RESUMO: Na segunda quinzena de março de 2022, as redes sociais e a imprensa agitaram-se com a notícia de que o ex-Procurador da República Deltan Dallagnol, responsável pela condenação do ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, no esteio da conhecida “Operação Lava-Jato”, foi condenado ao pagamento de R$ 75.000,00 (setenta e cinco mil reais) ao ex-Presidente, no exercício do cargo de Procurador da República, pelo Superior Tribunal de Justiça. Tal profusão de informações tem como vértice, muito provavelmente, a “vaquinha” promovida pelo réu, visando à arrecadação de recursos pecuniários para o pagamento da indenização, que alcançou status de viral nas redes sociais e mídias eletrônicas e escritas. Arrefecidos pela verve esquerdista ou direitista, petista ou bolsonarista, enredaram-se as discussões sobre o mérito da condenação. Como não poderia deixar de ser, para a comunidade jurídica, questão preliminar não pode passar ao largo das questões políticas engendradas pelo jogo político. Isto, pois, até recentemente, a doutrina e jurisprudência trilhavam, ainda que não uniformemente, o caminho que indicava que os agentes públicos não poderiam ser condenados diretamente em razão de atos praticados no ofício. Nesta senda, evidencia-se necessidade de perquirir se a decisão em relação ao conhecido e midiático caso que envolve o ex-Presidente da República e o responsável pela operação do Ministério Público Federal representa um assentamento da jurisprudência ou uma verdadeira guinada dos entendimentos, até então, após muita controvérsia, firmados no sentido de que o agente público não poderia ser diretamente condenado em razão de atos de ofício. Em razão da repercussão do caso e aparente pacificação da jurisprudência dos tribunais de superposição, fez-se necessário o presente estudo, para que se estabeleçam as distinções, se existentes, ou se o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial, promoveu guinada jurisprudencial. Afinal, como anda a jurisprudência? Há que se pensar. De um lado, a condenação, em relação à qual, abstraindo-se o contexto político, indica que o STJ não teria aplicado seu entendimento cristalizado em sua própria jurisprudência; noutra perspectiva, ante a ausência de explicitação concreta em derredor dos argumentos – sob pena de incúria –, é preciso elucidar se o caso concreto foi apreciado por diferentes lentes em razão dos fundamentos de fato, até mesmo para fixação de eventual distinguishing.
Palavras-chave: Responsabilidade civil do Estado; Agente público; Jurisprudência atual.
ABSTRACT: In the second half of March 2022, social networks and the press were stirred up by the news that the former Attorney of the Republic Deltan Dallagnol, responsible for the conviction of the former President of the Republic, Luiz Inácio Lula da Silva, in the mainstay of the well-known “Operação Lava-Jato” was ordered to pay BRL 75,000.00 (seventy-five thousand reais) to the former president he was prosecuted, in the exercise of the Office of Attorney of the Republic, by the Superior Court of Justice. Such a profusion of information has as its vertex, most likely, the “kitty” promoted by the defendant in order to collect pecuniary resources for the payment of compensation, which reached viral status on social networks and electronic and written media. Cooled down by leftist or rightist, PT or Bolsonarist verve, discussions about the merits of the conviction became entangled. As it could not fail to be, for the legal community, a preliminary question, it cannot ignore the political issues engendered by the political game. This is because, until recently, the doctrine and jurisprudence followed, although not uniformly, the path that indicated that public agents could not be condemned directly due to acts performed in the office. In this way, there is a need to investigate whether the decision in relation to the well-known and mediatic case involving the former President of the Republic and the person responsible for the operation of the Federal Public Ministry represents a settlement of jurisprudence or a true shift in understandings, until then, after much controversy, signed in the sense that the public agent could not be directly condemned due to official acts. Due to the repercussion of the case and the apparent pacification of the jurisprudence of the superposition courts, the present study was necessary, in order to establish the distinctions, if any, or if the Superior Court of Justice, in the judgment of the Special Appeal, promoted a jurisprudential shift. After all, how is the case law? You have to think. On the one hand, the conviction, in relation to which, disregarding the political context, indicates that the STJ would not have applied its understanding crystallized in its own jurisprudence; from another perspective, given the absence of concrete explanation around the arguments - under penalty of negligence -, it is necessary to elucidate whether the concrete case was appreciated by different lenses due to the factual grounds, even to establish any distinguishing.
Keywords: State civil liability; Public agent; Current jurisprudence.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Responsabilidade civil extracontratual do Estado na visão da doutrina pátria; 3. Legitimidade passiva do agente público em ação de responsabilização por danos causados a terceiros no exercício da atividade pública, 3.1 Perspectiva doutrinária, 3.2 Jurisprudência do STF, 3.3 Jurisprudência do STJ; 4. REsp Nº 1842613/SP – Condenação cível por danos morais do ex-Procurador da República Deltan Martinazzo Dallagnol: Especificidades do Processo; 5. Conclusão; Referências.
1 INTRODUÇÃO
Em primeiro lugar, é necessário gizar que o objetivo do presente artigo não tem fulcro na polarização ideológico-partidária contemporânea. Atualmente, há uma aguda e ineludível agudização dos posicionamentos no Estado brasileiro. Calha consignar que o objetivo do presente trabalho, em que pese ter como ponto de partida situação particular, não perpassa análise da correção da conduta por quaisquer dos agentes políticos.
Noutros termos, não se tem aqui a pretensão direta ou indireta de anuir a qualquer das partes contendoras, mas, ao revés, trazer a lume a atual posição jurisprudencial em derredor da possibilidade de ajuizamento e condenação dos servidores públicos, de forma direta, em relação a atos conducentes à realização da atividade funcional. A discussão reside na questão preliminar do caso: a legitimidade passiva dos agentes públicos, pressuposto processual.
Repise-se, para que se tenha claro, que a questão sobre a qual repousa o presente estudo é apenas a possibilidade de demandar direta e exclusivamente o agente público que tem vínculo funcional com pessoa jurídica de direito público, deixando de lado o mérito da condenação; ou o acerto ou desacerto da conduta do ex-Procurador da República.
O alerta preditivo é por demais necessário. À época em que este trabalho é efetuado, está em voga a eleição presidencial, em que o ex-Presidente da República foi oficializado como candidato à presidência para o próximo mandato. Atualmente, o ex-juiz que recebeu a denúncia criminal, que foi exposta previamente em PowerPoint, após ter se exonerado dos quadros do Poder Judiciário, se tornou Ministro do rol de agentes políticos do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, tendo ocupado a chefia do Ministério da Justiça e da Segurança Pública; enquanto o também “ex”-Procurador da República Deltan Dallagnol, que teve papel proeminente na conhecida “Operação Lava Jato”, decorrente da sua condição de coordenador de tal operação especial, é candidato ao cargo de Deputado pelo estado do Paraná, após ter se exonerado, a pedido, datado de 3 de novembro de 2021, dos quadros do Ministério Público Federal.
Durante o curso do processo indenizatório, em 22 de março de 2022, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria de votos, apreciando o Recurso Especial interposto pelo ex-Presidente da República, condenou o ex-Procurador ao pagamento de indenização por danos morais, em razão de entrevista coletiva concedida em 2016, na qual, em evento institucional, foram utilizados slides, produzidos pelo programa de computador PowerPoint, para explicar denúncia que seria oferecida ao Poder Judiciário.
O colegiado do STJ entendeu que o pleito de condenação do agente público comporta procedência, em razão da extrapolação das funções do agente público, devido ao excesso de linguagem e qualificações desabonadoras, que, em última instância, derruíram a honra e imagem do ex-Presidente Lula.
O ponto fulcral para a condenação, apenas para fins de registro, posto que desimportante para os fins do presente artigo, restam assentados na constatação de que, na entrevista, os fatos imputados não constaram da denúncia, posteriormente protocolizada. Para além disso, em 2016, na entrevista televisionada nacional e internacionalmente (também replicada em diversos sites no Brasil e no exterior), foram empregados adjetivos ao investigado, tais como “maestro” e “comandante” de esquema criminoso, do que decorreu violação aos direitos de personalidade do cidadão, o ex-Presidente da República.
A atual orientação das cortes superiores, desde pelo menos os idos do início dos anos 2000, no sentido de que o agente público é parte ilegítima para figurar em ações referentes às ações judiciais movidas em razão de atos administrativos ou condutas decorrentes do exercício do cargo público, deve ser revisitada.
O desiderato do presente trabalho é verificar se, diante da redação do art. 37, caput e § 6º, da Constituição Federal, o agente público pode ser condenado de forma direta, independentemente da responsabilização prévia ou simultânea do ente estatal, à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, que ocupam locus de Tribunais de Superposição no Poder Judiciário do Brasil.
O emblemático caso, ainda que não transitado em julgado, provocou ruído na plateia jurídica. E é este o ponto fulcral sobre o qual há de se debruçar. O caso posto à apreciação é diferente ou ocorreu uma guinada jurisprudencial pelo STJ. É questão primacial. Afinal, como anda a jurisprudência?
2 Responsabilidade civil EXTRACONTRATUAL do Estado NA VISÃO DA DOUTRINA PÁTRIA
A responsabilidade civil do Estado, no direito brasileiro, é extraída do ordenamento jurídico, e detém envergadura constitucional. Alerte-se, por importante, que a responsabilidade aqui em estudo é a que não decorre de vínculo contratual. O § 6º do art. 37 da Constituição da República consagra a responsabilidade civil objetiva do Poder Público. Eis a redação da norma:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A inteligência da norma permite firmar tranquila diretriz de que a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público baseia-se no risco administrativo, sendo objetiva.
Essa responsabilidade objetiva exige os seguintes requisitos: ocorrência do dano; ação ou omissão administrativa; existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal.
A teoria do risco administrativo, abraçada pelo direito brasileiro, é indutora da ideia de que a responsabilidade do Estado é objetiva, afastando-se a exclusão do dever de indenizar em algumas circunstâncias, quais sejam: a culpa exclusiva da vítima, presença de caso fortuito ou força maior; ou, ainda, poderá ser minorada através da culpa concorrente da vítima.
3 Legitimidade passiva do agente público em ação de responsabilização por danos causados a terceiros no exercício da atividade pública
3.1 PERSPECTIVA DOUTRINÁRIA
O tema da responsabilidade civil do Estado sempre foi importante na doutrina nacional. À larga, os constitucionalistas e especialistas em direito administrativo sempre compreenderam quão importante é a responsabilização estatal, especialmente na atual configuração social, verdadeira teia de compartilhamento de riscos, sob o pálio da globalização e crescentes demandas dos particulares em relação ao Estado.
Invariavelmente, o Estado somente pode realizar concretamente suas ações por meio de seus agentes e órgãos, de modo que estes, legitimamente, podem adotar condutas que causem danos aos particulares; daí o dever de reparar e restituir-se o lesado ao status quo ante.
Pelo princípio da solidariedade social, verifica-se que a distribuição equitativa dos encargos entre os administradores decorre da ideia de que o dano anormal e específico não pode ser suportada isoladamente pelo administrado.
A doutrina nacional não tem entendimento pacífico acerca da possibilidade de reconhecimento da legitimidade passiva exclusiva do agente público, da dupla imputação (agente público e entidade pública), da legitimidade exclusiva do Estado ou do cabimento de denunciação da lide (intervenção de terceiro). Para estas tantas teorias, ainda há aqueles que as aplicam diferenciando o campo de aplicação, a depender da responsabilidade no caso concreto ser objetiva ou subjetiva (omissões estatais).
Doutrinadores de renome defendem que a literalidade do texto constitucional, no que tange à responsabilidade da pessoa jurídica de direito público ser objetiva, não permite compreender, de per si, que o lesado pode agir diretamente contra aquele que lhe causou o dano, abdicando-se de processar o ente público, sabidamente solvente, sob o rito da responsabilização objetiva, que independe de dolo ou culpa.
Por tal corrente, negar o direito do particular de acionar o servidor que obrou culposamente com fundamento na responsabilidade subjetiva seria negar vigência ao comando legislativo do art. 186 do CC/2002.
Outra parcela da doutrina, também considerável e capitaneada por Hely Lopes, sustenta que o agente público não tem legitimidade passiva em relação aos atos de ofício praticados em razão da adoção do sistema de “dupla garantia” pelo ordenamento constitucional, em que, de um lado, o particular tem garantia de ser indenizado e, de outro, o agente público somente poderia ser responsabilizado pela ação de regresso ajuizada pelo ente público (LOPES; BALESTERO; BURLE FILHO, 2013, p. 735).
Assevera-se que a possiblidade de ajuizamento de ação direta de indenização em face do agente estatal pavimentaria a insegurança nos atos administrativos praticados em nome do ente público, restando abaulada a teoria do órgão e impossibilitando a imparcialidade dos agentes estatais.
Noutra senda, a teoria da dupla garantia em última instância garante também a impessoalidade do servidor público, por meio da qual se assegura a isonomia e moralidade administrativa. Se aqueles que atuam em nome do Estado podem ser condenados em razão dos atos praticados no seu ofício, decerto, a procura e qualificação para o exercício dos cargos poderiam ter decréscimo e, ao fim e ao cabo, o agente estatal inserido no complexo organograma de uma máquina pública gigante poderia se transformar no elo mais fraco da corrente.
3.2 JURISPRUDÊNCIA DO STF
Em 14/08/2019, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que “A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”, ao concluir o julgamento do processo Recurso Extraordinário nº 1027633, em que se discutia a responsabilidade civil de agente público por danos causados a terceiros no exercício da atividade pública.
Confirmou o julgado que a previsão do art. 37, §6º, da Constituição Federal, é um direito e garantia fundamental, que encerra norma autoaplicável, eficácia plena e tem em mira que o servidor público não seja demandado diretamente pelo particular lesado, na medida em que apenas o ente estatal detém legitimidade para ressarcir o terceiro lesado.
Insta ver que o julgado em questão confirma outros no mesmo sentido, tais como o RE 344.133, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 9/9/2008, DJe de 13/11/2008; RE 470.996-AgR, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 18/8/2009, DJe de 10/9/2009; RE 593.525-AgR-segundo, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 9/8/2016, DJe de 7/10/2016; ARE 908.331 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 15/3/2016, DJe de 17/5/2016; e ARE 991.086-AgR, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 6/3/2018, DJe de 20/3/2018.
É que no sistema jurídico brasileiro está consagrada a ideia de dupla garantia: de um lado, preserva o cidadão que pode demandar diretamente o ente público; de outro, o agente público pode exercer sua atividade livremente, sem receio de ser demandado por atos praticados no exercício da função, impondo-lhe ônus desproporcional, de forma que deve responder apenas de forma regressiva.
De acordo com o Min. do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio de Mello:
O dispositivo é inequívoco ao estabelecer, em um primeiro passo, a responsabilidade civil objetiva do Estado. Na cláusula final, tem-se a dualidade da disciplina, ao prever direito de regresso da Administração na situação de culpa ou dolo do preposto responsável pelo dano. Consoante o dispositivo, a responsabilidade do Estado ocorre perante a vítima, fundamentando-se nos riscos atrelados às atividades que desempenha e na exigência de legalidade do ato administrativo. A responsabilidade subjetiva do servidor é em relação à Administração Pública, de forma regressiva. (MELLO, 2019, p. 02)
Nesse sentido, a interpretação conferida pelo STF ao art. 37, § 6º, da Constituição Federal, é uma só: as pessoas jurídicas de direito público ou as pessoas jurídicas de direito privado, que prestem serviços públicos, poderão responder, objetivamente, pela reparação do dano. Por sua vez, o agente público, que efetivamente tenha praticado o ato, responde perante a pessoa jurídica à qual for vinculada por meio de ação regressiva, caso tenha agido com dolo ou culpa. Deste modo, o agente público não pode ser acionado judicialmente pelo terceiro prejudicado para responder pela reparação do dano, sob pena de ser decretada a sua ilegitimidade passiva ad causam.
Outrossim, a Jurisprudência do Supremo Tribunal cristalizou-se nesse sentido a partir dos idos de 2006, gizando-se que existia posicionamento anterior em sentido diverso, isto é, de que seria possível o ajuizamento de ações pelo particular, ao seu talante, em face do agente público causador do dano ou em face do Estado.
3.3 JURISPRUDÊNCIA DO STJ
No Superior Tribunal de Justiça, o entendimento é diverso. Para este, é possível que as ações condenatórias sejam ajuizadas pelo particular diretamente contra o responsável pelo ato, contra o Estado, ou contra ambos.
Da pesquisa jurisprudencial realizada, apura-se que, em 2018, a Corte decidiu conforme a decisão a seguir ementada:
AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. LEGITIMIDADE PASSIVA.
"É faculdade do autor promover a demanda em face do servidor, do Estado ou de ambos, no livre exercício do seu direito de ação" (STJ, REsp 731.746/SE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe de 4/5/2009).
2. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ, AgInt no AgInt do AResp 1062833-SP, julgado em 05/06/2018, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, QUARTA TURMA, DJe de 14/06/2018)
Sem embargo, em análise ao voto que conduziu o julgado precitado, consta registro de que se sabe da existência de julgados do Supremo Tribunal Federal em sentido diverso; mas estes não têm efeito vinculante, eis que decorreram de julgamento de Recursos Extraordinários, e não implicaram em modificação da jurisprudência do STJ.
Os precedentes judiciais têm ganhado relevância cada vez mais acentuada no sistema jurídico brasileiro, a ponto de o Código de Processo Civil (CPC) ter ampliado o rol de decisões judiciais capazes de demandar observância para os diversos órgãos do Poder Judiciário que estejam em posição de inferioridade em relação aos respectivos tribunais que as tenham prolatado (FERREIRA, 2019, p. 149).
Valioso, a propósito dessa particular observação, destacar que o Código de Processo Civil determina a obrigatoriedade de observação das seguintes espécies de decisões:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Ocorre que, posteriormente, o STF reapreciou a questão em Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida, de modo que, desde 2019, o Superior Tribunal de Justiça deve rever sua jurisprudência, sob pena de violação ao efeito vinculante da decisão do tribunal constitucional.
4 REsp Nº 1842613/SP – CONDENAÇÃO CÍVEL POR DANOS MORAIS DO EX-PROCURADOR DA REPÚBLICA DELTAN MARTINAZZO DALLAGNOL: ESPECIFICIDADES DO PROCESSO
Forte no objetivo de elucidar o entendimento jurisprudencial atual, revelam-se necessários alguns apontamentos acerca do processo identificado acima. Efetivamente, acima já se anunciou que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido da legitimidade passiva exclusiva do agente estatal para figurar em ações indenizatórias que tenham por causa de pedir o exercício de funções em nome do órgão ao qual vinculadas, mas ainda não se enfeixou se o julgamento, ainda não concluído na presente data, em razão de oposição de embargos de declaração, é uma confirmação da jurisprudência do Sodalício.
Pois bem... O pedido realizado pelo Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, ex-Presidente da República, em face do então Procurador da República Deltan Martinazzo Dallagnol, integrante da “Força Tarefa Lava Jato”, foi de sua condenação, de forma exclusiva, em razão de danos morais que lhe foram acarretados por entrevista transmitida em rede nacional, com abuso de autoridade.
Regularmente citado, a peça de defesa – contestação – foi apresentada pela Procuradoria Regional da União da Advocacia-Geral da União (AGU), com base no disposto no art. 2°; art. 3°, caput e inciso XIII, e no art. 4°, inciso I, "c", c/c § 3º, todos da Portaria/AGU n° 408/2014, que preveem que a Advocacia-Geral da União, com base no art. 22 da Lei n° 9.028/1995, poderá representar em juízo agentes da Administração Pública Federal direta, em decorrência do cumprimento de dever constitucional, legal ou regulamentar, responder a processo judicial.
A AGU requereu o reconhecimento da ilegitimidade passiva do agente público processado, fundamentando seu pleito na teoria do órgão e no princípio da impessoalidade na Administração Pública, com o indeferimento da petição inicial, com fundamento no art. 330, II, do CPC.
Por sua vez, a sentença de primeiro grau fez referência à jurisprudência do STJ, no sentido de ser possível ao lesado demandar o agente público, fazendo-se referência expressa ao REsp 1325862/PR.
Consta dos fundamentos da sentença que:
Certo é que o disposto no referido art. 37, § 6°, da Constituição Federal não constitui regra de imunidade ao agente público, no que concerne ao sistema de responsabilização Civil. Apenas confere ao lesado a prerrogativa de, a seu critério, ingressar contra o Estado, com a prerrogativa de se dispensar a verificação do efetivo desvio funcional. Porém, se a opção é pela responsabilização direta, está o lesado resguardado pelo art. 186 do Código Civil, o qual revela princípio geral que impõe ao causador de dano o dever de indenizar.
Reconhecidos presentes os pressupostos processuais e vencidas as preliminares, decidindo o mérito dos pedidos deduzidos na petição inicial, a sentença acabou por decretar a improcedência dos mesmos, condenando o autor no pagamento das custas, despesas processuais e verba honorária, fixada em 10% sobre o valor atribuído à causa. Inconformado, o autor apresentou Apelação, que restou improvida, com a manutenção da sentença em seus inteiros termos pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Passo seguinte, foi interposto Recurso Especial pelo autor (REsp 1.842.613 – SP). O Superior Tribunal de Justiça decidiu, por maioria, pelo provimento parcial do recurso, para condenar o ex-agente público ao pagamento de indenização no importe de R$ 75.000,00 (setenta e cinco mil reais).
No que concerne à alegação de ilegitimidade passiva, o i. Relator destacou que foi a preliminar alegada em contestação e em contrarrazões ao recurso de Apelação, sem que o TJ-SP tenha se debruçado sobre a preliminar, eis que não há nenhuma consideração sobre o tema no acórdão daquele Tribunal. Em contrarrazões ao recurso especial, não foi feita nenhuma alegação sobre a ilegitimidade passiva ou eventual omissão do julgado paulista acerca do tema.
Ante tal estado de coisas, de acordo com o voto condutor do acórdão, a questão referente à ilegitimidade passiva foi alcançada pela preclusão, impedindo o debate em razão da falta de prequestionamento. Registrou-se, contudo, que a matéria acerca da legitimidade, como requisito da ação, é matéria de ordem pública e poderá ser conhecida de ofício, mas desde que a questão tenha anteriormente sido decidida, na linha do entendimento fixado no AgInt no AREsp n. 697.155/RJ, Relator o Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe 12/12/2018.
Debalde tais considerações, consta ainda o registro de que em contrarrazões ao recurso especial apresentadas pela Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR, que figura no processo como assistente simples, foi impugnada à legitimidade passiva do réu, contudo, tal ampliação horizontal promovida apenas pelo assistente simples não merece prosperar, ainda de acordo com o Relator, em razão de que o assistente simples não propõe nenhuma demanda ao intervir no processo, sendo-lhe possível apenas sustentar as razões já apresentadas pela parte assistida. A atuação do assistente simples é complementar e não teria relevância para limitação do objeto do processo. Deste modo, firmou-se entendimento quanto à preclusão da ilegitimidade passiva do Réu, em razão de questões de ordem processual.
Não obstante, consta do acórdão do STJ que, se fosse o caso de apreciá-la, não mereceria acolhida. Anotou-se que, em razão da relevância da matéria, se não preclusa a questão, o entendimento do Tribunal é no sentido de que o lesado pode ajuizar a ação em face do agente público, causador do dano, e não apenas contra o Estado. Ao ensejo, fez-se referência aos acórdãos do órgão julgador, que permitem inferir que a jurisprudência está assentada neste sentido.
Inferiu-se que “Também a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por considerável período de tempo, foi linear em admitir o ajuizamento de demanda indenizatória diretamente em face do servidor público.”, mas a jurisprudência relativamente recente do STF apresentou aparentes novos contornos ao entendimento da matéria (Tema n. 940).
Ocorre que, após conferência da ementa do acórdão paradigmático do STF, o eminente Relator gizou que as orientações apresentadas nos votos do julgamento indicam que:
Nessa ordem de raciocínio, é certo que, nas hipóteses em que a conduta da qual deriva o dano consistir no exercício das funções públicas regulares, do agir funcional, o particular que se considera prejudicado por conduta do agente público não possui mais a opção de escolha de quem irá ocupar o polo passivo da demanda ressarcitória: se o próprio agente ou se a entidade estatal a que o agente seja vinculado, ou mesmo, se ambos naquela posição estarão. Na linha de orientação da Suprema Corte, nessa individualizada situação, a demanda, necessariamente, será ajuizada em face do Estado, que, em ação regressiva, poderá acionar o agente público.
Por outro lado, também é seguro afirmar, tomando como base a orientação apresentada nos votos proferidos no paradigmático julgamento, que, nas situações em
que o dano causado a terceiro é provocado por conduta irregular do agente público, compreendendo-se “irregular” como conduta estranha ao rol das atribuições funcionais, a ação com desígnio indenizatório, cujo objeto seja a prática do abuso de direito, que culminou em dano, pode ser ajuizada em face do agente.
Isso porque, não pertencendo o atuar abusivo ao rol dos atos funcionais, não se reconhece no ordenamento jurídico fundamento capaz de legitimar a inclusão de ente estatal na demanda.
Nesse passo, interessa destacar o caso concreto analisado pelo STF, no recurso extraordinário referido, que bem ilustra as assertivas acima fixadas, principalmente a natureza do ato que potencialmente teria causado dano ao autor da ação de indenização, diferenciando-o, claramente, daquele que agora é apresentado a julgamento (SALOMÃO, Resp nº 1.842.613, p. 19).
A Min. Maria Isabel Gallotti abriu a divergência e restou vencida quanto à preliminar referente à ilegitimidade passiva. No voto apresentado, aduz que, uma vez superada a fase de conhecimento do recurso especial, as matérias de ordem pública devem ser apreciadas, não existindo preclusão, eis que, como o réu restou vitorioso no primeiro grau, se ele tivesse interposto apelação para pedir a manifestação do Tribunal sobre um fundamento de direito processual, a carência de ação, o destino do seu recurso de apelação seria o não conhecimento, porque ele fora plenamente atendido em primeiro grau.
Ainda quanto à preliminar, o entendimento que a referida Ministra agasalha em relação ao entendimento firmado em Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal não é o adotado pelo Ministro Relator. De acordo com ela, é irrelevante a atuação irregular ou regular do agente público, de forma que a ação judicial, num ou noutro caso, deve ser ajuizada exclusiva e diretamente contra o Estado, impondo-se, na linha do seu voto, a extinção do processo sem exame do mérito.
5 CONCLUSÃO
Com esteio no que fora aduzido, é certo que o Supremo Tribunal Federal entende, interpretando o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, que a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa, desde 2019, quando fixou o entendimento em Recurso Extraordinário com repercussão geral.
Inobstante o efeito vinculante, ainda que o Superior Tribunal de Justiça, no processo judicial sob exame, não tenha apreciado a questão relativa à legitimidade passiva, em razão de sagrar-se vencedor o voto do relator, que concluiu pela preclusão da matéria, é certo que não há registro de que este Tribunal tenha revisitado sua jurisprudência, que não se encontra mais em sintonia com o entendimento vinculante do Supremo Tribunal Federal.
Para além disso, em razão dos fundamentos constantes dos votos, é certo que a questão não tende a se resolver em breve, posto que já se tem registro de que o entendimento firmado em derredor da tese do STF pode ser objeto de divergência.
De um lado, o entendimento de que o tema 940 somente há de ser aplicado quando o agente público não pratica com um ato com vocação para configurar um ilícito civil, eis que, nessa situação, sua condição de agente de Estado perde qualquer importância, ainda que este tenha se utilizado da condição de servidor público para a prática do ato. Por outra via, a ilegitimidade passiva do agente do Estado somente deve ser reconhecida quando o ato danoso coincide com a atribuição funcional do agente, mas não quando este, por sua vontade, ultrapassa o limite de suas funções, como nos casos em que atua em campo nitidamente privado. Tal foi o entendimento abraçado pelo Relator, mas apenas em sede de obter dictum, em razão de entender preclusa a discussão.
Desta feita, a jurisprudência pátria foi vacilante por meio tempo. Atualmente, tinha-se certeza de sua pacificação a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, mas, ante a inexistência de enfrentamento do tema pelo Superior Tribunal de Justiça, seja no processo em que condenado civilmente o ex-Procurador da República Deltan Martinazzo Dallagnol, seja em outro, não se pode ter como estabilizada a jurisprudência, até mesmo em razão de já se ter por ventilada a possibilidade de interpretação da tese vinculante sob a ótica dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Não há como falar, nesse compasso, que a jurisprudência é segura no sentido da ilegitimidade do agente público em relação a atos praticados no exercício da função, supondo-se que a interpretação firmada pelos juízes pode ser construída em termos similares aos em que se ancorou o Min. Relator do REsp 1842613.
Do contexto ora delineado, impõe-se a observação em como a força vinculante do precedente do Supremo Tribunal Federal será interpretada pelos juízes do país, como o Superior Tribunal de Justiça o interpretará e, por fim, se eventualmente sobrevirá nova manifestação, em interpretação autêntica, pelo pretório excelso.
REFERÊNCIAS
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Graduado em Direito (Faculdade São Francisco de Barreiras). Pós-graduado em Direito Registral Imobiliário. Atuou como Defensor Público no Estado do Tocantins. Desde 2018 ocupa o cargo de Procurador do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KAPPES, EVANDRO. Legitimidade passiva do agente público causador do dano e a condenação do ex-procurador da república Deltan Dallagnol: afinal, como anda a jurisprudência? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 set 2022, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59138/legitimidade-passiva-do-agente-pblico-causador-do-dano-e-a-condenao-do-ex-procurador-da-repblica-deltan-dallagnol-afinal-como-anda-a-jurisprudncia. Acesso em: 21 nov 2024.
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