RESUMO: O tema do presente trabalho é a eficácia das decisões do STF que, alterando entendimento anteriormente firmado, tragam situação mais gravosa em matéria criminal. O objetivo é analisar se a mudança de orientação jurisprudencial pode ser aplicada retroativamente em desfavor do indivíduo. A pesquisa envolveu análise doutrinária sobre interpretação da lei penal e o princípio da legalidade penal. Também foram analisados três julgados do STF sobre o tema.Ao final, se concluiu que, aos fatos cometidos anteriormente à mudança jurisprudencial, não é válida a aplicação de nova interpretação mais gravosa, por ser contrária aos princípios constitucionais da legalidade penal e da segurança jurídica.
Palavras-chave: princípio da legalidade. lei penal. interpretação. irretroatividade.
INTRODUÇÃO
O tema do presente trabalho é a eficácia das decisões do Supremo Tribunal Fedeal (STF) que, alterando entendimento anteriormente firmado, tragam situação mais gravosa em matéria criminal. O objetivo é pesquisar sobre interpretação da lei penal, o princípio da legalidade penal – em particular, o corolário da lex praevia – e os efeitos da mudança jurisprudencial, para se responder à pergunta de pesquisa: A mudança de orientação jurisprudencial pelo STF pode ser aplicada retroativamente em desfavor do indivíduo? A hipótese é a de que o princípio constitucional da legalidade penal impede que se dê eficácia retroativa à nova interpretação se trouxer qualquer espécie de repercussão criminal gravosa. A pesquisa foi executada sob o enfoque da dogmática jurídica, portanto, com utilização preponderante do método dedutivo.
Foi utilizado o método indutivo na parte do trabalho em que foi necessária a análise de casos concretos julgados pelo STF. A análise dos julgados selecionados, entretanto, não tem o condão de concluir que a solução dada ao Tribunal seja tendência jurisprudencial.
Para responder a pergunta, será examinado o conteúdo do princípio da legalidade penal e a existência de garantia à irretroatividade de interpretação da lei que prejudique o indivíduo.
Antes de mais nada, é necessária a observação feita por Castanheira Neves (1995, p. 365) de que o problema só poderá considerar-se relativamente às “correntes jurisprudenciais” e, sobretudo, perante a jurisprudência estabilizadas dos supremos tribunais[1], porque não é viável verificar decisões isoladas de inúmeros tribunais ou de juízos singulares.
Sobre o princípio em questão, considerando que a submissão dos três Poderes a um ordenamento jurídico é o que legitima a atuação estatal, tem-se que o princípio da legalidade é indissociável do próprio Estado de direito.
O sentido moderno do princípio ocorre com as revoluções liberais burguesas do século XVIII, que representaram a ascensão da burguesia contra os Estados absolutistas.
Dotado de consectários diferentes conforme a relação jurídica a que se refere[2], não se afasta da ideia geral de “império da lei” (force de loi), prevista no art. 4º da Declaração de Direitos de 1789[3]. No Brasil, o art. 5º, II, da Constituição resume o conteúdo do princípio ao prever que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Em relação ao direito penal, está entre os mais relevantes previstos na Constituição. Isso porque o reconhecimento de todas as garantias constitucionais do acusado passa pela exigência de que não há crime nem pena sem que haja prévia cominação legal.
A sistematização dogmática do princípio se deu com Anselm von Feuerbach, em 1801, segundo o qual a finalidade do direito penal é tutelar interesses a partir da ameaça de uma pena caso o direito subjetivo decorrente daqueles fosse violado. Tais ideias baseiam a teoria da coação psicológica (BRANDÃO, 2014, p. 65).
Feuerbach foi o responsável por articular as três fórmulas latinas de nulla poena sine lege; nulla poena (legalis) sine crimen e nullum crimen sine poena legali[4], posteriormente reunidas na conhecida expressão nullum crimen, nulla poena sine lege que, ao contrário do que se difunde, não consta da obra do professor alemão (BATISTA, 2007, p. 66).
Característica dos regimes democráticos nascidos das ideias liberais, apenas deixou de figurar: a) em ordenamentos jurídicos marcados por hipertrofia estatal, “em que a defesa de um sistema político, de um partido, de uma classe social, exige uma ordem penal que se tem chamado autoritária”; ou b) como forma de transição para um ordenamento jurídico sem normas incriminadoras tipificadas, sem parte especial e sem dosimetria de penas, a exemplo da União Soviética, cujo conceito elástico de crime abrangia “ação socialmente perigosa”; e da Alemanha nazista, em relação ao “são sentimento do povo” (BRUNO, 1967, p. 194).
Sem muita divergência na doutrina, o princípio depende da existência de lei escrita, prévia, certa e estrita.
1. Interpretação e direito penal
A interpretação extensiva pretende corrigir uma formulação literal estreita demais, ampliando o alcance que a interpretação gramatical atribuiria à norma jurídica. Há conflito entre a literalidade e a teleologia da norma.
Se diferencia da analogia, porque esta é permitida quando um caso não é contemplado por dispositivo legal, enquanto aquela pressupõe que o caso está compreendido na regulamentação jurídica (FERRARA, 1987, p. 162).
Na interpretação extensiva, o aplicador se utiliza do sentido comum do texto da norma jurídica, avaliando os significados literais aptos a englobar todos os supostos de fato admitidos, ou seja, se a situação a ser juridicamente regulada é suscetível de abrangência pela interpretação da norma com abrangência, ainda que mínima, ao enunciado ou fórmula verbal (PELUSO, 2016, p. 165).
É possível utilizar a interpretação extensiva em direito penal, mesmo em desfavor do acusado. Tal ocorre porque a conduta vai ser abarcada pela norma gravosa a partir do estabelecimento do sentido desta, mais amplo que o textual. Nesse caso, a interpretação leva à conclusão de que a conduta está proibida porque afeta negativamente o interesse que a norma penal tutela.
Fausto Giunta (2001, p. 449) se refere a uma crise na legalidade não só na realidade legislativa[5], mas também na legalidade como princípio. Segundo ele, os primeiros sinais dessa crise recrudescem e referem-se à dimensão formal da legalidade, considerada, além de necessário instrumento de certeza e igualdade, um limite à necessidade de tutela estabelecido tanto em relação ao surgimento de novos bens jurídicos quanto em relação a novas agressões de bens já anteriormente tutelados.
Sobre isso, cita o caso da tutela penal do ambiente no final dos anos de 1960, cuja falta de amparo adequado gerou interpretação jurisprudencial de mérito, reconhecida mais como violação patológica de limite de tutela do que como tutela da liberdade individual. Isso decorreu de uma interpretação das fattispecie com o objetivo de torná-las aplicáveis aos fatos para os quais não tinham sido previstas[6] (GIUNTA, 2001, p. 449).
Afirma que esse desvio da legalidade contou com o apoio de autorizada doutrina. Com isso, o uso alternativo do direito, foi teorizado como instrumento de afirmação de uma nova ideologia contra a ideologia burguesa cristalizada na legalidade "formal". Legalidade e interpretação (ou poder político e Poder Judiciário), representavam, já naquele contexto, realidades antinômicas. Assim, apesar de a doutrina penalista insistir no seu valor de imprescindível garantia, aos olhos do jurista-intérprete, a legalidade passou a representar um obstáculo a ser superado e, de fato, muitas vezes o foi por meio de interpretações denominadas evolutivas, em nome da necessidade de integrar lacunas de tutela, às vezes não desejadas, mas em todos os casos oriundas do legislador (GIUNTA, 2001, p. 449).
Ressalta o aspecto de a jurisprudência ter conseguido eficazmente chamar a atenção sobre a defasagem da legislação sobre esse ponto, dando impulso, ainda que tardio, a uma nova sensibilidade social. Mas adverte que uma nova legalidade surgiria a partir das cinzas de uma outra legalidade negada, vale dizer, emergindo sobretudo de uma visão crítica da legalidade de que não há valor em si mesma, mas cujo valor depende de seus conteúdos. E isso responde, no âmbito de um debate que não é inédito, às contínuas flutuações ora a favor e ora contra a legalidade. Com efeito, para muitos, a legalidade foi desdobrada: a legalidade que tem dignidade de valor é sobretudo aquela que consagra escolhas de tutela coletiva. A outra legalidade, na melhor das hipóteses, é entendida como uma degeneração do estado de direito (GIUNTA, 2001, p. 449).
Ao avanço do Poder Judiciário na atividade legislativa, Giunta atribui responsabilidade ao legislador, que delegou a solução dos conflitos sociais ao poder discricionário do juiz[7].
Os direitos fundamentais, reconhecidos pela experiência histórica do constitucionalismo, configuram “leis do mais fraco” (la ley del más débil) como uma alternativa à lei do mais forte que governaria na sua ausência.
Assim, tem-se que o direito à vida e à integridade pessoal são por excelência a “lei dos mais fracos” contra a lei dos que são fisicamente mais fortes. Assim também os direitos de liberdade, contra a arbitrariedade e a opressão quem é politicamente mais forte. Assim como os direitos sociais, que são direitos de sobrevivência que compensam a lei de quem é mais forte social e economicamente.
A atividade interpretativa do magistrado contém inegável potencial criativo, mas se limita pelo texto da norma, tendo em vista que é a partir deste que se dá a atuação, sendo certo que não lhe cabe de forma exclusiva a tipificação de condutas.
Há, portanto, dois extremos: a atividade restrita à tradução da “vontade da lei” e a atividade absolutamente livre do intérprete.
Ambos não são válidos, porque a atividade interpretativa deve se postar em situação harmônica com o restante do ordenamento jurídico, respeitando os limites legalmente impostos. Para que haja essa harmonia, a taxatividade inserida no princípio da legalidade não pode ser tornada inócua a partir do abuso de conceitos jurídicos indeterminados e a ampla margem valorativa agregada ao intérprete (FÖPPEL, 2009, p. 210)
Sobre isso, a imprecisão inerente à linguagem não pode ser evitada pelo legislador. Tal imprecisão, principalmente, na área criminal deve ser reduzida pela teoria dos precedentes jurisprudenciais obrigatórios, que decorrem da solução de problemas concretos, verificados no mundo real (MENDONÇA, 2020b, p. 236).
Hart atribui à textura aberta dos enunciados normativos a existência de casos difíceis (hard cases). Para ele, em todas as regras há uma “zona de foco”, ou seja, casos que certamente são ou não regulamentados por determinada norma jurídica. Há, todavia, uma “zona de penumbra”, ou seja, casos nos quais há incerteza ou ambiguidade na aplicação da norma.
As formas de interpretação não podem eliminar estas incertezas, pois elas próprias se utilizam de termos que exigem interpretação, e assim, não possuem objetividade. Em tais casos, a margem de discricionariedade do juiz se amplia no procedimento de aplicar o direito.
Uma das críticas do não-positivista Ronald Dworkin a Hart, aliás, é a ênfase dada por este ao poder discricionário do juiz de decidir de uma maneira ou de outra quando uma ação judicial específica não puder ser submetida a uma regra clara de direito. Dworkin (2002, p. 127) rejeita essa tese e considera que, conquanto nenhuma norma regule um dado caso, o magistrado tem o dever de descobrir qual é o direito das partes ao invés de inventar novos direitos e aplicá-los retroativamente.
A principal preocupação de Dworkin é afastar a possibilidade da edição, por parte do juiz, de leis novas, ex post facto, desconsiderando, desse modo, direitos individuais pré-existentes.
Enrique Bacigalupo, que exerceu o cargo de magistrado no Tribunal Supremo da Espanha, conclui que, naquele país e em outros da Europa, o princípio da legalidade constitui uma garantia fundamental, mas de difícil aplicação em razão das cobranças da sociedade para que a justiça material prevaleça sobre a segurança jurídica em casos extremos. Segundo ele, a convicção social de que certas ações devem ser sancionadas mesmo que houvesse insuficiente previsão legislativa, frequentemente, serviria para que opinião pública se voltasse contra os tribunais quando adotavam pontos de vista estritos em relação às exigências do princípio da legalidade (BACIGALUPO, 1999, p. 72).
Acrescenta que os próprios tribunais devem exercer um estrito autocontrole que impeça o transbordamento da interpretação das leis penais, principalmente relacionadas às proibições da analogia e da aplicação retroativa da lei. Conclui que, nessa tarefa, o trabalho da teoria do direito penal terá, sem dúvida, um valor inestimável, marcando os limites dos textos legais (BACIGALUPO, 1999, p. 73).
De uma forma ou de outra, o conjunto de vertentes do princípio da legalidade penal constitui critério delimitador e responsável por garantir o respeito à liberdade do indivíduo, porque só autoriza a imposição de penalidades a partir da prática de comportamentos expressamente proibidos e não apenas por agir de maneira reprovável.
2. Lei prévia
Embora aplicação do princípio da legalidade penal tenha se alterado bastante desde as suas primeiras formulações, permanece sendo importante garantia do indivíduo ao arbítrio estatal.
A garantia à liberdade trazida pelo princípio da legalidade depende do prévio conhecimento, mesmo que presumido[8], das condutas prescritas. Possibilitar a edição de lei que criminalizasse ato praticado em momento anterior esvaziaria a proteção dada pelo instituto em questão.
Assim, tem-se como corolário o princípio da anterioridade da lei penal ou da proibição de retroatividade da lei penal incriminadora ou mais gravosa (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia), com previsão nos incisos XXXIX e XL do art. 5º da Constituição[9].
A proibição de retroatividade é de fundamental importância para a segurança jurídica na defesa contra eventuais arroubos incriminatórios. Não é incomum se verificar forte pressão política sobre o legislador para introduzir ou agravar as previsões de pena, visando responder a atos que causem comoção diferenciada.
Dessa maneira, impedir que se legisle ad hoc em matéria penal sobre caso pretérito, muitas vezes com o intuito de vingança, é uma exigência irrenunciável do Estado de Direito.
Da vedação à irretroatividade da lei penal incriminadora ou mais severa, se deduz a ultratividade da lei anterior mais benéfica, cuja vigência é estendida para regular todos os atos que ocorreram antes da sua revogação.
Quanto à lei penal no tempo, além das situações já tratadas, outras hipóteses merecem destaque.
A primeira é a do abolitio criminis, quando lei posterior deixa de criminalizar conduta anteriormente tipificada.
Por motivos de política criminal, o legislador pode excluir uma conduta do rol dos crimes. Quando o faz, declara inexistir lesividade social daquele comportamento, deixando de existir razão que justificasse a manutenção da sanção penal.
Assim, se alguém foi condenado por uma conduta, mas, após algum tempo, o legislador muda o texto legal, deixando de considerar a conduta como ilícito penal, por óbvio que se trata de uma nova lei penal mais benéfica, e estando dentro deste mandamento constitucional, deverá retroagir.
Com o mesmo fundamento, tem-se que a lei a agravadora (lex gravior) da situação do acusado só tem aplicação possível aos fatos ocorridos posteriormente a sua vigência, enquanto a norma de mitigação (lex mitior) tem efeito retroativo.
A sucessão de leis no tempo em matéria penal, portanto, não envolve propriamente um conflito entre lei nova e lei velha, mas entre lei mais benigna e lei mais gravosa, conflito que se resolve, ao contrário do que ocorre em matéria civil, que possui critérios próprios de solução de antinomias, pela identificação da lex mitior[10].
Em resumo, a lei penal é extrativa, ou seja, podendo ultrapassar o seu limite de vigência ou retroagir para um período em que não era válida, desde que, em ambas as situações, ela seja mais benéfica (PEREIRA, 2012, p. 165).
Destaque-se que nem mesmo as leis destinadas a esclarecer ou corrigir dubiedades de outras podem retroagir em desfavor do réu. Se o próprio legislador concluiu que lei anterior (interpretada ou emendada) era de difícil entendimento ou continha erro no seu texto, não se pode exigir do indivíduo que a tivesse compreendido segundo o pensamento que deixou de ser expresso com clareza e exatidão.
Se uma mesma conduta, todavia, for tratada por duas normas penais sucessivas que tragam, cada uma, dispositivos mais benignos e mais gravosos em relação à outra, é possível fazer a combinação entre elas de modo a aplicar a disciplina mais favorável ao indivíduo?
A resposta negativa, ou seja, a de que é necessário escolher entre a lei antiga e a nova qual é a mais branda e aplicá-la no todo, sem combinação de qualquer natureza é dada por parcela da doutrina, dentre os quais é possível mencionar Hungria, Fragoso, Aníbal Bruno, Bento de Faria, Guilherme Nucci, Paulo José da Costa Júnior, Luiz Vicente Cernicchiaro, Manzini, Jiménez de Asúa, Fontán Balestra e Muñoz Conde (MALHEIROS FILHO, 2007, p. 377).
Essa orientação está baseada no argumento da lex tertia, segundo o qual, ao combinar preceitos de ambas as leis, o juiz estaria criando uma terceira lei, que não existe, e assim se arvorando em legislador.
De maneira contrária, se posicionam Basileu Garcia, Magalhães Noronha, Frederico Marques, René Dotti e Nilo Batista, ao afirmarem que a aplicação em conjunto das normas seria exercício de interpretação, plenamente possível de ser realizado pelo Judiciário, e não implicaria usurpação de função do legislador (MALHEIROS FILHO, 2007, p. 378).
No âmbito das duas Turmas do Supremo Tribunal Federal, a associação de normas sucessivas não foi declarada válida[11].
3. (Ir)retroatividade da interpretação mais gravosa
No presente capítulo será tratado se a proibição de retroatividade da lei mais gravosa também deve atingir as possíveis mudanças de orientação na jurisprudência incriminadora e punitiva que signifiquem imposição de solução jurídica que, no passado, não estava definida ou em que houve mudança.
Já se tratou da superação do ideário iluminista que equiparava o direito à lei, o que pressupõe o reconhecimento, pelo menos, da mediação normativa concretizadora da realização jurisdicional do direito e, desse modo, a relativa autonomia constitutiva dessa realização e da sua jurisprudência. Sendo assim, questiona-se se há a mesma exigência que se tem em relação à lei penal.
A retroatividade da mudança jurisprudencial em desfavor do processado poderia se justificar pelo fato de o valor de justiça poder ser arguido em face do valor segurança jurídica. Além disso, há doutrina segundo a qual não há conflito entre jurisprudências sucessivas, ou seja, um novo entendimento se aplica sempre a todos os processos novos, sem que se tome em consideração a data na qual os fatos do processo foram produzidos, mesmo que tais esses fatos sejam anteriores à modificação da jurisprudência[12] (SANGUINÉ, 2000, p. 145).
Segundo Sanguiné (2000, p. 145), os intérpretes que negam a irretroatividade aplicável à sucessão de leis penais às variações jurisprudenciais agravadoras posteriores à realização do fato punível, resumidamente, apresentam os seguintes argumentos:
a) que a nova jurisprudência tem efeito similar ao de uma nova lei, mas possuem funções diferentes;
b) que a jurisprudência não vincula da mesma maneira que a legislação, pois os tribunais não têm o poder de legislar e as alterações de entendimento apenas implicam correção da interpretação de uma vontade legislativa já existente no momento do fato;
c) que se diminuiria o poder de decisão dos tribunais sobre todo o âmbito delimitado pelo tipo.
Não obstante, em direito penal, a segurança e a confiança jurídicas fundamentam o princípio da legalidade penal e esses mesmos fundamentos justificam que a confirmação de um entendimento ou mudança de orientação jurisprudencial em desfavor do acusado apenas tenha efeitos prospectivos.
A doutrina, majoritariamente, entende que somente a lei escrita é fonte do direito penal incriminador[13]. Todavia, conquanto não seja considerada fonte formal do direito penal não há dúvidas quanto à influência exercida pela jurisprudência do STF para muito além dos limites do caso julgado (DOTTI, 2016, p. 252).
Para que a lei penal possibilite a criminalização ou agravamento da reprimenda, exige-se que seja:
a) escrita – porque o costume ou outra fonte do direito não permite o conhecimento assertivo da proibição;
b) prévia – porque a criminalização posterior de um fato serve como instrumento do “direito penal do indivíduo” ao invés do “direito penal do fato”, ambiente em que inexiste qualquer garantia contra o poder punitivo do Estado;
c) certa – porque a vagueza do texto da lei pode permitir que haja arbítrio no processo de interpretação;
d) estrita – porque o uso de recursos de integração de lacunas – em particular a analogia – faz com que uma situação concreta não prevista pela lei gravosa seja por esta abarcada.
É regra de hermenêutica que, onde há a mesma razão, se aplica o mesmo direito. No caso, todos os corolários do princípio da legalidade se relacionam à garantia do indivíduo de poder precisar, com certa segurança, que seu agir não é ilegal. Não seria, portanto, diferente quando se tratasse de mudança de interpretação que envolvesse risco à liberdade do indivíduo.
A garantia da irretroatividade fundamenta o "princípio da confiança", segundo o qual o indivíduo deve saber quais são as consequências de seus atos e o Estado se compromete a assegurar a confiança do cidadão em face de imprevisíveis alterações legislativas suscetíveis de aplicação retroativa. A base da proibição da retroatividade da norma mais gravosa se encontra na ideia de segurança jurídica, isto é, na proteção da confiança de todos em que os limites da liberdade estejam marcados de antemão de um modo vinculante e possam ser lidos em qualquer momento nas leis (SANGUINÉ, 2000, p. 147).
Pelos mesmos motivos, a jurisdição está sujeita ao princípio da irretroatividade, que vige para as leis penais, para que o indivíduo não se veja surpreendido por uma nova interpretação jurisprudencial que ele não podia prever (SANGUINÉ, 2000, p. 147).
Em síntese, a proibição de retroatividade encontra seu fundamento último na "garantia de liberdade" e "igualdade" dos indivíduos frente ao poder punitivo, com que se "protege a confiança" de que o Estado não dispensará tratamento arbitrário ao indivíduo (SANGUINÉ, 2000, p. 158).
Desse modo, a proibição da retroatividade da lei penal em prejuízo do réu deve ser entendida em sentido amplo, abarcando também a jurisprudência[14] (DOTTI, 2016, p. 253).
No STF, entretanto, não há uniformidade sobre a questão, conforme se observa da análise de três casos em que a retroatividade da interpretação mais gravosa foi objeto de discussão.
4. Análise de casos
4.1 Caso Ellwanger
Siegfried Ellwanger, então editor e autor de livros em que se defendiam ideias antissemitas, teve habeas corpus denegado pelo STJ, após condenação pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em decorrência da prática do crime de racismo[15].
Segundo o impetrante, o paciente não havia cometido o crime de racismo e, portanto, não se aplicava a norma de imprescritibilidade prevista no art. 5º, XLII, da CF.
Em seguida, foi impetrado o HC n. 82.424 junto ao Supremo Tribunal Federal.
O debate envolvia duas questões centrais que precisavam ser resolvidas pelos ministros (DISSENHA; MARTINS, 2020, p. 388). A primeira delas tratava dos limites do direito à liberdade de expressão e se as manifestações antissemitas seriam protegidas constitucionalmente como exercício regular daquele direito. Será analisada a segunda, referente ao racismo em manifestações antissemitas, por estar contemplada pelo objeto deste estudo.
Segundo a parte impetrante, os judeus não poderiam ser caracterizados como raça para fins de criminalização de racismo e que a discriminação, no caso, não seria abrangida pela imprescritibilidade[16], própria do preconceito baseado em raça ou cor.
O remédio constitucional foi denegado por maioria pelo STF, devendo-se destacar que os votos vencidos não negavam a prática de discriminação, mas indicavam que não existia preconceito de raça e, por consequência, crime de racismo.
O ministro Moreira Alves, relator inicialmente designado, votou para conferir interpretação restritiva ao conceito de racismo. Em seu voto, foi acompanhado pelo ministro Marco Aurélio Mello que destacou o risco de se admitir um tipo penal exageradamente aberto e imprescritível.
O fundamento principal do voto do ministro Moreira Alves é a necessidade de não expandir a ideia de raça em razão do princípio da legalidade penal. Foi essa forma de pensar que orientou o voto - e não questões de raça - e segue a lógica de um direito penal mínimo (DISSENHA; MARTINS, 2020, p. 391).
O Tribunal, entretanto, por maioria, rejeitou o remédio impetrado, porque a expressão “raça” não se esgotaria em um perfil meramente biotípico ou relacionado à cor e poderia abranger qualquer grupo social composto de seres humanos.
Ao firmar um novo paradigma para a Lei de Racismo[17], um conceito social de racismo, o STF entendeu que tal interpretação já se aplicaria ao caso e, portanto, retroagiria para manter a condenação do paciente.
O julgamento não tratou de mudança jurisprudencial, tendo sido o primeiro caso em que se tratou do conceito social de racismo.
4.2 Criminalização da homofobia
O segundo caso é o do julgamento conjunto da ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão (ADO) n. 26 e do mandado de injunção (MI) n. 4.733 pelo STF.
Na ocasião, o Plenário do Tribunal concluiu que havia omissão por parte do Congresso Nacional em cumprir o mandado de criminalização constante do art. 5º, XLI, da Constituição e, fundado no conceito social de racismo do Caso Ellwanger, equiparou práticas homofóbicas a atos de racismo para enquadrá-los nos tipos penais da lei n. 7.716/89.
Ocorre que, cinco anos antes, em 2014, a Primeira Turma do STF rejeitou a denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República em desfavor de deputado federal no âmbito do inquérito n. 3.590[18]. Na ocasião, a peça acusatória tipificou como racismo a publicação de mensagem reputada homofóbica em rede social.
O Tribunal, entretanto, concluiu que o artigo 20 da Lei n. 7.716/89 versa sobre discriminação e preconceito relacionados a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, não contemplando a discriminação decorrente de orientação sexual.
Assim, em razão do princípio da legalidade em matéria criminal, não haveria crime na conduta imputada ao deputado federal por proferir declarações discriminatórias.
No julgamento conjunto da ADO 26 e do MI 4733 de 2019, o STF, ao alterar o entendimento, determinou que os efeitos da decisão teriam efeitos prospectivos.
Tem-se, desse modo, que a interpretação do Tribunal - que equiparou atos de homofobia a racismo - apenas teria aplicação às condutas ocorridas após a conclusão do julgamento.
Nesses termos é o voto do ministro Luís Roberto Barroso[19]:
O âmbito de incidência da norma, a definição do crime e a fixação da pena são pré-existentes.
Apesar disso, como a interpretação que ora se fixa não é a prevalecente até o momento, penso que, como decorrência do princípio da segurança jurídica, não deve retroagir em prejuízo de possíveis réus. Por isso, essa decisão deve ser aplicada apenas a condutas praticadas após a conclusão deste julgamento.
Percebe-se que o princípio da segurança jurídica, o mesmo que ampara o corolário da lex praevia, serviu de fundamento para a solução da questão da retroatividade posta a julgamento.
4.3 Injúria racial e racismo
Por fim, destaca-se o julgamento do HC 154.248[20] pelo STF.
No caso, a paciente foi condenada em primeiro grau pela prática do crime de injúria qualificada pelo preconceito (art. 140, § 3º, do Código Penal). A condenação foi confirmada em segunda instância.
Alegando prescrição da pretensão punitiva intercorrente, a discussão foi levada ao Superior Tribunal de Justiça, o qual concluiu que o crime de injúria racial é “imprescritível” e “inafiançável”. Assim, impetrou habeas corpus perante o STF, pleiteando a concessão de ordem para declarar a extinção da punibilidade.
O Plenário da Corte, todavia, concluiu que o crime de injúria racial reuniria todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424 (Caso Ellwanger), seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
Ainda segundo o julgado, a distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 (racismo) e o art. 140, § 3º, do Código Penal (injúria racial) não teria o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol previsto na legislação extravagante não é exaustivo. Em face disso, concluiu que o crime de injúria racial é imprescritível.
O único voto vencido foi o do ministro Nunes Marques[21], segundo o qual:
A gravidade do delito não pode servir para que o Poder Judiciário amplie as hipóteses de imprescritibilidade previstas pelo legislador nem altere o prazo previsto na lei penal. A regulação legal dos fatos definidos como crime e das hipóteses de extinção de sua punibilidade é matéria de reserva legal nos Estados Democráticos de Direito e garantia dos indivíduos em face do poder de império estatal. Tanto é assim, que a lei penal não pode retroagir, a não ser em benefício do réu (CF, art. 5º, XL). Com efeito, a interpretação extensiva de uma hipótese de imprescritibilidade pelo Poder Judiciário, de forma transversa, retroage em malefício do cidadão acusado de algum delito, violando-se, outrossim, essa garantia.
Por fim, concluiu o ministro que a interpretação extensiva de uma hipótese de imprescritibilidade pelo Poder Judiciário, de forma transversa, retroage em malefício do cidadão acusado de algum delito, violando-se, outrossim, a garantia da reserva legal.
Em pesquisa realizada no programa de busca de julgados do site do STF[22], com os parâmetros “injúria” e “prescrição” e “racismo”, houve apenas dois resultados, o do processo ora abordado e o HC 86.542[23], em que se decidiu que o crime de injúria racial não estava prescrito em razão da pena em abstrato, não havendo debate sobre a imprescritibilidade em qualquer caso.
Não se pode falar, portanto, em mudança de jurisprudência.
CONCLUSÃO
Não há dúvidas de que a forma de difusão dos julgados do STF vem crescendo nos últimos anos. A multiplicidade de canais de divulgação permite que mais pessoas tenham acesso aos entendimentos do Tribunal.
A jurisprudência possui importante papel na delimitação das normas incriminadoras e a mudança de entendimento pela Suprema Corte a respeito de uma matéria possui semelhança com uma alteração legislativa.
Em matéria criminal, em que o princípio da estrita legalidade proíbe a retroatividade da lei mais gravosa, o inciso XL do art. 5º da Constituição encontra fundamento no princípio da confiança ou pelo princípio da segurança jurídica.
Admitir a proibição de retroatividade com base nesses princípios e acolher que a concretização da lei se dá de um modo preciso pela jurisprudência impõe, dessa maneira, a proibição de retroatividade à jurisprudência gravosa, tal qual à lex gravior.
Ao final, por mais que haja divergência na jurisprudência, a hipótese de pesquisa foi confirmada e se concluiu que, aos fatos cometidos anteriormente à mudança jurisprudencial, não é válida a aplicação de nova interpretação mais gravosa, por ser contrária ao princípio constitucional da legalidade penal e à segurança jurídica.
Embora não se possa generalizar a conclusão dos três julgados analisados, apenas naquele em que houve uma mudança de entendimento sobre tema anteriormente decidido, se deu eficácia ex nunc.
REFERÊNCIAS
BACIGALUPO, Enrique. Principios constitucionales de derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 1999.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade e interpretação no direito penal. Revista Sequência, Florianópolis, n. 68., p. 59-89, jun. 2014.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Parte Geral. T. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
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[1] No Brasil, considerando o papel de uniformização da interpretação da legislação federal desempenhado pelo Superior Tribunal de Justiça, também a jurisprudência desse órgão deve ser considerada para os fins ora tratad Herbert Hart admite que a interpretação no direito, pela própria natureza da linguagem, nem sempre é unívoca. Isso porque as normas possuem uma “zona de foco de certeza positiva” e uma “zona de foco de certeza negativa”, entre as quais se identifica uma zona cinzenta de possibilidades interpretativas na qual o intérprete ou o aplicador exerce discricionariedade na escolha do sentido. Essas zonas de foco podem mudar ao longo do tempo, correspondendo ao que o autor denomina de textura aberta da norma (HART, 2001, p. 142).
[2] No âmbito do direito administrativo, ao particular é permitido fazer tudo o que a lei não proíba; já à Administração Pública só é lícito fazer o que a lei autoriza, segundo o princípio da legalidade administrativa previsto no art. 37, caput, da Constituição. A legalidade também é um dos princípios constitucionais norteadores do direito tributário (art. 150), que se sobressai nos princípios da “reserva de lei”, da “anterioridade da lei” e da “irretroatividade da lei”.
[3] Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei.
[4] “De la precedente deducción se derivan los seguientes principios primeros del derecho punitivo: toda pena jurídica dentro del Estado es la consecuencia jurídica, fundada em la necesidad de preservar los derechos externos, de uma lesión jurídica y de uma ley que conmine um mal sensible.
De aquí surgen, sin excepción alguna, los siguientes principios derivados: I) Toda inposición de pena presupone uma ley penal (nulla poena sine lege). Por ende, sólo la conminación del mal por la ley es lo que fundamenta lo concepto y la posibilidad jurídica de uma pena; II) La imposición de uma pena está condicionada a la existencia de la acción conminada (nulla poena sine crimine). Por ende, es mediante la ley, como se vincula la pena al hecho, como presupuesto juridicamente necesario; III) El hecho legalmente conminado (el presupuesto legal) está condicionado por la pena legal (nullum crimen sine poena legali). Consecuentemente, el mal, como consecuencia jurídica necesaria, se vinculará mediante la ley a uma lesión jurídica determinada (FEUERBACH, 2007, p. 55-56)
[5] O professor da Faculdade de Direito de Florença destaca a hipertrofia do Direito Penal, a decadência da técnica de formulação da norma incriminadora e a heterointegração da norma penal, por meio de outras fontes como exemplos (2001, p. 448).
[6] Cita o tipo penal de danneggiamento di opere destinate all'irrigazione (art. 635, 2, n. 4) e a contravenção de getto pericoloso di cose (art. 674 do Código Penal italiano), utilizada para abranger a emissão de poluentes (2001, p. 449).
[7] “Pode soar irreverente dizer que a legalidade foi traída pelo legislador; é necessário, no mínimo, admitir que ela não foi adequadamente salvaguardada pelo legislador, no momento em que consentiu que a garantia da jurisdição não se acrescentasse, mas se substituísse, àquela da legalidade” (2001, p. 451).
[8] Segundo o Código Penal:
Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.
Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.
[9] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; (...) XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
[10] A regra geral da retroatividade da lei benéfica possui exceção expressa no art. 3º do Código Penal, quanto às leis excepcionais e temporárias. Essa exceção se justifica porque as circunstâncias de prazo (lei temporária) e de emergência (lei excepcional) são elementos temporais do próprio fato típico. Nessas hipóteses, caso aplicada a regra geral da não ultratividade da lei mais severa, seria inócua a tipificação.
[11] Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES (ART. 12 DA LEI N. 6.368/76). PRETENSÃO DE INCIDÊNCIA RETROATIVA DA MINORANTE PREVISTA NO § 4º DO ART. 33 DA LEI N. 11.343/06 SOBRE A PENA COMINADA NO ART. 12 DA LEI 6.368/76 (ART. 5º, INC. XL, DA CONSTITITUIÇÃO FEDERAL). IMPOSSIBILIDADE DE MESCLAR PARTES FAVORÁVEIS DE LEIS CONTRAPOSTAS NO TEMPO, SOB PENA DE SE CRIAR, PELA VIA DA INTERPRETAÇÃO, UM TERCEIRO SISTEMA (LEX TERTIA). USURPAÇÃO DE FUNÇÃO LEGISLATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI EM SUA INTEGRALIDADE, COM O QUE RESTA ATENDIDO O PRINCÍPIO DA RETROAÇÃO DA LEI BENÉFICA. CONCESSÃO DA ORDEM, EM PARTE, PELO STJ PARA QUE O TJ/RS EXAMINASSE O CASO CONCRETO E APLICASSE, EM SUA INTEGRALIDADE, A LEI MAIS FAVORÁVEL. MINORANTE DA LEI N. 11.343/2006 NEGADA PELA CORTE ESTADUAL EM RAZÃO DE O PACIENTE OSTENTAR MAUS ANTECEDENTES, EMERGINDO FAVORÁVEL A FIXAÇÃO DA PENA COMINADA NA LEI N. 6.368/76. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. A minorante do § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 não incide sobre a pena cominada no art. 12 da Lei n. 6.368, posto não ser possível mesclar partes favoráveis de normas contrapostas no tempo para criar-se um terceiro sistema (lex tertia) pela via da interpretação, sob pena de usurpação da função do Poder Legislativo e, em consequência, de violação do princípio da separação dos poderes. 2. A aplicação da lei mais favorável, vale dizer a Lei n. 6.368/76, sem a minorante do § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/06, ou a novel Lei de Entorpecentes, com a minorante do § 4º de seu art. 33, atende ao princípio da retroatividade da lei benéfica, prevista no art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal, desde que aplicada em sua integralidade. 3. In casu, o acórdão impugnado, perfilando o entendimento acima, concedeu parcialmente a ordem para determinar ao TJ/RS que verificasse qual a lei mais favorável, a Lei n. 6.368/76, vigente à época dos fatos, ou a Lei n. 11.343/06, com a minorante prevista no § 4º de seu art. 33, sendo certo que a Corte estadual entendeu inaplicável a minorante da novel Lei de Entorpecentes sob o fundamento de que o paciente não preenche os requisitos exigidos, porquanto ostenta maus antecedentes, emergindo mais benéfica a Lei n. 6.368/76, cuja pena mínima cominada é de 3 (três) anos, contrastando com a pena de 5 (cinco) anos cominada no art. 33 da Lei da Lei n. 11.343/06. 4. Deveras, o § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/2006 estabelece que “Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”, a evidenciar o acerto da decisão do Tribunal de Justiça ao negar a aplicação da referida minorante, face à circunstância de que o paciente ostenta maus antecedentes. Por isso a pertinente anotação do Ministério Público Federal de que “diante dos registros de maus antecedentes do paciente, que cumpre pena de 30 (trinta) anos de reclusão, pela prática dos delitos de furto, estupro e tráfico de drogas, a aplicação do art. 33 da Lei 11343/06 na integralidade lhe seria desfavorável, uma vez que incabível a minorante do § 4º do art. 33 da referida lei”. 5. Ausência de constrangimento ilegal. 6. Ordem denegada (HC 107583, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 17/04/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 31-05-2012 PUBLIC 01-06-2012).
HABEAS CORPUS. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTE. CRIME COMETIDO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 6.368/76. RETROATIVIDADE DO § 4º DO ART. 33 DA LEI Nº 11.343/06. COMBINAÇÃO DE LEIS. INADMISSIBILIDADE. PRECEDENTE DO STF. PACIENTE QUE OSTENTA MAUS ANTECEDENTES. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS. ORDEM DENEGADA. 1. A paciente foi condenada à pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, pela prática da conduta tipificada no art. 12, caput, c/c o art. 18, I, ambos da Lei 6.368/76. 2. Requer o impetrante a concessão da ordem de habeas corpus para a aplicação retroativa da causa de diminuição de pena prevista no § 4º, do art. 33, da Lei nº 11.343/06. 3. O Supremo Tribunal Federal tem entendimento fixado no sentido de que não é possível a combinação de leis no tempo. Entende a Suprema Corte que agindo assim, estaria criando uma terceira lei (lex tertia). 4. Com efeito, extrair alguns dispositivos, de forma isolada, de um diploma legal, e outro dispositivo de outro diploma legal, implica alterar por completo o seu espírito normativo, criando um conteúdo diverso do previamente estabelecido pelo legislador. 5. No caso concreto, ainda que se entendesse pela aplicação da Lei nº 11.343/06, não se encontram presentes os requisitos do § 4º do art. 33 do referido diploma legal, visto que, de acordo com as informações de fls. 34/36, a paciente ostenta maus antecedentes, por ter cumprido pena de 1 (um) ano por fraude bancária na África do Sul. 6. Diante do exposto, denego a ordem. (HC 96430, Relator(a): ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 09/12/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-05 PP-00891).
[12] “A nova interpretação não é uma punição ou agravamento retroativo, mas a realização de uma vontade da lei, que sempre existiu, mas que só agora tem sido corretamente reconhecida” (ROXIN, p.165-166)
[15] A conduta foi praticada quando vigente a redação original da Lei de Racismo (lei n. 7.716/89), relacionada a preconceito apenas de raça e cor.
[16] O paciente fora condenado, em segunda instância, a dois anos de reclusão, o que importava a prescrição da pretensão punitiva em quatro anos, interstício esse superado entre data de recebimento da denúncia, em 14/11/1991, e o acórdão proferido em 31/10/1996.
[17] Que posteriormente ao crime foi alterada para - além de raça e cor – englobar discriminação baseada em etnia, religião ou procedência nacional
[18] STF. Primeira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Mello. Julgamento: 12/08/2014. Publicação: Acórdão eletrônico - DJe-177, 12/09/2014.
[20] STF. Plenário. Rel. Min. Edson Fachin. Julgado em 28/10/2021. Publicação: Acórdão eletrônico - DJe-036, 23/02/2022.
[23] STF. Segunda Turma. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Julgado em 07/02/2006. Publicação: DJ 03/03/2006.
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Juiz Federal Substituto.Pós-graduado em Direito Processual pela Universidade da Amazônia - UNAMA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARAIVA, Marcos Antonio Maciel. A retroatividade da interpretação mais gravosa e o princípio da legalidade penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2022, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58985/a-retroatividade-da-interpretao-mais-gravosa-e-o-princpio-da-legalidade-penal. Acesso em: 22 nov 2024.
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