Resumo: O presente artigo tem como objetivo tratar sobre a violência obstétrica buscando dar enfoque à importância da tipificação dessa conduta no Código Penal. Busca realizar uma análise qualitativa dos institutos jurídicos de combate à violência de gênero e explicitar a necessidade de maior atenção da União Federal quanto às peculiaridades presentes nos casos de violência obstétrica, com observância das características e dos direitos das gestantes, parturientes e puérperas no ambiente médico-hospitalar.
Palavras-Chave: Violência Obstétrica. Tipificação. Código Penal. União Federal. Direitos das Gestantes, Parturientes e Puérperas. Ambiente Médico-Hospitalar.
Abstract: This article aims to deal with obstetric violence, seeking to focus on the importance of typifying this conduct in the Penal Code. It seeks to carry out a qualitative analysis of the legal institutes to combat gender violence and to explain the need for greater attention from the Federal Union regarding the peculiarities present in cases of obstetric violence, with observance of the characteristics and rights of pregnant, parturient and postpartum women in the medical environment.
Keywords: Obstetric Violence. Typifying. Penal Code. Federal Union. Rights of Pregnant, Parturient and Postpartum Women. Medical Environment.
Sumário: 1. Introdução. 2. Os direitos das mulheres gestantes, parturientes e puérperas. 2.1. O princípio da igualdade e o direito à não discriminação. 2.2. O princípio da autonomia do paciente. 3. A violência obstétrica e suas formas. 3.1. Prática desnecessária de episiotomia. 3.2. Uso indiscriminado de ocitocina. 3.3. Imposição de cirurgia cesariana. 3.4. Prática da manobra de Kristeller. 4. A proteção jurídica de gênero das mulheres no Brasil. 4.1. A ausência de Lei Federal sobre violência obstétrica. 4.1.1. O caso Alyne v. Brasil. 4.2. As Legislações Estaduais sobre violência obstétrica. 4.3. O posicionamento das autoridades de saúde no Brasil. 4.4. O atual entendimento jurisprudencial. 5. Conclusão. 6. Referências.
1. Introdução.
O ciclo gravídico-puerperal é um dos momentos mais delicados na vida de uma mãe. Por isso, é indeclinável, em ocasiões como essa, a presença de uma assistência acolhedora, segura, qualificada, respeitosa e humanizada que oportunize o desenvolvimento saudável da mãe e do feto. Entretanto, nos últimos anos, tem se tornado cada vez mais comuns relatos de pacientes que foram destratadas, humilhadas e violadas de diferentes formas dentro do ambiente médico-hospitalar.
As mulheres são vítimas de xingamentos, ameaças, discriminações raciais e socioeconômicas, agressões físicas e torturas psicológicas por parte de profissionais da saúde. Segundo o levantamento “Nascer no Brasil” realizado pela Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), 45% (quarenta e cinco por cento) das mulheres brasileiras que utilizam o Sistema Único de Saúde (SUS) são vítimas de violência obstétrica (VO), enquanto na rede privada esse índice é de 30% (trinta por cento).
A violência obstétrica é uma ramificação da violência de gênero e é considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma ofensa aos direitos humanos. Esse tipo de violação pode se dar de diversas maneiras: negligência, omissão do atendimento, tratamento hostil, ameaças, gritos, humilhação intencional, assédio sexual, estupro, intervenções no parto contraindicadas, indução de cirurgia cesariana, proibição do direito ao acompanhante, uso excesso de medicamentos, entre outras.
A falta de informação e o medo de perguntar são um dos principais fatores para a perpetuação da violência obstétrica. É comum que as mulheres aceitem algumas condutas por não possuírem conhecimento suficiente sobre o assunto e, assim, estão inaptas a associar que certos tipos de comportamento caracterizam violência e devem ser notificados às autoridades competentes.
É comum também que médicos e enfermeiros mintam sobre o real estado de saúde da paciente com o intuito de induzir à processos mais céleres. Assim, há uma grave perda de autonomia das mulheres que, nessas situações, não conseguem decidir sobre seus corpos com a clareza necessária.
Os dados brasileiros sobre violência obstétrica assustam. O Brasil é um dos líderes do ranking mundial de cirurgias cesarianas com cerca de 55%, quando o recomendado pela OMS é de 10 a 15%. Em 2021, a cada 100 mil nascimentos, 107 mães morreram durante ou após o parto por causas consideradas evitáveis. No mesmo ano, cerca de 12,4% a cada mil recém-nascidos não sobreviveram ao parto.
Em um recorte social ampliado, constata-se que mulheres negras, pobres, adolescentes, sem acompanhante ou sem pré-natal, prostitutas, usuárias de drogas, em situação de rua ou de encarceramento são ainda mais expostas a esses tipos de violações. Ou seja, o ambiente médico-hospitalar não está imune às discriminações interseccionais de forma que a palavra das vítimas ser ouvida se torna uma tarefa árdua.
Apesar de no Brasil já existirem institutos jurídicos de proteção aos direitos das mulheres, é importante observar que as condutas que caracterizam violência obstétrica e as peculiaridades do estado físico e psicológicos das gestantes, parturientes e puérperas não se aproximam das condutas tipificadas no Código Penal.
Por isso, é imprescindível que esse tema tenha mais visibilidade e possa ser tratado como um problema de saúde pública mundial. No Brasil, é essencial que haja mais estudos sobre o assunto, de modo a reivindicar os direitos fundamentais das mulheres através da tipificação concreta de tal instituto e a consequente responsabilização dos envolvidos.
2. Os direitos das mulheres gestantes, parturientes e puérperas.
2.1. O princípio da igualdade e o direito à não discriminação.
A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, dispõe que todos possuem o direito de receber o mesmo tratamento, vedando situações de discriminações ou diferenciações seja por etnia, raça, gênero, cor, orientação sexual ou situação socioeconômica. Logo, há uma clara tentativa da norma constitucional de diminuir as diferenças entre a população.
No que concerne os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, apesar de na teoria haver mecanismos que combatam o tratamento desigual, na prática ainda há uma enorme subjugação derivada da cultura patriarcal e que deságua nos abusos obstétricos.
A máxima do princípio da igualdade é que os iguais devem ser tratados de forma igual e os desiguais devem receber tratamentos desiguais nas medidas de suas desigualdades. Mas o que se percebe nos ambientes médico-hospitalares é um ataque à dignidade das mulheres, principalmente as negras e pobres.
Apesar dos pequenos avanços quando comparado com épocas passadas, ainda é visível atualmente a instrumentalização de mulheres que, infelizmente, não estão sendo protegidas em sua completude pelo Governo Federal.
2.2. O princípio da autonomia do paciente.
No contexto da ética médica, para que haja autonomia, ou seja, capacidade de se autogovernar é preciso que exista conhecimento sobre os objetivos e as consequências de determinada ação. Isso significa que só é possível que um paciente consinta de forma livre e esclarecida sobre um procedimento ou atitude se houver informação suficiente ao alcance dele.
É certo que a nível de tecnicidade não é possível equiparar a capacidade entendimento de um paciente leigo com a de um profissional da área de saúde. Mas é necessária a criação de um ambiente informativo que trate dos pontos importantes dos procedimentos com os pacientes, de forma a dá-los o direito de escolha.
É inadmissível, em qualquer contexto, que um paciente seja persuadido ou até mesmo engano para que o tratamento realizado seja aquele da escolha do médico. É preciso que se reforce o papel do paciente como agente principal de seu próprio tratamento e não como mero coadjuvante, que se encorajam as perguntas e o poder de decisão com base em suas próprias crenças e valores.
O Código de Ética Médica Brasileiro em seus artigos 22, 24 e 31 dispõe que “é vedado ao médico deixar de obter consentimento do paciente ou se seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado; deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo; e desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. Ou seja, é obrigação ética do médico adotar o modelo participativo e valorizar a autonomia do paciente.
No contexto obstétrico não é diferente. As mulheres possuem o direito de serem informadas sobre os riscos e vantagens de todas os procedimentos disponíveis e possibilidades de parto. No entanto, não é incomum relatos de mulheres que foram obrigadas e coagidas a realizar certos tipos de condutas que não possuíam conhecimento cristalino e específico sobre, por conta de uma simples comodidade médica.
Por isso, é urgente que se dê prioridade à maior qualidade de interação entre a parturiente e seus cuidadores, de forma a favorecer a autonomia da mulheres antes, durante e após o trabalho de parto, fornecendo informações coerentes, claras e embasadas em evidências científicas para que haja uma escolha consciente.
3. A violência obstétrica e suas formas.
O termo “violência obstétrica” (VO) é relativamente novo e pouco explorado. É, de certo, um problema recorrente, mas que não é bastante difundido na sociedade por conta da perpetuação da cultura e dos costumes patriarcais.
A violência obstétrica pode ser entendida como o desrespeito à mulher, à sua autonomia, ao seu corpo e aos processos reprodutivos durante a gestação, o parto e o pós-parto. Essas violações podem se manifestar de forma verbal, física, sexual, pela adoção de intervenções e procedimentos não autorizados, desnecessários e/ou sem evidência científica.
Existem algumas maneiras mais explícitas de condutas que manifestam abusos dentro do ambiente hospitalar, como xingamentos, humilhações, discriminações e violações de cunho sexual.
Mas a violência obstétrica também pode se dar de formas mais mascaradas e até invisíveis aos olhos das gestantes e da população em geral. Alguns exemplos são: episiotomia e ocitocina sem necessidade, imposição de cirurgia cesariana, manobra de Kristeller, proibição de acompanhante ou doula, negativa de analgesia ou anestesia, privação de contato com o bebê após o nascimento, entre outras. Por essa razão, é necessário que o olhar jurídico se volte especificamente para os abusos procedimentais no ambiente hospitalar.
3.1. Prática desnecessária de episiotomia.
A episiotomia é um corte cirúrgico no períneo – conjunto de músculos próximos a vulva e ao ânus – com o intuito de ampliar a passagem do bebê no parto. Segundo pesquisa realizada pela FIOCRUZ em 2011, no Brasil a prática rotineira de episiotomia chega a 53,5% em todo o país e em quase 75% das primíparas.
A própria passagem do bebê pelo canal vaginal é capaz de causar lacerações na musculatura da região. Sendo assim, é desnecessário que, propositalmente, os médicos realizarem lacerações grau 2 nas mulheres, que possuem alta possibilidade de complicações, como o surgimento de hematomas e infecções, sem que a situação caracterize extrema urgência.
Já em 1996, a OMS classificava a episiotomia como uma prática prejudicial e desnecessária que deveria ser extinta. No entanto, os índices no Brasil continuam alarmantes.
3.2. Uso indiscriminado de ocitocina.
A ocitocina é um hormônio produzido pelo hipotálamo. No parto, ela é usada na sua forma sintética para acelerar e abreviar o processo, de forma a aumentar a intensidade das dores e das contrações do útero.
A administração indiscriminada dessa substância em partos que evoluem normalmente ou se a dose for excessiva leva a um superestímulo uterino com a possibilidade de causar sofrimento fetal e até morte. A OMS também já se posicionou sobre essa prática não a recomendando. Apesar disso, a pesquisa “Nascer no Brasil” aponta que em 38,2% dos partos foi utilizada a ocitocina, mesmo o risco sendo considerado habitual.
3.3. Imposição de cirurgia cesariana.
Sabe-se que a cirurgia cesariana é um alternativa ao parto vaginal que deve ser recomendada em casos específicos de urgência. Dados divulgados pelo Ministério da Saúde mostraram que a taxa de operação cesariana chegou a 56% em 2015, sendo 40% no sistema público e 85% na rede privada.
Esse número excessivo é considerado alarmante quando se leva em conta que a recomendação da OMS é de uma taxa de cesáreas que atinja no máximo 15% da população geral.
Essa epidemia de cesarianas no Brasil é uma tentativa perigosa de abreviação do trabalho de parto que acaba por retirar o poder de escolha das futuras mães, já que elas em sua maioria ocorrem de forma eletiva e sem fatores de risco que a justifiquem.
3.4. Prática da manobra de Kristeller.
A manobra de Kristeller consiste em uma técnica em que é realizada uma pressão externa no fundo uterino da mulher durante o período expulsivo. Esse mecanismo tem como objetivo encurtar o trabalho de parto, mas pode acabar causando danos maternos e fetais, por isso ele já foi banido pela OMS e pelo Ministério da Saúde.
Ressalta-se que não existem estudos que comprovem o uso benéfico da manobra e que, na verdade, ela está associada a inúmeras consequências irreversíveis para o binômio mãe-filho.
4. A proteção jurídica de gênero das mulheres no Brasil.
4.1. A ausência de Lei Federal sobre violência obstétrica.
No Brasil, não existe Lei Federal que regulamente a configuração ou não do crime de violência obstétrica. Atualmente, todos os atos que caracterizem abusos e violações sofridas por gestantes e parturientes são enquadrados em outros crimes já previstos no Código Penal, como a lesão corporal, a importunação sexual e a violência psicológica. No entanto, essas previsões legais não levam em conta a maior vulnerabilidade em que se encontram as mulheres grávidas.
Sabe-se que a violência de gênero é um problema que atinge o mundo todo. Isso ocorre por conta de uma cultura ofensiva e ultrapassada de que as mulheres estão inseridas em um contexto de inferioridade em relação aos homens. As violências decorrentes desse pressuposto obtiveram maior notoriedade pelo Poder Legislativo, que consignou previsão especial a esse tipo de crime através do sancionamento da Lei Maria da Penha.
Nesse aspecto, entendeu-se que as mulheres estão cercadas de vulnerabilidades sociais, culturais, econômicas e ideológicas que põem suas vidas em risco de forma constante e, por isso, necessitam de proteções jurídicas específicas voltadas a esse grupo. Segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, uma mulher foi vítima de feminicídio no Brasil a cada 7 (sete) horas, totalizando 1.319 (mil, trezentos e dezenove) mortes.
É nesse mesmo sentido que se insere a necessidade de uma observância cautelosa por parte da União no que concerne a violência obstétrica. É comum que, durante o ciclo gravídico-puerperal, as mulheres vivenciem mudanças nas dinâmicas física, biológica, psicológica e social que muitas vezes podem ser irreversíveis. Segundo estudo realizado em Londres, uma vez grávida, não é possível o retorno ao estado psicológico pré-gravídico. Logo, é possível dizer que se trata de um período de vulnerabilidade relativa, principalmente durante o último trimestre.
É exatamente por isso que os episódios de violência médico-hospitalar podem aumentar de forma exponencial nesse período e prejudicar de modo irreparável o binômio mãe-filho. Enquanto a mãe pode desencadear transtornos de comportamento, depressão, tendência ao suicídio, além de consequências físicas como deslocamento de placenta, rupturas prematuras de membranas e mutilação genital, o recém-nascido possui maior risco de aborto espontâneo, natimortalidade e morte perinatal ou então de nascer prematuramente e com baixo peso.
No ambiente hospitalar, uma em cada 4 (quatro) mulheres brasileiras que deram à luz em hospitais públicos ou privados relata algum tipo de agressão durante o parto, segundo pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo e pelo SESC. Tal dado se agrava quando é constatado que essas violações durante a assistência ao parto são tidas como invisíveis tanto para as gestantes quanto para os profissionais de saúde.
Na América Latina, dois países já possuem legislações que tipificam a violência obstétrica como delito, sendo eles Argentina e Venezuela. A partir disso, garante-se que as mulheres terão direito a um parto humanizado, que respeite seu tempo biológico e psicológico, evitando-se abusos, práticas invasivas e desnecessárias.
Portanto, fica claro que, para que as mulheres grávidas obtenham tutela efetiva e justa, caso venham a se tornar vítima de abusos no contexto obstétrico, é de extrema necessidade que se leve em consideração a maior vulnerabilidade que as permeia.
4.1.1. O Caso Alyne v. Brasil.
No caso Alyne v. Brasil julgado pelo Comitê CEDAW (Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher), o Brasil foi considerado culpado por violar o acesso à justiça e a obrigação do Estado de regulamentar atividades de provedores de saúde particulares e, também, por discriminação contra a mulher.
Em 2002, a brasileira Alyne da Silva Pimentel Teixeira, nascida no Rio de Janeiro, deu entrada em uma clínica particular apresentando sintomas de gravidez de alto risco. Apesar disso, foi orientada a voltar para casa. Dias depois, Alyne retornou à clínica pior e teve que se submeter a um parto induzido resultando em um feto natimorto. Apenas quatorze horas depois ocorreu cirurgia de extração da placenta, o que resultou na deterioração do estado de saúde de Alyne e, posteriormente, na sua morte. Quatro anos depois, a justiça brasileira nada havia feito.
O caso foi o primeiro no mundo sobre mortalidade materna evitável decidido por um órgão internacional e a responsabilização perante o Comitê levou o Brasil a ratificar documentos como o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna. É importante ressaltar que o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1992 e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1995.
No contexto do ato decisório, o Comitê CEDAW recomendou ao Estado brasileiro que garantisse que “sanções adequadas sejam impostas aos profissionais da saúde que violam o direito à saúde reprodutiva das mulheres”. Entretanto, a União Federal mantém-se inerte quanto a criação de mecanismos com punição efetiva.
4.2. As Legislações Estaduais sobre violência obstétrica.
Apesar da ausência de Lei Federal, o Distrito Federal e alguns estados brasileiros possuem legislações sobre esse instituto. Alguns abordam de forma explícita, utilizando propriamente o termo “violência obstétrica” e outros tratam sobre parto humanizado e políticas de atenção obstétrica e neonatal.
A primeira vez que o termo esteve presente em legislações brasileiras foi na Lei Municipal nº 3.363, de 1 de outubro de 2013, de Diadema/SP, que implantou medidas de informação com o intuito de proteger as gestantes e parturientes.
A Câmara Municipal do Rio de Janeiro, por sua vez, promulgou a Lei nº 6.898 de 18 de maio de 2021, oriunda do Projeto de Lei nº 1.148/2015 de autoria da Vereadora Verônica Costa. O artigo 3º da referida Lei discorre sobre 21 (vinte e uma) formas diferentes de configuração da violência obstétrica que podem ser exteriorizadas nas formas verbal ou física.
Já no Estado do Amazonas existe a Lei nº 4.749, de 3 de janeiro de 2019, que dispõe sobre parto humanizado e sobre o Plano de Parto Individual (PPI). A Lei descreve sobre o conceito do instituto, os princípios que o cercam e a forma como se dará os planos de partos na rede pública estadual e nos estabelecimentos conveniados.
É importante ressaltar que ambas são legislações extremamente recentes para um problema que pode e deve ser tratado como estrutural. Desde 1980 existem discussões no mundo todo sobre práticas consideradas tradicionais de assistência ao nascimento e que feriam os direitos humanos das mulheres. Isso fica claro quando em 1996 a Organização Mundial da Saúde (OMS) restringe o uso de algumas práticas específicas utilizadas durante o parto e, no Brasil, quando o Ministério da Saúde repudia a episiotomia de rotina e a Manobra de Kristeller em 2001.
Além disso, um ponto que deve ter maior atenção é que nenhuma das legislações estaduais que versam sobre o assunto preveem punições ou formas de reparações às vítimas, o que leva à um contexto de impunidade em massa. Ainda, as intervenções violentas realizadas por profissionais da saúde não são previstas como violência obstétrica, o que significa um enorme atraso na busca da efetiva punição dos responsáveis dentro do ambiente hospitalar.
4.3. O posicionamento das autoridades de saúde no Brasil.
O posicionamento das autoridades de saúde é de extrema importância para que o repúdio à violência obstétrica seja legitimado. Em 2014, a OMS se manifestou sobre o assunto e a reconheceu como questão de saúde pública, além de caracterizar os abusos, desrespeitos e maus-tratos como violação de direitos humanos.
Entretanto, o Brasil não seguiu o mesmo raciocínio. Em 3 de maio de 2019, o Ministério da Saúde, através da Secretaria de Atenção à Saúde, proferiu o Despacho SEI/MS nº 9087621 afirmou que “o termo “violência obstétrica” tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério”.
No mesmo sentido, o Conselho Federal de Medicina emitiu nota à impressa e à população pontuando que a expressão é inadequada, pejorativa, agressiva à comunidade médica e pode estimular conflitos entre pacientes e médicos nos serviços de saúde.
O perigo de desconsiderar a problemática da violência obstétrica de tal maneira é o descaso e menosprezo das vítimas, que não se sentem seguras em compartilhar e denunciar o que vivenciaram, fortalecendo a impunidade dos responsáveis e o desconhecimento da população em geral.
Exatamente por isso que os posicionamentos explicitados acima foram repudiados pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, através da Recomendação nº 5 de 9 de maio de 2019, e pelo Conselho Nacional de Saúde, por meio da Recomendação nº 024 de 16 de maio de 2019. Nesse âmbito, os órgãos pediram pela desconsideração dos entendimentos emitidos e que os processos de exclusão do termo sejam interrompidos.
Apesar disso, em 2022, durante o lançamento da Caderneta da Gestante, o Secretário da Atenção Primária do Governo Federal, Rafael Câmara Medeiros Parente, defendeu a prática da Manobra de Kristeller a definindo como “manobra extremamente suave”.
Ainda, em comparação com as cadernetas de anos anteriores, constata-se que foram retiradas informações importantes para as pessoas gestantes como sobre o plano de parto, acompanhamento das doulas e realização do exame diagnóstico de anemia falciforme, doença que atinge principalmente a população negra. Também foi normalizado o uso da ocitocina e da amniotomia, a prática da episiotomia e o impulso aos partos cesarianos.
É inadmissível que, mesmo com a popularização do tema através de discussões das autoridades internacionais e nacionais, o debate sobre violência obstétrica ainda seja pautado pelo neoconservadorismo, tendo sua existência seja negada pelo governo brasileiro. Mulheres no Brasil e no mundo necessitam urgente que as vivências de abusos em hospitais sejam identificadas e discutidas pelos órgãos oficiais de controle.
4.4. O atual entendimento jurisprudencial.
Um indicativo de que o termo “violência obstétrica” ainda sofre com patente invisibilidade é o fato de haver pouquíssimos resultados quando o termo é pesquisado nos Tribunais Superiores. Até agosto de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou apenas duas vezes casos que incluíssem o assunto em pauta. Já no Superior Tribunal de Justiça (STJ) não há nenhum acórdão sobre violações sofridas por mulheres durante o ciclo gravídico-puerperal, apenas decisões monocráticas.
Ainda, nas poucas ocasiões em que o assunto foi tratado, existem divergências nos entendimentos jurisprudenciais comparados ao entendimento da comunidade médico-científica quanto ao que pode ser classificado ou não como violência obstétrica.
No Agravo em Recurso Especial nº 2.083.701/DF, por exemplo, foi julgado caso de uma genitora que foi privada de ter contato com seu recém-nascido na primeira hora de vida dele pelos médicos responsáveis pelo parto. No âmbito do recurso, o STJ entendeu que a situação não caracteriza falha na prestação de serviço, muito menos violência obstétrica. Isso porque, supostamente, não houve dano passível de reparo, apesar da comunidade médica entender o primeiro contato entre mãe e bebê é crucial para o desenvolvimento das competências afeto-emocionais.
Já na Apelação Cível nº 0001314-07.2015.8.26.0008, caso semelhante foi julgado em que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entendeu que a negativa de contato com o filho após o nascimento caracteriza abalo psicológico in re ipsa na genitora. Na oportunidade, o relator ainda enfatizou que o direito ao parto humanizado é direito fundamental.
Em aspectos gerais, cerca de 88,5% das ações que versam sobre violações sofridas por mulheres dentro de hospitais e clínicas são de natureza cível, sendo que grande parte delas se encaixa nos critérios caracterizadores de erro médico e não propriamente de violência obstétrica.
É necessário enfatizar também que estudos apontam que 73,91% dos pedidos formulados em primeira instância entre 2016 e 2019 foram julgados improcedentes pelo TJSP, tendo pouca diferença em sede de segundo grau com uma taxa de 78,26% pedidos improcedentes. Esses dados demonstram que ainda há uma enorme dificuldade de reconhecimento da violência obstétrica, da responsabilidade civil objetiva dos médicos e da necessidade de reparação dos danos.
Ainda, quando se trata da responsabilidade criminal dos profissionais obstétricos o assunto é praticamente inexistente. São raros os julgados que resultaram na criminalização das ações danosas no âmbito hospitalar, a não ser as que geraram a morte da mãe ou do feto.
Sendo assim, a integridade física e psicológica das mulheres ainda se encontram em alto risco, seja pela conduta dos obstetras, seja pelos entendimentos legais e jurisprudenciais.
5. Conclusão.
O enfrentamento da problemática da violência obstétrica no Brasil deve começar a ser tratado com urgência. A OMS já reconhece a mortalidade materna e infantil como desafio de saúde pública, mas as autoridades brasileiras ainda insistem em não tratar sobre tema da forma adequada e recomendada pelos órgãos de saúde internacionais.
É preciso o reconhecimento da existência dessas violações, da vulnerabilidade relativa das mulheres gestantes, parturientes e puérperas, do não absolutismo das decisões médicas e da necessidade de atuação eficaz do Governo Federal, enfatizando, inclusive, as diferenças sociais, econômicas, raciais e territoriais presentes na população brasileira e como elas podem agravar as situações abusivas vivenciadas no âmbito obstétrico.
O que acontece hoje, infelizmente, é a insistência em invisibilizar a prática dessas violações, trazendo não só um retrocesso nas políticas públicas, mas uma séria ameaça à saúde e um extremo perigo à integridade física da mulher.
Ao dar autonomia e voz às mulheres não se retira a autonomia do médico. Na verdade, é criado um ambiente acolhedor que possibilita a maior qualidade na assistência obstétrica. O objetivo da divulgação do instituto da violência obstétrica não é transformar os profissionais da saúde em vilões e sim desmistificar o que está por trás de alguns processos considerados comuns, mas que trazem danos irreparáveis para a vida da mãe e do bebê.
É imprescindível que a União Federal dê a devida visibilidade ao tema e inicie discussões sérias e éticas sobre a necessidade de criminalização dessa prática, passando a tipificá-la no Código Penal de acordo com as suas peculiaridades, eis que se trata de uma realidade brasileira silenciosa.
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Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Suelem Cristina Marques da. A Invisibilidade da Violência Obstétrica e a Proteção Jurídica da Mulher no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 ago 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59056/a-invisibilidade-da-violncia-obsttrica-e-a-proteo-jurdica-da-mulher-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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