NORBERTO OYA[1]
(coautor)
Resumo: O presente trabalho visa estudar os aspectos do pragmatismo jurídico no processo civil brasileiro. Serão abordados uma breve origem da filosófica pragmática e do pragmatismo jurídico destacando as influências na alteração na legislação processual. Serão exemplificados a adoção do pragmatismo jurídico aliado a prática judicial forense na legislação processual, assim como os impactos da pandemia COVID-19 nos processuais judiciais com a implantação da realização de audiências no formato virtual.
Palavras-Chave: Pragmatismo Jurídico. Código de Processo Civil. Pandemia COVID-19. Audiência Judicial Virtual.
Sumário: 1. Introdução – 2. Origem do pragmatismo – 3. Pragmatismo jurídico – 4. Código de Processo Civil pragmático – 5. Audiência tradicional – 6. Recursos tecnológicos – 7. Audiência síncrona online – 8. A pandemia da Covid-19 e o impacto na audiência tradicional – 9. Conclusão – 10. Referências.
1.Introdução
O presente artigo visa abordar uma breve descrição da origem do pragmatismo jurídico e sua influência nas decisões judiciais. Abordar-se-á a influência do pensamento jurídico pragmático no processo judicial, explorando os aspectos identificados no processo civil brasileiro.
Far-se-á uma análise da inclusão de institutos na legislação processual tendo com base em experiências extraídas da prática forense, assim como a necessária e rápida adaptação nos procedimentos judiciais para prestação jurisdicional durante a pandemia da COVID.
O trabalho demonstrará o formato encontrado pelo Poder Judiciário no Código de Processo Civil (CPC) aliado à prática forense com os ajustes necessários para respeito ao devido processo legal, ampla defesa, dentre outros aspectos e princípios constitucionais.
2.Origem do pragmatismo
O pragmatismo teve como partida no século XIX, reconhecendo-se trabalhos pioneiros de Charles Sanders Peirce (1839-1914), Wiliam James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952). Peirce, James, Oliver Wendell Holmes Jr. e Nicholas Saint John Green fundaram o “Clube Metafísico de Boston”.
Tal nome foi escolhido propositalmente para simbolizar a ironia do termo metafísico, que era tido como fora de moda nos debates filosóficos da época[1].
A criação do “Clube Metafísico de Boston” analisava o Iluminismo com a base de sustentação metafísica que até então serviria de suporte ao conhecimento científico, por outro, a própria ciência, mais tarde, se encarregou de produzir novos constructos metafísicos.
Charles Sanders Peirce formula sua concepção pragmática partindo do suposto de que os paradigmas da lógica aristotélica como instância racional autônoma e ordenadora do conhecimento humano já não mais davam conta dos requerimentos que essas novas teorias impunham à compreensão e ao exercício da ciência moderna.
A teoria submete-se à prática e a ação torna-se tão importante quanto à reflexão, sem que isso, propriamente, implique numa desvalorização das ideias e da própria teoria. Ao revés, elas se tornam vivas, palpitantes e funcionais.
O pragmatismo não ignora a necessidade e a conveniência do sacrifício da justiça substantiva no caso individual em favor da compatibilidade com a jurisprudência ou a legislação, ou, em resumo, com as expectativas bem fundamentadas que são necessárias para a condução ordeira dos negócios sociais[2].
O pragmatismo apresenta uma crítica no pressuposto de que o conhecimento tem um caráter orgânico e inclusivo, sendo o seu desenvolvimento dentro de uma perspectiva contextual.
3.Pragmatismo jurídico
O pragmatismo jurídico foi de grande sucesso ao longo do século XX, sendo uma das correntes mais significativas do pensamento jurídico contemporâneo.
Em sua essência, o que o pragmatismo pretende é afastar das decisões judiciais questões metafísicas ou platônicas, que interfiram na objetividade do julgador para lidar com as questões difíceis e refletir sobre a eficiência e a promoção do bem-estar e do desenvolvimento da sociedade.
É justamente essa inclinação do pragmatismo que o torna diametralmente oposto ao formalismo jurídico.
O exame do pragmatismo resta necessário no sentido de programação de características de funcionamento, como a persuasão, legitimação e antecipação, expondo as funções dos discursos jurídicos.
É primordial a consideração de discursos argumentativos e persuasivos, vinculados à ponderação prática, utilizando critérios de razoabilidade, objetivando compatibilizar valores contraditórios e flutuantes. A aplicação do critério ao caso concreto para soluções de problemas jurídicos se destaca como um sentido pragmático dado à linguagem jurídica.
A consideração de discursos argumentativos e persuasivos, vinculados à ponderação prática, utilizando critérios de razoabilidade, objetivando compatibilizar valores contraditórios e flutuantes.
O pragmatismo jurídico é uma forma de realizar a própria prática e a hermenêutica, sendo todo o pressuposto do discurso jurídico.
4.Código de Processo Civil pragmático
Nota-se no Código de Processo Civil grandes repercussões do pragmatismo jurídico na esfera do processo judicial.
O Código de Processo Civil adotou relevantes institutos jurídicos que eram utilizados em decorrência da prática forense, inobstante a ausência de legislação infraconstitucional capaz de regularizar procedimentos específicos.
A maioria das inovações legislativas no Código de Processo Civil são, a bem da verdade, sistematização de legislações especiais que já vinham sendo adotadas frequentemente, sobretudo no âmbito dos tribunais superiores, o que permite divisar, com clareza, o fenômeno do pragmatismo jurídico no processo civil brasileiro.
Trata-se de uma realidade em curso há bastante tempo, e que apenas se aprofunda no atual diploma processual.
No Direito brasileiro é reconhecida a evolução jurídica acima tratada, consistente com o avanço de uma prática jurídica pautada por precedentes.
O início de uma maior preponderância jurídica dos precedentes, no contexto da ordem jurídica brasileira, decorre da Emenda Constitucional nº 45/04, que, introduzindo figuras como a súmula vinculante, possibilitou uma valorização da cultura de relevância de decisões do órgão jurisdicional, em virtude de sua aptidão para repercutir em casos futuros.
Ali então já se falava da “repercussão geral”, figura que atrelava a atividade dos tribunais superiores não mais apenas à discussão jurídica em comento no processo judicial, mas sim de sua relevância e repercussão da questão para a sociedade.
A prática demonstrou que tanto o Supremo Tribunal Federal (STF), quanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ), passaram a utilizar o instituto dos recursos repetitivos.
Essas tendências foram incorporadas e potencializadas no Código de Processo Civil, que, sobretudo em seus artigos 1.036 a 1.041, inclusive solucionando qualquer possível incompatibilidade entre o recurso extraordinário e o recurso repetitivo, ou sobre a previsão legal de recursos repetitivos e as atribuições do STF, neste sentido:
[...] Merece destaque inicial que, no novo CPC, não só o recurso especial mas também o recurso extraordinário passa a receber disciplina de recurso repetitivo. É inegável, assim, o avanço do novo CPC em relação à disciplina do art. 543-B do CPC atual que, em rigor, não admite o processamento e o julgamento de recursos extraordinários repetitivos, mas, menos que isso, apenas a discussão sobre recursos extraordinários múltiplos apresentarem, ou não, repercussão geral. Ademais, é inegável que o art. 543-C do CPC atual limita-se à disciplina dos recursos especiais (grifo no original) repetitivos, não obstante a prática do STF ter consagrado também o processamento dos extraordinários como repetitivos. De qualquer sorte, o novo CPC coloca fim a quaisquer discussões que, no âmbito do CPC atual, poderiam ser desenvolvidas a partir dessa constatação, como a leitura do caput do art. 1.036 do novo CPC evidencia.[3]
Destacando a relevância do pragmatismo no Código de Processo Civil, necessário fazer referência à figura do amicus curiae, previsto no artigo 1.38[2], do CPC.
Tal instituto se refere à possibilidade de admissão de um terceiro, geralmente especializado em determinada área do conhecimento, para auxiliar na instrução do processo ou, até mesmo, na discussão jurídica.
Nos casos em que se demanda um conhecimento mais específico de determinado tema (como nas matérias que são mais diretamente de ordem econômica, aquelas que tratam do meio ambiente etc.) o Código de Processo Civil permite a intervenção para contribuição do mérito da causa para que se possa adotar a melhor solução, inclusive técnica.
O diploma processual, neste ponto também, aprofunda e generaliza o instituto, passando a admitir a presença do amicus curiae em todos os processos da órbita civil.
Esta realidade condiz com o pragmatismo jurídico, porque permite, e até valoriza, a participação de profissionais e especialistas sobre a matéria fática que se está avaliando, no ponto de empirismo e de observação prática.
Sobre este ponto, interessante o esclarecimento de Richard Posner:
[...], o trabalho do economista no que se refere às políticas e práticas acerca do interesse público, tanto as vigentes quanto aquelas que se propõem, consiste essencialmente em advertir-nos sobre as consequências que os não economistas tendem a negligenciar e que frequentemente, embora nem sempre, são adversas ou no mínimo onerosas. Essa aplicação da economia deve ser bem-vinda pelos advogados que julguem importante descobrir quais são as consequências reais das doutrinas e instituições jurídicas, inclusive aquelas que os profissionais do direito consideram intocáveis[4].
A proximidade entre o instituto e a análise econômica do Direito é óbvia, pois esta trata, justamente, da análise por pessoas capacitadas em economia das medidas que o ordenamento jurídico veicula.
Provavelmente, na ordem jurídica processual brasileira, o instrumento através do qual se daria tal análise, pragmática e econômica, de peritos e analistas econômicos, seria, no mais das vezes, o amicus curiae.
Neste sentido:
[...] o Código de Processo Civil acabou por disciplinar de intervenção de terceiros, generalizando-a, em contraposição às específicas previsões que até então se encontravam dispersas no sistema processual civil.
[...] Em um Código que aceita a força criativa da interpretação judicial, abandonando inequivocamente o padrão de mera legalidade hermenêutica (arts. 8ª e 140), e o caráter normativo dos precedentes [...][5].
Verifica-se a conexão entre o instituto do amicus curiae, previsto no Código de Processo Civil, e uma possível análise econômica do Direito, bem como sua aptidão em confluir para uma visão mais pragmática do processo.
O mesmo pode se falar sobre o incidente da desconsideração da personalidade jurídica que, anteriormente à vigência do Código de Processo Civil, a doutrina divergia sobre a necessidade de assegurar o exercício do contraditório pelos sócios chamados a integrar a lide.
A preocupação se dava pelo fato das consequências dos efeitos da desconsideração da personalidade jurídica para o atingimento de patrimônio de terceiros que não participaram regularmente do processo em sua fase de conhecimento.
Gilberto Bruschi defendia naquela oportunidade ser dispensável processo autônomo e prévia instauração do contraditório, significando dizer que a desconsideração poderia se dar por mera decisão nos autos do processo[6].
Fabio Ulhoa Coelho defendia ser “inafastável a exigência de processo de conhecimento de que participe, no polo passivo, aquele cuja responsabilização se pretende”[7], posição que não encontrava suporte na jurisprudência que decidiam pela “dispensa de citação dos sócios, que podem dispor de instrumentos processuais outros adequados a esse desiderato”[8].
Independentemente da posição adotada antes da vigência do atual Código de Processo Civil, concluía-se pela aplicabilidade do instituto no nosso sistema jurídico, em que pese a inexistência de legislação específica sobre o procedimento a ser observado.
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, como previsto no Código de Processo Civil, em seu Capítulo IV, no livro III, que trata da intervenção de terceiros, é destinado a resolver demandas que pleiteiam a extensão da responsabilidade patrimonial aos sócios de determinada sociedade.
A finalidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica é uma das espécies de intervenção de terceiros provocada, assim como a denunciação da lide e o chamamento ao processo “pois se provoca o ingresso de terceiro em juízo – para o qual se busca dirigir a responsabilidade patrimonial”[9].
Em que pese o resultado efetivo almejado com o atingimento de patrimônio de terceiro que não figurou no processo na fase de conhecimento, o Código de Processo Civil preencheu uma lacuna legislativa, garantindo, o que por muitas vezes não acontecia na prática forense, a observância dos princípios constitucionais do devido processo legal[10].
Estancando antiga divergência doutrinária sobre a necessidade de ajuizamento de ação própria ou de forma incidental, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica assegurou o contraditório, ampla defesa e devido processo legal:
[...] Suprindo a lacuna processual, o Código atual cuidou da matéria nos arts. 133 a 137, traçando o procedimento a ser adotado na sua aplicação, de maneira a submetê-lo, adequadamente, à garantia do contraditório, ampla defesa. Doravante, portanto, a sujeição do patrimônio do terceiro em razão da desconsideração só poderá ser feita em juízo com a estrita observância do procedimento incidental instituído pelo CPC/2015[11].
O Código de Processo Civil assegura a necessidade de requerimento da parte ou do Ministério Público para que seja instaurado o incidente de desconsideração. Essa opção tem como fundamento a inércia da jurisdição, evitando assim a aplicação ex officio do instituto.
Estacando de uma vez por todas antigas divergências da jurisprudência, o Código de Processo Civil definiu expressamente a possibilidade de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Por outro giro, não obstante a solução pragmática da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica tenha sido positivada no Código Civil brasileiro de 2002, este tema continua a evoluir pragmaticamente para cada vez atingir melhores resultados.
Nesse sentido, foram introduzidas mudanças no artigo 50 do Código Civil, pela Lei n. 13.874/2019[12], o que tem mostrado um impacto no incidente da desconsideração da personalidade jurídica.
Portanto, o que se tem, no Brasil, é que o atual Código de Processo Civil aprofunda uma cultura enraizada de precedentes, que já vinha em curso antes de sua edição, e este tema é particularmente relevante neste estudo porque representa forte influência do pragmatismo jurídico à prática processual brasileira.
A atuação do Judiciário de forma genérica, abstrata e construindo paradigmas de atuação para casos futuros, decerto, representa uma alteração de sua função original, o que só é possível no desapego, no antifundacionalismo, em relação à concepção original de Estado.
Dessa forma, pela comparação dos institutos apresentados marcam o pragmatismo jurídico, percebe-se que este possui um núcleo muito atuante na lógica dos precedentes, resultando em uma forte presença dos elementos de antifundacionalismo, contextualismo e consequencialismo.
Ainda na abordagem do pragmatismo jurídico na esfera do processo judicial, será apresentada a seguir a evolução da audiência tradicional presencial para a necessária e rápida adaptação nos procedimentos judiciais para prestação jurisdicional durante o contexto da pandemia do Covid-19, que levou à expansão do uso da tecnologia pelo Poder Judiciário, com a implantação da comunicação à distância no âmbito do Processo Civil.
5.Audiência tradicional
Para Souza Pinto (1850, p. 88-90), audiência significa:
a sessão em que o juiz pessoalmente ouve as partes por si, ou por seus advogados, e procuradores, defere seus requerimentos, profere sua decisão sobre as questões de fácil, e pronta solução, e publica suas sentenças, assim interlocutórias, como definitivas
Diferente de sessão, auditório é o local em que o juiz dá sua audiência às partes.
No Período Imperial se entendia que as partes somente estariam em condições de se manifestar com liberdade necessária se estivessem perante o juiz no local apropriado na ocasião, que eram as câmaras municipais, nos locais destinados pelo Governo Imperial e pelos presidentes das Províncias. Sendo na capital do Império, Rio de Janeiro, as audiências seriam realizadas no fórum. O juiz que realizasse audiência em outro local seria punido com multa de 100$000 a 150$000 (cem mil reis a cento e cinquenta mil reis, de acordo com o artigo 196, do Regulamento n. 120, de 31/01/1842).
De acordo com o artigo 34, 23º, na redação original, combinado com o artigo 65, 2º, da Constituição da República de 1891, competia aos estados-membros legislar sobre direito processual. Assim, alguns Estados aproveitaram e promulgaram seu próprio Código de Processo Civil.
Conforme os Códigos de Processo Civis do Distrito Federal (artigo 35), e dos Estados do Rio Grande do Sul (Lei n. 65, de 16/01/1908, artigos 212 a 217, 227-229, 245, 246, 248, 253), Distrito Federal (Decreto n. 8.332, de 03/11/1910, artigos 35-37, 39, 41), Bahia (Lei n. 1.121, de/08/1915, artigos 168), Rio de Janeiro (Lei n. 1.580, de 20/01/1919, artigos 348, 350, 355, 357, 359-360, 364), Minas Gerais (Lei n. 830, de 07/09/1922, artigos 139-140, 142-143), Pernambuco (Lei n. 1.672, de 09/06/1924, artigos 107-108, 110), Santa Catarina (Lei n. 1.640, de 03/11/1928, artigos 378-381, 385-386, 388-390), São Paulo (Lei n. 2.421, de14/01/1930, artigos 125-135), havia três modos de audiência. A primeira, ordinária, na qual se cuidava dos negócios forenses. A segunda, chamada de extraordinária, utilizada pelo julgador para prosseguimento do processo. Por fim, a especial, com a finalidade de se realizar um ato determinado pelo juízo.
Fraga (1940, p. 317-319), sob a legislação de Código de Processo Civil de 1939 (Decreto-Lei n. 1.608, de 18/09/1939), observa que a fase escrita, a qual contém as pretensões opostas das partes, “tudo o que o espírito humano pode produzir em torno da controvérsia jurídica”, precede o juízo oral, compreendida pela audiência de instrução e julgamento, ocasião em que se ouve o perito, sendo o caso, e, em seguida, são tomadas as declarações do autor, do réu e ouvida as testemunhas. Encerra-se com os debates orais pelos advogados (artigos 267 a 271, do CPC/1939).
Para João Monteiro (1956, p. 488-489), o depoimento da testemunha era prestado em juízo desde o direito romano, sendo o prestado fora do juízo não integrar a prova judiciária. Esse procedimento admitia exceções. Havia o testimonium per tabellas, que correspondia ao testemunho escrito e assinado por duas testemunhas, cuja força probante era inferior à prestada de forma oral. Já as pessoas egrégias podiam prestar depoimento no próprio domicílio, o que hoje corresponde aos depoentes ocupantes de certos cargos de destaque, os quais podem ser inquiridos em sua residência (CPC, artigo 454).
É na audiência de instrução e julgamento que, segundo MARTINS (1942, p. 181 e 183), o processo vive seu momento de ápice, na medida em que o juiz tem contato com as provas, ouve os advogados, nos debates orais, e profere a sentença. Nas hipóteses em que a comprovação das alegações das partes exige a oitiva de testemunhas e/ou de perito, a audiência adquire relevância significativa, pois a concentração da prova e o contato direto do juiz com essa prova produzida lhe possibilita os esclarecimentos necessários para o melhor julgamento da lide.
Com uma definição mais precisa, Frederico Marques (1973, p. 1 e 17) pontua que é na audiência que se realiza a instrução processual e ocorre o julgamento, considerado, assim, ato processual complexo, por envolver vários atos processuais praticados pelo juiz, pelas partes e terceiros, que culmina com a fase decisória, com a sentença. Dentre os atos do juiz, está a imediatidade, contato direto com a prova e com as partes. A audiência de instrução e julgamento é realizada no auditório do juízo, nas dependências do fórum.
6. Recursos tecnológicos
Durante a vigência do CPC/1973 (Lei n. 5.869, de 11/01/1973) surge o processo judicial eletrônico, por meio da Lei n. 11.419, de 19/12/2006, que introduziu a informatização do processo judicial e instituiu o processo eletrônico na tramitação de processos judiciais, em especial aos processos civil, penal, trabalhista e aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição (artigo 1º e § 1º). Definiu meio eletrônico como sendo qualquer forma de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais, e transmissão eletrônica como toda forma de comunicação a distância com a utilização de redes de comunicação, preferencialmente a rede mundial de computadores (artigo 1º, § 2º, incs I e II).
É no vigente CPC (Lei n. 13.105, de 16/03/2015) que se expressa a prática dos atos processuais com a utilização de recursos tecnológicos, em especial nos artigos 196, 236, § 3º, 385, § 3º, 453, § 1º, 461, § 2º, 464, 4º, 751, § 3º, 937, § 4º. De se destacar que os meios tecnológicos contribuem para a racionalização, eficiência e desenvolvimento do processo judicial, com toda segurança, fidelidade, confidencialidade, privacidade, na busca da rápida prestação jurisdicional.
7. Audiência síncrona online
A partir desse momento, passa-se a se vislumbrar a possibilidade da realização de audiência síncrona online. É a aplicação da videoconferência, que corresponde à transmissão em tempo real e gravação de imagem e som entre interlocutores que estejam em ambientes distintos, por meio da rede mundial de computadores.
A audiência virtual corresponde ao ato processual pelo qual o juiz se encontra em um local, por ex. nas dependências do fórum, mas pode estar em outro ambiente físico, e os demais participantes, sejam todos, sejam alguns, estarem em outro espaço físico.
Para sua operacionalização, se exige que cada um dos envolvidos no ato processual virtual se utilizem de um dispositivo fixo (computador de mesa) ou móvel (computador portátil, tablet ou aparelho celular) e conectado aos seguintes equipamentos tecnológicos: i) uma webcam (câmera de vídeo com microfone integrado); ii) microfone externo para ter melhor qualidade de captação de áudio, caso o usuário prefira não utilizar o que vem embutido na webcam,; iii) caixa de som ou fone de ouvido; iv) conexão com a internet, por meio de serviço oferecido por prestadores de serviço de telefonia e provedores.
O uso da videoconferência está previsto nos artigos 385, §3º e 453, §1º do CPC para ser aplicado quando a parte e testemunha residirem em comarca, seção ou subseção judiciária diversa daquela onde tramita o processo.
8. A pandemia da Covid-19 e o impacto na audiência tradicional
Mas tudo mudou com a pandemia da COVID-19, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declara, em 30/01/2020, em Genebra (Suíça), que o surto do coronavírus (2019-nCoV) constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). Em 11/03/2020, a COVID-19 é caracterizada como uma pandemia, cujo termo se refere à distribuição geográfica de uma doença e não à sua gravidade[13].
Em decorrência dessa constatação, a Lei n. 13.979, de 06/02/2020, dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto. O Decreto Legislativo n. 6, de 20/03/2020, conhece a ocorrência do estado de calamidade pública.
Nessa linha, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamenta o uso da videoconferência nas audiências e demais atos oficiais, por meio das Resoluções números 314, de 20/04/2020, 329, de 30/07/2020; 330, de 26/08/2020; 337, de 29/09/2020. Essa medida de ordem pragmática atende as regras sanitárias para conter a disseminação do contágio do vírus e a prestação da atividade jurisdicional. Vale lembrar que a Resolução n. 105, de 06/04/2010, foi a primeira a cuidar da documentação dos depoimentos por meio do sistema audiovisual e realização de interrogatório e inquirição de testemunhas por videoconferência, na esfera processual penal. Em 06/09/2018, foi publicado o Provimento n. 75, que trata do Sistema Nacional de Videoconferência, e em 22/06/2022 é publicada a Resolução n. 465, que trata das diretrizes para a realização de videoconferências no âmbito do Poder Judiciário.
Todas essas normativas administrativas visam a dar concretude ao princípio constitucional do amplo acesso à Justiça, uma vez que cabe ao Poder Judiciário dar proteção ao jurisdicionado que tenha sofrido lesão ou tenha seu direito ameaçado (CF, artigo 5º, inciso XXXV).
Em artigo intitulado Processo, Novas Tecnologias e Pandemia, Paulo Henrique dos Santos Lucon[14] pontua que a pandemia possibilitou e enalteceu a comunicação à distância, com acesso à justiça de forma segura e eficiente, a despeito de as tecnologias complexas incorporadas ao processo civil terem sido bem recebidas pela comunidade jurídica, ainda que não implementadas de imediato.
É de se ter em conta que a audiência virtual possibilita ao julgador o contato pessoal, direto e imediato com a partes envolvidas no litígio, e seus respectivos advogados, como ocorre na audiência presencial. Certo, porém, que o subprincípio da imediatidade, cujo princípio é o da oralidade, recebeu mitigação pelo Código de Processo Civil, pois as perguntas à testemunha são feitas diretamente pelas partes, sem a intermediação do magistrado (CPC. Art. 459).
Escrito de outra maneira, o formato de audiência síncrona online permite que o juiz natural da causa esteja ele próprio presente na instrução processual, dirija a produção das provas, e colha as provas produzidas na audiência, tenha proximidade com as raízes sociais do conflito[15], ainda que distante do espaço físico em que se encontram as partes, seus defensores, testemunhas e demais participantes do solene ato processual.
Desse modo, tem-se que os benefícios proporcionados pela audiência virtual ao jurisdicionado, no que diz respeito à celeridade, economicidade, eficiência e racionalização da relação jurídica processual na busca da solução da lide pelo Judiciário são significativos, o que permite sustentar a mantença da utilização da videoconferência, mesmo após a pandemia mundial do Covid-19.
O pragmatismo vem contribuindo fortemente para uma compreensão ativa da prática judicial, desenvolvendo um pragmatismo jurídico, e é considerado um paradigma do direito contemporâneo ao procurar situar-se diante das mudanças nos hábitos sociais através de decisões que buscam sopesar o momento histórico-social em que são proferidas.
Verifica-se o Poder Judiciário como um todo ser mais sensível à realidade social onde presta o serviço jurisdicional, de modo que o órgão decisor passa a sopesar aspectos práticos das consequências da tomada de decisão.
O Código de Processo Civil é um aperfeiçoamento pela modalidade de adequação ao contexto pragmático forense, abordando todos os aspectos controvertidos sobre o tema, conferindo uma segurança jurídica alinhavada com princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do direito creditório, possibilitando a harmonização dos interesses em conflito.
Por sua vez, a videoconferência na aplicação da audiência virtual é ferramenta tecnológica inovadora, transformadora e criativa a impactar a dinâmica do trabalho prestado pelo Poder Judiciário, e atende aos ditames constitucional e infraconstitucional (CF, artigo 5º, inciso LXXVIII, e CPC, artigos 4º e 6º), que impõem que o processo deve ter prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa, e que todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
A utilização da videoconferência, implantada de forma ampla e pragmática pelo Poder Judiciário, permitiu a realização de audiência virtual, com acesso à justiça de forma segura e eficiente, e deve ser mantida pelos tribunais, mesmo depois de superada a pandemia da COVID-19, dados os benefícios que o recurso tecnológico produz no processo em direção à prestação jurisdicional.
A audiência virtual, portanto, cumpre as garantias processuais constitucionais e infraconstitucionais e estão presentes no ato processual a beneficiar todos os partícipes do processo.
10. Referências
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[1] Especialista em Direito Constitucional e mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Procurador do Estado de SP.
[2] Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação
[1] REGO, George Browne. O pragmatismo como alternativa à legalidade positivista: o método jurídico-pragmático de Benjamin Natham Cardozo. In Revista Duc In Altum. Caderno de Direito, vol. 1, nº 1, jan/dez de 2009.
[2] POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 382.
[3] BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil Anotado. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, p. 675.
[4] POSNER, Richard. Fronteiras da Teoria do Direito. Trad. Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 33.
[5] BUENO, Cassio Scarpinella, Curso Sistematizado de direito processual civil. Vol. 1. 9ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 583/584.
[6] BRUSCHI, Gilberto Gomes. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica. p. 91.
[8] STJ, Terceira Turma, AgRg no Recurso Especial 1459843-MS, Relator Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 23/10/2014. Disponível em: <http://www.stj.jus.br> Acesso em: 22 jun. de 2021.
[9] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Volume 1. 18ª ed. Salvador: JusPodvm, 2016. p. 521.
[10] NERY JUNIOR, Nelson. Nery, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 16ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 627.
[11] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. III. 53ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 401.
[12] A Lei da Liberdade Econômica (MP 881 – Lei n. 13.874/2019) é regida pelos princípios da: (i) a liberdade como garantia no exercício de atividades econômicas; (ii) a boa-fé do particular perante o poder público; (iii) a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício das atividades econômicas; e (iv) o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.
[13] “Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi alertada sobre vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. Tratava-se de uma nova cepa (tipo) de coronavírus que não havia sido identificada antes em seres humanos.
Uma semana depois, em 7 de janeiro de 2020, as autoridades chinesas confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coronavírus. Os coronavírus estão por toda parte. Eles são a segunda principal causa de resfriado comum (após rinovírus) e, até as últimas décadas, raramente causavam doenças mais graves em humanos do que o resfriado comum.
Ao todo, sete coronavírus humanos (HCoVs) já foram identificados: HCoV-229E, HCoV-OC43, HCoV-NL63, HCoV-HKU1, SARS-COV (que causa síndrome respiratória aguda grave), MERS-COV (que causa síndrome respiratória do Oriente Médio) e o, mais recente, novo coronavírus (que no início foi temporariamente nomeado 2019-nCoV e, em 11 de fevereiro de 2020, recebeu o nome de SARS-CoV-2). Esse novo coronavírus é responsável por causar a doença COVID-19.” Disponível em: <https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19> Acesso em 19 jun. de 2022.
[14] LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Processo, Novas Tecnologias e Pandemia. In CARVALHOSA, Modesto; KUYVEN, Fernando (Coords.). Impactos Jurídicos e Econômicos da COVID-19. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 324/325.
[15] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil. Vol. 1. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 395
Mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Advogado formado pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU (2009). Cursou Extensão em Direito Imobiliário Material e Processual pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU (2010). Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (2013). Cursou especialização em Direito do Entretenimento no Instituto Internacional de Ciências Sociais (2015).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALEX CARLOS CAPURA DE ARAúJO, . O pragmatismo jurídico no processo civil brasileiro, a pandemia da covid-19 e os reflexos causados na audiência judicial tradicional que resultaram na implantação da audiência síncrona online Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58822/o-pragmatismo-jurdico-no-processo-civil-brasileiro-a-pandemia-da-covid-19-e-os-reflexos-causados-na-audincia-judicial-tradicional-que-resultaram-na-implantao-da-audincia-sncrona-online. Acesso em: 04 dez 2024.
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