LUCAS FERNANDES DE MORAIS VIDOVIX[1]
(Coautor)
RÔNISON APARECIDO DOS SANTOS[2]
(Coautor)
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a Lei de Migração (Lei n. 13.455) aprovada em maio de 2017, em contraposição ao antigo diploma normativo que trata de questões de imigração, nomeadamente de Estatuto do Estrangeiro. Destaca os avanços e melhorias alcançados no âmbito dos direitos humanos, chamando a atenção para os desafios e ameaças com relação à regulamentação da nova lei, que demonstra algumas contradições entre a Lei de Migração e o Decreto n. 9.199/2017.
Palavras-chave: Lei de Migração. Direitos Humanos. Estatuto do Estrangeiro. Imigrantes. Desafios.
ABSTRACT: The present work aims to analyze the Migration Law (Law n. 13.455) approved in May 2017, in opposition to the old normative diploma that deals with immigration issues, namely the Foreigner Statute. It highlights the advances and improvements achieved in the field of human rights, drawing attention to the challenges and threats in relation to the regulation of the new law, which demonstrates some contradictions between the Migration Law and Decree n. 9.199/2017.
Keywords: Migration Law. Human rights. Alien Statute. immigrants. Challenges.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Sobre o Estatuto do Estrangeiro. 3. A Lei de Migração (Lei n. 13.455/2017): avanços e melhorias no campo dos direitos humanos. 4. Os desafios da Lei de Migração. 4.1 O impacto dos vetos presidenciais. 4.2 A regulamentação da Lei de Migração (Decreto n. 9.199/2017). 5. Considerações finais. 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O fenômeno da migração, apesar de não ser recente, tem produzido alguns desenvolvimentos em nível estadual, seja no campo político, social, econômico ou jurídico. No Brasil, a matéria sobre a situação jurídica do estrangeiro foi concebida em uma lei formulada durante a ditadura militar, e a lógica da lei baseava-se na segurança nacional. No entanto, essa situação foi modificada com a edição da Lei n. 13.445, aprovada em maio de 2017, incluindo a Lei de Migração brasileira, com base na proteção dos direitos humanos.
Importante destacar que a nova Lei revela a preocupação do Estado brasileiro com a migração, e que alguns aspectos dela precisavam ser regulamentados por lei. A cada ano aumenta o número de imigrantes que procuram uma qualidade de vida superior à do seu país de origem, mas, em contrapartida, as pessoas têm notado que os mecanismos de segurança e a eficácia dessa escolha não têm crescido na mesma proporção.
No passado, o Brasil não adotou medidas efetivas para proteger os direitos dos imigrantes, pois a Lei n. 6.815/1980 que tratava dos estrangeiros resistia à rígida burocracia, herdeira do opressor passado militar (ZAMBERLAM, 2004).
Com o aumento da chegada de um grande número de imigrantes e refugiados ao Brasil, muitos deles em situação de extrema vulnerabilidade, percebe-se que as leis vigentes de imigração praticamente tornam impossível a permanência de imigrantes e refugiados no Brasil e a sua integração social e econômica. A partir disso, foi sentida a necessidade de novos regulamentos.
Entretanto, a lei que deu um grande passo à frente e está na vanguarda dos direitos humanos foi distorcida devido à aprovação do decreto, que vetou importantes pontos da Lei, dificultando a entrada e a permanência de imigrantes no país. Destaca-se que a maioria dos vetos viola a própria lei.
Diante dessa situação, é necessário compreender o papel do Brasil no acolhimento e na garantia dos direitos dos migrantes e analisar o quadro jurídico e institucional sobre o tema.
2 SOBRE O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO
As disposições sobre a nacionalidade estão previstas na Constituição de 1988, assim, o indivíduo que não constava no rol descrito do art. 12 da Carta Magna, seja como brasileiro nato ou naturalizado, era considerado estrangeiro, e a sua situação jurídica encontrava-se prevista na Lei n. 6.815 de 1980, o conhecido Estatuto do Estrangeiro.
Tal Estatuto foi criado no período do governo do general João Batista Figueiredo, e “pautava a política migratória brasileira, cujo fundamento era a segurança nacional – o Estado tinha como pretensão proteger-se do imigrante” (MORAES, 2017, p. 36). Cabe ressaltar que a Lei n. 6.815/1980 foi concebida no período em que o Estado brasileiro era conduzido por militares.
A lei enumera seus princípios norteadores em seu art. 2º: “Na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, socioeconômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional” (BRASIL, 1980, online). Portanto, é possível entender a imigração como um perigo potencial para a segurança nacional e uma ameaça ao emprego para os cidadãos brasileiros.
Este também é o entendimento de Oliveira (2017, p. 170), o qual afirma que:
A migração internacional no Brasil era regulada até então por normas legais implementadas no período do Regime Militar, nas quais o imigrante era visto como uma ameaça à “estabilidade e à coesão social” do país, predominando, portanto, o enfoque da segurança nacional, que deveria manter de fora das nossas fronteiras aqueles que “pretendiam vir causar desordem em nossas plagas”.
O referido Estatuto estipulava uma burocracia complexa para os imigrantes, sem estabelecer direitos – apenas regulava a imigração, a deportação e a extradição.
De acordo com a interpretação das disposições legais do Estatuto do Estrangeiro, os direitos civis dos imigrantes estavam lesados, tendo em vista a proibição de exercerem atividades políticas, como previsto em seu art. 107:
Art. 107. O estrangeiro admitido no território nacional não pode exercer atividade de natureza política, nem se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil, sendo-lhe especialmente vedado:
I – organizar, criar ou manter sociedade ou quaisquer entidades de caráter político, ainda que tenham por fim apenas a propaganda ou a difusão, exclusivamente entre compatriotas, de ideias, programas ou normas de ação de partidos políticos do país de origem;
II – exercer ação individual, junto a compatriotas ou não, no sentido de obter, mediante coação ou constrangimento de qualquer natureza, adesão a ideias, programas ou normas de ação de partidos ou facções políticas de qualquer país;
III – organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza, ou deles participar, com os fins a que se referem os itens I e II deste artigo.
Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica ao português beneficiário do Estatuto da Igualdade ao qual tiver sido reconhecido o gozo de direitos políticos (BRASIL, 1980, online).
Durante décadas, o entendimento geral desse dispositivo não mudou: os estrangeiros não podiam se envolver em atividades políticas ou interferir nos assuntos internos do Brasil.
O Estatuto do Estrangeiro, extremamente conservador, restringia a liberdade dos imigrantes dentro do território brasileiro, sendo caracterizados como indivíduos inferiores em comparação aos cidadãos do país, evidenciado em seu art. 106:
Art. 106. É vedado ao estrangeiro:
I – ser proprietário, armador ou comandante de navio nacional, inclusive nos serviços de navegação fluvial e lacustre;
II – ser proprietário de empresa jornalística de qualquer espécie, e de empresas de televisão e de radiodifusão, sócio ou acionista de sociedade proprietária dessas empresas;
III – ser responsável, orientador intelectual ou administrativo das empresas mencionadas no item anterior;
IV – obter concessão ou autorização para a pesquisa, prospecção, exploração e aproveitamento das jazidas, minas e demais recursos minerais e dos potenciais de energia hidráulica;
V – ser proprietário ou explorador de aeronave brasileira, ressalvado o disposto na legislação específica;
VI – ser corretor de navios, de fundos públicos, leiloeiro e despachante aduaneiro;
VII – participar da administração ou representação de sindicato ou associação profissional, bem como de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada;
VIII – ser prático de barras, portos, rios, lagos e canais;
IX – possuir, manter ou operar, mesmo como amador, aparelho de radiodifusão, de radiotelegrafia e similar, salvo reciprocidade de tratamento;
X – prestar assistência religiosa às Forças Armadas e auxiliares, e também aos estabelecimentos de internação coletiva. [...] (BRASIL, 1980, online).
Percebe-se que as características do revogado Estatuto do Estrangeiro são incompatíveis com o espírito de um país democrático de direito. Além de que, conflitava com os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte e com os princípios democráticos e as garantias básicas estabelecidas na Constituição Federal de 1988.
Para Oliveira (2017, p. 173), “a política migratória no Brasil vivia o paradoxo de conviver com um marco regulatório baseado na segurança nacional em plena ordem democrática”. Ademais, o Estatuto do Estrangeiro, “além de ultrapassado na dimensão política, acabava por estagnar a tomada de decisões com vistas a acolher e integrar os imigrantes”.
Após anos de mobilização, a Lei de Migração foi sancionada (Lei n. 13.445/2017), marcando um grande avanço, isso porque o Estatuto do Estrangeiro transpassava uma visão negativa, retrógrada e discriminatória sobre o imigrante, vendo-o como um invasor ao interesse nacional.
3 A LEI DE MIGRAÇÃO (LEI N. 13.455/2017): AVANÇOS E MELHORIAS NO CAMPO DOS DIREITOS HUMANOS
No dia 24 de maio de 2017, foi sancionada a Lei n. 13.445/2017, conhecida como a Lei de Migração, que revogou expressamente a Lei n. 6.815/1980, o Estatuto do Estrangeiro. A ideia de que os estrangeiros, por exclusão, eram identificados como todos aqueles que não se enquadravam na categoria de nacionais, sofreu profunda mudança a partir do momento em que a Lei n. 13.445/2017 entrou em vigência. A referida lei trata dos direitos e das obrigações dos imigrantes e visitantes brasileiros, regulamenta a entrada e residência de estrangeiros e estabelece normas de proteção aos brasileiros no exterior.
A Lei de Migração também confirmou mudanças na nomenclatura substituindo o termo estrangeiro, a fim de eliminar o estigma associado à imigração, conforme dispõe em seu art. 1º:
Artigo 1º Esta Lei dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.
§ 1º Para os fins desta Lei, considera-se:
I. (VETADO);
II. imigrante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil;
III. emigrante: brasileiro que se estabelece temporária ou definitivamente no exterior;
IV. residente fronteiriço: pessoa nacional de país limítrofe ou apátrida que conserva a sua residência habitual em município fronteiriço de país vizinho;
V. visitante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que vem ao Brasil para estadas de curta duração, sem pretensão de se estabelecer temporária ou definitivamente no território nacional;
VI. apátrida: pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, ou assim reconhecida pelo Estado brasileiro (BRASIL, 2017, online).
Diferentemente do Estatuto do Estrangeiro, a Lei de Migração trata o imigrante como um sujeito de direitos e garante, em todo o território nacional, condição de igualdade com os nacionais, salvaguardando o princípio da isonomia, presente no artigo 5º do texto constitucional. Representa um grande avanço na legislação dos direitos humanos dos imigrantes, na qual a Constituição de 1988 é o grande marco legal, extinguindo, assim, os resquícios jurídicos da ditadura militar. Nesse ambiente de “redemocratização do país, a Constituição de 1988 foi capaz de permitir a saída de um regime autocrático e intolerante para um Estado democrático de direito” (BARROSO, 2013, p. 268).
Silva (2005, p. 190) afirma que “não somente os direitos individuais presentes no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 são conferidos aos estrangeiros residentes no país, mas também os sociais e coletivos”. Extrai-se daí a incompatibilidade do referido Estatuto com a melhor interpretação do texto da Carta Magna.
Entre as principais alterações introduzidas pela Lei de Migração, incluem-se a redução da burocracia no processo de regularização migratória, a política de vistos humanitários, além de conceder uma série de direitos que antes não existiam.
Nessa ideia de efetivação da dignidade humana dos imigrantes, a Lei de Migração rejeita a xenofobia, o racismo e qualquer forma de discriminação, considerados uma violação dos direitos humanos, previsto em seu art. 3º, inciso II. Além disso, outra novidade trazida é o combate à criminalização dos imigrantes, como dispõe o inciso III (BRASIL, 2017). Pode-se inferir daí que o imigrante não é visto como uma ameaça ao Estado, mas como uma pessoa com direitos, sendo-lhe devido o amplo acesso à justiça e à assistência jurídica. Tais previsões são cruciais, pois o Estatuto do Estrangeiro não mencionava o direito dos imigrantes ao acesso à justiça, o que é incoerente com o texto constitucional.
A Lei trata ainda, no art. 3º, inciso XI, da “garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória” (BRASIL, 2017, online), diferentemente da Lei n. 6.815/1980, em que o imigrante era tratado com uma ameaça ao emprego dos cidadãos brasileiros. Em uma interpretação de acordo com a Constituição de 1988, as regras que discriminam as pessoas que entram no país para trabalhar são inconstitucionais.
Outra inovação legislativa importante é a recepção humanitária por meio da emissão de vistos específicos ou autorização de residência e a proteção aos apátridas. Nesse caso, a legislação brasileira garante à pessoa apátrida interessada nessa proteção, após processo de reconhecimento da sua condição, obter uma autorização de residência permanente no Brasil, e poderá optar voluntariamente por um procedimento simplificado e rápido de naturalização brasileira.
Ademais, o artigo 4º da Lei n. 13.455/2017 garante a inviolabilidade da vida, liberdade, igualdade, segurança e direitos de propriedade, em condição de igualdade com os brasileiros. Estipula direitos básicos, como o direito de reunião para fins pacíficos, o direito de associação, incluindo os direitos sindicais, o direito à educação pública, entre outros.
Assim, os princípios da Lei de Migração são a universalidade dos direitos humanos, a exclusão e prevenção da xenofobia, racismo e qualquer forma de discriminação à migração. Além de alcançar a inclusão social, a trabalhista e o acesso às políticas públicas, também garante igualdade de tratamento e oportunidades para os imigrantes.
4 Os desafios DA Lei de Migração
A Lei de Migração foi saudada por seu caráter avançado em comparação ao revogado Estatuto do Estrangeiro. Contudo os principais desafios se traduziram no enfrentamento dos vetos da Presidência da República e na regulamentação da Lei.
4.1 O impacto dos vetos presidenciais
O Presidente da República em exercício na época, Michel Temer, vetou trechos da nova Lei. Os vetos foram, entre outros: a definição de migrante, pois o conceito estava ampliado ao incluir o imigrante, o emigrante, o residente fronteiriço e o apátrida (inciso I do § 1º do art. 1º); a anistia para migrantes sem documentos que entraram no país até 6 de julho de 2016, ao conceder autorização de residência, entre outros (OLIVEIRA, 2017).
Primeiro dos vetos que se destaca diz respeito ao conceito de migrante antes disposto no inciso I, § 1º do art. 1º da Lei de Migração:
Art. 1º [...]
I – migrante: pessoa que se desloca de país ou região geográfica ao território de outro país ou região geográfica, incluindo o imigrante, o emigrante, o residente fronteiriço e o apátrida. [...].
Ao vetar a definição de migrante, cria-se uma lacuna nas normas, pois certas disposições da própria Lei de Migração envolvem o termo migrante, especialmente o art. 4º, que enumera os seus direitos. Gomes (2018, p. 22) assevera que
[...] o fato de haver interpretações a respeito de quem é ou deixa de ser migrante “abre espaço para discriminações para com estrangeiros” visto que será possível “estabelecer categorias distintas entre estes (os residentes que terão direitos iguais aos nacionais, e os demais, que poderão não os ter)”.
Outro dispositivo importante envolve o art. 118, que concedia anistia a imigrantes que ingressaram no Brasil até julho de 2016, independentemente de sua condição migratória. Assim, prescrevia o art. 118 da Lei de Migração:
Art. 118. Será concedida autorização de residência aos imigrantes que, tendo ingressado no território nacional até 6 de julho de 2016, assim o requeiram no prazo de 1 (um) ano após a entrada em vigor desta Lei, independentemente de sua situação migratória prévia.
Mayer, Souza e Cruz (2017, p. 5) salientam que
A anistia constitui meio para a garantia de que os direitos humanos de migrantes indocumentados sejam protegidos, devido ao caráter universal de tais direitos e ante a circunstância de o art. 5 da Constituição Federal, em sua literalidade, garantir a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade apenas a brasileiros e estrangeiros residentes no País.
É sabido que a falta de medidas de anistia migratória dificultou o processo de inserção dos migrantes na sociedade brasileira. O objetivo do dispositivo era ajudar a regularizar os imigrantes que fizeram contribuições ao Brasil e se estabeleceram aqui, mas ainda não têm documentos, em grande parte devido aos entraves do Estatuto do Estrangeiro.
A centralidade dos vetos justificou-se por entrar em conflito com o interesse público e por razões de segurança e, portanto, envolver a soberania nacional. Alguns desses vetos foram alvo de críticas por parte da comunidade jurídica brasileira, que os interpretou como violações dos propósitos humanísticos da Lei, uma vez que reafirmam uma força conservadora que orienta muitas das decisões do país.
4.2 A regulamentação da Lei de Migração (Decreto n. 9.199/2017)
A regulamentação da Lei de Migração, que é um grande avanço na vanguarda dos direitos humanos, acabou sendo um tanto distorcida com a sanção do Decreto n. 9.199/2017, pois a expectativa da aplicabilidade integral da Lei não foi contemplada por meio desse texto legal, o qual veta pontos importantes, que em sua maioria vai na contramão da própria Lei.
A elaboração do referido Decreto foi criticada por “organizações da sociedade civil, organismos internacionais, acadêmicos, migrantes e refugiados que apontaram os poucos espaços de participação disponíveis ao longo do processo de elaboração do decreto” além da desarmonia entre o seu texto final e o conteúdo e espírito da nova Lei de Migração (BRASIL, 2018, p. 33).
O Decreto n. 9.199/2017 não levou em consideração as sugestões da sociedade civil e acrescentou pontos conflitantes, como, por exemplo, seu art. 211, que prevê a possibilidade de prisão ou outra medida cautelar, por solicitação da Polícia Federal, de imigrantes em situação irregular, o que contraria o disposto no art. 123 da Lei de Migração: “ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias” (BRASIL, 2017a, online).
De acordo com o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, a redação do Decreto “acaba indo em sentido contrário ao declarar, na seção que trata da efetivação das medidas de retirada compulsória, que o delegado da Polícia Federal poderá representar perante o juízo federal pela prisão ou por outra medida cautelar” (BRASIL, 2018, 37).
Ademais, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 7.2, prevê que “ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas” (CIDH, 1969, online).
Portanto, apenas a Lei, em sentido estrito, pode dispor sobre matéria penal e processual penal, e, por conseguinte, dispor sobre prisão, não se admitindo que qualquer outra espécie normativa o faça, o que inclui decretos regulamentares (FRANCO, 2020, p. 137).
Os críticos do Decreto também apontam que este possui omissões importantes que demandavam regulamentação, como o visto temporário para acolhida humanitária, previsto no art. 14, I, c e § 3º da Lei de Migração:
Art. 14. O visto temporário poderá ser concedido ao imigrante que venha ao Brasil com o intuito de estabelecer residência por tempo determinado e que se enquadre em pelo menos uma das seguintes hipóteses:
I - o visto temporário tenha como finalidade: [...]
c) acolhida humanitária; [...]
§ 3º O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento (BRASIL, 2017, online).
Portanto esperava-se que o Decreto n. 9.199/2017 regulamentasse esse tipo de visto temporário. No entanto, se limitaram a estipular que:
Art. 36. O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário.
§ 1° Ato conjunto dos Ministros de Estado da Justiça e Segurança Pública, das Relações Exteriores e do Trabalho definirá as condições, os prazos e os requisitos para a emissão do visto mencionado no caput para os nacionais ou os residentes de países ou regiões nele especificados. (grifo nosso) (BRASIL, 2017a, online).
Nesse caso, tais procedimentos podem atrasar ou burocratizar a concessão dos vistos. Tal se dá porque, nos termos da expressão “para os nacionais ou os residentes de países ou regiões nele especificados”, abre-se a possibilidade de cerceamento da concessão do visto tão somente aos casos previstos no caput do art. 36, citados anteriormente, o que vai de encontro ao princípio da acolhida humanitária, estabelecido no art. 3º, VI, da Lei de Migração, que não comporta restrições.
Além das disposições acima, o Decreto n. 9.199/2017, por fim, revela aspectos claramente contrários ao âmbito da Lei de Migração, aspectos que violam o espírito da lei, os princípios básicos estipulados pela Constituição e as obrigações e exigências morais dirigidos ao país, à sociedade e aos cidadãos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A nova Lei de Migração de 2017 foi uma necessidade decorrente do amadurecimento da sociedade e do Estado brasileiro na medida em que o antigo Estatuto do Estrangeiro de 1980 não atendia mais aos anseios vigentes. Nessa dimensão, o novo marco normativo representa avanços fundamentais para garantias de direitos e proteção da pessoa migrante, respaldados pelo espírito do Estado democrático de direito.
No entanto, apesar dos avanços nos direitos, muitos críticos acreditam que os vetos presidenciais marcam um retrocesso nos direitos humanos dos imigrantes, especialmente refugiados e apátridas, haja vista que colaboram no sentido de evidenciar a manutenção da soberania estatal sobre temas importantíssimos à modernização da legislação.
É fundamental que os direitos humanos sejam o centro de qualquer análise sobre migração, pois não há dúvida de que todo indivíduo possui características e atributos essenciais à sua dignidade humana e são invioláveis, que o torna titular de direitos fundamentais.
Apesar dos vetos, é importante destacar que a Lei de Migração representa um avanço normativo importante na solução do problema da imigração brasileira, pois não mais trata o imigrante como uma ameaça à segurança nacional, mas reconhece-o como um cidadão.
Entretanto, com relação aos desafios da regulamentação da Lei, destaca-se a falta de participação social no processo de elaboração do texto promulgado na forma do Decreto n. 9.199/2017, que em vários aspectos retoma uma visão discriminatória em relação aos migrantes, criando incongruências com dispositivos da legislação, e até mesmo com os preceitos constitucionais fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro.
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[1] Bacharel em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Bacharelando do curso de Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS) em Palmas/TO. Servidor Público efetivo do Município de Porto Nacional. E-mail: [email protected].
[2] Especialista em Direito Tributário pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). Bacharel em Engenharia de Alimentos pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Bacharelando do curso de Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS) em Palmas/TO. Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil (RFB).
Bacharelanda do curso de Direito pela Universidade Estadual do Tocantins – UNITINS em Palmas/TO. Especialista em Legislação Educacional pela UNITINS. Especialista em Docência de Ensino Superior pela Faculdade Suldamérica. Bacharel em Sistemas de Informação pelo Centro Universitário Luterano de Palmas, CEULP/ULBRA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, KATIA GOMES DA. O efeito da lei de migração sobre o estatuto do estrangeiro: a humanização da condição jurídica do estrangeiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 ago 2022, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59006/o-efeito-da-lei-de-migrao-sobre-o-estatuto-do-estrangeiro-a-humanizao-da-condio-jurdica-do-estrangeiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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