indivíduo concretamente identificado, já que suprimidas foram quaisquer tutelas cíveis de interesses coletivos (não individuais). Ora, somente na Constituição de 1934, pela primeira vez tivemos a expressa menção às ações populares. Até aquele momento histórico o instituto havia sido eficazmente suprimido do direito pátrio em prol de uma duvidosa pureza do sistema do direito civil.” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2014, p. 25)
Seguindo a linha individualista preconizada no Código de Beviláqua, o CPC/1973 foi dividido em quatro principais Livros – considerando que o Livro V trata somente das Disposições Finais e Transitórias, contendo originalmente apenas dez artigos: do Processo de Conhecimento, do Processo de Execução, do Processo Cautelar e dos Procedimentos Especiais. À exceção deste último livro, constata-se que o Código foi estruturado para atender a cada uma das espécies de provimento possível, seguindo a clássica lição de Enrico Tullio Liebman, para o qual as ações deveriam ser classificadas apenas em razão do provimento postulado, existindo, pois, ações de conhecimento, ações de execução e ações cautelares.
Assim, o CPC/1973 previu procedimentos e regras disciplinadoras próprias para ações de conhecimento, ações cautelares e ações executivas. Contudo, organizado desta maneira, o Código serviu tão somente para dar resposta a lesões a direitos individuais, não prevendo qualquer mecanismo processual para tutelar interesses coletivos. Afinal, segundo estabelece o art. 6º da codificação, “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. Dessa maneira, o Código afastava qualquer possibilidade da atuação de substitutos processuais, que agissem em juízo para a defesa de direitos pertencentes a uma coletividade, típico da sistemática que envolve o processo coletivo.
Como afirma Teori Zavascki:
“O Código de Processo Civil brasileiro, de 1973, foi estruturado a partir da clássica divisão da tutela jurisdicional em tutela de conhecimento, tutela de execução e tutela cautelar. Para cada uma destas espécies o Código destinou um Livro próprio, disciplinando o respectivo “processo”, com suas “ações” e seus “procedimentos” autônomos. Fez-se sentir, também neste aspecto, de modo marcadamente acentuado, a doutrina de Enrico TullioLiebman, quando, referindo-se às ações, sustentava que, ‘no nosso sistema processual, a única classificação legítima e importante é a que se refere à espécie de provimento pedido’, sendo que ‘sob este ponto de vista, as ações distinguem-se em três categorias : a) as ações de conhecimento; b) as ações executivas; c) as ações cautelares’.
Tal sistema, por outro lado, foi moldado para atender à prestação da tutela jurisdicional em casos de lesões a direitos subjetivos individuais, mediante demandas promovidas pelo próprio lesado. Assim, como regra, ‘ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei’ (CPC, art. 6º). Não se previram, ali, instrumentos para a tutela coletiva desses direitos, salvo mediante a fórmula tradicional do litisconsórcio ativo, ainda assim, sujeito, quanto ao número de litisconsortes, a limitações indispensáveis para não comprometer a defesa do réu e a rápida solução do litígio (art. 46, parágrafo único, do CPC). Não se previram, igualmente, instrumentos para a tutela de direitos e interesses transindividuais, de titularidade indeterminada, como são os chamados ‘interesses difusos e coletivos’.” (ZAVASCKI, 2014, p. 13)
Neste aspecto, não inovou o Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105, de 16 de março de 2015), por não prever regras ou procedimentos próprios de tutela coletiva de direitos, ou até, como pretendiam alguns processualistas, que fosse destinado um Livro ao processo coletivo, que viesse disciplinar suas ações e até substituir o microssistema de processo coletivo, como vem apontando a doutrina. Além disso, o novo CPC praticamente repete a redação do art. 6º da antiga codificação em seu art. 18, que assim estabelece:
Art. 18. Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico.
Contudo, a respeito da influência do novo Código no processo coletivo, é possível constatar um avanço em relação ao seu predecessor. O CPC/2015, como já dito, não tratou de disciplinar as ações coletivas, bem como manteve praticamente a mesma redação do artigo do CPC/1973 que disciplinava a legitimidade ativa para o processo. Entretanto, o novo Código conferiu poderes ao juiz para que, diante de demandas individuais repetitivas, oficiasse aos legitimados a promoção de ações coletivas para que propusessem uma ação que tutelasse coletivamente os direitos individuais postos em juízo. Esta seria uma das formas da chamada coletivização de ações individuais estabelecida pela novel codificação. Assim estabelece o CPC/2015:
Art.139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
[...]
X – quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível outros legitimados a que se referem os arts. 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, e 82 da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, para se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva.
No entanto, apesar de o transcrito dispositivo não especificar, só será possível a coletivização das ações individuais nos moldes propostos pelo inciso em comento se as demandas individuais repetitivas versarem sobre direitos de origem comum, ou seja, envolverem direitos individuais homogêneos. Outra não poderia ser a conclusão, uma vez que não se vislumbra possibilidade de tutelar coletivamente direitos individuais que não possuam origem comum. Ada Pellegrini Grinover também conclui nesse sentido:
“Quando se tratar de demandas puramente individuais, só é possível coletivizá-las quando se tratar de demandas repetitivas, por intermédio de uma única ação coletiva emdefesa de interesses ou direitos individuais homogêneos, que decidirá a questão uma vez por todas, passando os indivíduos diretamente à fase de liquidação e execução, a título pessoal. As ações individuais ficarão necessariamente suspensas, com exceção de casos de urgência. Esta é a única coletivização possível, e dependerá da iniciativa dos legitimados.” (GRINOVER, 2014,p. 1431).
O texto do novo CPC aprovado pelo Senado Federal ainda trouxe outra possibilidade de “coletivização de ações individuais”. Contudo, o artigo que tratava dessa segunda hipótese foi vetado pela Presidente da República. O dispositivo do novo CPC a que nos referimos visava a dar poderes ao juiz para que, deparando-se com uma ação que veicule pedido que tenha alcance coletivo ou que envolva uma mesma relação jurídica plurilateral e cuja solução deva ser uniforme a membros de determinado grupo, transformasse a ação individual em coletiva. São as ações que a doutrina costuma chamar, respectivamente, de ações individuais com efeitos coletivos e ações pseudoindividuais.
Estes dois tipos de ações, ainda que manejadas individualmente, possuem nítido caráter coletivo, pois acabam por atingir determinado grupo de pessoas. Nas ações conhecidas como ações individuais com efeitos coletivos, o autor ajuíza uma ação individual, seguindo as regras e princípios deste tipo de ação, porém seu pedido, por sua própria natureza, atingirá uma coletividade. Neste caso, em verdade, o autor não está buscando tutelar um direito tipicamente individual, em que o comando da sentença diga respeito somente a ele, mas um direito difuso ou coletivo, cuja ofensa atinge não só ele, mas também uma coletividade.
Exemplo de ação deste tipo é a demanda proposta por uma pessoa para que seja desativado um lixão que fica perto de sua casa, porém outras pessoas residem próximo ao autor e, consequentemente ao lixão, sendo, pois, também atingidas pelos males causados pelo lixo ali depositado. Neste exemplo, o autor acaba por buscar tutelar a preservação da saúde de todos os que moram perto do lixão, e eventual sentença beneficiaria todos os moradores, não apenas aquele que propôs a ação.
Por seu turno, nas ações pseudoindividuais, o autor visa a defender um direito subjetivo, porém a relação jurídica de direito material que embasa seu pedido é unitária, uma vez que afeta a todos, devendo, portanto, ser resolvida de maneira uniforme para todos os envolvidos, a fim de que se assegure tratamento isonômico aos integrantes do grupo atingido.
Para ilustrar este tipo de ação, imagine-se a situação em que uma pessoa ingressa com uma ação individual requerendo que não lhe fosse cobrada a taxa de foro de laudêmio, sob a alegação de que esta cobrança seria indevida para aquela região em que reside. Neste exemplo, há uma relação jurídica unitária, que envolve todos os que são proprietários ou detentores do domínio útil (esta qualificação poderá ser objeto da ação) de imóveis na mesma região da pessoa que propôs a demanda, e que deve ser resolvida de maneira uniforme para todas essas pessoas, qual seja, o cabimento ou não da referida taxa para os imóveis daquela região.
Como se vê, estes dois tipos de ações são, em verdade, ações coletivas, pois são propostas em defesa de interesses difusos e coletivos, e atingem não só o autor, mas determinada coletividade. Dessa maneira, tais ações deveriam ser convertidas em ações coletivas, como estabelecia o dispositivo vetado da nova codificação, a fim de que situações que envolvessem a tutela de direitos coletivos pudessem ser decididas seguindo as normas e princípios próprios do processo coletivo, estruturados para dar melhor resposta a este tipo de demanda.
O ponto mais sensível neste aspecto diz respeito à legitimidade ativa, uma vez que não é qualquer pessoa que está legitimada a defender em juízo interesses coletivos lato sensu. Para tanto, há de ser o representante adequado a estar no polo ativo da ação, entendido como aquele que possui, por lei, condições para tutelar direitos de pessoas que não farão parte da relação jurídico-processual. Nas ações que aqui destacamos, o autor da ação, normalmente, não é o representante adequado, na esteira do que preleciona a doutrina do processo coletivo. Eis um aspecto que evidencia a importância do tratamento correto de interesses coletivos por meio do processo adequado, cuja solução poderia ter sido dada pelo novo CPC caso o artigo correspondente não houvesse sido vetado.
Ada Pellegrini Grinover destaca a importância do tratamento como ações coletivas de ações que, apesar de individuais, atingem uma coletividade:
“Mas, se se tratar de uma ação individual com efeitos coletivos ou de uma ação pseudoindividual, por sua própria natureza deverá ela ser convertida em ação coletiva em defesa de interesses ou direitos difusos ou coletivos(stricto sensu). Não é possível tratá-la como individual, porque individual não é, e a coletivização deve ser feita ope judicis. Claro que, nesses casos, o contraditório deverá ser preservado e deverá ser permitida a presença do autor original no polo ativo.” (GRINOVER, 2014, p. 1431)
Assim estabelecia o texto do artigo vetado:
CAPÍTULO IV - DA CONVERSÃO DA AÇÃO INDIVIDUAL EM AÇÃO COLETIVA
Art. 333. Atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade de formação do litisconsórcio, o juiz, a requerimento do Ministério Público ou da Defensoria Pública, ouvido o autor, poderá converter em coletiva a ação individual que veicule pedido que:
I - tenha alcance coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo, assim entendidos definidos pelo art. 81, parágrafo único, incisos I e II, da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, e cuja ofensa afete a um só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade.
II – tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, cuja solução, pela sua natureza ou por disposição de lei, deva ser necessariamente uniforme, assegurando-se tratamento isonômico para todos os membros do grupo.
§ 1º Além do Ministério Público e da Defensoria Pública, podem requerer a conversão os legitimados referidos no art. 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, e no art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).
§ 2º A conversão não pode implicar a formação de processo coletivo para a tutela de direitos individuais homogêneos.
§ 3º Não se admite a conversão, ainda, se:
I - já iniciada, no processo individual, a audiência de instrução e julgamento; ou
II - houver processo coletivo pendente com o mesmo objeto; ou
III - o juízo não tiver competência para o processo coletivo que seria formado.
§ 4º Determinada a conversão, o juiz intimará o autor do requerimento para que, no prazo fixado, adite ou emende a petição inicial, para adaptá-la à tutela coletiva.
§ 5º Havendo aditamento ou emenda da petição inicial, o juiz determinará a intimação do réu para, querendo, manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias.
§ 6º O autor originário da ação individual atuará na condição de litisconsorte unitário do legitimado para condução do processo coletivo.
§ 7º O autor originário não é responsável por nenhuma despesa processual decorrente da conversão do processo individual em coletivo.
§ 8º Após a conversão, observar-se-ão as regras do processo coletivo.
§ 9º A conversão poderá ocorrer mesmo que o autor tenha cumulado pedido de natureza estritamente individual, hipótese em que o processamento desse pedido dar-se-á em autos apartados.
§ 10. O Ministério Público deverá ser ouvido sobre o requerimento previsto no caput, salvo quando ele próprio houver formulado.
O inciso I do caput se refere às ações individuais com efeitos coletivos, enquanto o inciso II diz respeito às ações pseudoindividuais. Apesar das críticas feitas ao dispositivo transcrito, o Código de 2015 poderia ter dado significativa contribuição para a adequada tutela dos interesses coletivos, ao estabelecer a conversão dessas ações individuais em ações coletivas. Contudo, ao que interessa no presente trabalho, as duas hipóteses de coletivização de ações individuais (aquela do art. 139, X e do vetado art. 333), apesar de buscarem a defesa mais eficaz e correta de interesses coletivos, não trazem a disciplina de ações coletivas, seguindo a tradição dos códigos de processo civil brasileiros.
Não tendo havido disciplina das ações coletivas nos códigos de processo civil, ante o crescimento das chamadas demandas de massa, em que se verificou a necessidade de que lesões aos direitos coletivos lato sensu fossem tutelados por meio de uma única relação processual, foi criado um microssistema de processo coletivo, composto por diplomas legais que constituem a base normativa da tutela coletiva de direitos, conforme vem asseverando a doutrina que se debruça sobre o tema:
“Neste momento, interessa-nos apontar a existência de um microssistema processual para a tutela coletiva, como, aliás, já vem sendo defendido pela doutrina:
Com a certeza da importância dos microssistemas para o direito privado, tema que desperta o interesse de grandes juristas a respeito, papel de destaque há de ser dado também no direito processual civil, quanto à possibilidade da formação de sistema especial concernente à tutela coletiva. Aferindo-se pois a existência do microssistema coletivo, que cuidará, com regras e princípios próprios , processualmente da tutela de massa à margem do Código de Processo Civil, pelo caráter individualista deste (...)’” (DIDIERJR.; ZANETI JR., 2014, p. 43)
“O certo é que o subsistema do processo coletivo tem, inegavelmente, um lugar nitidamente destacado no processo civil brasileiro. Trata-se de subsistema com objetivos próprios (a tutela de direitos coletivos e a tutela coletiva de direitos) que são alcançados a base de instrumentos próprios (ações civis públicas, ações civis coletivas, ações de controle concentrado de constitucionalidade, em suas várias modalidades), fundados em princípios e regras próprios, o que confere ao processo coletivo uma identidade bem definida no cenário processual.” (ZAVASCKI, 2014, p. 22)
Inclusive, atualmente é quase pacífico o entendimento de que esse microssistema processual coletivo deve ter função integradora e atualizadora entre os diplomas legais que o compõem, de modo que caso uma de suas leis seja omissa sobre determinado aspecto, deve-se buscar integrá-la valendo-se das outras leis de caráter processual coletivo. De igual forma, cada lei que surge deve servir para atualizar as disposições de leis já existentes.
Assim deve haver uma comunicação entre os diplomas legais que tratam sobre a tutela coletiva, a fim de que seja formado um sistema harmônico e organizado, com regras e princípios próprios e que possa dar resposta às perguntas, incompletudes, antinomias e outras questões que venham a rodear as ações coletivas quando forem manejadas.
Nesse sentido, as respostas aos problemas surgidos nos meios de tutela coletiva devem ser buscadas primeiramente nos outros diplomas legais de processo coletivo, apenas devendo socorrer-se do Código de Processo Civil quando o microssistema processual coletivo não for suficiente à resolução da questão. Isto porque, numa ação coletiva, surgindo uma questão que não consiga ser resolvida pela respectiva lei disciplinadora, é preferível que se busque a solução em outros diplomas que versem sobre ações coletivas e que foram editados sob os mesmos princípios norteadores da tutela coletiva do que valer-se do Código de Processo Civil, de caráter nitidamente individualista, a fim de se encontrar a resposta mais adequada ao caso concreto.
Com isso, as leis de processo coletivo surgem para compor um sistema processual à parte das leis processuais já existentes, com o intuito de disciplinar de forma mais condizente as ações coletivas com os princípios e objetivos próprios da tutela coletiva. Até porque diplomas que se propõem a disciplinar as formas de tutela de direitos tão complexos e cambiantes como são os direitos coletivos lato sensu não podem ser tão herméticos. Pelo contrário, deve ser deixado espaço para que outras leis possam integrá-las e atualizá-las. E, admitindo-se esta necessidade, os diplomas legais mais autorizados a cumprir tal função seriam aqueles que tratam sobre a tutela coletiva de direitos, em razão de terem sido elaborados seguindo uma mesma ratio essendi, qual seja, defender com eficácia e efetividade em juízo as lesões aos direitos coletivos.
“A contribuição de Rodrigo Mazzei está, entre muitas, na indicação de que diplomas que tratam da tutela coletiva são intercambiantes entre si, ou seja, apresentam uma ruptura com os modelos codificados anteriores que exigem completude como requisito mínimo, aderindo a uma intertextualidade intra-sistemática. Quer dizer, assumem-se incompletos para aumentar sua flexibilidade e durabilidade em uma realidade pluralista, complexa e muito dinâmica.
Como corolário desse quadro surge imperativo o recurso de comunicação entre os diplomas legais para lhes dar atualidade e organicidade.
Revela-se, desta forma, que o Código de Processo Civil perdeu sua função de garantir uma disciplina única para o direito processual, seus princípios e regras não mais contêm o caráter subsidiário que anteriormente lhes era natural. As lacunas, as antinomias, os conflitos entre leis especiais não são mais resolvidos por prevalência direta dos Códigos.” (DIDIERJR.; ZANETI JR., 2014, p. 48)
Com isso, o Código de Processo Civil e as demais leis processuais que disciplinam a tutela individual de direitos só são consultados quando a resposta para a questão prática não for encontrada nos diplomas normativos de tutela coletiva, como afirmam Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.:
“Nesta conformação de ideias, temos o CPC como mero diploma residual, seu efeito sobre o processo coletivo deve ser sempre reduzido, evitando disciplinar as demandas coletivas com institutos desenvolvidos para os processos individuais.” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2104, p. 50)
O microssistema a que aqui nos referimos é composto pelos diplomas legais que regulam processualmente a tutela de diretos transindividuais nos moldes como proposto pelo art. 81, parágrafo único, I do Código de Defesa do Consumidor, inclusive dos direitos individuais homogêneos, como reconhecidos como espécie dos direitos coletivos em sentido amplo, malgrado a resistência de alguns juristas a tal assertiva.
Dentro desse grupo, podemos destacar a Lei 4.717/1965 (conhecida como Lei da Ação Popular, que possui como objetivo a invalidação de atos lesivos ao patrimônio público, compreendido de forma ampla, como deixa claro o art. 1º desta lei); a Lei 7.347/1985 (conhecida por Lei da Ação Civil Pública, que tinha por objetivo promover a responsabilização dos causadores de danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico); a Lei 7.853/1989 (que, dentre outras providências, tutela direitos transindividuais de pessoas portadoras de deficiência); a Lei 8.069/1990 (instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente prevendo mecanismos de tutela coletiva de direitos dos menores); a Lei 8.078/1990 (que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, prevendo importantes regras para as ações coletivas); a Lei 8.429/1992 (que trata sobre os atos de improbidade administrativa, prevendo as condutas que podem ser assim consideradas, as respectivas sanções e o procedimento correspondente), dentre outras.
Dentre as leis apontadas, sobreleva-se a Lei da Ação Civil Pública, por ter sido a primeira editada desde a Lei da Ação Popular e por ter sido promulgada antes da Constituição Federal de 1988, que ampliou consideravelmente os meios de tutela coletiva e os direitos coletivos, a exemplo da importância dada ao meio ambiente, como se verá a seguir. Este diploma legislativo também merece destaque por prever como legitimado ativo da Ação Civil Pública um substituto processual, que atuará representando interesses de pessoas que não participarão do processo e por estabelecer que as sentenças nela prolatadas possuem, em regra, eficácia erga omnes, atingindo a todos os que foram lesados no interesse levado a juízo.
Outro diploma que merece apartado destaque é a Lei 8.078/1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. Esta lei categorizou os direitos coletivos lato sensu, definindo e diferenciando suas divisões. Com efeito, os incisos do parágrafo único do art. 81 trouxeram importante contribuição para o estudo da tutela coletiva ao definir legalmente o que até então ficava a cargo tão somente da doutrina. Assim dispõe o referido dispositivo legal:
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Apesar de o transcrito dispositivo referir-se a tutela de direitos coletivos relacionados à defesa do consumidor nas relações de consumo, como se vê do art. 81, caput, a divisão e os conceitos por ele estabelecidos servem a todos os tipos de direitos coletivos, em razão do aludido microssistema processual coletivo, em que uma lei completa e integra a outra.
Outra importante contribuição trazida pelo Código de Defesa do Consumidor foi a disciplina da tutela de direitos subjetivamente individuais, mas que são decorrentes de origem comum, os chamados direitos individuais homogêneos, segundo a definição do art. 81, parágrafo único, III, acima transcrito. Apesar de tal espécie de direitos ser titularizada por indivíduos perfeitamente identificados e poderem ser defendidos de maneira individual, por serem originados de uma mesma situação fática, são melhor tutelados em juízo de maneira coletiva, ou muitas vezes a tutela coletiva é a única possível ou viável.
A Lei 8.078/1990 dedicou um capítulo dentro do Título III, que trata da defesa do consumidor em juízo, para tratar sobre a tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos, estabelecendo importantes regras processuais, tais como relativas à legitimidade ativa, sentença, liquidação e execução nestas ações. Teori Zavascki trata deste aspecto, ressaltando a importância que o CDC representou para o desenvolvimento do processo coletivo e para o subsistema processual coletivo:
“O Código de Defesa e Proteção ao Consumidor – CDC (Lei 8.078/1990) trouxe, nesse sentido, como contribuição expressiva, a disciplina específica da tutela, nas relações de consumo dos “direitos individuais homogêneos”, assim entendidos o conjunto de diversos direitos subjetivos individuais que, embora pertencendo a distintas pessoas, têm a assemelhá-los uma origem comum, o que lhes dá o grau de homogeneidade suficiente para ensejar sua defesa coletiva. Diferentemente do sistema codificado, que prevê tutela conjunta apenas mediante litisconsórcio ativo, a ação civil coletiva permite que tais direitos sejam tutelados em conjunto mediante a técnica de substituição processual. Legitimam-se como substitutos processuais o Ministério Público, certas pessoas de direito público e entidades e associações privadas que tenham por função institucional a defesa dos interesses lesados. A sentença de procedência será genérica, “fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados” (art. 95 do CDC). Haverá coisa julgada apenas em caso de procedência, hipótese em que a sentença beneficiará “as vítimas e seus sucessores” (art. 103, III, do CDC). Com base em tal sentença, cada um dos atingidos pela lesão (substituídos processuais) poderá promover ação de cumprimento, mediante liquidação e execução do seu próprio direito individual lesado (art. 97 do CDC).” (ZAVASCKI, 2014, p. 15-16)
O advento da Constituição de 1988 também teve importância determinante no desenvolvimento do processo coletivo no Brasil. Dentre as inovações constitucionais que favoreceram a evolução do processo coletivo brasileiro, podemos citar a ampliação do objeto da ação popular em relação ao que era previsto pelo art. 1º, caput, da Lei 4.717/1965, que passou a prever, a partir do art. 5º, LXXIII da Carta Magna, o cabimento desta ação para anular atos lesivos à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, aumentando o âmbito de abrangência da ação popular, que até então cabia apenas à proteção do patrimônio público, mesmo que abrangesse bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico, consoante dispõe o parágrafo único do art. 1º da Lei 4.717/1965.
Destaca-se também a presença no texto constitucional da ação civil pública, ganhando o status de ação constitucional, tendo em vista que anteriormente só havia sido disciplinada pela Lei 7.347/1985 e mencionada em leis que disciplinavam a atividade do Ministério Público, como a Lei Complementar 40/1981. A ação civil pública foi prevista como um instrumento para a tutela do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, a cargo do Ministério Público – pela dicção do art. 129, III da CF e também dos outros legitimados previstos no texto legal.
A Carta de 1988 também foi a primeira a prever o mandado de segurança coletivo, ao estabelecer que partidos políticos com representação no Congresso Nacional e organizações sindicais, associações ou entidades de classe em defesa dos interesses dos interesses dos seus membros ou associados poderiam impetrar a ação mandamental para a defesa de direito líquido e certo de terceiros, em regime de substituição processual.
Outrossim, a Constituição da República elevou à matriz constitucional a defesa de direitos de natureza transindividual, como a defesa do consumidor, em seu art. 5º, XXXII, dando grande passo para a tutela coletiva nas relações de consumo, as penalidades para a prática de atos de improbidade administrativa, prevendo a tutela da probidade na Administração Pública, que viria a ser regulamentada posteriormente pela Lei 8.429/1992. Ainda nesse sentido, a Carta da República também previu o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225) e a preservação do patrimônio cultural material e imaterial (art. 216), interesses de nítido caráter metaindividual e que necessitariam de instrumentos processuais adequados para sua tutela, fazendo com que o legislador se preocupasse em desenvolver meios para tanto.
Ao lado dos diplomas normativos aqui destacados, deve-se reconhecer a importância de outras Leis que contribuíram para o desenvolvimento do processo coletivo, seja por prever a defesa coletiva de direitos, seja por estabelecer novos mecanismos e regras processuais para tanto. Citem-se a Lei 7.853/1989 (Lei das Pessoas Portadoras de Deficiência); Lei 7.913/1989 (Lei de Defesa dos Investidores do Mercado de Valores Mobiliários); Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso); Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Ordem Econômica), dentre outras. Tais leis fazem parte do microssistema de processo coletivo, comunicando-se com os demais diplomas normativos que compõem esse subsistema.
Após esse breve histórico do processo coletivo no Brasil e da formação do microssistema de processo coletivo, necessário se faz estabelecer o conceito de processo coletivo. Para Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., o processo é coletivo quando o objeto posto em litígio é coletivo, oriundo de uma situação jurídica coletiva, seja ela ativa ou passiva. Assim, se num determinado processo estiver presente a defesa de interesses coletivos (quando teremos o chamado processo coletivo ativo) ou se afirmar a existência de dever ou estado de sujeição, vindicando seu cumprimento (oportunidade em que se verifica o processo coletivo tido como passivo), estar-se-á diante de um processo tido como coletivo.
Nas palavras dos referidos autores:
“O processo é coletivo se a relação jurídica litigiosa é coletiva. Uma relação litigiosa é coletiva se em um de seus termos, como sujeito ativo ou passivo, encontra-se um grupo (comunidade, categoria, classe, etc; designa-se qualquer um deles pelo gênero grupo). Se a relação jurídica litigiosa envolver direito (situação jurídica ativa) ou dever ou estado de sujeição (situações jurídicas passivas) de um determinado grupo, está-se diante de um processo coletivo.
Assim, processo coletivo é aquele em que se postula um direito coletivo lato sensu (situação jurídica coletiva ativa) ou se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres individuais homogêneos, p. ex.).Observe-se, então, que o núcleo do conceito de processo coletivo está em seu objeto litigioso: coletivo é o processo que tem por objeto litigioso uma situação jurídica ativa ou passiva.” (DIDIER JR., ZANETI JR., 2014, p. 38-39)
Para os mencionados autores, não é a legitimidade ativa e o regime diferenciado da coisa julgada, ao lado do objeto, que caracterizam e definem o que vem a ser processo coletivo. O fato de a ação coletiva ser proposta por um legitimado autônomo e que poderá culminar numa sentença cujo comando irá vincular, em regra, um determinado grupo de pessoas, não é suficiente para definir o que se entende por processo coletivo.
Isto porque existem outras hipóteses previstas no ordenamento pátrio de legitimação extraordinária para a defesa de interesses individuais, como a legitimação conferida ao Ministério Público para a propositura de ação de alimentos em favor de incapaz.
Além disso, a vinculação dos efeitos da sentença a uma coletividade (o que se entende aqui por regime especial da coisa julgada) é, em verdade, uma decorrência lógica da própria ação coletiva. Ao se entender que o processo coletivo se caracteriza pela presença de uma relação jurídica coletiva (objeto da ação), a coisa julgada da sentença proferida em uma ação deste tipo deve realmente atingir todo o grupo de pessoas envolvidas no direito que se está tutelando ou no estado de sujeição que está sendo afirmado. Assim, a extensão dos efeitos da coisa julgada também não acrescenta nada ao conceito de processo coletivo.
Dessa maneira, o que define o processo coletivo é a presença de uma relação litigiosa coletiva em um dos termos da ação, seja no polo passivo ou no polo ativo, caracterizado pela presença de um grupo, quer tutelando direitos pertencentes a uma coletividade, quando se verificará o processo coletivo ativo, quer afirmando uma situação jurídica coletiva passiva, em que haverá o processo coletivo passivo.
Estabelecendo o conceito de processo coletivo, conceitua-se, por derivação, ação coletiva e tutela jurisdicional coletiva, segundo os já mencionados autores:
“Ação coletiva é, pois, a demanda que dá origem a um processo coletivo, pela qual se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva ativa ou passiva. Tutela jurisdicional coletiva é a proteção que se confere a uma situação jurídica coletiva ativa (direitos coletivos lato sensu) ou a efetivação de situações jurídicas (individuais ou coletivas) em face de uma coletividade, que seja titular de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres ou estados de sujeição coletivos).” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2014, p. 40)
Para o presente trabalho, o tipo de processo coletivo que interessa é o ativo, em que se está a tutelar direitos pertencentes aos integrantes de uma coletividade, razão pela qual, apesar de aqui conceituado, não nos referiremos ao processo coletivo passivo, de modo que, ao falar em processo coletivo, aludiremos unicamente ao processo coletivo ativo, pois a ação civil pública é uma ação que busca tutelar juridicamente uma situação coletiva ativa.
Os instrumentos processuais tradicionais, voltados à tutela de interesses meramente individuais, passam a não dar conta de oferecer respostas suficientes à defesa de novos direitos que passam a surgir, quando se percebe que o liberalismo burguês, influenciado pelo iluminismo, centrado no indivíduo considerado de forma isolada, foi superado, ao afirmar-se e reconhecer direitos metaindividuais, que toca a uma coletividade, não mais a um indivíduo isoladamente. Como exemplo destes interesses podemos citar o reconhecimento do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado.
Além disso, numa sociedade cada vez mais massificada, em que diversos indivíduos participam de uma mesma relação jurídica, contratual ou fática, surgem violações a direitos individuais, mas que decorrem de origem comum e que podem ser defendidos coletivamente por meio de uma única relação jurídico-processual, a exemplo do que passou a ocorrer com os consumidores, em que uma lesão praticada por um fornecedor atinge diversos consumidores de uma vez só.
Dessa maneira, podemos dizer que as preocupações com o meio ambiente e com a defesa do consumidor em juízo deram a tônica da necessidade de desenvolvimento de meios processuais para a adequada proteção de interesses deste tipo, compreendendo-se que os meios tradicionais não eram capazes de oferecer resposta satisfatória a estas novas demandas. Assim assevera Teori Zavascki:
“Preservação do meio ambiente e defesa do consumidor, portanto, embora não exclusivamente, o ponto de partida para o movimento reformador, verificado em vários sistemas jurídicos, que acabou gerando o aparecimento, por um lado, de regras de direito material (civil e penal) destinadas a dar consistência normativa às medidas de tutela daqueles bens jurídicos ameaçados e, por outro lado, de correspondentes mecanismos de natureza processual para operacionalizar sua defesa em juízo. Tomou-se consciência, à época, da quase absoluta inaptidão dos métodos processuais tradicionais para fazer frente aos novos conflitos e às novas configurações de velho conflitos, especialmente pela particular circunstância de que os interesses atingidos ou ameaçados extrapolavam, em muitos casos, a esfera meramente individual, para atingir uma dimensão maior, de transindividualidade.” (ZAVASCKI, 2014, p. 27-28)
O Estado do Bem-Estar Social (WelfareState) surge após se verificar que o Estado Liberal, ao garantir somente direitos civis e políticos, sobretudo, a liberdade do indivíduo e a igualdade formal, abre portas para desigualdades materiais e aumenta as situações de injustiça social. Isto se deu porque no liberalismo o Estado devia intervir minimamente na sociedade, devendo ele apenas garantir a manutenção da ordem econômica e proporcionar aos indivíduos os instrumentos de proteção de suas liberdades.
Com a falência e superação do Estado Liberal e o aparecimento do WelfareState, surgem os chamados direitos fundamentais de segunda dimensão, que consagram direitos sociais, econômicos e culturais, exigindo maior participação direta do Estado na garantia dos direitos. Podemos destacar como exemplos de tais direitos, o direito à saúde, educação, moradia etc.
Conforme esclarece Dirley da Cunha Jr.:
“Toda essa transformação, portanto, ocorreu em virtude do fracasso do Estado liberal, que não logrou concretizar materialmente as conquistas formais e abstratas da liberdade, e sobretudo, da igualdade. Com a ascensão do Estado social, surgem os direitos de segunda dimensão, caracterizados por outorgarem ao indivíduo direitos a prestações sociais estatais, como saúde, educação, trabalho, assistência social, entre outras, revelando uma transição das liberdades formais abstratas, conquistadas pelo liberalismo, para as liberdades materiais concretas.” (CUNHA JR., 2012, p. 621)
Num momento posterior, aparecem os direitos fundamentais de terceira dimensão, que outorga os chamados direitos de solidariedade, consagrando direitos pertencentes a uma coletividade, cuja titularidade é difusa ou coletiva, e não do indivíduo considerado de forma isolada. Inserem-se nesta dimensão o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o direito à autodeterminação dos povos.
Nas palavras de Dirley da Cunha Jr.:
“Como resultado de novas reivindicações do gênero humano, sobretudo ante o impacto tecnológico e o estado contínuo de beligerância, esses direitos caracterizam-se por destinarem-se à proteção, não do homem em sua individualidade, mas do homem em coletividade social, sendo, portanto, de titularidade coletiva ou difusa. Compreendem o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito à segurança, o direito à paz, o direito à solidariedade universal, ao reconhecimento mútuo de direitos entre vários países, à comunicação, à autodeterminação dos povos e ao desenvolvimento.” (CUNHA Jr., 2012, p. 626-627)
Como se vê, os direitos surgidos nestas duas dimensões, em regra, não pertencem a um indivíduo apenas, mas a um grupo, que pode ser reduzido (v.g.os integrantes de determinada comunidade quilombola indígena) ou mais amplos (como o direito ao meio ambiente equilibrado que interessa a toda a coletividade) e, ainda quando são titularizados por um indivíduo, podem ser eles defendidos de forma coletiva.
Dessa maneira, ante o surgimento de tais direitos meta-individuais, inclusive aqueles individuais que podem ser defendidos numa única relação jurídico-processual por terem origem comum, vem a necessidade de instrumentos processuais aptos a tutelar tais direitos, tendo em vista que o processo civil até então foi moldado para atender a demandas individuais.
Como esse panorama jurídico-processual não mais refletia a realidade social, destacadamente, o surgimento de demandas de massa, que não podem ser tuteladas individualmente, surge o processo coletivo, à margem do Código de Processo Civil, através de um subsistema jurídico de processo coletivo, como já visto neste trabalho.
Conforme afirma Daniel Assumpção Amorim Neves:
“Esse desenvolvimento da tutela coletiva é compreensível. Os direitos transindividuais não podem ser efetivamente protegidos pela tutela individual, a qual, no Brasil, está essencialmente prevista no sistema processual criado pelo Código de Processo Civil. Sem as devidas adaptações de alguns institutos processuais, notadamente da legitimidade ativa e da coisa julgada, a efetiva tutela dessas espécies de direito material seria inviável. Daí a necessidade imprescindível de formação de um novo sistema, da criação e disponibilização às partes de uma nova espécie de tutela, chamada de tutela coletiva.” (NEVES, 2014)
“O que se pretende deixar claro é que a tutela coletiva é absolutamente imprescindível para a proteção de direitos difusos e coletivos, e sem ela jamais poderão ser devidamente atendidos com a aplicação da tutela individual.”(NEVES, 2014)
Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. enxergam dois tipos de fundamentos para a existência das ações coletivas: um de ordem política judiciária, centrada no princípio da economia processual; e outro de ordem sociológica, vendo na ação coletiva um instrumento para facilitar o acesso à Justiça.
A justificativa sociológica, materializada pela busca do acesso à Justiça de forma efetiva, entregando com eficiência a prestação jurisdicional vindicada, é verificada pelo crescimento das chamadas demandas de massa, que envolvem os direitos pertencentes a uma coletividade ou que, ainda que individuais, podem ser defendidos coletivamente.
Consoante afirmado acima, tais demandas surgiram a partir da outorga de direitos sociais, econômicos, culturais e até de solidariedade, destacando nestes últimos a defesa do meio ambiente, que atualmente é tão manejada através de ações coletivas. Estes direitos, que surgiram como direitos fundamentais de segunda e de terceira dimensão, necessitam de meios específicos para sua defesa, ante a insuficiência dos instrumentos processuais para tutelar direitos individuais. Nas palavras dos citados autores:
“As motivações sociológicas podem ser verificadas e identificadas no aumento das demandas de “massa” instigando uma “litigiosidade de massa”, que precisa ser controlada em face da crescente industrialização, urbanização e globalização da sociedade contemporânea. A constitucionalização dos direitos e os movimentos pelos direitos humanos e pela efetividade dos direitos fundamentais (como direitos humanos constitucionalizados), partindo dos primeiros documentos internacionais resultantes do fim da II Guerra Mundial, levaram o Direito a um novo patamar pós-positivista e principiológico, exigindo uma nova postura da sociedade em relação aos direitos. A visão dos destinatários das normas jurídicas e do aparelho judicial e não apenas dos órgãos produtores do direito passa a ingressar no cenário. Para tutelar efetivamente os “consumidores” do direito, as demandas individuais não faziam mais frente à nova realidade complexa da sociedade.” (DIDIER JR., ZANETI JR., 2014, p. 32)
Isto porque, atualmente, quando se fala em princípio do acesso à Justiça, refere-se ao acesso a uma ordem jurídica justa, que seja capaz de oferecer uma resposta jurisdicional adequada, célere e eficaz à demanda posta em juízo. Esta nova visão do princípio impõe que a ciência processual encontre meios de efetivar o direito material presente na demanda da melhor forma possível.
Por tal razão é que o processo coletivo existe, com princípios e regras próprios, a fim de oferecer a resposta mais adequada às demandas de massa, que trazem direitos pertencentes a um grupo ou que podem ser tutelados num único processo. Com efeito, os instrumentos de tutela individual não são suficientes para o atendimento das demandas traduzidas pelos direitos surgidos com o fim do Estado Liberal.
Dessa maneira, acaso não existisse o ramo do processo coletivo para oferecer a tutela adequada a tais direitos, o princípio em comento, que está previsto no art. 5º, XXXV, da CF seria desrespeitado. Quando o referido dispositivo constitucional estabelece que lesão ou ameaça à direito não será excluída da apreciação do Judiciário, impõe que se crie uma ordem jurídica capaz de dar respostas a todas as pretensões postas em juízo, inclusive as demandas coletivas, que só terão respostas satisfatórias através da aplicação das normas próprias do processo coletivo.
Daniel Amorim Assumpção Neves afirma no mesmo sentido:
“A urgência na criação de uma nova forma de tutela para proteger os direitos transindividuais é explicada corretamente pela doutrina como forma de atender o princípio da inafastabilidade da jurisdição. Consagrado pelo art. 5º, XXXV, da CF (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), o princípio da inafastabilidade tem dois aspectos: a relação entre a jurisdição e a solução administrativa de conflitos e o acesso à ordem jurídica justa, que dá novos contornos ao princípio, firme no entendimento de que a inafastabilidade somente existirá concretamente por meio do oferecimento de um processo que efetivamente tutele o interesse da parte titular do direito material. Interessa ao presente estudo o segundo aspecto.”
“O acesso ao processo dos direitos transindividuais seria impossível com a aplicação do sistema criado para a tutela individual. E, nesse sentido, o princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrada constitucionalmente seria flagrantemente desrespeitado. A única forma de fazer valer concretamente o princípio constitucional nesse caso, portanto, seria – como foi – com a criação da tutela coletiva.” (NEVES, 2014)
De outra banda, segundo Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. o fundamento político da existência do processo coletivo está centrado no princípio da economia processual, notadamente porque uma só relação jurídico-processual é capaz de resolver uma demanda que envolve várias pessoas e que, não fosse o processo coletivo, ensejaria a propositura de diversas demandas individuais, o que é mais perceptível na tutela de direitos individuais homogêneos, aumentando os custos para a prestação jurisdicional.
Demais disso, resolvendo-se uma demanda coletiva através de um único processo, evitam-se decisões contraditórias no âmbito do Poder Judiciário, aumentando a credibilidade e confiança deste Poder perante a sociedade e contribuindo para a pacificação e harmonização social, em virtude de oferecer mais segurança jurídica.
Na esteira do que afirmam os referidos autores:
“As motivações políticas mais salientes são a redução dos custos materiais e econômicos na prestação jurisdicional; a uniformização dos julgamentos, com a consequente harmonização social, evitação de decisões contraditórias e aumento de credibilidade dos órgãos jurisdicionais e do próprio Poder Judiciário como instituição republicana. Outra consequência benéfica para as relações sociais é a maior previsibilidade e segurança jurídica decorrente do atingimento das pretensões constitucionais de uma Justiça mais célere e efetiva (EC 45/04)” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2014, p. 32)
Para oferecer as respostas satisfatórias às demandas coletivas, o processo coletivo teve de se revestir de institutos com roupagem diferente se comparado ao processo individual. De início, a legitimação ativa, que encontra disciplina rígida no CPC, segundo o qual apenas o titular do direito pode pleiteá-lo em juízo (como estabelece os já transcritos arts. 6º do CPC/1973 e 18, caput, do CPC/2015), deve se abrir para que terceiros representem judicialmente os titulares dos direitos coletivos lato sensu.
Assim, é adotada uma legitimação extraordinária, autônoma e aberta, em que a lei passa a legitimar certas pessoas ou órgãos a atuar em juízo em prol de direitos alheios, pertencentes a um grupo ou, ainda que individuais, de origem comum. Neste aspecto, Ada Pellegrini Grinover afirma que, existindo mais de um legitimado legalmente para atuar na defesa de direitos coletivos, apesar do silêncio da legislação brasileira, a atuação deve ser do representante adequado, entendido como aquele que apresenta “as necessárias condições de seriedade e idoneidade” (2007, p. 11) para portar em juízo interesses pertencentes a um grupo, devendo o juiz verificar se aquele que está propondo a ação é realmente o representante adequado daqueles interesses.
Outro importante instituto diz respeito ao regime da coisa julgada adotado nas ações coletivas. Já que nestas ações um legitimado extraordinário atua em nome dos titulares dos direitos, é natural que a sentença nelas proferidas faça coisa julgada em relação a todas as pessoas envolvidas na relação jurídica coletiva posta em juízo, em outros termos, os representados. Por tal razão é que as sentenças nos processos coletivos, ao contrário do que ocorre no processo individual, vinculam todos os membros do grupo, em regra, mesmo que não tenham participado da relação jurídico-processual.
A legitimação extraordinária, através do representante adequado, e o regime especial da coisa julgada são os institutos mais importantes que a dogmática do processo coletivo desenvolveu para que fosse oferecida a resposta jurisdicional satisfatória para as demandas de natureza coletiva. É assim que pensa Teori Zavascki:
“Os pontos mais sensíveis para a estruturação de um processo capaz de dar resposta às exigências e aos desafios do novo tempo foram detectados desde logo: a legitimação ativa, que deveria despojar-se de seus vínculos estritamente individualistas, a fim de permitir ‘que indivíduos ou grupos atuem em representação dos interesses difusos’; e a coisa julgada, que também deveria assumir contornos mais objetivos, para vincular ‘a todos os membros do grupo, ainda que nem todos tenham tido a oportunidade de ser ouvidos’. A nova compreensão desses dois institutos deu ensejo a que se percebesse, com clareza, que ‘a visão individualista do devido processo judicial está cedendo lugar rapidamente, ou melhor, está se fundindo com uma concepção social, coletiva. Apenas tal transformação pode assegurar a realização dos direitos púbicos relativos a interesses difusos’.” (ZAVASCKI, 2014, p. 28)
É dentro desta perspectiva que surge a ação civil pública, como um meio processual colocado à disposição dos legitimados com vistas a promover a efetiva defesa dos interesses coletivos, através de um procedimento moldado para atender adequadamente estas demandas.
Dentre as ações coletivas previstas no nosso ordenamento jurídico, uma das que possui maior destaque é a ação civil pública, que foi instituída e regulamentada pela Lei 7.347/1985. Seja porque a Constituição da República outorgou ao Ministério Público este instrumento processual para defesa dos interesses difusos e coletivos, em seu art.. 129, III, seja pela amplitude do seu objeto, de modo que os legitimados podem se valer deste tipo de ação para a proteção de quaisquer interesses difusos ou coletivos, seja por suas próprias características que possibilitam uma defesa eficaz destes direitos, a ação civil pública é uma das ações coletivas mais utilizadas no dia a dia forense.
Ação civil pública é a ação cujo procedimento está disciplinado na Lei 7.347/1985, que visa a disciplinar as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, bem como a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.
Dentro da perspectiva talhada no tópico anterior, do surgimento de novos direitos, cujos titulares não são pessoas determinadas ou mesmo sendo, os direitos possuídos possuem origem comum, a ação civil pública surge como o meio para tutelar de forma eficaz e eficiente tais direitos. São interesses que, à exceção dos direitos individuais homogêneos, não podem ser apropriados individualmente e, por tal razão, os institutos processuais existentes até então, propriamente moldados para a tutela de direitos individuais, não poderiam dar a resposta satisfatória às agressões constantes sofridas por estes novos direitos.
Nas palavras de Arruda Alvim:
“O capitalismo, de outra parte, que possivelmente encontra à sua base a industrialização, acaba implicando acentuadamente lesões a determinados bens, de que se pode dizer constituem o âmago dos bens protegidos pela Ação Civil Pública, tal como consta do elenco do seu art. 1º. Tais bens – ontologicamente insuscetíveis de apropriação individual – configuram interesses e direitos difusos, de toda a coletividade, os quais, correlatamente às agressões que vieram, paulatina e crescentemente a sofrer, passaram a ser especialmente prezados pelo Legislador, que acorreu na defesa e tutela dos mesmos. A ação civil pública, principalmente, colima a proteção de bens e valores que vieram a ser havidos como socialmente relevantes, cuja tutela vem marcada pela indisponibilidade, tanto no plano do direito material, quanto no plano do direito processual.”
“A ação civil pública protege “novos” bens jurídicos, entronizando no ordenamento uma nova e privilegiada pauta de bens e valores, com o caráter de interesses e direitos difusos ou coletivos (sucessivamente alargada para direitos individuais homogêneos). Essa tutela é marcada com as características de indisponibilidade (direito e interesse social), regidos esses sistemas por normas cogentes ou de ordem pública. A extensão dessa proteção é ampla, e, favorável a decisão, esta revestir-se-á de imutabilidade, abrangendo a todos, com eficácia erga omnes”. (ARRUDA ALVIM, 2014, p. 119).
É a ação civil pública que surge como o meio processual para oferecer a resposta necessária às agressões aos novos direitos, de caráter transindividual, incorporando no ordenamento jurídico a defesa destes direitos e instrumentalizando a efetivação do direito material de natureza coletiva, que passou a estar cada vez mais presente no sistema jurídico pátrio. Direitos estes que são quase sempre inviáveis de serem defendidos individualmente, pelas pessoas integrantes do grupo atingido, por razões de ordem técnica, fática, jurídica e financeira.
O advento da Lei da Ação Civil Pública representou significativo avanço do processo coletivo no Brasil e foi de destacada importância para a adequada e efetiva tutela dos direitos coletivos em sentido amplo. A lei em referência foi o primeiro diploma legislativo de tutela coletiva após a Lei 4.717/1965, conhecida como Lei da Ação Popular, e foi a primeira lei que trata sobre processo coletivo de uma série de diplomas legislativos publicados em seguida.
“Todavia, foi a Lei 7.347, de 24.07.1985, que assentou o marco principal do intenso e significativo movimento em busca de instrumentos processuais para a tutela dos chamados direitos e interesses difusos e coletivos. Essa Lei, conhecida como Lei da Ação Civil Pública, veio preencher uma importante lacuna do sistema do processo civil, que, ressalvado o âmbito da ação popular, só dispunha, até então, de meios para tutelar direitos subjetivos individuais. Mais que disciplinar um novo procedimento qualquer, a nova Lei veio inaugurar um autêntico subsistema de processo, voltado para a tutela de uma também original espécie de direito material: a dos direitos transindividuais, caracterizados por se situarem em domínio jurídico não de uma pessoa ou de pessoas determinadas, mas sim de uma coletividade.” (ZAVASCKI, 2014, p. 30)
Assim, a ação civil pública surge como um importante instrumento processual verdadeiramente apto para a tutela de direitos coletivos em sentido amplo, num momento em que o processo civil só havia se preocupado com a defesa de interesses meramente individuais pela atuação em juízo dos seus próprios titulares.
Nessa linha, a Lei da Ação Civil Pública estabeleceu um procedimento, marcado por institutos e características que promoveram um grande avanço no desenvolvimento do processo coletivo e na adequada proteção dos interesses transindividuais e influenciando todo o subsistema processual coletivo que viria em seguida.
Um primeiro avanço trazido pela Lei 7.347 para o desenvolvimento do processo coletivo em relação à Lei da Ação Popular foi que este tipo de ação destina-se à veiculação de pedido de anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público em sentido amplo (art. 1º, caput e § 1º, da Lei 4.717/1965), ao passo que a ação civil pública tem por objetivo a responsabilização dos causadores de danos a quaisquer interesses difusos ou coletivos, havendo possibilidade de cumulação de pedidos de natureza preventiva, reparatória e compensatória.
Outra contribuição significativa que a LACP trouxe foi a legitimação extraordinária de determinadas pessoas e órgãos para a propositura da ação civil pública em defesa de interesses transindividuais pertencentes a pessoas que não integrarão a relação processual, porém serão diretamente atingidos pelos resultados dela advindos. Dessa maneira, a Lei 7.347, ao estabelecer o rol de legitimados para a ação civil pública, em seu art. 5º, determinou que a regra nas ações coletivas é a legitimação extraordinária, em que parte e beneficiário da ação deixam de coincidir, como se passa na legitimação ordinária, que é a regra no processo individual, como determina o art. 18, caput, do CPC/2015.
Não poderia ser de forma diversa, pois tendo por objeto a tutela de interesses pertencentes a determinado grupo, inclusive, com possibilidade de que titulares sejam pessoas indeterminadas (como ocorre com os direitos difusos, pela definição do art. 81, I, do CDC), a legitimidade deve pertencer a um substituto processual que possa representar adequadamente os interesses postos em juízo através da ação civil pública.
Consoante já afirmado no presente trabalho, se se está buscando tutelar interesse pertencente a um determinado grupo de pessoas, a decisão sobrevinda da relação processual coletiva deve despojar-se dos seus limites subjetivos meramente individuais, vinculando apenas as partes que participaram do processo, para atingir toda a coletividade envolvida com aquele direito de natureza coletiva.
Desse modo, a Lei 7.347 tratou de estabelecer, em seu art. 16, que a sentença civil proferida em ação civil pública
“fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se da nova prova”.
Nesse sentido, a lei em comento determinou que, em regra, a decisão final de primeiro grau em ACP possuirá eficácia erga omnes, atingindo todos os interessados/envolvidos naquele direito coletivo ofendido.
Para Teori Zavascki, estas duas contribuições da LACP, a saber, a legitimação extraordinária ex lege de um substituto processual e o regime especial da coisa julgada, vinculando não apenas as partes do processo, foram as mais importantes para o desenvolvimento do processo coletivo e para a adequada tutela dos interesses a que esta lei se destinou a tutelar:
“Destinadas a tutelar direitos e interesses transindividuais, isto é, direitos cuja titularidade é subjetivamente indeterminada, já que pertencentes a outros grupos ou classes de pessoas, as ações civis públicas caracterizam-se por ter como legitimado ativo um substituto processual: o Ministério Público, as pessoas jurídicas de direito público ou, ainda, entidades ou associações que tenham por finalidade institucional a defesa e a proteção dos bens e valores ofendidos. Caracterizam-se, também, pelo especial regime da coisa julgada das sentenças nelas proferidas, que têm eficácia erga omnes, salvo quando nelas for proferido juízo de improcedência por falta de provas, hipótese em que qualquer dos legitimados ativos poderá renovar a ação, à base de novos elementos probatórios” (ZAVASCKI, 2014, p. 15)
A ação civil pública é assim denominada em razão da sua legitimidade ativa, conferida ao Ministério Público, à Defensoria Pública, às pessoas jurídicas de direito público e aos demais entes da administração indireta e associações cuja finalidade coincida com o direito posto em juízo. Assim se percebe que os legitimados, à exceção das associações, fazem parte do Estado, que atuarão na defesa de interesses pertencentes a um determinado grupo, cujos integrantes não farão parte da relação jurídico-processual. Por tal razão, a ação recebeu a denominação de pública, para distinguir-se das ações civis privadas, ajuizadas individualmente por particulares para a defesa de interesses individuais próprios.
A ação civil pública faz um contraponto à ação penal pública. Foi ela moldada para que o Ministério Público tivesse um meio processual em suas mãos para o exercício das atribuições que lhe foi incumbido, notadamente, a defesa dos interesses transindividuais civilmente.
Da mesma maneira que o órgão ministerial dispunha da ação penal para efetivar seu mister de responsabilizar criminalmente aqueles suspeitos da prática de delitos, necessitava de um meio para buscar responsabilizar civilmente aqueles que cometessem atos ilícitos contra a coletividade e contrários ao interesse público, atingindo, assim, direitos de natureza transindividual, tendo em vista que o Ministério Público sempre foi o guardião do ordenamento jurídico e da sociedade. Esta conclusão é embasada pela Lei Complementar 40, de 14.12.1981, ao estabelecer, em seu art. 3º, que são funções institucionais do Ministério Público a promoção da ação penal pública e da ação civil pública.
Apesar de ser originariamente um meio processual para a atuação do Ministério Público, quis a Lei 7.347 conferir legitimidade a outros órgãos e entes, além do órgão ministerial, a fim de possibilitar uma defesa mais efetiva dos interesses transindividuais lesados. Contudo, Hugo Nigro Mazzilli afirma que a referida lei não adotou a melhor técnica ao nominar como ação civil pública a ação criada para a defesa de interesses transindividuais por outros legitimados além do Ministério Público. Isto porque, na esteira do que acabamos de expor, advoga este autor que “a rigor, sob o aspecto doutrinário, ação civil pública é a ação de objeto não penal proposta pelo Ministério Público” (MAZZILLI, 2007, p. 69). O pensamento deste autor também encontra embasamento no que dispõe a LC 40/1981.
Assim, para o referido autor, tecnicamente, só se pode falar em ação civil pública quando for ela proposta pelo Ministério Público. Caso a ação proposta pelo procedimento da Lei 7.347/1985 for ajuizada por qualquer outro dos colegitimados, será uma ação coletiva, a exemplo das outras existentes no nosso ordenamento jurídico. Todavia, na prática forense, toda a ação para a defesa de direitos transindividuais, que estiver submetida ao rito preconizado pela Lei 7.347, deverá ser chamada ação civil pública, pois assim a nominou a lei em referência.
Diversas leis que versam sobre direitos coletivos em sentido amplo fazem referência à ação civil pública como o meio processual para a tutela de tais direitos, tendo algumas, inclusive, estabelecido específicas normas processuais em relação à LACP. Dentre estes diplomas normativos, podemos destacar a Lei 7.853/1989 (que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, disciplinando direitos coletivos destas pessoas), a Lei 8.078/1990 (que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, disciplinando a tutela de direitos transindividuais dos consumidores) e a Lei 10.741/2003 (que instituiu o Estatuto do Idoso e disciplinou a tutela de interesses coletivos de pessoas idosas). Contudo, todas as ações civis públicas ajuizadas para tutela destes interesses seguem, em sua essência, o rito previsto na Lei 7.347/1985.
A ação civil pública pode ter finalidade reparatória, como deixa claro o art. 1º, caput, da LACP, ao estabelecer que esta ação tem por objetivo responsabilizar os causadores de danos aos direitos difusos e coletivos, visando sua condenação a quantia correspondente para o ressarcimento devido, bem como obter provimento jurisdicional que obrigue o réu a obrigação de fazer ou não fazer, como prescreve o art. 3º.
Pode ser obtida também tutela preventiva, a fim de que seja evitado o dano a qualquer dos interesses transindividuais, apesar de o art. 4º se referir equivocadamente à “ação cautelar” para tal finalidade. O equívoco está no fato de que a tutela cautelar tem cunho provisório e existe para garantir a utilidade prática de um processo tido como principal, ao passo que o objetivo do referido dispositivo legal é a obtenção de tutela definitiva do próprio objeto principal da ação, a fim de evitar um dano, inibindo-o, possuindo, portanto, natureza preventiva e não cautelar.
Desta maneira, a ação civil pública se presta à obtenção de tutela reparatória, à condenação de fazer ou não fazer bem como a preventiva. Tais tutelas podem ser perfeitamente cumuladas numa só ação, a depender da natureza do direito material a ser protegido, apesar do uso da partícula “ou” no art. 3º, levando alguns juristas a crer que não podia ser cumulado pedido de condenação em dinheiro com cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.
Porém, atualmente, a maior parte da doutrina e da jurisprudência entende que é plenamente possível essa cumulação, tendo em vista a necessidade da efetiva tutela dos interesses postos em juízo. Isto porque, ontologicamente, o processo existe para dar efetividade e instrumentalizar o direito material, razão pela qual as normas processuais devem ser interpretadas segundo a melhor maneira de atingir o fim a que se propõem. Dessa maneira, acaso seja cabível a cumulação destes dois pedidos para a efetiva tutela do interesse posto em juízo, podem ser veiculados em uma mesma ação.
Essa possibilidade de obtenção de tutela preventiva, reparatória e de prestações com natureza distinta em ação civil pública levou Teori Zavascki a afirmar que este tipo de ação é um instrumento de múltipla aptidão capaz de conferir tutela integral aos direitos transindividuais. Nas palavras do referido autor:
“Bem se vê, destarte, à luz destes dispositivos, que a ação civil pública é instrumento com múltipla aptidão, o que a torna meio eficiente para conferir integral tutela aos direitos transindividuais: tutela preventiva e reparatória, para obter prestações de natureza pecuniária (indenizações em dinheiro) ou pessoal (de cumprir obrigações de fazer ou de não fazer), o que comporta todo o leque e provimentos jurisdicionais: condenatórios, constitutivos, inibitórios, executivos, mandamentais e meramente declaratórios.” (ZAVASCKI, 2014, p. 57)
Em relação ao objeto da ACP, incialmente o art. 1º, IV, que estabelecia ser cabível este tipo de ação para defesa de qualquer outro interesse difuso ou coletivo, afora os interesses transindividuais especificados nos incisos anteriores, foi vetado pelo então Presidente da República, sob o argumento de que a ampla abrangência da expressão poderia causar insegurança jurídica. Contudo, após a promulgação da Carta da República de 1988, tal veto perdeu seu sentido, uma vez que, em seu art. 129, III, a Constituição conferiu ao Ministério Público a atribuição de proteger quaisquer interesses difusos ou coletivos, através da ação civil pública.
Dessa maneira, ante esta disposição constitucional, os estudiosos do tema já vinham entendendo que a ACP, proposta pelo Ministério Público ou não, também se destinava à tutela de quaisquer interesses transindividuais, e não apenas os enumerados nos incisos do art. 1º. Isto porque a vontade do legislador constituinte era a de que este instrumento processual estivesse à disposição para a defesa de todos os direitos coletivos em sentido amplo.
Dois anos após a promulgação da Constituição, a Lei 8.078/1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, pôs fim as discussões existentes, ao incluir o inciso IV no art. 1º da LACP, estabelecendo expressamente que a ação civil pública também poderia ter por objeto a proteção de outros interesses difusos ou coletivos. Porém, foi dado início a uma nova controvérsia, qual seja, a possibilidade de a ACP servir como instrumento também para a defesa dos interesses individuais homogêneos, segundo a definição traçada pelo art. 81, parágrafo único, III, da Lei 8.078/1990.
Tendo a LACP se referido somente a interesses difusos ou coletivos, surgiu corrente jurisprudencial entendendo que os únicos interesses individuais homogêneos que podem ser tutelados por meio de ação civil pública são os pertencentes aos consumidores, em razão da expressa disposição do CDC, ao estabelecer a defesa coletiva dos direitos individuais homogêneos dos consumidores, bem como, em seu art. 90, prescrever que as disposições da Lei 7.347/1985 se aplicam às ações coletivas para a defesa do consumidor.
Entretanto, para Hugo Nigro Mazzilli, qualquer tipo de interesse individual homogêneo pode ser tutelado por ação civil pública, vez que a LACP e o CDC se integram e se complementam de forma recíproca, como deixam claro os arts. 21 da Lei 7.347/1985 e 90 da Lei 8.078/1990. Assim, o que o CDC disciplina acerca da defesa coletiva dos direitos individuais homogêneos dos consumidores, se aplica também aos demais direitos desta espécie, sendo defendidos pelas disposições do código consumerista e da LACP.
Nesse sentido, ao estabelecer que os interesses individuais homogêneos são uma das espécies do gênero direitos coletivos lato sensu, o CDC abriu a possibilidade de que quaisquer direitos individuais de origem comum fossem defendidos coletivamente. Não há razão para restringir o princípio constitucional do acesso à Justiça quando se queira defender coletivamente direitos individuais homogêneos. Nas palavras do referido autor:
“Esse entendimento restritivo não se sustenta, porém, em face do sistema conjugado da LACP e do CDC, que se integram reciprocamente. Com efeito, estão alcançados pela tutela coletiva os interesses individuais homogêneos, de qualquer natureza, relacionados ou não com a condição de consumidores dos lesados. Por isso, e em tese, cabe também a defesa de qualquer interesse individual homogêneo por meio da ação civil pública ou coletiva, até porque seria inconstitucional impedir o acesso coletivo à jurisdição.” (MAZZILLI, 2007, p. 668)
Para alguns que buscam maior precisão técnica-terminológica, a exemplo de Teori Zavascki, a ação civil pública se destina apenas a tutela de direitos transindividuais, dentre os quais não estão incluídos os direitos individuais homogêneos, uma vez que seus titulares são determinados e os interesses são divisíveis, tendo, pois a possibilidade de serem defendidos individualmente (ZAVASCKI, 2014, p. 55). Por tal razão, os direitos individuais de origem comum não podem ser considerados espécie de direito coletivo, malgrado o disposto no art. 81 do CDC, que considera os interesses individuais homogêneos como espécie dos direitos metaindividuais.
Para este autor, a tutela coletiva destes direitos se daria através de ação coletiva, com esteio nos arts. 91 a 100 do CDC, mas não mediante ação civil pública propriamente dita. Apesar do seu posicionamento, o autor reconhece que esta precisão na distinção terminológica é mais didática do que prática, pois no dia a dia forense a ação civil pública é o nome dado às ações relacionadas com o processo coletivo.
Em verdade, distinguir ação civil pública e ação coletiva não traz utilidade prática à defesa dos interesses coletivos em sentido amplo, uma vez que, consoante afirmam Antônio Herman Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa, tanto a ação civil pública como estabelecida pela Lei 7.347/1985 e quanto a ação coletiva disciplinada pelo CDC “significam invocar a prestação jurisdicional para tutela das mais diversas espécies de direitos coletivos” (2014, p. 506), tendo em vista que pelo disposto no CDC, direitos individuais homogêneos são uma das espécie de direitos transindividuais.
Até porque, segundo a definição proposta em tópico anterior, ação coletiva é a ação que dá origem a um processo coletivo, em que se tutela direito pertencente a um grupo, ou se afirma uma situação jurídica coletiva passiva. Conforme já dito no início deste tópico, a ação civil pública é uma espécie de ação coletiva. Tendo o CDC se referido apenas a ação coletiva de forma genérica, ao invés de falar especificamente em ação civil pública como fizeram outras leis que tutelam direitos coletivos, bem como que as disposições da LACP se aplicam à defesa coletiva do consumidor, não há porque negar, diante do cabedal normativo existente, que ação civil pública se presta à defesa de qualquer direito metaindividual.
Em reforço ao aqui defendido, anote-se que a Lei Complementar n. 75/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União - LOMPU), em seu art. 6º, VII, e a Lei 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público - LONMP), em seu art. 25, IV, a, conferem possibilidade para que o Ministério Público instaure inquérito civil para a defesa de interesses individuais homogêneos. Se o órgão ministerial pode instaurar um procedimento preparatório investigativo, que pode desaguar na propositura de ação civil pública. Inclusive o mencionado dispositivo da LONMP estabelece que o Ministério Público pode ajuizar ação civil pública para a defesa destes interesses, apesar de a LOMPU referir-se ao ajuizamento de ação coletiva para tanto, o que nos remete ao que já foi dito nos parágrafos anteriores.
Não é óbice à conclusão aqui esboçada o entendimento doutrinário de que o Ministério Público não pode atuar na defesa de quaisquer interesses individuais homogêneos e até coletivos stricto sensu, devendo, como afirma Hugo Nigro Mazzilli, o órgão atuar apenas quando haja efetiva conveniência social. Para este autor, a conveniência social a justificar a atuação do Ministério Público deve ser aferida de acordo com os seguintes critérios:
“[...] a) Conforme a natureza do dano (saúde, segurança e educação públicas, p. ex.); b) conforme a dispersão dos lesados (a abrangência social do dano, sob o aspecto dos sujeitos atingidos); c) conforme o interesse social no funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico (previdência social, captação de poupança popular, questões tributárias etc.).” (MAZZILLI, 2007, p. 102)
Apesar de este apontamento apenas não se referir aos direitos difusos, são com os direitos individuais homogêneos que mais se aplica tal restrição de se verificar a conveniência social, tendo em vista a natureza indivisível dos direitos coletivos, pertencentes a uma determinada coletividade, de modo que a conveniência social restará mais evidente nestes casos.
Essa restrição à atuação ministerial na defesa de interesses individuais homogêneos não representa óbice a que tais direitos sejam sempre defendidos por ação civil pública, podendo esta ser proposta por qualquer outro dos colegitimados tratados no art. 5º da Lei 7.347/1985, notadamente, as associações. Dessa maneira, reafirma-se a conclusão acima exposta de que a ação civil pública também pode ter por objeto a tutela de interesses individuais homogêneos.
Com isso, podemos concluir que a ação civil pública é meio processual para a tutela de todo e qualquer interesse transindividual, inclusive aqueles classificados como direitos individuais homogêneos, mesmo que estes sejam considerados por alguns como direitos acidentalmente coletivos.
Como visto no capítulo anterior, com a segunda e a terceira dimensões dos direitos fundamentais, foram incorporados ao ordenamento jurídico, sobretudo nas constituições, direitos sociais, econômicos, culturais e de solidariedade. Dessa maneira, com a superação do Estado liberal, foram consagrados direito à educação, à moradia, à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, dentre outros.
A consagração destes direitos demonstrou que o modelo jurídico proposto pelo liberalismo burguês, em que pese garantisse a liberdade aos indivíduos para o exercício de direitos civis e políticos, acabava por criar situações de injustiça social, desigualdades, ofensas a bens metaindividuais, desrespeito à dignidade da pessoa humana etc.
Muitos dos direitos trazidos pela segunda e pela terceira dimensão, além de pertencerem a uma coletividade de indivíduos e não apenas a um indivíduo em si considerado, impõem obrigações ao Estado a fim de que concretize efetivamente, de forma direta ou não, tais direitos. Nesse sentido, não mais pode o Estado agir apenas garantindo o exercício das liberdades, fazendo tão somente com que os indivíduos possam alçar seus objetivos individualmente, por seus próprios méritos. O Estado passa a ser devedor de prestações jurídicas que podem ser dele exigidas, com respaldo no ordenamento jurídico.
Podemos tirar exemplos da nossa Constituição Federal de 1988. Quando a Carta Magna consagra, em seu art. 225, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impõe a todos o dever de preservar o meio ambiente, bem como prevê a responsabilização dos causadores de danos a este bem. Porém, também carreia ao Estado (aqui considerado o Poder Executivo) o dever de fiscalizar a preservação e punir administrativamente os agressores, não mais podendo eximir-se desta obrigação constitucional. No mesmo sentido, como estabelece o art. 196 da Carta da República, é dever do Estado a consecução de políticas de promoção de saúde à população.
Dessa maneira, os direitos atualmente consagrados impõem um maior protagonismo do Estado na sociedade, não sendo mais cabível que apenas garanta o exercício das liberdades e permita que o mercado e os próprios indivíduos se autorregulem e regulem as relações sociais. O Estado passa a atuar ativamente, com a função de concretizar direitos.
Contudo, por diversas razões, nem sempre o Estado o faz de forma espontânea, necessitando, em diversas oportunidades, que seja compelido a imprimir políticas e ações que tenham por escopo a efetivação dos direitos previstos no ordenamento jurídico. Nesse sentido, um dos meios de fazer com que o Estado atue na concretização de direitos é através da provocação do Poder Judiciário, a fim de se obter tutela jurisdicional com o intuito de obrigar os entes estatais a tanto.
Conforme afirmado no capítulo anterior, muitos desses direitos sociais, econômicos, culturais e de solidariedade, bem como os próprios direitos civis e políticos antes consagrados (que apesar de individuais podem ter origem comum), pertencem a uma coletividade e, portanto, podem ser defendidos em juízo por meio de ações coletivas. Dentre as ações coletivas, destaca-se a ação civil pública como o meio processual posto à disposição dos seus legitimados para a tutela dos interesses metaindividuais, na esteira do que já fora demonstrado no presente trabalho.
Dessa maneira, não são raras as ações civis públicas propostas contra o Estado, a fim de compeli-lo a cumprir suas obrigações, notadamente, para a tutela de interesses coletivos em sentido amplo a cargo do Estado.
Nessa linha, não é difícil encontrar ação ajuizada em face do Estado cujo pedido seja a recuperação e a preservação de uma Área de Preservação Permanente degradada, nos limites de cada ente federativo, uma vez que os entes estatais, diretamente ou através de seus órgãos ou entes da administração indireta, devem fiscalizar e zelar pelo direito da população ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. De igual maneira, pode ser ajuizada ação civil pública para que o Estado seja obrigado a consertar uma máquina de quimioterapia de um hospital público ou a fornecer determinado medicamento a um grupo de pacientes. Estas são ilustrações de como geralmente as ações civis públicas são ajuizadas em desfavor do Estado.
Esta pequena introdução deste capítulo serve para demonstrar a importância do que será aqui trabalhado. Com efeito, a fim de proteger o erário, ante a supremacia do interesse público sobre o privado, bem como para garantir a efetivação do princípio da isonomia processual, no plano material, passaram a existir prerrogativas processuais a favor do Estado.
Este capítulo se destina a analisar algumas das principais prerrogativas estatais na fase de conhecimento da ação civil pública, e que, de certa forma, influenciam na tramitação deste tipo de ação e na certificação judicial dos direitos que ela se destina a tutelar, para a efetivação destes interesses. Assim, quando nos referirmos aqui a prerrogativas processuais, estamos aludindo somente àquelas verificadas na fase de conhecimento do processo.
Em que pese alguns autores usarem o termo “privilégios” para designar as vantagens processuais que o Estado possui, no presente trabalho, adotar-se-á o termo prerrogativas, seguindo o pensamento de Leonardo Carneiro da Cunha. Para este autor os privilégios:
“consistem em vantagens sem fundamento, criando-se uma discriminação, com situações de desvantagens. As ‘vantagens’ processuais conferidas à Fazenda Pública revestem o matriz de prerrogativas, eis que contêm fundamento razoável, atendendo, efetivamente ao princípio da igualdade, no sentido aristotélico de tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual.” (CUNHA, 2011, p. 35)
Apesar do posicionamento do autor, etimologicamente essa distinção entre os dois termos faz sentido, uma vez que pela definição trazida pelos dicionários, privilégio é uma vantagem concedida a alguém, seja com ou sem fundamento/justificativa. Inclusive, o termo prerrogativa é apontado como sinônimo de privilégio em alguns dicionários da língua portuguesa.
Aliás, não apenas em dicionários, mas também no mundo jurídico. Tomemos como exemplo quando nos referimos a foro privilegiado como sinônimo de foro por prerrogativa de função para designar o juízo competente para o processamento de ações penais ou civis contra determinadas autoridades, denotando a similitude entre os dois termos. A título ilustrativo, registre-se que Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar utilizam estas duas expressões como sinônimas em sua obra (2014, p. 354). Além disso, se se fala em foro privilegiado, afirma-se que é dado um privilégio a algumas autoridades, em que, certamente, há uma justificativa para o seu estabelecimento, que não cabe aqui ser discutida.
Apesar destas considerações, será utilizado o termo “prerrogativas”, em virtude da força do pensamento dos autores que entendem ser apenas esse o termo correto para se referir às vantagens processuais do Estado, malgrado ter o mesmo significado de “privilégios”.
Outrossim, a despeito de o termo “Fazenda Pública” estar relacionado às finanças estatais, processualmente convencionou-se identificar a expressão com o “Estado em juízo”. Inclusive, muitos diplomas normativos usam o termo “Fazenda Pública” para se referir aos entes da administração pública em juízo, como o fazia o art. 188 do CPC/1973 (apesar de o CPC/2015 se referir no art. 183, dispositivo correspondente, a “a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público”). Por tal razão, a expressão “Fazenda Pública” será usada como sinônimo do Estado em juízo como destinatário das prerrogativas processuais.
Inicialmente, cumpre delimitar quais os entes da administração pública que serão beneficiados pelas prerrogativas processuais destinadas à Fazenda Pública.
O termo Fazenda Pública remete aos entes da administração pública que possuem personalidade jurídica de direito público. Dessa maneira, possuem o chamado “regime de Fazenda Pública”, com todas as prerrogativas e limitações aplicáveis, os entes federativos (a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal), as suas autarquias e as suas fundações de direito público, os dois únicos entes descentralizados que possuem personalidade de direito público.
Em relação às fundações, a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que, a depender do seu objeto de atuação, as fundações podem possuir natureza de direito privado ou de direito público. Neste último caso serão chamadas de autarquias fundacionais, uma vez que, apesar de criadas nos moldes de uma fundação, exercem atribuições típicas de Estado, que foram descentralizadas quando do ente fundacional, sendo, pois, equiparadas às autarquias. Dessa maneira, quando a fundação tiver natureza de direito público, lhe será aplicado o regime da Fazenda Pública, inclusive, gozando das prerrogativas processuais próprias do Estado.
As agências reguladoras, criadas para fiscalizar, regular, normatizar a prestação de serviços públicos ou de atividades econômicas exercidas por particulares, mas de interesse da coletividade, também fazem parte da Fazenda Pública. Não poderia ser de forma diversa, uma vez que as agências reguladoras são criadas da mesma forma que as autarquias, porém, para garantir o cumprimento de suas finalidades, estão submetidas a um regime especial, que lhes confere maior independência e autonomia financeira e administrativa. São, em verdade, autarquias especiais, razão pela qual estão submetidas ao regime da Fazenda Pública, gozando das prerrogativas processuais.
De igual maneira, as agências executivas também possuem natureza de Fazenda Pública, sendo, de igual modo, consideradas autarquias especiais. Estas agências são autarquias ou fundações públicas que, por demonstrarem ineficiência no desempenho de suas atribuições, celebram contrato de gestão com a Administração Pública Direta, recebendo mais verbas e mais autonomia e, em contrapartida, comprometendo-se a aumentar sua eficiência através das medidas estabelecidas no próprio contrato de gestão. Possuindo a condição de autarquias ou fundações de direito público, mesmo que temporariamente ganhando denominação diversa, não há dúvidas de que fazem parte da Fazenda Pública e gozam das prerrogativas processuais.
Leonardo Carneiro da Cunha trata sobre esta qualificação dada às agências executivas e as agências reguladoras:
“A esse rol de pessoas jurídicas de direito público acrescem as agências, às quais se tem atribuído a natureza jurídica de autarquias especiais, significando dizer que tais agências se constituem de pessoas jurídicas de direito público, destinadas a desempenhar atividade pública. As agências podem ser executivas ou reguladoras.” (CUNHA, 2011, p. 17)
Ademais, os consórcios públicos, firmados com respaldo na Lei 11.107/2005, mediante a constituição de uma associação pública, também participa da definição de Fazenda Pública, por adquirirem personalidade jurídica de direito público e fazerem parte da Administração Pública Indireta dos entes políticos que os instituíram. Dessa maneira, também gozam das prerrogativas processuais do Estado.
Em relação às empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista), há de ser feita uma diferenciação. Estas empresas, apesar de fazerem parte da administração pública indireta e estarem submetidas às restrições administrativas impostas à Administração Pública, possuem natureza de direito privado. Segundo estabelece o art. 173, § 1º da Constituição Federal, elas podem ser criadas para a consecução de dois objetivos, quais sejam: 1) a exploração de atividade econômica de produção ou comercialização de bens; 2) a prestação de serviços públicos.
Para Leonardo Carneiro da Cunha, quaisquer empresas estatais não fazem parte do conceito de Fazenda Pública, por possuírem natureza jurídica de direito privado, mesmo que sejam criadas para a prestação de serviços públicos, não gozando, pois, das prerrogativas processuais conferidas ao Estado. Nas palavras do referido autor:
“À evidência, estão excluídas do conceito de Fazenda Pública as sociedades de economia mista e as empresas públicas. Embora integrem a Administração Pública indireta, não ostentam natureza jurídica de direito público, revestindo-se da condição de pessoas jurídica de direito privado, a cujo regime estão subordinadas. Então, quando se alude à Fazenda Pública, na expressão não estão incluídas as sociedades de economia mista nem as empresas públicas, sujeitas que são ao regime geral das pessoas jurídicas de direito privado.” (CUNHA, 2011, p. 18)
Aqueles que entendem desta maneira buscam respaldo no art. 173, § 1º, II da Magna Carta, que determina que as empresas estatais, seja qual for o seu objetivo, sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas. Argumentam que quando o referido dispositivo legal alude a “prestação de serviços” faz menção a serviços públicos também, e não só aos serviços privados oferecidos no mercado econômico de livre concorrência.
Assim, não haveria que se falar em privilégios processuais aplicáveis à Fazenda Pública, eis que estas empresas se submetem às regras de mercado e não pode haver privilégios a elas em detrimento das demais empresas privadas, que concorrem com elas, como, inclusive, estabelece o art. 173, § 2º da Constituição da República. Com isso, José dos Santos Carvalho Filho entende que as empresas estatais, mesmo aquelas que prestam serviços públicos não devem ser beneficiadas pelas vantagens processuais da Fazenda Pública:
“Em outras palavras, não devem ter privilégios que as beneficiem, sem serem estendidos às empresas privadas, pois que isso provocaria desequilíbrio no setor econômico em que ambas as categorias atuam. Veda-se ao Estado-empresário a obtenção de vantagens que também não possam usufruir as empresas da iniciativa privada. Inexistem, pois, privilégios materiais e processuais, como os atribuídos às entidades públicas, de que são exemplos as autarquias.” (CARVALHO FILHO, 2013, p. 503)
Contudo, há forte corrente no direito administrativo advogando que o art. 173, § 1º da CF não se aplica às empresas estatais prestadoras de serviços públicos, uma vez que, ao referir-se a “prestação de serviços”, este dispositivo alude somente aos serviços de natureza privada, entendidos como a atividade fornecida ao mercado de consumo, estando, portanto, excluídos os serviços públicos do campo de incidência do referido artigo.
Dessa maneira, para os que seguem esta corrente, as empresas estatais prestadoras de serviços públicos merecem um tratamento diferente daquelas que exercem atividade econômica, devendo ser submetidas aos regramentos do art. 175, que trata sobre as formas como os serviços públicos poderão ser prestados. Este dispositivo, ao estabelecer que o Poder Público deverá prestar os serviços públicos diretamente ou através de concessão ou permissão, já estaria incluindo aí a os serviços oferecidos através das empresas estatais.
Maria Sylvia Zanella de Pietro escreve nesse sentido, defendendo um tratamento diferenciado às empresas do Estado que prestarem serviços públicos em relação as que exploram atividade econômica:
“Como o artigo 173 cuida especificamente da atividade de natureza privada, exercida excepcionalmente pelo Estado por razões de segurança nacional ou interesse coletivo relevante, há que se concluir que as normas dos §§ 1º e 2º só incidem nessa hipótese. Se a atividade for econômica (comercial ou industrial)mas assumida pelo Estado como serviço público, tais normas não têm aplicação, incidindo, então, o art. 175 da Constituição, segundo o qual incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.” (DI PIETRO, 2012, p. 443-444).
Com isso, a jurisprudência e a doutrina têm aproximado cada vez mais o regime das empresas estatais prestadoras de serviço público das pessoas jurídicas de direito público, conferindo prerrogativas típicas do regime da Fazenda Pública, considerando a supremacia do interesse público e o princípio da continuidade do serviço público, tão caros à atuação estatal. Nesse sentido, Thiago Emmanuel Chaves de Lima:
“Como o artigo 173 cuida especificamente da atividade de natureza Privada, exercida excepcionalmente pelo Estado por razões de segurança nacional ou interesse coletivo relevante, há que se concluir que as normas dos §§ 1º e 2º só incidem nessa hipótese. Se a atividade for econômica (comercial ou industrial) mas assumida pelo Estado como serviço público, tais normas não têm aplicação, incidindo, então, o art. 175 da Constituição, segundo o qual incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.” (LIMA)
O Supremo Tribunal Federal vem encampando a corrente segundo a qual o art. 173, § 1º da CF não se aplica às empresas estatais que prestam serviços públicos, merecendo, pois, um tratamento mais próximo daquele oferecido aos entes administrativos de direito público. O posicionamento da Suprema Corte pode ser verificado no julgamento da ADI 1.642, em 03.04.2008, de relatoria do Ministro Eros Grau.
Nesse sentido, o Supremo tem decidido reiteradamente pela impenhorabilidade dos bens das empresas estatais prestadoras de serviços públicos, devendo a execução dirigida contra elas ser feita pelo sistema de precatórios previsto no art. 100 da CF, a exemplo do que ocorre com as pessoas jurídicas de direito público. Isso deve ocorrer, em especial, quando os bens que seriam penhorados estão atrelados à prestação do serviço público e, por conseguinte, a constrição patrimonial pode comprometer o exercício desta função, tendo em vista a supremacia do interesse público e o princípio da continuidade da prestação dos serviços públicos.
Foi como decidiu a Suprema Corte no julgamento do RE 712.648-DF, julgado em 12.02.2012, que teve como relatora a Ministra Carmen Lúcia, entendendo que as empresas estatais que prestam serviços públicos em regime não concorrencial devem ter suas execuções efetuadas mediante o sistema de precatórios.
Isto se torna mais evidenciado quando a empresa presta serviço público em regime de monopólio, não havendo concorrência de empresas privadas naquela atividade. Assim, aqui não se sustenta o argumento de que o oferecimento de prerrogativas causaria desequilíbrio e favorecimento indevido das empresas estatais, vez que elas não têm concorrência no ramo da sua atividade. Por tal razão, não há óbice a que sejam beneficiadas com as vantagens dadas à Fazenda Pública.
Inclusive, o STF tem equiparado a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos à Fazenda Pública quanto ao gozo das prerrogativas aplicáveis a ela, em razão de prestar serviço público obrigatório e exclusivo do Estado, como ficou assentado no julgamento do RE 220.906.
Com efeito, as empresas estatais prestadoras de serviço público, ainda que ostentem a natureza de direito privado por conveniência administrativa, exercem atividade típica de Estado, merecendo, portanto, ser beneficiados pelas vantagens conferidas à Fazenda Pública. Isto porque os fundamentos que justificam as prerrogativas da Fazenda Pública no campo processual podem ser perfeitamente aplicados para as empresas que prestam serviços públicos, que aqui adiantamos o conteúdo do próximo tópico. Estes fundamentos são, em suma, a igualdade entre as partes no plano material, a supremacia do interesse público sobre o privado e o princípio da continuidade dos serviços públicos.
Inclusive, algumas decisões vêm aplicando algumas das prerrogativas processuais da Fazenda Pública a empresas estatais prestadoras de serviços públicos, em especial, quando prestam serviços de natureza essencial e em regime de monopólio. Nessa linha, a tais empresas deve ser concedido não só o benefício de ter suas dívidas executadas pelo regime de precatórios, mas também as prerrogativas aplicáveis na fase de conhecimento do processo, que é o objeto do presente capítulo.
Dessa maneira, conclui-se que os destinatários das prerrogativas processuais da Fazenda Pública são os entes federativos, as autarquias (incluídas as agências executivas e as agências reguladoras), as fundações de direito público, os consórcios públicos e as empresas estatais prestadoras de serviços públicos, mormente quando exercem esta atividade em regime de monopólio.
Cabe aqui discutir os fundamentos que justificam a criação legislativa das vantagens processuais conferidas à Fazenda Pública a fim de possibilitar a análise da sua razoabilidade na ação civil pública, ante a natureza dos interesses tutelados por este tipo de ação.
Como primeiro fundamento, podemos apontar o princípio da igualdade, em sua acepção material, aplicada às relações processuais. A igualdade material representa a fórmula aristotélica segundo a qual igualdade significa tratar os iguais de forma igual e os desiguais, desigualmente, na medida de sua desigualdade. Esta concepção de isonomia material foi desenvolvida a partir da constatação de que a igualdade formal, que a todos trata igualmente pela letra da lei, sem considerar as diferenças entre as pessoas, causa, em verdade, situações de flagrante desigualdade.
Tal princípio é dirigido aos aplicadores do direito bem como aos legisladores, que só estão autorizados a criar por lei situações de desigualdade quando haja razoabilidade na instituição de tratamento diferenciado a certas pessoas, grupos, entes etc. Assim, há de ser verificado se o privilégio criado em nome da igualdade material é razoável considerando a extensão do privilégio frente ao interesse que se busca proteger diante de uma situação fática de desigualdade.
Como afirma José Afonso da Silva:
“Por que existem desigualdades, é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais, do que se extrai que a lei geral, abstrata e impessoal que incide em todos igualmente, levando em conta apenas a igualdade dos indivíduos e não igualdade dos grupos, acaba por gerar mais desigualdades e propiciar a injustiça, daí por que o legislador, sob ‘o impulso das forças criadoras do direito [como nota Georges Sarotte], teve progressivamente de publicar leis setoriais para poder levar em conta diferenças nas formações e nos grupos sociais’ [...]” (SILVA, 2007, p. 213-214)
Em sede processual, verificamos o estabelecimento de regras processuais diferenciadas para determinados grupos, a fim de que as partes litigantes tenham reais condições de participar do processo efetivamente em condição de paridade, e possam exercer o contraditório de maneira substancialmente igual, participando em igual medida da formação do convencimento do juiz.
Com isso, foram criadas normas processuais que favorecessem os incapazes, aos pobres na forma da lei, aos consumidores, à atuação processual da Defensoria Pública, do Ministério Público e, como não poderia deixar de ser, da Fazenda Pública, a fim de que estas pessoas pudessem participar com igualdade de armas da relação processual. Tratar estas pessoas de maneira formalmente igual em relação a outras implicaria em criar situações de desigualdade e injustiça, vez que tais categorias encontram-se em nítida posição de hipossuficiência econômica e/ou processual diante da outra parte.
Neste sentido, Misael Montenegro Filho:
“Em resumo: o fato de pessoas que estão em situações fáticas diferenciadas serem tratadas de forma igualitária infringiria o princípio da isonomia. A diferença definida na lei processual ou na legislação esparsa pode referir-se a uma desqualificação econômica ou processual da parte, justificando o tratamento diferenciado, em seu benefício.” (MONTENEGRO FILHO, 2013, p. 27)
Este ideal de tratar os desiguais de forma desigual é que norteia a criação das prerrogativas processuais a favor da Fazenda Pública, com o intuito de conferir igualdade material nas relações processuais que envolvem o Estado.
Dessa maneira, é de se observar que a atuação da advocacia pública está atrelada a uma estrutura burocrática que é ínsita à Administração Pública do Estado contemporâneo. Nesse sentido, aqueles que defendem em juízo a Fazenda Pública não possuem as mesmas condições que os advogados que representam particulares, uma vez que a burocracia dificulta a que os advogados públicos tenham acesso a documentos, fatos e outros elementos que sejam necessários à defesa da Fazenda Pública em juízo.
Como aponta Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues:
“Neste sentido, é importante ressaltar que, por vezes, a Administração Pública se vê em situação desfavorável, em virtude de sua própria estrutura burocrática. Tal se verifica com mais clareza em âmbito federal, onde os inúmeros órgãos, departamentos e demais desconcentrações administrativas da União por vezes produzem delongas no tráfego de informações, provas e documentos à sua Advocacia-Geral” (RODRIGUES)
Do mesmo modo, há de ser destacado o grande volume de trabalho recebido pelos advogados públicos, ante a quantidade de ações ajuizadas em desfavor do Poder Público. Outrossim, como ressalta Leonardo Carneiro da Cunha, “enquanto um advogado particular pode selecionar suas causas, recusando aqueles que não lhe convêm, o advogado público não pode declinar de sua função, deixando de proceder à defesa da Fazenda Pública” (CUNHA, 2011, p. 36).
Nesse sentido, é necessária a criação de vantagens processuais para que os advogados públicos possam dar conta de todos os processos que envolvem a respectiva Fazenda Pública, a fim de que o Estado participe de forma igual da relação jurídico-processual e seus interesses possam ser defendidos de forma mais eficaz pelos seus representantes judiciais.
Desse modo, é com o intuito de igualar as partes e conferir paridade de armas aos litigantes, diante da nítida situação de deficiência da estrutura organizacional que a advocacia pública dispõe, que se justificam as prerrogativas processuais da Fazenda Pública sob uma primeira ótica.
Como segundo fundamento, pode ser destacado o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, notadamente, no que atine à defesa do erário público, eis que é o subsídio da atuação estatal em prol da coletividade.
O referido princípio não está previsto expressamente na Constituição ou em qualquer lei, mas decorre do regime jurídico da Administração Pública, que estabelece prerrogativas e restrições à atuação dos administradores. Significa que numa situação de conflito entre um interesse de um particular e o interesse de toda a coletividade, deve prevalecer este último. O interesse privado deve sempre ceder quando se choca com o interesse público, uma vez que o destinatário da atividade estatal não é o indivíduo em si considerado, mas todo o conjunto de administrados, a fim de se garantir o bem estar social.
Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho:
“Desse modo, não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o grupo social como um todo. Saindo da era do individualismo exacerbado, o Estado passou a caracterizar-se como o WelfareState (Estado/bem-estar), dedicado a atender ao interesse público. Logicamente, as relações sociais vão ensejar, em determinados momentos, um conflito entre o interesse público e o interesse privado, mas ocorrendo esse conflito, há de prevalecer o interesse público.” (CARVALHO FILHO, 2013, p. 33)
Nessa linha, o Estado não é o detentor do interesse público, mas é ele o representante dos interesses da coletividade e é ele que deve buscar preservar o interesse público e dirigir suas ações em prol do bem comum. Com isso, quando a Fazenda Pública se encontra em juízo, não está defendendo um interesse próprio, como o fazem os particulares, mas defende o erário, que é de interesse de todos os cidadãos.
Sérgio Shimura, valendo-se de apontamento de Jorge Tosta, faz uma relação entre o primeiro fundamento apontado (necessidade de aplicação da igualdade material na relação processual) e o presente fundamento, atinente à defesa do interesse de toda a coletividade:
“Jorge Tosta observa que as diferenças substanciais entre os interesses ou valores que o Estado representa ou deseja preservar e os interesses particulares justificam plenamente a aplicação do princípio da igualdade material, a exigir a criação de instrumentos e mecanismos capazes de, por meio de um tratamento normativo desigual, restabelecer e a justiça em face da própria desigualdade real dos sujeitos ou das situações.” (SHIMURA, 2007, p. 347)
Com efeito, quando o Estado sofre uma condenação judicial, por exemplo, quem sofrerá a perda econômica correspondente será o erário, formado pelas contribuições de todos os cidadãos. O numerário correspondente ao pagamento da condenação deixará de ser revertido para o funcionamento do próprio Estado e para a prestação de serviços públicos à população, no interesse do bem comum.
O que se quer afirmar é que quando o Estado sofre uma “derrota” judicial, ao contrário das pessoas privadas, quem arcará não será o próprio Estado em si ou o administrador público, mas, em última análise, a população como um todo, tendo em vista que o Estado não defende um interesse próprio, e sim de toda a coletividade, que sofrerá, mesmo que indiretamente, com aquela perda patrimonial.
Esta situação, em que a Fazenda Pública quando está em juízo representa um interesse de todos, justificaria a concessão de vantagens processuais, com o fito de possibilitar uma defesa eficaz do interesse público, eis que uma atuação falha do Estado num processo judicial pode acarretar significativo prejuízo ao erário e prejudicar toda uma coletividade, à exceção da parte que saiu vencedora do processo. Isto porque o interesse da coletividade deve sempre preponderar sobre os interesses dos particulares, como estatui o princípio aqui comentado.
Como afirma Leonardo Carneiro da Cunha:
“Exatamente por atuar no processo em virtude da existência de interesse público, consulta ao próprio interesse público viabilizar o exercício dessa sua atividade no processo da melhor e mais ampla maneira possível, evitando-se condenações injustificáveis ou prejuízos incalculáveis para o Erário e, de resto, para toda a coletividade que seria beneficiada com serviços públicos custeados com tais recursos.
Para que a Fazenda Pública possa, contudo, atuar da melhor e mais ampla maneira possível, é preciso que se lhe confiram condições necessárias e suficientes a tanto. Dentre as condições oferecidas, avultam as prerrogativas processuais, identificadas, por alguns, como privilégios” (CUNHA, 2011, p. 35)
Dessa maneira, sob esta ótica, justificam-se as vantagens processuais da Fazenda Pública pela importância do interesse que ela defende e pelo fato de as condenações sofridas pelo Poder Público atingirem toda a coletividade, devendo-se garantir meios e mecanismos para que o Estado possa defender de forma eficaz o interesse público.
O terceiro fundamento das prerrogativas processuais é, em verdade, um corolário do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e das considerações relacionadas a ele que tecemos até agora a respeito da preservação do interesse comum. Trata-se do princípio da continuidade do serviço público.
O princípio em referência, para alguns autores considerado um subprincípio do princípio da obrigatoriedade da atividade pública, enuncia que a atividade administrativa, em especial, o oferecimento de serviços públicos não pode sofrer descontinuidade, a fim de não se deixar a população desamparada, sem a prestação de serviços muitas vezes essenciais.
Este princípio guarda semelhança com o primado constitucional da eficiência na Administração Pública, uma vez que serviço eficiente pode ser considerado aquele que não sofre interrupção, tendo em vista que uma das balizas para se considerar um serviço como de qualidade é a continuidade no seu fornecimento, a fim de não prejudicar a população.
Nas palavras de Matheus Carvalho:
“Traduz-se na ideia de prestação ininterrupta da atividade administrativa. Trata-se, portanto, de exigência no sentido de que a atividade do Estado seja contínua, não podendo parar a prestação dos serviços, não comportando falhas ou interrupções já que muitas necessidades da sociedade são inadiáveis, como é o exemplo dos serviços de fornecimento de água e energia elétrica à população em geral. Tal princípio está expresso no art. 6º, § 1º, da Lei 8.987/1995, como necessário para que o serviço público seja considerado adequado, em sua execução e implícito no texto constitucional. Vale ressaltar que o princípio da continuidade está intimamente ligado ao princípio da eficiência, haja vista tratar-se de garantia de busca por resultados positivos.” (CARVALHO, 2015, p. 76)
É fácil perceber porque o princípio em tela é um corolário do princípio da supremacia do interesse público, tendo em vista que, como afirma José dos Santos Carvalho Filho “em ambos se pretende que a coletividade não sofra prejuízos em razão de eventual realce a interesses particulares” (2013, p. 36).
Da mesma forma que a supremacia do interesse público justifica as prerrogativas processuais em razão da prevalência do interesse coletivo, o princípio da continuidade fundamenta as vantagens processuais da Fazenda Pública em virtude da necessidade de garantir ao Estado os meios necessários para que continue exercendo sua atividade e prestando o serviço de forma adequada e ininterrupta a toda a coletividade.
Com efeito, para que o Pode Público preste os serviços a seu cargo com qualidade, é necessário ter recursos financeiras para tanto, bem como que os bens afetados para o desenvolvimento desta atividade estatal continuem em poder do Estado e destinados a tanto. Justamente por este motivo que são necessárias prerrogativas a fim de que a Fazenda Pública possa ser defendida em juízo de forma eficaz, a fim de evitar condenações indevidas que venham comprometer o erário e afetar a prestação dos serviços, atingindo toda a coletividade.
Em verdade, este fundamento é mais sensível para justificar as prerrogativas da Fazenda Pública na fase de execução ou de cumprimento de sentença, tais como a existência de um procedimento de execução específico, previsto na Lei 6.830/1980, quando o Estado estiver sendo, bem como a impenhorabilidade dos bens públicos, com o pagamento das condenações pela sistemática de precatórios (CF, art. 100). Com tais prerrogativas evita-se que os bens afetados à prestação do serviço público saia das mãos do Estado, bem como que seu erário seja desfalcado sem qualquer limite, a ponto de atrapalhar a execução da atividade estatal.
Porém, em menor medida, também serve o princípio em tela para fundamentar as prerrogativas conferidas à Fazenda Pública durante a fase de conhecimento do processo, e que são o objeto do presente capítulo. Como exemplo, perceba-se que a proteção ao erário é a justificativa para o reexame necessário. De igual maneira, os benefícios previstos na Lei 8.437/1992, sobretudo a oitiva prévia de ente estatal antes da concessão de liminares e o incidente de suspensão da liminar, têm como fundamento, em última análise, a preservação do patrimônio do Estado. Não é diferente a questão dos prazos processuais alargados, criados a fim de que os advogados públicos tenham melhores condições de defender a Fazenda Pública de maneira eficaz e evitar condenações injustas ou indevidas.
Nesse sentido, sempre que se fala em proteção ao erário, está-se a preservar a manutenção da atividade estatal e a buscar garantir a continuidade dos serviços oferecidos à população. Dessa maneira, o princípio da continuidade da prestação dos serviços públicos serve de base teórica fundamental para a existência das prerrogativas processuais do Estado, inclusive aquelas conferidas na fase de conhecimento.
Portanto, a justificativa das vantagens processuais conferidas à Fazenda Pública se dá pela associação dos três fundamentos aqui trabalhados, que aqui listamos numa síntese conclusiva: o princípio da isonomia em sua acepção material, aplicada no processo; o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado; e o princípio da continuidade da prestação dos serviços públicos (ou da atividade estatal).
Concluindo: considerando a importância dos interesses defendidos pelo Estado, que diz respeito ao interesse da coletividade, razão pela qual prepondera sobre os interesses privados, a fim de que o Poder Público possa continuar exercendo suas atividades e prestando serviços a favor de toda a população, a lei cria prerrogativas processuais com o fito de equilibrar o jogo processual, para que a advocacia pública, notadamente deficitária frente à advocacia privada, possa defender de forma eficaz os interesses do Estado.
O reexame necessário, também conhecido como remessa necessária ou obrigatória, recurso de ofício e duplo grau de jurisdição obrigatório, consiste na remessa da sentença proferida contra a Fazenda Pública ao tribunal imediatamente superior, a fim de que seja reapreciada por um órgão colegiado, composto por magistrados, em regra, mais experientes, só ganhando eficácia após ser confirmada pelo respectivo tribunal. Dessa maneira, a causa em que a Fazenda Pública saiu derrotada passa por novo julgamento, a fim de diminuir as chances de que o erário sofra desfalques por uma condenação judicial indevida.
A respeito da origem deste instituto processual, Sérgio Shimura afirma que:
“Havia a previsão no antigo processo penal português, com as Ordenações Afonsinas (art. 1.355), nas hipóteses em que o juiz poderia iniciar o procedimento de ofício. No processo civil, ao que consta, o reexame necessário surgiu com a lei de 04.10.1831 (art. 90), como forma de evitar o abuso, a desídia ou a má-fé dos procuradores da Fazenda Pública, que deixavam de recorrer contra sentenças injustas proferidas contra os cofres públicos.”(SHIMURA, 2007, p. 349)
Apesar de ser também conhecido como recurso de ofício, não se trata de uma espécie recursal típica. Isto porque, para que um recurso seja admitido, é necessário que o recorrente demonstre ter interesse recursal, caracterizado pela sucumbência, ou seja, o gravame suportado em virtude da decisão que se busca combater com a peça recursal.
Com efeito, a remessa necessária é realizada pelo juiz que, ao proferir sentença contra a Fazenda Pública, deve remeter de ofício ao tribunal, a fim de que toda a matéria seja reapreciada. Logicamente, o juiz de primeiro grau não é sucumbente, bem como ele não possui vontade de impugnar uma decisão que ele mesmo proferiu. Nesse sentido afirma Misael Montenegro Filho:
“As considerações são necessárias para demonstrar que o reexame necessário não é espécie recursal, por lhe faltarem requisitos necessários a que se qualifique como tal. Neste particular, percebemos que é apresentado pelo próprio juiz que profere a sentença, sem que se possa sustentar que a autoridade teria legitimidade e interesse para combater a decisão por ele proferida.” (MONTENEGRO FILHO, 2014a, p. 20)
Além disso, levando em consideração o princípio da taxatividade, segundo o qual só podem ser considerados recursos aqueles que estiverem dispostos no art. 994 do CPC/2015 ou nas demais leis processuais, o reexame necessário não pode ser considerado recurso justamente por não estar previsto em nenhum diploma normativo como tal. Em verdade, o artigo do novo CPC que disciplina a remessa obrigatória encontra-se inserido no Capítulo XIII desta codificação, que trata sobre a sentença e a coisa julgada.
Outro princípio recursal impede que o reexame necessário seja reconhecido como recurso, a saber, o princípio da unirrecorribilidade das decisões, que estatui que para cada tipo de decisão há apenas uma espécie de recurso para impugná-la. Considerando que das sentenças sujeitas à remessa obrigatória cabe apelação, assim como contra toda decisão deste tipo, o reexame necessário não pode ser considerado recurso, uma vez que seriam cabíveis dois recursos contra essas decisões.
Outrossim, carece à remessa necessária o requisito da regularidade formal, que exige que os recursos sejam interpostos na forma preconizada por lei, dirigida à autoridade competente à sua apreciação e com as razões pelas quais se deseja combater a decisão impugnada, ao passo que no reexame necessário apenas há a remessa da sentença pelo próprio juiz ao tribunal para a sua apreciação.
Ante tais argumentos, conclui-se que o reexame necessário é condição de eficácia da sentença, estabelecida como uma prerrogativa em favor da Fazenda Pública para a salvaguarda do seu patrimônio e do interesse público que ela representa, como uma maneira de melhor apreciar as condenações sofridas pela Fazenda Pública, na esteira do que foi dito no tópico anterior. É nesse sentido que afirma Leonardo Carneiro da Cunha, destacando ainda a necessidade de ser feito o reexame para que a sentença transite em julgado:
“O reexame necessário condiciona a eficácia da sentença à sua reapreciação pelo tribunal ao qual está vinculado o juiz que a proferiu. Enquanto não for procedida a reanálise da sentença, esta não transita em julgado, não contendo plena eficácia. Desse modo, não havendo o reexame e, consequentemente, não transitando em julgado a sentença, será incabível a ação rescisória. Eis mais uma razão pela qual o reexame necessário não pode ser tido como recurso. Não interposto o recurso contra a sentença, esta irá transitar em julgado, cabendo ação rescisória pelo prazo de 2 (dois) anos. No caso do reexame, caso não venha a ser determinado na sentença, esta não irá transitar em julgado, sendo despropositado o manejo de ação rescisória, à míngua de pressuposto específico.
Conclui-se, por tudo isso, que o reexame necessário reveste-se da natureza de condição de eficácia da sentença, não ostentando o timbre de recurso.” (CUNHA, 2011, p. 207-208)
No novo CPC, o reexame necessário é disciplinado pelo art. 496, que assim estabelece:
Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:
I - proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;
II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal.
§ 1o Nos casos previstos neste artigo, não interposta a apelação no prazo legal, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, e, se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á.
§ 2o Em qualquer dos casos referidos no § 1o, o tribunal julgará a remessa necessária.
§ 3o Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a:
I - 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público;
II - 500 (quinhentos) salários-mínimos para os Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público e os Municípios que constituam capitais dos Estados;
III - 100 (cem) salários-mínimos para todos os demais Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público.
§ 4o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:
I - súmula de tribunal superior;
II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
IV - entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.
Como se extrai dos incisos do caput do artigo transcrito, deverão ser submetidas ao reexame necessário as sentenças proferidas contra a Fazenda Pública bem como as que julgarem procedentes os embargos à execução fiscal. Neste aspecto, a nova codificação não inovou em relação ao CPC/1973, mantendo as mesmas hipóteses de cabimento do instituto.
Alguns autores defendem que as decisões interlocutórias que concedem antecipação dos efeitos da tutela também devem ser submetidas ao reexame necessário, por terem natureza satisfativa, entregando ao autor parte ou a totalidade da sua pretensão. Contudo, a maior parte da doutrina prefere interpretar gramaticalmente o dispositivo que fala apenas em “sentença”, de modo que somente este tipo de decisão está sujeita à remessa obrigatória. Nesse sentido, concluem Misael Montenegro Filho (2014a, p. 22) e Leonardo Carneiro da Cunha (2011, p. 208).
Outro ponto controvertido diz respeito à submissão ao reexame necessário das sentenças terminativas prolatadas em ações ajuizadas pela Fazenda Pública, sob o argumento de que tais decisões seriam desfavoráveis ao Estado. Para Leonardo Carneiro da Cunha, qualquer sentença desfavorável à Fazenda Pública está sujeita ao duplo grau de jurisdição obrigatório, dentre as quais se incluem as sentenças terminativas em desfavor do Estado (CUNHA, 2011, p. 211).
Contudo, para Sérgio Shimura, o dispositivo legal que estabelece o reexame necessário tem cunho excepcional e, como tal, deve ser interpretado restritivamente, razão pela qual apenas a sentença de mérito desfavorável à Fazenda Pública deve ser submetida à remessa obrigatória (SHIMURA, 2007, p. 349).O Superior Tribunal de Justiça acompanha este entendimento, uma vez que não há sentença proferida contra o autor, apenas contra o réu, de modo que só estão submetidas ao reexame as sentenças definitivas e em que a Fazenda for ré. Nesse sentido, a Corte decidiu no julgamento dos Recursos Especiais de n. 659.200/DF e 815.360/RS.
Comparando o dispositivo legal supratranscrito com o seu correspondente no CPC/1973, o art. 475 desta codificação, percebe-se que foram ampliadas as hipóteses de dispensa de submissão do reexame. Com efeito, o código antigo previa que não se submetem à remessa obrigatória as condenações que não excederem 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor (art. 475, § 2º). De forma diversa, a novel legislação estatui que estão dispensadas do reexame necessário as condenações que forem inferiores a 100 (cem) salários mínimos em desfavor da Fazenda Pública Municipal, 500 (quinhentos) salários mínimos, da Fazenda Estadual e 1.000 (mil) salários mínimos, da Fazenda Federal (art. 496, § 3º).
De igual maneira, o CPC/2015 ampliou as hipóteses de dispensa do reexame quando a sentença seguir entendimento jurisprudencial. O CPC antigo, em seu art. 475, § 3º, estabelecia que não estão sujeitas ao reexame as sentenças fundadas em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do Tribunal superior competente. Enquanto isso, o novo CPC, no art. 496, § 4º, dispensa da remessa obrigatória as sentenças fundadas em I - súmula de tribunal superior; II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV - entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa. Deste rol, destaca-se a hipótese do inciso III, que reflete a proposta do novo CPC de valorização dos precedentes judiciais.
Como se vê, ao ampliar as hipóteses e os limites de dispensa do reexame necessário, o novo CPC reduziu consideravelmente o campo de abrangência deste instituto, diminuindo, assim, a importância desta prerrogativa processual da Fazenda Pública. Para Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues, esta postura no CPC/2015 se mostra razoável, considerando os avanços obtidos na estruturação das advocacias públicas, tendo, portanto, reduzido as diferenças com a advocacia privada, bem como levando em consideração a necessidade de se garantir um processo célere e efetivo:
“Conforme já consignado no item 1.1 supra, os desiguais devem ser tratados de forma desigual na exata medida de suas diferenças. Uma vez constatada a redução da diferença até então existente, nada mais natural do que o restabelecimento do equilíbrio mediante a suavização do discrímen na medida mais próxima possível dessa nova realidade.
Demais disso, a restrição das hipóteses de cabimento de reexame necessário é medida que se impõe na busca por uma maior efetividade do processo. Fala-se aqui em maior eficiência da máquina judiciária como um todo, e não apenas na maior agilidade na tramitação dos processos que envolvam entes públicos.”(RODRIGUES)
Dessa maneira, considerando a redução das desigualdades existentes entre a advocacia pública e a advocacia privada, sobretudo quanto à estrutura oferecida, e, em nome da efetividade dos direitos e da celeridade na prestação jurisdicional, que envolve a subida de um número menor de processos aos tribunais em razão da remessa obrigatória, avista-se a tendência da nova codificação em reduzir as prerrogativas processuais da Fazenda Pública, a fim de propiciar cada vez mais um processo de resultados efetivos.
Assim, em prol do atingimento do ideal de um processo que possa efetivamente garantir os direitos materiais, o CPC indica a linha a ser seguida pelo direito processual, reduzindo prerrogativas e mantendo as que somente continuam com justificativas válidas, como se infere do aumento das hipóteses de dispensa do reexame necessário.
Conforme destacado no início do presente capítulo, o objetivo aqui é tratar das prerrogativas processuais presentes na ação civil pública, conferidas à Fazenda Pública, durante a fase de conhecimento. Por tal razão, serão tratados no presente tópico apenas as vantagens processuais estabelecidas pela Lei 8.437/1992 que digam respeito à ação civil pública e que tenham aplicação na fase de conhecimento deste tipo de ação.
A Lei 7.347/1985, ao instituir o procedimento da ação civil pública, buscou dotar esta ação de mecanismos processuais, alguns até inéditos no ordenamento jurídico pátrio, que pudessem garantir a proteção eficaz dos interesses transindividuais, que ela se destina a proteger. Como já afirmado quando tratamos sobre a ação civil pública, as peculiaridades deste tipo de ação levaram Teori Zavascki a afirmar que a ação civil pública é instrumento processual de múltipla aptidão, que busca proporcionar cognição integral dos direitos coletivos, ao trazer mecanismos processuais que pudessem tutelar os direitos coletivos de variadas formas, de acordo com o que o caso concreto exigir (2014, p. 57).
Neste sentido, o art. 4º desta lei previu a possibilidade de tutela preventiva, que equivocadamente chamou de ação cautelar, a fim de evitar danos aos interesses metaindividuais. De igual maneira, o art. 11 estabeleceu a possibilidade de execução específica nas obrigações de fazer ou não fazer, o que à época foi inovador no sistema processual brasileiro, só sendo incorporado este instituto ao CPC/1973 posteriormente, quando da nova redação dada ao art. 461 deste código, dada pela Lei 8.952/1994. Seguindo esta linha, a LACP previu a possibilidade da concessão de mandado liminar, próximo ao que conhece hoje como tutela antecipada, antes mesmo que este mecanismo encontrasse previsão no art. 273 do CPC/1973, o que só ocorrera com a edição da Lei 8.952/1994.
Além destas previsões, devem ser aplicados os outros mecanismos processuais previstos nas outras leis, em especial, no Código de Processo Civil, que tem aplicação subsidiária no procedimento da ACP, como dispõe o art. 19 deste diploma legislativo. Neste sentido, Teori Zavascki afirma:
“Todos esses mecanismos demonstram a especial preocupação do legislador de dotar a ação civil pública de mecanismos processuais avançados, adequados para a pronta e efetiva tutela dos direitos difusos e coletivos. Essas pioneiras inovações estão atualmente incorporadas ao Código de Processo Civil e, consequentemente, atendem à universalidade dos direitos tutelados em juízo. Considerando que as disposições do Código aplicam-se subsidiariamente à ação civil pública (Lei 7.347/1985, art. 19), pode-se afirmar que não apenas as medidas cautelares e antecipatórias contempladas especificamente nessa Lei, mas todas as demais medidas da mesma natureza, previstas em nosso sistema processual, podem ser adotadas nesse procedimento especial.” (ZAVASCKI, 2014, p. 72)
Feitas tais considerações, voltemos ao objeto deste tópico. Receoso com a amplitude das decisões liminares que poderiam ser proferidas contra o Poder Público em processos coletivos, o legislador editou a Lei 8.437/1992, trazendo limitações à concessão de medidas liminares em desfavor da Fazenda Pública, bem como em relação a sua eficácia, consubstanciando nítidas prerrogativas processuais em favor do Estado, tendo como justificativas os fundamentos apontados em tópico anterior deste trabalho.
Em verdade, no próprio texto original da Lei 7.347/1985 já havia limitação a liminares, no que atine a sua eficácia. O art. 12, § 1º desta lei previa a possibilidade de que a Fazenda Pública interessada poderia requerer a suspensão da execução da liminar ao Presidente do Tribunal, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e á economia pública.
Contudo, não restam dúvidas de que a Lei 8.347/1992 ampliou significativamente as restrições às liminares contra o Poder Público, estabelecendo novas prerrogativas processuais em favor do Estado relativas a concessão e a eficácia das liminares.
Ao que nos interessa, a respeito dos institutos aplicáveis à ação civil pública, devem ser analisados os arts. 2º e 4 º da Lei 8.437/1992, que tratam, respectivamente, da necessidade de oitiva do ente público previamente à concessão de medida liminar, e do incidente de suspensão de execução de liminar, que, por disposição do art. 4º, §1º também alcança as sentenças proferidas nas ações civis públicas.
Estabelece o art. 2º. da Lei em questão:
Art. 2º. No mandado de segurança coletivo e na ação civil pública, a liminar será concedida, quando cabível, após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de setenta e duas horas.
Dessa maneira, o ente da Fazenda Pública deve ser ouvido previamente ao deferimento de medida liminar, qualquer que seja sua natureza, sob pena de ser considerada nula acaso não seja respeitada esta determinação legal, como já decidiu o STJ no julgamento do REsp nº. 88.583/SP.
Quis o legislador conferir maior proteção à Fazenda Pública, levando em consideração os fundamentos trabalhados em tópico anterior, dando a oportunidade de que o Poder Público exerça o contraditório, mesmo em uma tutela de urgência, que reclama uma resposta célere do Judiciário. Em verdade, acaba-se por desnaturar a essência da medida liminar, que pressupõe a sua análise initio litis, ou seja, tão logo o magistrado toma conhecimento do processo, sendo provocado a decidir sobre a tutela de urgência sem que a parte contrária se manifeste, para garantir o atendimento deste tipo de situação.
Comentando sobre esta prerrogativa da Fazenda Pública, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. afirmam:
“A ratio essendi do artigo é a defesa do patrimônio público contra a amplitude da liminar em processos coletivos. Existe a proposição legislativa em busca de um necessário equilíbrio, uma ponderação entre os valores contrapostos. Decorre este dispositivo justamente do reconhecimento da inegável força e poder que o ato do magistrado, em se tratando de ações coletivas, exerce em uma massa indeterminada de pessoas (ou pelo menos ainda não determinada) bem como sobre o Poder Público. Aqui se percebe que retoma fôlego o argumento pelo contraditório anterior à prolação da decisão, mínimo que seja, para permitir ao juiz maiores elementos (e, mesmo muitas vezes, os elementos necessários para concessão da liminar requerida) e segurança na concessão da medida. Trata-se do reconhecido expediente do processo cooperativo, já denominado contraditório preventivo, evitando a surpresa e aprofundando o compromisso dialético do juiz com as partes.” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2014, 299).
A doutrina vem entendendo que este mandamento de oitiva prévia também deve ser aplicado quando da análise de pedidos de tutela antecipada, mesmo que não sejam feitos na inicial, em razão da consagração do princípio da fungibilidade entre a tutela antecipatória e a tutela cautelar (CUNHA, 2011, p. 257)
Por seu turno, o art. 4º assim dispõe:
Art. 4° Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
§ 1° Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado.
§ 2o O Presidente do Tribunal poderá ouvir o autor e o Ministério Público, em setenta e duas horas. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2,180-35, de 2001)
§ 3o Do despacho que conceder ou negar a suspensão, caberá agravo, no prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua interposição. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2,180-35, de 2001)
§ 4o Se do julgamento do agravo de que trata o § 3o resultar a manutenção ou o restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário. (Incluído pela Medida Provisória nº 2,180-35, de 2001)
§ 5o É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o § 4o, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a que se refere este artigo. (Incluído pela Medida Provisória nº 2,180-35, de 2001)
§ 6o A interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo. (Incluído pela Medida Provisória nº 2,180-35, de 2001)
§ 7o O Presidente do Tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e a urgência na concessão da medida. (Incluído pela Medida Provisória nº 2,180-35, de 2001)
§ 8o As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original. (Incluído pela Medida Provisória nº 2,180-35, de 2001)
§ 9o A suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal. (Incluído pela Medida Provisória nº 2,180-35, de 2001)
O dispositivo transcrito trata sobre o incidente de suspensão da execução de liminar proferida contra a Fazenda Pública. Como estabelece o §1º deste artigo, o incidente também é cabível para suspender a execução de sentenças prolatadas em ACPs ainda não transitadas em julgado, pelos mesmos motivos que é cabível o requerimento de suspensão da liminar.
Como se vê, o dispositivo legal mantém o instituto criado pelo malfadado art. 12, §1º, da Lei 7.347/1985, e amplia a sua incidência e os meios colocados à disposição da Fazenda para buscar a suspensão da liminar, além de acrescentar a possibilidade de se suspender a execução das sentenças não transitadas em julgado. No caso das sentenças, não se olvide que, em regra, elas estarão também sujeitas ao reexame necessário, consoante tratado no tópico anterior, só produzindo efeitos após ser confirmada pelo Tribunal competente.
Este instituto processual não é um recurso, em que se requer a reforma ou a anulação de uma decisão judicial, mas um incidente dirigido ao Presidente do Tribunal, em que se pleiteia tão-somente a suspensão da execução da medida liminar ou da sentença não transitada em julgado. Nesse sentido, este mecanismo não prejudica o princípio da unirrecorribilidade das decisões, pois não se trata de uma espécie recursal.
Dessa forma, nada impede que a Fazenda Pública também interponha o agravo de instrumento, para o combate de decisões interlocutórias liminares, de caráter provisório (com fulcro no art. 1.015, I do CPC/2015) e apelação contra as sentenças (por força do art. 1.009 do CPC/2015), tendo, pois, a sua disposição meio de impugnar tais decisões, bem como de buscar a suspensão da sua execução.
Isto resta claro pelo que dispõe o art. 4º, § 6º, da Lei 8.437/1992, que prescreve que o agravo de instrumento interposto contra a liminar não prejudica nem condiciona o julgamento do incidente de suspensão. Não poderia ser diferente, não só porque o agravo e o incidente de suspensão têm finalidades diversas, mas também porque no julgamento desta espécie recursal será apreciado o mérito da decisão impugnada, ao passo que no incidente somente se analisa a presença dos requisitos que autorizam a suspensão da liminar.
Não se olvide que, segundo dispõe o art. 995, parágrafo único, do CPC/2015, o relator poderá dar efeito suspensivo aos recursos, se considerar que “da imediata produção de seus efeitos houver risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação, e ficar demonstrada a probabilidade de provimento do recurso”. Interessante lembrar também que, em regra, a apelação possui efeito suspensivo (art. 1.012, caput, CPC/2015) e, mesmo nos casos enumerados no §1º do art. 1.012, em que não se suspende a eficácia da decisão, o recorrente poderá obter a suspensão dos efeitos da sentença se demonstrar a probabilidade de provimento do recurso ou, se, sendo relevante a fundamentação, houver risco de dano grave ou de difícil reparação (art. 1.012, § 4º).
Com isso, deseja-se afirmar que a Fazenda Pública, assim como todas as partes, já dispõe de mecanismos processuais - de tramitação célere, eis que o relator é quem concede o efeito suspensivo tão logo tem contato com o recurso, para suspender a eficácia da sentença, de modo que o benefício instituído pela Lei 8.437/1992 constitui uma segunda opção de que dispõe o Poder Público para tal desiderato.
Em verdade, a Fazenda Pública conta não só com um mecanismo para conseguir a suspensão, além da via recursal. Com efeito, num primeiro momento, o Poder Público apresenta o incidente de suspensão ao Presidente do Tribunal, requerendo a ele que suspenda os efeitos da decisão (art. 4º, caput, da Lei 8.437/1992). Se este requerimento for negado, caberá agravo interno dirigido ao tribunal, constituindo uma segunda oportunidade para obtenção da suspensão (art. 4ª, § 3º). Acaso a Fazenda Pública não saia vencedora desta decisão do tribunal, poderá fazer novo requerimento de suspensão ao Presidente do STF ou do STJ, variando conforme o caso (art. 4º, § 4º). Além disso, o Poder Público também pode fazer este requerimento aos Tribunais Superiores quando for negado provimento ao agravo de instrumento (art. 4º, § 5º).
Como se pode perceber, são diversos os meios processuais que a Fazenda Pública possui para pleitear a suspensão dos efeitos de medidas liminares e de sentenças não transitadas em julgado proferidas em ações civis públicas, constituindo nítida prerrogativa processual em favor do Estado.
Entretanto, merece atenção a excepcionalidade deste incidente, como se depreende dos seus requisitos. Para a suspensão da decisão, é necessária, cumulativamente, a presença de manifesto interesse público ou flagrante ilegitimidade no ato judicial, assim como que a decisão possa trazer grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
Tal circunstância de excepcionalidade, aliada às outras possibilidades de o Estado obter a suspensão das decisões pelos próprios recursos, levou Teori Zavascki a advertir acerca da cautela que deve estar presente na aplicação deste instituto. Analisando-o, o autor afirma:
O pedido de suspensão não tem natureza de recurso. Nele não se pedem nem a reforma, nem a anulação do ato judicial. Pede-se, simplesmente, a suspensão da sua execução. Trata-se de incidente de caráter excepcional, em defesa de “interesses superiores”, de “altos valores protegidos pela norma”. Embora reconhecida sua constitucionalidade, mesmo após a Constituição de 1988, entende nossa Corte Suprema que o instituto deve ser aplicado “com parcimônia” e à base de “interpretação estrita”, dada essa sua peculiar natureza. (ZAVASCKI, 2014, p. 73).
São estas duas prerrogativas processuais conferidas pela Lei 8.437/1992 que interessam ao desenvolvimento do presente trabalho, a saber, a oitiva prévia do ente público à concessão de liminares, e o incidente de suspensão dos efeitos de liminares e sentenças, que são, indubitavelmente, vantagens processuais conferidas à Fazenda Pública, frente aos particulares.
Ao contrário do possa parecer, o art. 1º, §3º desta Lei, que enuncia não ser cabível liminar que esgote total ou parcialmente o objeto da demanda não constitui uma prerrogativa processual. Com efeito, este dispositivo apenas reforça o que dispõe o art. 300, § 3º do CPC/2015, que praticamente reproduziu o teor do art. 273, § 2º do CPC/1973, impedindo a concessão de tutela antecipada quando houver risco de irreversibilidade da medida. Assim, é um instituto previsto para todas as partes, não apenas para a Fazenda Pública, de modo que não pode ser considerada uma vantagem processual do Poder Público. Como afirma Leonardo Carneiro da Cunha, ainda sob a égide do antigo CPC:
“A regra, aplicável às medidas cautelares, não tem muito sentido quanto às tutelas antecipadas, já que estas são, em essência, satisfativas. Parece, contudo, que a aplicação de tal vedação à tutela antecipada reforça, apenas, o que já está contido no parágrafo 2° do art. 273 do CPC, ou seja, não se permite a antecipação dos efeitos da tutela, quando houver risco de Irreversibilidade. Assim, se a antecipação da tutela contra a Fazenda Pública determinar, por exemplo, a liberação de uma mercadoria apreendida, não se poderá antecipar a tutela, em razão da irreversibilidade da medida. Aplica-se, nesse ponto, o princípio da proporcionalidade, pois se a denegação da medida revela-se mais irreversível do que sua concessão, deve-se suplantar o óbice e concedê-la.” (CUNHA, 2011, p. 265-266)
Considerando que liminarmente pode ser obtida tutela antecipatória ou tutela cautelar, o dispositivo refere-se à antecipação de tutela, inclusive em ações cautelares, que, entre estes dois tipos de tutela, é a que possui natureza satisfativa e esgota o objeto da demanda no todo ou em parte.
Esta prerrogativa é basicamente justificada pelo princípio da isonomia e, por conseguinte, pela necessidade de compensar as deficiências que a advocacia pública enfrenta em comparação à advocacia privada, razão pela qual os prazos do Poder Público devem ser maiores para possibilitar uma melhor atuação do Estado em defesa do interesse público.
É nesta vantagem processual que se mostra mais acentuada a presença deste fundamento, uma vez que a Fazenda Pública necessitaria de maior prazo em relação aos particulares, em razão de sua estrutura burocrática, que dificulta a obtenção de documentos e informações, bem como em virtude do volume de demandas recebidas pela advocacia pública e sua estrutura deficitária. Por tal razão, não se poderia tratar de forma igual os advogados públicos e os advogados particulares, vez que os primeiros se encontram em situação de significativa desvantagem.
Nesse sentido, ao que interessa o presente trabalho, dispõe o art. 183 do CPC/2015:
Art. 183. A União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público gozarão de prazo em dobro para todas as suas manifestações processuais, cuja contagem terá início a partir da intimação pessoal.
§ 1o A intimação pessoal far-se-á por carga, remessa ou meio eletrônico.
§ 2o Não se aplica o benefício da contagem em dobro quando a lei estabelecer, de forma expressa, prazo próprio para o ente público.
Por um lado, o novo CPC reduziu esta vantagem da Fazenda Pública em relação ao código anterior, que previa, em seu art. 188, que o Poder Público possuía prazo em quádruplo pra contestar e em dobro para recorrer. Por outro lado, o CPC/2015 estendeu esta vantagem a todos os prazos da Fazenda Pública, não somente aos prazos pra contestar e recorrer.
Dessa maneira, à Fazenda Pública foi dada esta prerrogativa processual de dilação dos seus prazos para manifestar-se no processo, apenas não incidindo quando a lei estipula um prazo próprio para o ente público (art. 183, § 2º.). Além disso, há de se destacar que se exige a intimação pessoal dos procuradores da Fazenda Pública, para que o prazo comece a ser computado (art. 183, § 1º).
4 IMPACTOS DAS PRERROGATIVAS PROCESSUAIS DA FAZENDA PÚBLICA NA CERTIFICAÇÃO E EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS TUTELADOS PELA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A RAZOABILIDADE DA SUA EXISTÊNCIA NESTE TIPO DE AÇÃO.
Neste capítulo se buscará analisar como as prerrogativas processuais da Fazenda Pública destacadas no capítulo anterior influenciam e causam impactos na certificação e na efetivação dos direitos que são tutelados pela ação civil pública. Recorde-se que no capítulo precedente foram trabalhadas algumas das principais vantagens processuais do Estado, verificadas na ação civil pública, na fase em que se busca a certificação do direito posto em juízo, a saber, o reexame necessário, as prerrogativas conferidas pela Lei 8.437/1992, e os prazos dilatados.
Para facilitar a verificação dos impactos que estas prerrogativas causam, serão analisados dados coletados sobre ações civis públicas ajuizadas pela Procuradoria da República em Sergipe para garantir o fornecimento provisório de água potável a comunidades indígenas e comunidades quilombolas em Sergipe, entre os anos de 2012 e 2015. Os dados coletados estão disponíveis no sítio eletrônico da Justiça Federal em Sergipe, através de consulta pública ao sistema Tebas (<http://consulta.jfse.jus.br/Consulta/cons_proca.asp>) e ao sistema PJe (<https://pje.jfse.jus.br/pje/ConsultaPublica/listView.seam>). Os dados foram colhidos até o dia 01/03/2016, razão pela qual serão analisadas as intercorrências registradas até este dia nos referidos sistemas de consulta processual.
Há de se considerar que, quando se trabalha com as datas de ocorrência dos atos processuais, devem e ser incluídos neste cômputo os dias que levam para que os autos sejam levados aos entes públicos ou ao Ministério Público, já que a sua intimação deve ser sempre pessoal, quando se tratar de autos físicos, bem como os dias que pode levar da intimação até que o representante do Estado ou do MP abra a intimação por meio do sistema, até o máximo de dez dias, quando considerar-se-á intimado, nos termos da Lei 11.419/2006, quando o processo for eletrônico.
Contudo, este tempo que leva até a intimação efetiva não prejudica a análise a ser feita aqui, uma vez que é ela uma decorrência lógica e necessária da prática desses atos processuais que envolvem as vantagens processuais da Fazenda Pública. Em outros termos, para a observância destas prerrogativas, leva-se um tempo necessário e natural para tanto, que decorre dos dias necessários para a intimação dos atos processuais, e este tempo deve fazer parte de uma análise que se propõe a refletir sobre os impactos destas vantagens processuais, assim como o tempo despendido naturalmente para que os processos estejam conclusos para que o magistrado profira decisões.
Esta análise tem apenas um caráter ilustrativo, e não conclusivo, de como as prerrogativas da Fazenda Pública causam impactos na tramitação de ações civis públicas. Serve, pois, para demonstrar empiricamente e de modo mais concreto esta influência, porém, em virtude de limitações referentes ao campo de abrangência e ao número de ações analisadas, não se presta a uma conclusão do tema.
Não serão analisados os dados referentes à interposição de eventuais recursos de agravo de instrumento, em razão de, em regra, eles não possuírem efeito suspensivo.
Em seguida, tomando as conclusões extraídas da análise dos dados destas ações, será examinada a razoabilidade da existência das prerrogativas processuais aqui tratadas na ação civil pública, considerando os fundamentos que trabalhamos para estas vantagens, bem como a importância e a natureza dos interesses tutelados pela ação civil pública, ante o que foi tratado no primeiro capítulo.
Tendo conhecimento de que os índios Xocós, residentes na Ilha de São Pedro no Estado de Sergipe, não estavam tendo acesso a água potável de maneira adequada, a Procuradoria da República em Sergipe instaurou o Inquérito Civil nº. 1.35.000.000000257/2011-51, a fim de tratar sobre esta problemática. A partir do que foi apurado por meio deste procedimento administrativo, foi ajuizada ação civil pública, em desfavor da União, para garantir o fornecimento de água tratada à mencionada comunidade indígena. Esta ação deu origem ao processo registrado sob o número 0006798-89.2012.4.05.8500, que tramita na 3ª Vara da Justiça Federal em Sergipe.
Esta ação foi ajuizada em 10/12/2012 e nela foi requerida a antecipação dos efeitos da tutela, pleiteando, liminarmente, que a União fosse condenada a fornecer água potável suficiente aos índios da Comunidade Xocó. A título de tutela definitiva, foi requerida a condenação da União à instalação de estação de tratamento de água na referida comunidade indígena, a fim de que seus integrantes pudessem ter acesso a água potável.
A ação foi recebida pelo juiz da 3ª Vara Federal e, em obediência ao disposto no art. 2º da Lei 8.437/1992, determinou, em despacho publicado em 29/01/2013, que a União fosse intimada para se manifestar em setenta e duas horas acerca do pedido de caráter liminar. Este ente federado apresentou a manifestação em 05/02/2013.
Em nome do princípio do contraditório, apesar de não haver disposição legal nesse sentido, o magistrado determinou, no dia seguinte, que o Ministério Público Federal, na condição de autor da ação, fosse intimado para se manifestar sobre as informações apresentadas pela União, concedendo, para tanto, prazo de dez dias. O órgão ministerial apresentou manifestação em 18/02/2013. O magistrado entendeu ser conveniente ouvir a União novamente, e assim o fez em 08/03/2013, tendo a União se manifestado em 14/03/2013. Em 21/03/2013, foi proferida decisão interlocutória deferindo o pedido de medida liminar, nos exatos termos em que foi requerida.
Em 02/04/2013, a União foi intimada da decisão que antecipou os efeitos da tutela e foi instada a apresentar contestação, tendo oferecido esta peça defensiva em 29/04/2013.
O processo teve seu trâmite regular, tendo sido prolatada sentença e publicada em 13/01/2015, determinando que a União instalasse estação de tratamento de água na comunidade indígena, consoante requerido na petição inicial. O magistrado sentenciante sujeitou esta decisão ao reexame necessário, atendendo ao disposto no art. 475 do CPC/1973, ainda vigente à época. Posteriormente, após algumas manifestações das partes que não interessam à presente análise, a União interpôs apelação contra essa decisão, e o juiz de primeiro grau recebeu este recurso em ambos os efeitos e, após a apresentação das contrarrazões, remeteu os autos ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em 17/09/2015.
Este Tribunal negou provimento à apelação e à remessa necessária, em 17/12/2015, tendo esta decisão transitado em julgado no dia 15/02/2016. Esta Corte remeteu os autos ao juízo de origem, em 19/02/2016, para que fosse dado cumprimento à sentença.
Cotejando os dados aqui expostos, verifica-se que, das prerrogativas tratadas no capítulo anterior, a que impactou de forma substancial no deslinde processual e na efetivação da pretensão posta em juízo, foi a oitiva prévia à concessão de medidas liminares, prevista no art. 2º da Lei 8.437/1992. Com efeito, não houve o incidente de suspensão de liminar, previsto no art. 4º, caput, desta Lei, além de que o reexame necessário não fez diferença neste caso, em razão de ter sido interposta apelação combatendo toda a sentença, bem como este recurso foi recebido com duplo efeito.
Nesse sentido, organizamos os dados na linha do tempo abaixo, para melhor analisar o impacto da prerrogativa da oitiva prévia do Estado:
10/12/2012 |
29/01/2013 |
05/02/2013 |
18/02/2013 |
14/03/2013 |
21/03/2013 |
Ajuizamento ação |
Despacho manifestação 72h |
Informações União |
Manifestação do MPF às Informações da União |
Nova manifestação da União |
Decisão que concedeu a liminar |
Quando se requer uma medida liminar, o autor deseja que ela seja apreciada pelo magistrado tão logo ele tenha contato com o processo, em razão da urgência deste provimento, e pela própria natureza deste tipo de medida, a ser analisada sem a oitiva da parte contrária. Contudo, em virtude da disposição do art. 2º da Lei 8.437/1992, os entes públicos devem ser ouvidos previamente, descaracterizando, inclusive, a natureza liminar da medida requerida.
Assim, neste processo, caso não existisse esta vantagem processual, a liminar poderia ter sido concedida em 29/01/2013, quando o magistrado teve o primeiro contato com o processo, e despachou para oportunizar a oitiva da União. Entretanto, só foi deferida em 21/03/2013, quase dois meses depois. Pode-se concluir que se trata de um impacto significativo, de cinquenta e dois dias para o deferimento de uma medida de urgência.
Em relação aos prazos dilatados de que a Fazenda Pública dispõe nessa fase (em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer, como estabelecia o art. 188 do CPC/1973, vigente à época), só é possível analisar a influência do prazo alargado para a contestação, pois, anteriormente à apresentação da apelação, ocorreram eventos que acarretaram o alongamento do prazo final para a apresentação da peça recursal e que fogem a esta análise.
Nesse sentido, pode-se concluir que o impacto gerado pelo prazo dilatado para a contestação não proporcionou impacto significativo ao processo, uma vez que transcorreram vinte e sete dias entre a intimação e o oferecimento da contestação, apenas doze dias a mais do que o prazo comum de quinze dias, nos termos do art. 297 do CPC/1973. Considerando que a sentença só foi prolatada dois anos após o ajuizamento da ação, pode-se concluir que os doze dias que a União teve a mais para contestar não influenciaram consideravelmente no deslinde do feito.
Restando apurado, por meio do Inquérito Civil nº. 1.35.000.000709/2011-03, que a comunidade quilombola Pontal da Barra, no Município de Barra dos Coqueiros/SE, não possuía acesso à água potável em quantidade suficiente para todos os seus integrantes, a Procuradoria da República em Sergipe ajuizou ação civil pública, em desfavor da Companhia de Saneamento do Estado de Sergipe – DESO, para garantir o fornecimento deste bem aos quilombolas. Esta ação deu origem ao processo de número 0801265-48.2014.4.05.8500, que tramita perante a 3ª Vara da Justiça Federal em Sergipe.
A DESO é uma sociedade de economia mista, cujo principal acionista é o Estado de Sergipe e que presta serviço de fornecimento de água e manejo de esgoto. Atua em setenta e um dos setenta e cinco Municípios de Sergipe, prestando tais serviços públicos em regime de exclusividade (informações disponíveis em http://www.deso-se.com.br/v2/index.php/institucional/quem-somos).
A ação em referência foi ajuizada em 11/06/2014, tendo sido requerida medida liminar de antecipação dos efeitos da tutela para que a ré fosse condenada a fornecer aos habitantes da comunidade Pontal da Barra dois caminhões-pipa por semana, até que o abastecimento de água estivesse regularizado, o que, segundo os órgãos responsáveis, estava em andamento. A título de tutela definitiva, foi pleiteada a mesma pretensão.
Em 13/06/2014, o juiz determinou que a DESO fosse intimada para se manifestar sobre o pedido de medida liminar, aplicando o art. 2º da Lei 8.437/1992, mesmo sendo a companhia uma sociedade de economia mista, adotando aquilo que defendemos no capítulo anterior, em razão desta empresa estatal prestar serviços públicos e, mormente, em regime não concorrencial. A DESO apresentou as informações em 07/07/2014. O magistrado deferiu a antecipação de tutela nos exatos termos em que foi requerida, em decisão interlocutória publicada em 24/07/2014.
A DESO foi efetivamente intimada da decisão e instada a apresentar contestação em 01/09/2014, tendo oferecido a peça defensiva em 16/09/2014. Após a regular tramitação do feito foi proferida sentença, em 30/04/2015, confirmando a decisão que antecipou os efeitos da tutela, ao condenar, em definitivo, a DESO ao fornecimento de dois caminhões-pipa por semana. O magistrado submeteu esta decisão ao reexame necessário, seguindo a linha de se considerar empresas estatais prestadoras de serviços públicos como destinatárias das prerrogativas processuais da Fazenda Pública.
A Companhia foi efetivamente intimada da sentença em 11/05/2015, e interpôs apelação em 09/06/2015. O recurso foi recebido pelo juízo de primeiro grau em ambos os efeitos, apesar de a sentença ter confirmado a antecipação dos efeitos da tutela de maneira integral. Os autos foram remetidos ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região, para a apreciação da apelação e para dar cumprimento à remessa obrigatória. Os autos ainda se encontravam no aludido tribunal, sendo informado que o processo se encontrava concluso pra julgamento, até a data de conclusão deste trabalho.
Analisando os dados aqui apresentados, verificamos que das prerrogativas conferidas pela Lei 8.437/1992, a oitiva prévia do ente estatal foi a única que representou impacto na tramitação deste processo, uma vez que não foi apresentado incidente de suspensão da liminar ou da sentença. Vejamos a linha do tempo abaixo para analisar com mais exatidão a influência da exigência legal da oitiva prévia:
11/06/2014 |
13/06/2014 |
07/07/2014 |
24/07/2104 |
Ajuizamento da ação |
Despacho manifestação 72h |
Informações da DESO |
Deferimento da liminar |
Não fosse a exigência legal da oitiva prévia da Fazenda Pública para o deferimento de medida liminar, esta deveria ser apreciada no primeiro contato que o juiz tivesse com o processo, em vista da urgência para garantir o fornecimento de um bem tão caro à vida humana, de que a comunidade quilombola encontrava-se desprovida.
Assim sendo, o pedido de liminar deveria ter sido julgado em 13/06/2014, contudo, em razão da oitiva prévia e todas as decorrências que a acompanham (o tempo para efetivar a intimação e para que os autos voltassem conclusos ao magistrado), o pedido só foi apreciado em 24/07/2014, quarenta e um dias após o primeiro contato do magistrado com o processo. Este tempo, para o deferimento de uma medida de urgência é bastante considerável e, neste caso, esta vantagem processual influenciou sobremaneira na efetivação dos direitos pleiteados na ação.
Em relação ao reexame necessário, poderia ter influenciado no caso em análise, uma vez que a apelação deveria ter sido recebida apenas no efeito devolutivo, em virtude de a sentença ter confirmado a decisão que antecipou os efeitos da tutela, consoante dispunha o art. 520, VII, do CPC/1973. No entanto, como o magistrado recebeu a apelação em ambos os efeitos, o reexame necessário não impactou neste caso.
A respeito dos prazos dilatados para contestar e para recorrer, a DESO apenas gozou do seu prazo mais alargado para interpor a apelação. Foi ela efetivamente intimada em 11/05/2015, e apresentou seu recurso em 09/06/2015, utilizando praticamente todo o prazo de que dispunha. Foram catorze dias a mais que a companhia teve para recorrer, num processo que durou pouco mais de um ano e três meses do ajuizamento da ação até a prolação da sentença.
A Procuradoria da República em Sergipe apurou, através do Inquérito Civil nº. 1.35.000.000704/2011-72, que a comunidade quilombola Lagoa dos Campinhos, no município de Amparo do São Francisco/SE, vinha sofrendo com a falta de água potável em quantidade suficiente para todos os seus integrantes. Com isso, valendo-se do que foi investigado neste procedimento administrativo, ajuizou ação civil pública, em desfavor da DESO, para garantir o abastecimento de água nesta comunidade. Esta demanda deu origem ao processo de número 0801482-91.2014.4.05.8500, que tramitou inicialmente na 3ª Vara da Justiça Federal em Sergipe, e depois foi remetido à 9ª Vara, quando esta foi criada.
Esta demanda foi proposta em 03/07/2014, requerendo, liminarmente, a antecipação dos efeitos da tutela para que a DESO fosse obrigada a fornecer dois caminhões-pipa à comunidade quilombola por semana até que o abastecimento de água estivesse regularizado. Como tutela definitiva, foi pleiteado o mesmo do pedido liminar.
Em 08/07/2014, o magistrado oportunizou que a DESO se manifestasse sobre o pedido de medida liminar, em obediência ao art. 2º da Lei 8.437/1992. A companhia apresentou tais informações em 25/07/2014. Em virtude da criação da 9ª Vara, na cidade de Propriá, este processo foi remetido, no dia 04/08/2014, a este juízo, em função da sua competência territorial para o processamento deste feito.
Tendo a DESO, ao apresentar sua manifestação, realizado pedido de denunciação à lide e juntado documentos, o magistrado deu oportunidade a que o MPF se manifestasse antes da apreciação da medida liminar. O órgão ministerial apresentou sua manifestação em 25/11/2014.
Em 11/12/2014, o magistrado concedeu a antecipação dos efeitos da tutela, nos moldes como foi requerido na peça inicial. Apesar de devidamente citado, a DESO não apresentou contestação, razão pela qual foi decretada a sua revelia neste processo.
O magistrado proferiu sentença em 24/07/2015, confirmando, integralmente, a decisão que antecipou os efeitos da tutela. Este juiz entendeu não ser o caso de submeter a sentença ao duplo grau obrigatório, tendo determinado que a ré comprovasse o cumprimento da obrigação que foi cominada na decisão interlocutória que deferiu a liminar e que foi confirmada na sentença. A DESO interpôs apelação intempestivamente, razão pela qual seu recurso não foi recebido.
Neste processo, a única prerrogativa cujos efeitos podem ser analisados é a oitiva prévia do ente estatal, uma vez que a DESO não contestou a ação, bem como interpôs intempestivamente a apelação, além de que não houve incidente de suspensão da liminar, e a sentença não foi submetida ao reexame necessário.
Desse modo, analisemos o impacto que a exigência legal da oitiva prévia do ente estatal acarretou neste processo, através da sistematização dos dados aqui apresentados na linha do tempo abaixo:
03/07/2014 |
08/07/2014 |
25/07/2014 |
04/08/2014 |
25/11/2014 |
11/12/2014 |
Ajuizamento da ação |
Despacho manifestação 72h |
Informações da DESO |
Remessa dos autos à 9ª Vara |
Manifestação do MPF às Informações da União |
Deferimento da liminar |
Valendo-nos das considerações já feitas na análise dos dois processos anteriores, a liminar requerida poderia ter sido apreciada e deferida em 08/07/2014, contudo, em razão da necessidade de oitiva da companhia de saneamento, apenas em 11/12/2014, mais de cinco meses após, foi concedida a tutela antecipada.
Em que pese esta demora ter sido ocasionada também pela remessa do processo à 9ª Vara, a comunidade já poderia estar recebendo os caminhões-pipa quando os autos foram remetidos, não fosse a exigência da oitiva prévia. Isto porque há de se recordar que o juízo competente à época da propositura da ação e do despacho inicial era a 3ª Vara, razão pela qual a decisão interlocutória que concedesse a medida liminar seria válida e legítima, podendo, no máximo, ser revista quando os autos fossem remetidos à 9ª Vara.
Dessa maneira, esta demora no deferimento da tutela de urgência pleiteada deve ser imputada ao instituto processual previsto no art. 2º da Lei 8.437/1992. Foram cento e cinquenta e seis dias para que a liminar fosse apreciada, um tempo bastante considerável, levando-se em conta tratar-se de uma situação de urgência, para proporcionar o acesso adequado a um bem essencial à vida, bem como que sua carência estava devidamente comprovada, eis que foi deferida a antecipação dos efeitos da tutela.
Em nenhum dos três processos houve o incidente de suspensão da liminar ou da sentença, previsto no art. 4º da Lei 8.437/1992, razão pela qual não foi possível verificar empiricamente por meio desta análise o impacto desta prerrogativa processual. Sabe-se que este instituto é muito utilizado pela Fazenda em casos de grande repercussão e que acarretem considerável atingimento do erário, contudo, nos processos analisados, os entes públicos buscaram a suspensão das decisões através dos próprios recursos interpostos.
De igual forma, não foi possível analisar a interferência do reexame necessário, mesmo tendo o magistrado submetido a sentença ao duplo obrigatório em dois dos três processos aqui analisados. Isto porque, nestes processos, os réus interpuseram recurso de apelação e, apesar de a sentença ter confirmado a decisão que antecipou a tutela, as apelações foram recebidas em ambos os efeitos. Assim, a sentença teve seus efeitos suspensos em razão da interposição da apelação, razão pela qual não foi possível analisar o impacto que a remessa obrigatória teria nestes processos.
Em relação aos prazos dilatados para a Fazenda Pública, pelo que, à época, segundo determinava o CPC/1973, os entes públicos disporiam de prazo em quádruplo pra contestar e em dobro pra recorrer, foi possível perceber que os dois primeiros processos analisados tiveram sua marcha alongada em razão desses prazos alargados. Pelo que foi possível analisar, no primeiro processo, a União utilizou doze dias a mais do prazo comum de quinze dias para apresentar a contestação, em um processo que levou mais de dois anos para a prolação da sentença. No segundo processo, a DESO levou vinte e nove dias para interpor a apelação, catorze dias a mais que o prazo geral estabelecido pelo CPC vigente à época.
É necessário recordar que no primeiro caso a tutela antecipada já havia sido deferida, de modo que, durante os doze dias a mais que a União levou para contestar, a comunidade já estava sendo beneficiada pelo deferimento do pedido de tutela antecipada.
Nessa linha, conclui-se que os prazos dilatados obviamente acabam influenciando no tempo levado para a tramitação do processo, porém, olhando a partir do todo, não é um impacto tão significativo, principalmente quando há a antecipação dos efeitos da tutela.
Entretanto, sem dúvidas, o maior impacto entre as prerrogativas aqui trabalhadas foi a exigência da oitiva prévia para a concessão de liminar em situações que reivindicavam intervenção urgente para fornecer acesso a bem essencial para a sobrevivência humana. Como se viu, em razão desta exigência legal, a tutela antecipada levou cinquenta e dois dias a mais, no primeiro processo, entre o primeiro contato do magistrado com o processo e o seu deferimento; quarenta e um dias, no segundo processo; e cento e cinquenta e seis, no terceiro.
Portanto, em todos os processos foram verificados impactos bastante significativos desta vantagem processual da Fazenda no tempo levado para a apreciação do pedido de medida liminar. Todos esses dias influenciaram consideravelmente em uma tutela de urgência caracterizada por situação de carência de água nas comunidades indígena e quilombolas, reclamando, portanto, uma rápida resposta do Judiciário, o que não foi possível em razão desta prerrogativa processual da Fazenda Pública.
Desse modo, em relação à vantagem processual prevista no art. 2º da Lei 8.437/1992, conclui-se que esta prerrogativa impactou sensivelmente na efetivação célere dos direitos fundamentais pleiteados nestas ações.
Como visto no primeiro capítulo, a disciplina do direito processual coletivo surge para servir como instrumento de concretização dos direitos transindividuais que passaram a ser consagrados no ordenamento pátrio. Dentre as ações coletivas, a que possui maior destaque e tem se apresentado como o meio eficaz para a tutela dos interesses coletivos é a ação civil pública, em razão das considerações feitas no primeiro capítulo.
Muitos dos direitos coletivos constituem direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. A título de exemplo, cite-se o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no art. 225 da Magna Carta, e considerado pela doutrina como direito fundamental. De igual forma, direitos fundamentais como saúde, educação, saneamento básico, moradia e outros relacionados à efetivação da dignidade da pessoa humana podem se apresentar, não raras vezes, como direitos coletivos.
Na condição de interesses metaindividuais, estes direitos fundamentais podem ser defendidos pela ação civil pública. Nesse sentido, a ação civil pública se apresenta como um instrumento de efetivação de direitos fundamentais, buscando, muitas vezes, impor ao Estado que cumpra seus deveres de dar concretude a estes direitos em favor da população. Como afirma Raphael Ricardo Tissi:
“Os direitos fundamentais sociais são dependentes de políticas públicas adequadas com vistas a garantir sua efetividade, voltadas à consecução e implementação das diretrizes constitucionais e legais, com o objetivo de assegurar as mínimas condições materiais de existência digna a todos, como garantia de igualdade e umbilicalmente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana.” (TISSI)
Nesse sentido, sem querer adentrar na discussão da possibilidade de o Judiciário determinar a destinação de recursos e a realização de ações e políticas públicas para a efetivação dos direitos previstos no ordenamento jurídico, sem que isso constitua indevida imiscuição do Judiciário nas funções do Executivo e no mérito administrativo, a realidade é que a ação civil pública se apresenta como um instrumento processual que dá concretude, tutela e efetiva direitos fundamentais previstos na Constituição e nas leis.
Como afirmam Nathália Bocardi e Luiz Carlos Figueira de Melo:
“A utilização da Ação Civil Pública pelo Judiciário para determinar a adequação dos investimentos e políticas públicas para a efetivação dos direitos subjetivos dos cidadãos conforme determina a Constituição Federal constitui interferência legítima, além de garantir a participação popular no controle social.
Diante disso, resta justificada a necessidade de garantir a ampla utilização desse instrumento processual coletivo para a implementação dos direitos fundamentais, passíveis de efetivação, mas injustificadamente ignorados aos cidadãos”(BOCARDI; MELO)
Nesse sentido também é como pensa Raphael Ricardo Tissi:
“A legislação contempla mecanismos para assegurar a efetiva proteção dos direitos objeto de ação civil pública, destacando-se a possibilidade de implementação dos direitos fundamentais sociais em casos de urgência, mediante provimentos judiciais acautelatórios, liminares ou pela antecipação dos efeitos da tutela almejada.” (TISSI)
Dessa maneira, a ação civil pública se coloca como um meio processual para dar efetividade aos direitos fundamentais, de cunho coletivo (incluindo aqui os direitos individuais homogêneos, tidos como acidentalmente coletivos), à disposição dos seus legitimados para buscar fazer com que o Judiciário compila o Executivo a adotar ações e políticas públicas que possam dar concretude a estes direitos previstos no ordenamento jurídico.
Contudo, por outro lado, temos de levar em consideração a proteção do interesse público, defendido pelo Estado, na condição de seu guardião, mas pertencente a toda a coletividade, sendo do interesse de todos a sua salvaguarda. Esta é a ideia basilar da existência das vantagens processuais de que dispões a Fazenda Pública, aqui chamadas de prerrogativas, evitando-se o termo privilégios pela ressalva já feita.
Nesse sentido, consoante trabalhado no capítulo anterior, as prerrogativas processuais da Fazenda Pública são embasadas por três justificativas/fundamentos principais, quais sejam, o princípio da isonomia em sua acepção material aplicada à disciplina processual; o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado; e o princípio da continuidade dos serviços públicos ou da atividade administrativa.
Conforme visto no capítulo anterior, estas prerrogativas, fundamentadas nestas justificativas, possuem uma razão válida para a sua existência e são necessárias para a defesa eficiente da Fazenda Pública em juízo e para a proteção do interesse público. Inclusive, nesta oportunidade foi defendido que as empresas estatais prestadoras de serviços públicos se beneficiassem destas vantagens processuais, ao contrário do que autores como Leonardo Carneiro da Cunha pensam, já que os fundamentos que justificam a existência das prerrogativas para a Fazenda servem perfeitamente às empresas estatais.
Contudo, apesar de justificadas por fundamentos válidos, se mostrando necessárias, as prerrogativas processuais devem ceder frente os interesses defendidos pelas ações civis públicas, sobretudo quando estas são usadas para tutelar direitos fundamentais, como nas ações analisadas acima, em que, diante de situações de carência de água potável, que atingia toda uma comunidade, foram ajuizadas ações civis públicas para garantir o seu fornecimento.
Nos processos analisados foi possível ver o impacto que as vantagens processuais da Fazenda Pública ocasionaram na efetivação da pretensão vindicada nas ações, de um bem tão caro à sobrevivência digna. Como já apontado, neste estudo, a prerrogativa que mais influenciou na efetivação do direito pleiteado foi a necessidade de ouvir o Poder Público previamente ao deferimento de medidas liminares, tendo ocasionado um retardo de até pouco mais de noventa dias para a apreciação do pedido de tutela antecipada.
Durante o tempo necessário para que se satisfizesse esta exigência legal, em nome das razões aqui elencadas, as comunidades afetadas permaneciam desprovidas do bem mais essencial à vida.
É sabido que as medidas de urgência existem em razão da necessidade da parte autora obter a prestação jurisdicional de que necessita, sem ter de esperar até o fim da fase de conhecimento, com a prolação da sentença. É norteada pela ideia que se tem modernamente de prestação jurisdicional efetiva, uma vez que não basta entregar à parte aquilo que ela necessita, mas é preciso que isto se dê de forma célere, considerando que “justiça tardia é sinônimo de injustiça” (MONTENEGRO FILHO, 2014b, p. 8).
Tomando como exemplo as ações aqui analisadas, as comunidades que se viam desprovidas de um bem essencial à vida não poderiam esperar o desfecho do processo para que obtivessem água potável. Por tal razão, foi formulado pedido de antecipação dos efeitos de tutela, em caráter liminar, para que a comunidade recebesse o bem almejado, o mais rápido possível, diante da situação de urgência que restou configurada.
O retardo na entrega da prestação jurisdicional acaba por beneficiar o réu, pois ele ficará mais tempo sem cumprir com sua obrigação, ao que Misael Montenegro Filho, citando Ítalo Andolina, chama de dano marginal. Nas palavras do primeiro autor, para quem as medidas de urgência devem ser estimuladas em vista da sua utilidade prática na entrega da prestação jurisdicional efetiva:
“como forma de evitar que o autor conviva com o denominado dano marginal, segundo o ensinamento de Ítalo Andolina, com a demora na entrega da prestação jurisdicional, servindo o processo muito mais ao réu, que não tem direito, do que ao autor, que consegue logo no início da tramitação da demanda demonstrar ao magistrado que é titular de pretensão legítima, situação apurada através de juízo de probabilidade, de aproximação” (MONTENEGRO FLIHO, 2014b, p. 11)
Voltando aos casos das ações analisadas, a União e a DESO foram as únicas beneficiadas do retardo no deferimento das medidas liminares causado pela necessidade de oitiva prévia do Poder Público, pois ficaram mais tempo sem fornecer água à comunidade, enquanto seus integrantes tanto necessitavam.
Consoante já afirmado, o termo liminar refere-se ao momento em que a medida é deferida, no início do processo, antes da citação do réu, in initio litis, enquanto que tutela antecipada é o termo que designa a medida de urgência de natureza satisfativa, que pode ser deferida liminarmente ou em qualquer outro momento do processo, inclusive na sentença. Tratando sobre o termo “liminar”, Daniel Assumpção esclarece que:
“Valendo-se da origem no latim (liminaris, de limen), o termo “liminar” pode ser utilizado para designar algo que se faça inicialmente, logo no início. O termo liminar, nesse sentido, significa limiar, soleira, entrada, sendo aplicado a atos praticados inaudita altera parte, ou seja, antes da citação do demandado. Aplicada às espécies de tutelas de urgência, a liminar, nesse sentido, significa a concessão de uma tutela antecipada ou de uma tutela cautelar antes da citação do demandado. A liminar assumiria, portanto, uma característica meramente topológica, levando-se em conta somente o momento de prolação da tutela de urgência, e não o seu conteúdo, função ou natureza.” (NEVES, 2014)
Dessa maneira, a medida liminar é um instrumento para que se entregue a prestação jurisdicional da forma mais célere possível, impondo ao magistrado sua apreciação sem que se oportunize a oitiva da parte contrária, a fim de que o bem da vida almejado (voltando à ótica das antecipações de tutela) possa ser entregue com a rapidez que a situação de urgência demanda. Contudo, com a necessidade de oitiva prévia dos entes públicos, a essência da liminar resta descaracterizada, pois abre a oportunidade para que o réu se manifeste antes do seu deferimento, causando inegável demora para a apreciação do pedido liminar, como se pôde ver, mesmo que ilustrativamente, pelas ações aqui analisadas, tendo sido demonstrado a quantidade de dias que a medida liminar levou para ser deferida em razão da exigência de oitiva prévia.
É por tal razão que Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. defendem que é possível a arguição de inconstitucionalidade do art. 2º, da Lei 8.437/1992, em função da colisão dos interesses presentes, pois, se de um lado temos os fundamentos que justificam as prerrogativas processuais da Fazenda, de outro temos a essência das medidas de urgência, que existem para conferir uma resposta jurisdicional célere a situações que assim demandam:
“Ocorre, por outro lado, que, em se tratando de juízo de ponderação (estruturalmente principiológico), não se pode negar a “natureza própria” das medidas liminares, tutela de urgência, em resposta à lesão ou ameaça de lesão de forma eficaz. Aqui incide a inevitável vedação jurídica aos absolutos, nem mesmo o direito de oitiva prévia do réu (expressão do princípio do due processo oflaw) poderá ser um direito fundamental absoluto, a colisão de princípios invariavelmente deverá se resolver na dimensão do peso dos valores em jogo no caso concreto. Existindo risco iminente de perda da eficácia da decisão ou mutilação dos seus efeitos, não pode subsistir a vedação por inconstitucional.” (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2014, p. 299)
Tudo isto resta mais evidente quando se leva em consideração a natureza dos interesses tutelados pela ação civil pública, que certamente possuem mais relevância que a proteção do erário, sobretudo quando a ação civil pública é ajuizada para a defesa de direitos fundamentais, consoante tratado acima. Assim, além da questão de se garantir a prestação jurisdicional efetiva, que compreende a rápida apreciação de medidas liminares, há de se considerar que nos referimos à efetivação de interesses coletivos que, muitas vezes, são direitos fundamentais.
Nesta mesma linha, quando tratamos sobre o incidente de suspensão de liminar ou da sentença, previsto no art. 4º da Lei 8.437/1992, afirmamos que Teori Zavascki entende que este instituto deve ser utilizado de maneira excepcional, tanto por causa dos seus requisitos, quanto pelo fato de existirem outros meios céleres de suspensão destas decisões, à disposição de todas as pessoas, não somente da Fazenda Pública (2014, p. 73). Isto serve também para demonstrar que estas vantagens do Poder Público devem ser vistas com cautela, em razão dos impactos que causam na tramitação dos processos e na certificação dos direitos, especialmente quando se levam em consideração os interesses defendidos por meio da ação civil pública.
Consoante já afirmado, a ação civil pública se presta à tutela de quaisquer interesses transindividuais, como deixa claro o art. 1º, IV da Lei 7.347/1985. Contudo, apenas para demonstrar a importância dos bens defendidos por esta ação, observe-se o rol exemplificativo trazido no art. 1º, que serve para demonstrar a natureza destes interesses:
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
l - ao meio-ambiente;
ll - ao consumidor;
III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IV - a qualquer outro interesse difuso ou coletivo;
V - por infração da ordem econômica;
.VI - à ordem urbanística;
VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos;
VIII – ao patrimônio público e social.
Dessa maneira, ante a importância destes bens e a natureza dos interesses defendidos, que se sobrepõem muitas vezes ao interesse de proteção da fazenda pública, as prerrogativas processuais do Estado devem ceder para garantir maior celeridade e efetividade na tutela dos interesses metaindividuais, principalmente quando se está diante de direitos fundamentais.
Pensando desta maneira, Sérgio Shimura defende que o reexame necessário deve existir somente no caso de improcedência dos pedidos veiculados em ação civil pública, e não nos casos da sentença proferida contra o Poder Público, como ocorre com a ação popular (art. 19 da Lei 4.717/1964) e nas ações coletivas que envolvem direitos de pessoas portadoras de deficiência (art. 4º, § 1º, da Lei 7.853/1989). Este pensamento do autor, apesar de expressá-lo tratando sobre o reexame necessário, serve para as demais prerrogativas da Fazenda. Comentando acerca do disposto no antigo CPC sobre este instituto, o autor afirma:
“Por conseguinte, figurando na ação civil pública como demanda a Fazenda Pública, o sistema das ações coletivas permite e determina que se deve conferir maior relevância aos interesses difusos e coletivos do que aqueles ligados diretamente à Fazenda Pública, como pessoa jurídica de direito público. Daí não se aplicar o art. 475 do CPC, mas sim invocar por analogia o regime da Lei 7.853/1989 (art. 4º, § 4º), pelo qual somente há reexame necessário em caso de carência ou improcedência, independente de a pessoa jurídica de direito público migrar para o polo ativo da demanda.” (SHIMURA, 2007, p. 350)
No mesmo sentido afirmam Patrícia Mara dos Santos Saad Netto e Luiz Manoel Gomes Jr., citados por Sérigio Shimura:
“sendo assim, não é possível que a aplicação de uma norma de natureza processual (art. 475 do CPC), ainda que cogente e fundada no interesse público fazendário, sobreponha-se à relevância do direito material e bem jurídico tutelado nas ações civis públicas, subsumindo decisões dotadas de eficácia erga omnes ou ultra partes e que são instrumentos garantidores desses direitos fundamentais do cidadão, constitucionalmente consagrados.” (SHIMURA, 2007, p. 350)
Nesse sentido, recorde-se o que foi dito no primeiro capítulo, quando tratamos sobre o microssistema de processo coletivo, quando afirmamos que o microssistema também possui função integradora, de modo que quando uma lei de processo coletivo for omissa, deve ser buscada a sua integração nas outras leis que compõem o subsistema em primeiro lugar e, não obtendo sucesso, recorrer-se-ia aos diplomas de processo individual, como o CPC. Isto porque as leis de processo coletivo são criadas sob princípios e ideias comuns, que possibilitem a adequada proteção dos interesses coletivos, enquanto o CPC se volta à defesa de interesses individuais.
Assim, o mais adequado não seria aplicar o instituto do reexame necessário como previsto no CPC às ações civis públicas, e sim como está disposto na Lei 7.853/1989 e na Lei 4.717/1964, submetendo à remessa obrigatória apenas os casos de improcedência ou carência da ação, eis que estes dois diplomas tratam sobre a tutela de interesses coletivos.
Recorde-se, ainda, que, consoante exposto no capítulo anterior, o novo CPC aumentou as hipóteses de dispensa do reexame necessário, apontando para a tendência do novo código em prestigiar a célere tramitação dos processos e a efetividade na prestação jurisdicional.
Registre-se, por fim, que o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, de autoria do Instituto Brasileiro de Processo Coletivo, dispõe, expressamente, em seu art. 14, parágrafo único, que as sentenças prolatadas em ações coletivas não se submetem ao reexame necessário. Isto justamente em razão da natureza dos interesses coletivos tutelados por estas ações.
Consoante já afirmado, os fundamentos das prerrogativas processuais da Fazenda Pública são válidos, e estas vantagens ajudam na proteção do erário, contudo são inegáveis seus impactos na certificação e concretização de direitos, como, ilustrativamente, foi demonstrado a partir da análise das ações acima.
Os interesses da Fazenda Pública, em que pese serem legítimos, não devem prevalecer sobre os interesses transindividuais, que não raras vezes constituem direitos fundamentais, tutelados pela ação civil pública, sob pena de haver uma inversão de valores. Nesse sentido, os interesses ligados ao aspecto pecuniário do Estado, não podem ser sobrepostos aos interesses defendidos pela ação civil pública.
Em verdade, tais prerrogativas processuais são verdadeiros óbices à célere certificação de direitos fundamentais, que, por conseguinte, obstacularizam a sua rápida efetivação, não devendo, pois, prevalecer, tendo em vista o confronto dos valores postos, e a proeminência dos direitos e garantias que materializam a dignidade da pessoa humana.
Destarte, considerando que a ação civil pública é instrumento processual para a tutela de interesses metaindividuais, que muitas vezes constituem direitos fundamentais, bem como que as prerrogativas processuais da Fazenda aqui analisadas acarretam significativos impactos na efetivação célere destes interesses, apresentando-se como obstáculos à célere efetivação de direitos fundamentais, estas vantagens processuais devem ceder frente à natureza dos interesses defendidos pela ACP, que possuem maior relevância que os interesses ligados à defesa do patrimônio público.
As justificativas da existência das prerrogativas processuais da Fazenda Pública, enquanto demandada em ações civis públicas, são válidas e servem para que os seus representantes possam defender de maneira eficaz quando ela estiver em juízo. Contudo, tratando sobre estas vantagens verificadas na fase de conhecimento da ação civil pública, em que se busca a certificação do direito discutido em juízo, mas abre espaço também para a sua efetivação, através de institutos como a tutela antecipada, são inegáveis os impactos que estas prerrogativas trazem à efetividade da prestação jurisdicional, como buscamos ilustrar a partir da análise dos processos feita no último capítulo. Longe de ser um estudo conclusivo sobre os impactos, a análise aqui feita serve ao menos como demonstração empírica da influência das vantagens processuais na fase de conhecimento da ação civil pública.
Considerando a natureza dos interesses tutelados pela ação civil pública, que muitas vezes se caracterizam como direitos fundamentais, como ocorreu com as ações aqui tratadas, em que buscou-se tutelar o direito coletivo de comunidades ao acesso de água potável, conclui-se que os bens tutelados pela ACP merecem maior destaque e proteção do que interesses que justificam a existência das prerrogativas do Poder Público em juízo.
Dessa maneira, tendo em vista os impactos que as vantagens processuais da Fazenda verificadas acarretam na certificação e concretização dos direitos tutelados pela ação civil pública, as vantagens processuais verificadas durante a fase de conhecimento desta ação não podem constituir óbices à célere prestação jurisdicional que se exige nestes casos, sob pena de haver uma verdadeira inversão de valores, ao se prestigiar a defesa do erário público, em detrimento de direitos que dizem respeito à dignidade humana, como foram exemplos os processos aqui analisados.
Nestes processos, a aplicação das prerrogativas processuais, em especial, da exigência legal de oitiva dos entes estatais antes do deferimento de medidas liminares, em nome da defesa dos interesses do Estado, fez com que o bem essencial necessitado pelos integrantes da comunidade tardasse a chegar, em razão do retardo ocasionado pelas prerrogativas processuais.
Conclui-se, portanto, que não é razoável a existência das prerrogativas processuais aqui analisadas na fase de conhecimento da ação civil pública, uma vez que seus fundamentos e justificativas são axiologicamente de relevância inferior em relação aos direitos coletivos em sentido amplo, objeto de tutela da ACP e que se apresentam, muitas vezes, como direitos fundamentais.
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Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, foi advogado e atualmente trabalha como assessor jurídico de Procurador da República no MPF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Vinícius Gabriel Viana de. Prerrogativas processuais da fazenda pública na fase de conhecimento da ação civil pública: obstáculos à célere efetivação dos direitos transindividuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2022, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58810/prerrogativas-processuais-da-fazenda-pblica-na-fase-de-conhecimento-da-ao-civil-pblica-obstculos-clere-efetivao-dos-direitos-transindividuais. Acesso em: 21 nov 2024.
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