Resumo: O poder de punir de um Estado não pode ser absoluto e desenfreado. É necessário que existam barreiras jurídicas capazes de realizar o controle de legalidade para o fim de evitar excessos e arbitrariedades, especialmente sendo o próprio Estado o lado mais forte da relação jurídica. A presunção de inocência surge, portanto, como um mecanismo de proteção do indivíduo, visando fornecer-lhe equidade e proteção, para que possa passar por um julgamento sem que haja sobre ele uma culpabilidade presumida em vistas a evitar o seu injusto e parcial julgamento. Em dissonância a isso, o instituto das prisões cautelares existe para garantir o bom andamento do processo e não pode, de forma alguma, ser utilizado para mitigar a inocência do acusado, sob pena de estar-se diante de um Estado acusação com poderes absolutos e autoritários, fugindo do modelo processual penal acusatório vigente no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Constituição. Garantias. Presunção de inocência. Prisões cautelares.
Abstract: The State’s power of punishing can not be absolute and unbridled. It is necessary that there are legal barriers capable of carrying out the control of legality in order to avoid excesses and arbitrariness, especially since the State itself is the strongest side of the legal relation. The presumption of innocence appears as a mechanism to protect the individual, aiming to provide him with equity and protection, so that he can go through a trial without there being a presumed culpability on him, polluting his fair and neutral judgment. On the other hand, the institute of precautionary arrests exists to guarantee the due process and can not be used to mitigate the innocence of the defendant, otherwise the State would have absolute powers. and authority, escaping from the accusatory criminal procedural model in the Brazilian legal system.
Keywords: Constitution. Warranties. Presumption of innocence. Precautionary arrests.
Sumário: Introdução. 1. Limitações ao poder do Estado: o surgimento da necessidade popular de proteção penal. 2. A presunção de culpabilidade no modelo inquisitório versus o sistema acusatório brasileiro. 3. As garantias Constitucionais à presunção de inocência. 4. A prisão processual no direito brasileiro. Considerações finais. Referências bibliográficas.
Introdução
Muito embora em tempos hodiernos a presunção de inocência seja princípio presente no ordenamento jurídico pátrio, nem sempre foi assim. Uma das vertentes da presunção de inocência, o in dubio pro reo, decorre de preceitos históricos que consagraram a dignidade da pessoa humana como preceito fundamental e indispensável, com especial relevância na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto San José da Costa Rica e, inclusive, na atual Constituição da República Federativa do Brasil.
É evidente, portanto, que normas anteriores à atual Constituição Federal não foram contempladas com o mesmo pensamento vigente, como é o caso do Código Penal e do Código de Processo Penal, visto que ambos datam da década de 1940.
Em se tratando de sistemas processuais penais, tem-se que o sistema penal acusatório, adotado pelo Brasil, contempla a presunção de inocência como um de seus princípios norteadores, demonstrando a seriedade como o processo penal busca agir no que tange direitos e garantias do ora acusado. Contudo, mesmo que a presunção de inocência, na figura do in dubio pro reo esteja presente no ordenamento jurídico, figurando como norma positivada no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988, a jurisprudência e a doutrina discutem a extensão dos efeitos deste princípio, especialmente no tangente à prisão.
O presente artigo insere-se nesse debate, procurando explicitar as controvérsias instauradas a propósito da presunção de inocência, para fins de averiguar se ela colide ou se amolda ao modelo acusatório adotado pelo Brasil. Serão abordados os aspectos sociais e culturais que fizeram com que a presunção de inocência tomasse especial relevância no cenário jurídico mundial, através do contexto histórico, da positivação do princípio no âmbito dos Tratados Internacionais e no ordenamento jurídico brasileiro, assim como os posicionamentos doutrinários que defendem a prevalência desse princípio sobre os demais.
Posteriormente, serão pontuadas discrepâncias entre os sistemas inquisitivo e acusatório, fazendo um enlace com o posicionamento da doutrina acerca do sistema adotado pelo Brasil atualmente. No fechamento do capítulo, serão trazidos, novamente, entendimentos doutrinários acerca do princípio da presunção de inocência no país, assim como uma breve síntese do instituto das prisões cautelares e da sua aplicabilidade.
Busca-se evidenciar, portanto, o caminho percorrido até a implementação da presunção de inocência como verdadeiro princípio basilar das relações jurídicas na atual Constituição Federal e no cenário jurisprudencial atual, correlacionando a aplicação do princípio na prática das prisões cautelares.
1. Limitações ao poder do Estado: o surgimento da necessidade popular de proteção penal
A presunção de inocência é direito humano adquirido por meio de mudanças sociológicas fundamentais, através do surgimento da necessidade de proteção da população frente aos processos penais que vinham sendo implementados ao longo da evolução humana, de modo a criar um procedimento para a sua apuração, visando tornar o processo penal cada vez mais justo. Assim, buscou-se criar um mecanismo que permitisse ao Estado julgar e condenar, mas que, ao mesmo tempo, fosse garantidor de direitos. Assim, foi-se transformando o procedimento inquisitório, próprio de modelos de governo autoritários, em um processo penal acusatório e democrático. Será objeto de análise, portanto, a evolução desse princípio no cenário internacional, assim como a sua positivação no ordenamento jurídico brasileiro dentro da atual Constituição Federal.
No sentido literal, presunção de inocência se refere a presumir que seja o cidadão inocente diante de uma acusação. Contudo, este princípio, embora positivado no ordenamento jurídico pátrio, não é absoluto: no decurso do tempo, modificações interpretativas relativizaram a presunção de inocência no processo penal.
A Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, consagrou no artigo 1º do seu texto, a dignidade da pessoa humana. Tendo como fundamento a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é nacionalmente considerada um valor supremo do cidadão, uma vez que se trata de direito mínimo, intrínseco e indisponível, além de ser fruto de lutas e conquistas perpetradas ao longo da história. Foi a partir delas que iniciou o olhar popular para o coletivo, através do surgimento das necessidades de proteção e garantia, financiadas pelo Estado (ANTUNES, 2019).
Traçando uma linha do tempo, denota-se que historicamente o liberalismo, na condição de filosofia política, estabeleceu a liberdade como principal eixo da vida (COMPARATO, 2007). Com o transcurso do tempo e a iminência de novas necessidades populares, o Estado passou a ser considerado figura necessária à garantia da proteção e da igualdade entre os cidadãos, que se encontravam sob imensa disparidade econômica e social.
Percorrendo a seara jurídica do século XVII, extrai-se da obra de Beccaria (1764) que o réu não pode ser considerado culpado antes da sentença, assim como só lhe pode ser tolhida a proteção pública após a decisão final de que o réu teria, de fato, violado os pactos estabelecidos à época. Da visão de Beccaria é possível interpretar o cenário punitivo como protetivo ao acusado, uma vez que lhe era concedido o direito de tratamento como um inocente até que a culpa fosse, definitivamente, estabelecida.
Por outro lado, permeando o cenário internacional, tem-se pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional Francesa em 1789, no artigo 9º, que todo acusado é considerado inocente até que seja declarado culpado: “todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido por Lei”. É nesse sentido que se denota da palavra “declarado”, a necessidade de uma decisão judicial para que seja sustada a aplicação da presunção de inocência.
Aproximadamente dois séculos mais tarde, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela 183ª Assembleia da Organização das Nações Unidas, em 1948, garantiu a presunção de inocência em seu texto, através do artigo XI.1, conforme se extrai, ipsis litteris: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”.
Na sequência, a Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950, prevê um dever de tratamento no mesmo sentido. No artigo 6.2, na seção “direito a um processo equitativo”, tem-se a presunção de inocência enquanto a culpabilidade não tiver sido provada, conforme o trecho: “qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”. Nesse sentido, ambas denotam o mesmo propósito: reconhecer o valor da dignidade da pessoa humana, assim como o valor da igualdade perante o Estado, servindo como um modelo a ser adotado pelas diversas nações regidas por princípios democráticos.
Não obstante, no transcurso do tempo, modificações foram realizadas no sentido de conferir maior destaque aos preceitos fundamentais da época através da positivação de normas, conferindo-lhes maior grau de seriedade e também de confiabilidade. A exemplo disso, pode-se mencionar o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966, que prevê no artigo 14, §2º, a presunção de inocência, igualmente, até que a culpabilidade seja estabelecida: “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. Este Pacto foi ratificado pelo Brasil, em 06 de julho de 1992, por meio do decreto nº 592.
Nesse sentido, a Organização dos Estados Americanos também preocupou-se em garantir a eficácia das normas de direitos humanos (ANTUNES, 2010). A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada em San José da Costa Rica em 1969, assegura, no artigo 8.2, a presunção de inocência enquanto não for legalmente provada a culpa (LOPES JR., BADARÓ, 2016), conforme se depreende da parte inicial do dispositivo: “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. Não obstante, o mesmo Pacto ainda prevê, no rol do artigo 7º, o direito à liberdade. Giza-se que o referido tratado foi ratificado pelo Brasil em 06 de novembro de 1992, através do decreto nº 678.
As redações dos textos são bastante similares. Deles, pode-se extrair uma interpretação simples, porém ambígua, haja vista que a expressão “declaração de culpabilidade” pode ser interpretada como a sentença condenatória ou como uma decisão com trânsito em julgado. A história do Direito brasileiro em torno da presunção de inocência não é muito diferente.
Muito embora a ratificação de tratados internacionais, na esteira dos ensinamentos de Mirabete, tem-se que desde o século XX, no Brasil, a presunção de inocência é relativizada, sendo considerada por ele, na prática, como mera presunção de não-culpabilidade. Isso porque a Constituição de 1988 não “presume” a inocência, mas tão somente declara que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado, considerando o réu inocente, portanto, até a prolatação de uma decisão judicial condenatória irrecorrível (MIRABETE, 1999).
Veja-se que apesar das redações similares, a doutrina caracteriza o princípio da presunção de inocência com outros dois nomes: princípio do estado de inocência ou princípio da não-culpabilidade. No ponto, o referido princípio decorre de um desdobramento do devido processo legal e incumbe aos três poderes a sua correta aplicação, desde a positivação da norma, até o entendimento aplicado pelo Poder Judiciário (AVENA, 2017).
Contudo, devido à previsão do princípio da presunção de inocência no âmbito internacional através de Tratados e Convenções, a Constituição Federal fez alusão a este princípio deixando de utilizar a palavra “inocente” em seu texto, de modo que faz menção tão somente à não-culpabilidade (LIMA, 2016). Por outro lado, o texto constitucional estende a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, de modo que somente essa circunstância pode afastar o estado de inocência.
Nesse contexto, é plenamente viável associar a temática ao tema abordado no bojo do HC 89.501/GO (BRASIL, 2007), a respeito da regra de tratamento imprescindível aos acusados, situação em que o poder público é impedido de tratar o indiciado, denunciado, ou acusado como um condenado enquanto não houver trânsito em julgado (LIMA, 2016).
No ordenamento jurídico pátrio há concordâncias e divergências quanto à aplicabilidade e extensão dos efeitos da presunção de inocência. Para parte da doutrina, a sentença condenatória irrecorrível é imprescindível para o exercício da plenitude de defesa (LIMA, 2016), e deve existir até a resolução definitiva da situação do processo em razão da presunção relativa de não culpabilidade (BULOS, 2015).
Indubitavelmente, a presunção de inocência faz o que o próprio nome diz, mas não só: também é garantidora de outros direitos, como a liberdade e a segurança do acusado. Segundo Ferrajoli, existe uma linha tênue entre liberdade e segurança, uma vez que tais garantias dependem uma da outra:
“Se é verdade que os direitos dos cidadãos são ameaçados não só pelos delitos mas também pelas penas arbitrárias - que a presunção de inocência são é apenas uma garantia de liberdade e de verdade, mas também uma garantia de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da específica ‘segurança’ fornecida pelo Estado de direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica ‘defesa’ destes contra o arbítrio punitivo” (FERRAJOLI, 2002, p. 441).
Para NUCCI, (2020) a presunção de inocência possui, ainda, princípios consequenciais, consistentes em in dubio pro reo, favor rei, favor inocentiae e favor libertatis, além da imunidade à autoacusação:
“[...] o primeiro significa que, em caso de conflito entre a inocência do réu - e sua liberdade - e o poder-dever do Estado de punir, havendo dúvida razoável, deve o juiz decidir em favor do acusado. Aliás, pode-se dizer que, se todos os seres humanos nascem em estado de inocência, a exceção a essa regra é a culpa, razão pela qual pela qual o ônus da prova é do Estado acusação. Por isso, quando houver dúvida no espírito do julgador, é imperativo prevalecer o interesse do indivíduo, em detrimento da sociedade ou do Estado. Exemplo: absolve-se quando não existir prova suficiente para a condenação (art. 386, VII, CPP)” (NUCCI, 2020, p. 67).
Na mesma linha, Nucci entende que em se tratando da imunidade à autoacusação, regido pelo princípio nemo tenetur se detegere – sob o qual ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo, também decorre do princípio da presunção de inocência, além de presentes, também, a ampla defesa e o direito de permanecer em silêncio, conforme os incisos LVII, LV e LXIII, todos do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (NUCCI, 2020).
Já Bittencourt (2012) abordando o contexto da culpabilidade como inerente à presunção de inocência, assevera que a teoria do delito, no Brasil, detém ilicitude, tipicidade e culpabilidade, divergindo do entendimento da maior parte da doutrina, que defende que a culpabilidade é pressuposto da pena. Além disso, refere que a presunção de inocência é garantia Constitucional, na condição de cláusula pétrea, assim como o cumprimento do devido processo legal:
“[...] a própria Constituição adota a responsabilidade penal subjetiva e consagra a presunção de inocência, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, preservando, inclusive, a dignidade humana (art. 5º, III, da CF). Ademais, a Carta Magna brasileira proíbe expressamente as sanções perpétuas, capitais, cruéis e degradantes (art. 5º, XLVII) e elevou essas garantias à condição de cláusulas pétreas (art. 60, 4º, IV). Em outros termos, referidas garantias não podem ser suprimidas ou revistas, “nem mesmo através de emendas constitucionais” (BITTENCOURT, 2012, p. 95).
A inocência decorre, portanto, da própria ideia de liberdade. Isso porque diante da existência de um processo penal, se sobrepõe ao acusado a ideia de inocência, restando ao órgão acusatório – na figura do Ministério Público - o ônus de produção da prova a fim de construir a culpa, e não ao acusado o ônus de defender-se visando provar a sua inocência.
Acima de tudo, a presunção de inocência é um dever de tratamento, de modo a exigir-se ao réu um tratamento como inocente durante o transcurso do processo (LOPES JR., 2019). Logo, não se deve tratar o réu como culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Isso porque o próprio artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal direciona a interpretação nesse sentido.
A presunção de inocência pode, ainda, estender-se a duas dimensões. A dimensão interna trata a respeito do comportamento do Juiz, especialmente no que tange às prisões cautelares, pois não deveria ser possível a segregação daquele cuja pena ainda não foi aplicada definitivamente – ou ainda não transitou em julgado. A dimensão externa, por sua vez, trata a respeito da vedação à publicidade do réu, de modo a garantir a imagem, a dignidade e a privacidade, que lhes são asseguradas Constitucionalmente (LOPES JR., 2014).
Por outro lado, a presunção de inocência também possui sentido de norma decomponível em três expressões garantidoras de sua eficácia, consistentes no dever de tratamento, norma probatória e norma de juízo (também regra de julgamento). Nesse sentido, faz-se alusão à interpretação dos iluministas, que conferiram à presunção de inocência um “sentido filosófico de um estado ideal e hipotético a ser conferido ao cidadão” (MORAES, 2010, p. 87-88, apud MUNIZ, 2020, p. 02). Logo, a idealização de um modo de agir e tratar o acusado culminou no que se tornou, posteriormente, a presunção de inocência.
É através deste pensamento, acerca do dever de tratamento, que a Constituição Federal de 1988 determina, no artigo 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, denotando uma proibição de tratar o acusado de forma igual ou semelhante à de culpado (LOPES JR. e BADARÓ, 2016).
Conforme o exposto, depreende-se que o princípio abordado está presente, além do âmbito internacional, através dos pactos ratificados pelo Brasil consistentes no Pacto de San José da Costa Rica e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, mas também na Constituição Federal de 1988, em decorrência de influências externas, através do artigo 5º, inciso LVII, dando efetividade máxima ao compromisso do Estado Brasileiro com a garantia da dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade.
2. A presunção de culpabilidade no modelo inquisitório versus o sistema acusatório brasileiro
Relativamente ao sistema inquisitório, no que tange o Tribunal do Santo Ofício no século XV, especialmente a respeito das inquisições da Espanha e de Portugal, tem-se, pelos ensinamentos de Eymerico, que foram marcadas por um período de ausência do sentido da palavra “inocência”, através da presunção – ou, inclusive da certeza –, de culpabilidade do acusado. No ponto, o inquisidor, mediante meras suspeitas, ainda que infundadas, poderia inquirir o acusado através de repetidas perguntas, induzindo-o a confessar crimes que sequer sabe se ele cometeu. Senão, vejamos:
“[...] se presumir o inquisidor que o réu está resolvido a não declarar seu delito (coisa que antes de tomar-lhe a declaração já é averiguada pelo alcaide ou por espiões encobertos que já tenham tentado) falará com brandura, dando-lhe a entender que já se sabe de tudo [...] quando as declarações das testemunhas não apresentam provas, porém apresentam fortes indícios e o interrogado continua negando, o inquisidor fará com que o acusado compareça e lhe perguntará coisas vagas, e quando negar o acusado qualquer coisa, folheará o juiz os autos de onde estão os interrogatórios anteriores, dizendo: está claro que você não está declarando a verdade, não dissimule mais.” (EYMERICO, 1525, p. 32-33).
Ademais, a tortura era tida como método tradicional de obtenção da confissão, sendo parte integrante do interrogatório do acusado. Como se não bastasse, trata-se de período marcado por tratamento déspota e pela ausência de direitos e garantias individuais, especialmente a respeito de heresia, pois se trata de época regida por legislações religiosas e extremistas, que não conferiam aos acusados, especialmente aos hereges, o benefício da dúvida.
Por outro lado, um dos princípios vigentes à época é em benefício da Fé: in fidei favorem (EYMERICO, 1525), absolutamente em desacordo com o atual in dubio pro reo, decorrente, justamente, da presunção de inocência, a qual sequer registra existência em épocas tão remotas. Isso porque preconiza institutos não jurídicos, mas crenças pessoais e religiosas, haja vista que aquele povo era regido, especialmente, por normas religiosas.
Essencialmente nos casos de heresia, a absolvição era rara de acontecer. Quando era proferida a sentença absolutória, na declaração do Tribunal não constava expressamente que o réu era inocente, mas tão somente que inexistiam provas capazes de fazer do acusado um suspeito de heresia (EYMERICO, 1525). Diante disso, resta induvidoso, portanto, o exercício arbitrário do poder punitivo do Estado, na figura do Tribunal do Santo Ofício, assim como a inexistência de institutos mínimos garantidores de defesa e da própria presunção de não-culpabilidade.
Importa mencionar, ainda, que a reincidência no procedimento inquisitório configurava o atual bis in idem em patamares que beiram o absurdo. Por outro lado, relativamente à confissão espontânea, tem-se que somente nos casos de heresia, demonstrando arrependimento, era oferecida ao acusado uma espécie de misericórdia, consistente em prisão perpétua, haja vista que os meios de tratamento da época eram notadamente cruéis e insanos.
Em meio ao século XVIII e período imediatamente seguinte, tem-se, na obra de Foucault, informações que dão conta dos métodos utilizados a fim de obter a confissão do acusado. Era, portanto, preservada a integridade física até que restassem suficientes suspeitas para dar início ao suplício, a partir da aplicação de castigos físicos aos acusados, objetivando a extorsão da verdade dos fatos (FOUCAULT, 2014). Logo, trata-se de outro momento da história em que a presunção de não culpabilidade foi nitidamente mitigada, além das práticas nada humanitárias a fim de obter declarações e confissões.
Reversamente, a presunção de inocência, por sua vez, possui raízes romanas, a partir da ascensão do cristianismo e a implementação do que se tornou o in dubio pro reo (GIACOMOLLI, 2014). Ocorre, contudo, que durante a vigência da inquisição, ele deixou de existir, uma vez implementado o período inquisitório, pois no processo penal medieval, a insuficiência da prova, ainda que mediante suspeita ou dúvida quanto à culpabilidade, servia como "semiprova", suficiente para uma condenação a uma pena mais leve, de forma equivalente à sua gravidade (FERRAJOLI, 2002).
Na resumida linha do tempo percorrida até então, verifica-se que o regresso autoritário do final do século XIX foi marcado pela Escola Positiva Italiana, através de Garofalo e Ferri, que consideraram absurda a ideia da presunção de inocência. Garofalo entendia necessária a obrigatoriedade da prisão preventiva nos crimes mais graves, enquanto Ferri entendia necessária a implementação de modelos de justiça sumária e substancial, somados a provas de culpabilidade (FERRAJOLI, 2002). Posteriormente, a Revolução Francesa devolve parte do sentido à presunção de inocência através da Constituição Republicana, que entende pelo princípio da não-culpabilidade.
Já no Brasil, há divergência doutrinária acerca do sistema processual penal, se seria acusatório ou misto, visto que o procedimento que contempla o inquérito policial brasileiro possui viés inquisitivo, de modo que o contraditório e a ampla defesa são diferidos, postergados à ação penal. Enquanto isso, no procedimento que instrui a ação penal, há a presença do contraditório e da ampla defesa, além do respeito aos institutos jurídicos concernentes ao devido processo legal.
As vertentes que entendem o processo penal brasileiro como misto, fazem menção, justamente, ao fato de o procedimento policial que antecede a ação penal possuir raízes inquisitivas, no sentido de que não é obrigatório ao acusado estar acompanhado de um advogado para prestar informações em interrogatório, diferentemente do que acontece no interrogatório em seara judicial, assim como por ser o inquérito um procedimento sigiloso na medida em que são procedidas as investigações pertinentes à construção do material probatório, por exemplo.
O sistema acusatório, que possui origem grega (TÁVORA, 2017) é adotado pelo Brasil, haja vista que resta induvidosa, na carta magna, a separação entre as funções de acusar, defender e julgar (LOPES JR., 2007). Logo, diante desse pressuposto básico, denota-se efetivo cumprimento de um dos mais relevantes pontos do sistema acusatório: não confundir a função acusatória com a do julgador.
Considerando que autor e réu estão no mesmo patamar, a presunção de inocência é princípio fundamental do próprio sistema jurídico acusatório, por não permitir a restrição a direito ou garantia fundamental (CAPEZ, 2016). Isso ocorre porque a própria Constituição Federal estabelece, no artigo 5º, inciso LV, as garantias do contraditório e da ampla defesa como meios a ela inerentes (MIRABETE, 1999) e, restando expressa na Constituição Federal, tem-se consolidado um dos principais pilares do modelo acusatório: o respeito às garantias individuais (OLIVEIRA, 2017).
Muito embora a presunção de inocência não esteja presente na instrução do inquérito policial, ainda há elementos típicos do contraditório, como é o caso da faculdade do investigado de ser acompanhado por um defensor constituído no transcurso das investigações. Contudo, este segue sendo um procedimento inquisitivo:
Ocorre, todavia, que muito embora não se fale na incidência do princípio durante o inquérito policial, é possível visualizar alguns atos típicos de contraditório, os quais não afetam a natureza inquisitiva do procedimento. Por exemplo, o interrogatório policial e a nota de culpa durante a lavratura do auto de prisão em flagrante. (BECCHARA e CAMPOS, 2005, p. 03).
A acusação incumbe, no processo penal brasileiro, via de regra, - excetuadas a ação penal privada e a ação penal subsidiária da pública –, ao Ministério Público. Diante disso, ao órgão acusador recai o ônus da prova, de acordo com a regra probatória do processo penal brasileiro.
No ponto, a garantia do acusado prevista pelo artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal de 1988 e artigo 8º, p. 2º, alínea “g” da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no que tange o direito de não produzir provas contra si mesmo, pode encontrar óbice no decurso do processo, haja vista o exercício do direito ao silêncio, que não pode, de forma alguma, prejudicar o acusado em detrimento das provas produzidas pelo órgão acusador, seja para ensejar uma condenação, seja para majorar a pena aplicada (LIMA, 2016).
Veja-se que, notadamente, as diferenças principais existentes entre os procedimentos são marcadas pela presença da presunção de inocência, no caso do procedimento acusatório, ou pela presunção de culpabilidade, como é o caso do inquisitivo.
Considerando a previsão da Constituição cidadã pela presunção de inocência no rol dos direitos e garantias fundamentais, assim como os posicionamentos doutrinários colhidos, tem-se que muito embora a estrutura do inquérito policial e divergências quanto ao procedimento ter caráter misto, tem-se que o procedimento judicial adotado no Brasil é, portanto, acusatório, pois garante ao acusado o exercício do contraditório e da ampla defesa sob a ótica do devido processo legal e da presunção de não-culpabilidade. Assim, excetuada a fase investigatória do inquérito, concluiu-se que a inocência, no procedimento brasileiro, é presumida em decorrência da vigência do sistema acusatório.
3. As garantias Constitucionais à presunção de inocência
O direito à liberdade é inerente ao ser humano. Através da positivação Constitucional como garantia individual, é conferida maior segurança ao indivíduo. Logo, é através dela e de outros institutos jurídicos que as forças coercitivas e o direito de punir do Estado são limitados, mediante a proeminência de princípios basilares do ordenamento jurídico. Em razão disso, é necessário ao trâmite processual, que sejam seguidos atos previstos em Lei, de modo a garantir o devido processo legal, principal pilar do processo penal brasileiro.
O Código de Processo Penal brasileiro, datado de 1941, vislumbrou o início de um período compreendido pela miserabilidade de garantias individuais, principalmente quando analisado o texto cru da exposição de motivos do Código, de autoria de Campos, cujas palavras retratam certo grau de desgosto pela proteção estatal aos acusados, ansiando pela punição do indivíduo em detrimento do “bem social”, na figura do bem jurídico tutelado, deixando em aberto, pois, a interpretação (ANTUNES, 2010).
Ocorre, contudo, que o Código de Processo Penal não passou pelo filtro hermenêutico constitucional da Constituição Cidadã de 1988. Isso porque foi publicado quando da vigência da Constituição de 1937, mediante a iminência do Estado Novo na Era Vargas. Ainda assim, mesmo antes da influência dos Tratados Internacionais, o artigo 386, inciso VI do código, criou a oportunidade da aplicação do in dubio pro reo, uma vez que o artigo prevê a absolvição, proferida pelo Magistrado, quando inexistirem provas suficientes para ensejar uma condenação, deixando evidente a preocupação do legislador com o devido processo legal, ainda que nos moldes da época.
A redação trazida aqui foi alterada pela Lei 11.690/2008, contudo, ainda assim, denota essa garantia: “Art. 386: O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: [...] VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência”.
No decurso da história nacional foram suspensos e restabelecidos direitos e garantias, como é o caso do Ato Institucional nº 5, de 1968, que mitigou, dentre tantos, o habeas corpus e a presunção de inocência, que voltou a ser contemplada em momento posterior (ANTUNES, 2010). Foi a partir da promulgação da Constituição de 1988, então, que o princípio ficou definitivamente estabelecido no ordenamento jurídico, conferindo grau de seriedade e importância devido à sua presença no rol de direitos e garantias individuais do artigo 5º. Giza-se que a redação do texto constitucional, antes da sua publicação, passou por discussões e reformas até atingir o teor atual.
Inicialmente, contemplava somente o “cidadão”, excluindo o estrangeiro e conferindo preferência ao nacional, quando a própria Constituição Federal, no artigo 12, veda a distinção entre brasileiros natos e naturalizados. Posteriormente, o texto utilizou a expressão “presume-se a inocência”, deixando evidente que a inocência seria meramente presunçosa, não absoluta, até o trânsito em julgado, restando, mais uma vez, insuficiente. Em seguida, foi alterada para a sua formatação atual dada pelo inciso LVII do artigo 5º (CAMARGO, 2005).
Nesta senda, a presunção de inocência é um princípio penal consistente em não poder o acusado ser tido como culpado antes de proferida uma decisão por juiz natural, compelindo ao Estado o dever de proceder formalmente à acusação, possuindo o ônus de comprovar a autoria do crime pelo acusado (TAVARES, 2012).
Trata-se de princípio relacionado com o Estado Democrático de Direito, pois, se não, se estaria diante de uma regressão ao arbítrio estatal. Desse modo, a presunção de inocência não se limita ao in dubio pro reo, pois não está vinculada apenas ao processo penal, mas vincula todo o sistema jurídico, na figura da autoridade policial, servidores carcerários e administrativos.
Outrossim, a Constituição não prevê a presunção de inocência, mas tão somente o direito à desconsideração prévia de não-culpabilidade, que restringe ainda mais o princípio, haja vista que ela foi adotada através da interpretação do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição, que refere que o texto Constitucional não exclui os Tratados Internacionais dos quais o país faz parte (DELMANTO JR., 2005).
Certamente as discussões doutrinárias acerca do tema trouxeram relevantes alterações no sentido de conferir maior amplitude à presunção de inocência. É o caso da Emenda Constitucional nº 45 de 08 de dezembro de 2004, responsável por adicionar o inciso LXXVIII ao artigo 5º da Constituição Cidadã, prevendo maior celeridade na tramitação processual, de modo a garantir, novamente, a presunção de inocência, uma vez que quanto mais tempo perdurar o processo, por mais tempo o acusado estará sob a tutela penal do Estado. A redação do artigo assim prevê: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Extensivamente, pode-se considerar o referido artigo como um benefício aos acusados que cumprem medidas de segregação cautelar, uma vez que a celeridade processual em processos cujos réus estão presos, lhes confere, a certo modo, uma antecipação da liberdade – ou da condenação –, cessando antecipadamente o seu martírio de estar sob a tutela do Estado.
Pertinente destacar que a Convenção Americana de Direitos Humanos entende a presunção de inocência somente até que seja comprovada a culpa, nos termos do artigo 8.2, conforme se extrai do trecho da norma “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente a sua culpa”, situação que pode ocorrer em qualquer momento processual, mesmo antes do trânsito em julgado, em dissonância à aplicação da norma do Brasil, conforme foi abordado pelo posicionamento de parte da doutrina nos capítulos que sucederam.
No entanto, este entendimento, em se tratando do cenário nacional, está distante de ser homogêneo: há discussões no âmbito jurídico acerca dos seus efeitos e extensões, conforme será abordado no próximo tópico, a respeito das prisões cautelares.
4. A prisão processual no direito brasileiro
Há dois tipos de prisão no Brasil. A primeira é a prisão pena, que ocorre mediante uma sentença penal condenatória com trânsito em julgado ou mesmo antes dela, ocasião em que será procedido um processo de execução criminal apartado ao processo criminal originário, que tramitará em uma vara específica de execuções criminais. Também existem as prisões processuais provisórias “lato sensu”, ou então prisões cautelares.
As prisões cautelares, presentes no ordenamento jurídico pátrio, podem ser decretadas diante da existência de circunstâncias específicas no caso concreto, que denotam a sua necessidade para o bom andamento processual. Ocorrerá, portanto, por determinação do Magistrado, mediante requerimento do membro do Ministério Público, do querelante ou mediante representação da autoridade policial (MARQUES, 2000).
Desse modo, vige o brocardo latino ne procedat judex ex officio, situação em que é vedado ao magistrado agir de ofício decretar uma prisão cautelar: ele precisa ser provocado. Ou seja: é necessário que a parte interessada proceda com o pedido de prisão cautelar, devidamente fundamentado e embasado nas possibilidades previstas em lei. Essa parte interessada poderá ser a autoridade policial ou o membro do Ministério Público. Isso existe para que não se confunda o órgão acusador com o órgão julgador, de modo a respeitar o procedimento acusatório (MINAGÉ, 2011). Em caso contrário, o Juiz agiria como parte, deixando de atuar na imparcialidade e mitigando uma das principais vertentes do procedimento acusatório que é, justamente, a separação da figura do julgador e do acusador.
É em razão disso que o artigo 5°, inciso LXI da Constituição de 1988 prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei”. Esse artigo evidencia que a prisão, quando não for efetuada na modalidade de flagrante delito, necessita de um pedido formal, conforme já exposto anteriormente. Enquanto isso, os incisos LXII, LXIII, LXIV e LXV, todos do artigo 5º da Constituição vigente, abordam a forma como a prisão deve ser realizada, com as devidas formalidades legais e pressupostos de validade.
Diante disso, no processo penal, para materializar-se a prisão processual, é necessário que exista comprovada necessidade. Trata-se das expressões latinas periculum libertatis - que se refere à existência de um risco para a ordem pública, à ordem econômica, para a aplicação da lei penal ou para a conveniência da instrução criminal -, e do fumus comissi delicti - consistente na prova da materialidade e nos indícios de autoria delitiva.
Há, portanto, 6 tipos de prisão processual admitidas hoje no Brasil, entre elas a prisão temporária, a prisão em flagrante, a prisão preventiva, a prisão decorrente de pronúncia no rito do júri, a prisão em decorrência de sentença penal condenatória recorrível - consistente na execução provisória da pena, antes do trânsito em julgado –, e, por fim, a condução coercitiva de pessoa que injustificadamente deixou de comparecer em juízo quando requisitada (NUCCI, 2020).
Cada uma delas tem os seus requisitos e particularidades, bem como comportam discussões a respeito de sua forma e legitimidade. A condução coercitiva, por exemplo, foi declarada inconstitucional pelo STF no ADPF 395 DF e no ADPF 444 DF, de modo que somente tem validade se houver dúvidas a respeito da identidade civil do acusado, bem como para fins de aferir a sua qualificação (BRASIL, 2018).
Outrossim, cada espécie de prisão possui requisitos para a sua configuração. A respeito da prisão em flagrante, tem-se pelo artigo 302 e incisos do Código de Processo penal que se considera em flagrante delito quem está cometendo a infração penal, quem acaba de cometê-la, quem é perseguido, logo após, em situação que faça presumir ser ele o autor da infração ou quando é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração.
É nesse sentido que Tourinho Filho, (2010) entende que a prisão em flagrante presume que inexistem dúvidas acerca da autoria, de modo que uma ação penal se faz imperativa, mediante remessa dos autos do inquérito policial para posterior denúncia pelo membro do Ministério Público. Sendo assim, os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, quando presentes, podem ensejar a homologação deste flagrante e a consequente decretação da prisão preventiva.
Nos termos do artigo 310 do mesmo diploma legal, o magistrado possui o prazo de 24 horas, após a realização da prisão, para promover a audiência de custódia, na presença do acusado, de seu advogado constituído ou defensor público e do membro do Ministério Público. Na ocasião, incumbe ao juiz relaxar a prisão, em caso de ilegalidade, converter a prisão em flagrante em preventiva ou, então, conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
A prisão preventiva, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal, poderá ser decretada como “garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. Outrossim, pode, ainda, ser decretada quando for descumprida alguma medida cautelar imposta.
O artigo 313 do mesmo diploma legal prevê que cabe prisão preventiva nos seguintes termos:
“I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
II – se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal;
III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
§ 1º Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.”
Por fim, o § 2º do referido artigo prevê que não será admitida a prisão preventiva com o intuito de antecipar o cumprimento da pena, ou como decorrência imediata de investigação criminal, ou da apresentação ou recebimento da denúncia. Salienta-se que tanto o § 1º quanto o § 2º foram incluídos pelo Pacote Anticrime, Lei 13.964/2019. Desse modo, a decisão que decreta a prisão necessita ser motivada e fundamentada, conforme preceitua o artigo 315 do Código de Processo Penal.
Nesse sentido, para a configuração dos pressupostos ensejadores da prisão preventiva, Delmanto Jr. (2001) entende que deverão ser constatadas a existência da materialidade delitiva e indícios suficientes de autoria, com posterior averiguação quanto ao perigo concreto da liberdade do acusado ao bom andamento processual. Greco Filho entende a garantia da ordem pública na prisão preventiva com um significado amplo, conforme se extrai:
“A garantia da ordem pública tem sentido amplo. Significa a necessidade de se preservar bem jurídico essencial à convivência social, como, por exemplo, a proteção social contra réu perigoso que poderá voltar a delinquir, a proteção das testemunhas ameaçadas pelo acusado ou a proteção da vítima. Ordem pública não quer dizer interesse de muitas pessoas, mas interesse de segurança de bens juridicamente protegidos, ainda que de apenas um indivíduo. Não quer dizer, também, clamor público. Este pode ser revelador de uma repulsa social, indicativa de violação da ordem pública, mas pode, igualmente, significar vingança insufladora da massa ou revolta por interesses ilegítimos contrariados. É ordem pública, porém, a necessidade de resposta criminal a crimes que atentam contra o sentimento social básico de respeito ao próximo, como crimes praticados com violência desmedida, o praticado contra pessoas indefesas como crianças e idosos, os praticados com requintes de crueldade, ou aqueles que, inclusive tendo em vista o comportamento dissimulado, desafiador, repulsivamente frio ou análogo, causam justa revolta social e que, por essa razão, são incompatíveis com a permanência do agente em liberdade. Caberá ao juiz distinguir as situações.” (GRECO FILHO, 2012, p. 154-155)
Greco Filho conclui dizendo que as hipóteses ensejadoras da prisão preventiva são taxativas, de modo que qualquer decretação fora do que prevê a norma jurídica, é passível de concessão de habeas corpus.
A prisão preventiva pode, ainda, ser substituída por medidas cautelares alternativas à prisão, fazendo com que o recolhimento a estabelecimento prisional seja a exceção, e não a regra. Trata-se do advento da Lei 12.403/2011 que inseriu no cenário processual penal brasileiro medidas cautelares consistentes na restrição da liberdade e diversas da prisão, que também estão previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal. Entre elas, encontram-se a vedação ao comparecimento a determinados locais, o recolhimento noturno e a utilização de tornozeleira eletrônica, em razão da substituição por prisão domiciliar.
Para sua configuração, por conseguinte, necessitam estar presentes dois requisitos genéricos, cumulativamente, que são a necessidade e adequabilidade. Cada um deles se subdivide. É pertinente mencionar que a adequabilidade se subdivide em três: na gravidade do crime; nas circunstâncias do fato; e nas condições pessoais do indiciado ou do acusado.
No ponto, a gravidade do crime não deve ser analisada abstratamente como balizadora para fixação do regime inicial de cumprimento de pena, nos termos das súmulas 718 do STF e 440 do STJ. Sendo assim, as medidas cautelares consistentes na prisão ou medidas alternativas devem ser fixadas individualizando cada situação no caso concreto, levando em consideração a pessoa do indiciado, assim como as circunstâncias fáticas em questão (NUCCI, 2020).
A prisão cautelar, portanto, tem natureza instrumental em relação ao processo criminal (AMARAL, 2012), na medida em que cessa a liberdade do indivíduo enquanto ainda não foi proferida uma sentença penal condenatória transitada em julgado. As previsões legais que justificam o pedido – e a decretação - da prisão preventiva correlacionam-se com o bom andamento do processo.
Por outro lado, as prisões cautelares não prejudicam o sujeito que teve por resultado uma condenação. Isso ocorre porque diante de uma condenação penal, o período em que o indivíduo esteve preso cautelarmente é calculado para fins de “desconto” no cômputo da pena total. A este instituto dá-se o nome de “detração”, conforme texto do artigo 42 do Código de Processo Penal. A detração, por conseguinte, possui o intuito de evitar abusos por parte do Estado, limitando o seu poder punitivo (MACHADO, 2013).
Destarte, a Lei 12.302/2011 não previu a detração diante da aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, ao passo em que a Constituição Federal, no inciso III do artigo 1º, por outro lado, implicitamente veda o bis in idem, a punição dupla pelo mesmo fato (NUCCI, 2020).
Em uma situação hipotética em que o indivíduo permaneça faticamente solto porém cumprindo medidas cautelares diversas da prisão, caso sobrevenha uma eventual condenação, esse período em que foram cumpridas medidas cautelares não serão consideradas para fins de detração da pena. Isso porque as medidas cautelares são, de certo modo, um benefício oferecido ao réu quando preenchidos os requisitos previstos em lei.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As disparidades entre o procedimento inquisitivo e o procedimento acusatório são imensuráveis. O primeiro possui viés autoritário, enquanto o segundo, oferece “paridade de armas” - ao menos na teoria – às partes, na figura do acusador e do acusado. O Brasil adota o sistema acusatório, muito embora a existência de um inquérito policial que não contempla o direito do investigado ao contraditório e à ampla defesa, pressupostos inerentes ao procedimento acusatório.
Ainda assim, na fase policial do processo, há uma expectativa de direitos sobre réu, enquanto na fase judicial existe o respeito ao contraditório e à ampla defesa.
Um processo penal justo e imparcial exige o respeito ao devido processo legal e aos demais princípios e normas a ele inerentes. Os direitos do autor do fato, do investigado, do acusado e do réu, nas suas mais diversas nomenclaturas, são igualmente inerentes ao processo penal. É em razão disso que a presunção de inocência deve ser integralmente respeitada, inclusive quando há risco ao resultado útil do processo e a alternativa para o bom andamento processual é, inevitavelmente, a segregação cautelar.
De modo geral, a prisão cautelar não afasta a presunção de inocência, tampouco a transforma em presunção de culpabilidade. No entanto, utilizar-se de um instituto jurídico para uma finalidade diversa à que ele foi proposto, é uma trapaça ao devido processo legal, pois cria-se sobre o processo um jogo de irregularidades insanáveis, ao passo em que o réu se torna um objeto dentro do processo e deixa de ser um indivíduo presumidamente inocente.
Resta evidente que muitas são as discussões que permeiam a seara processual penal brasileira, especialmente no tangente às prisões cautelares. A prisão cautelar processual não é, nem pode ser, antecipação de pena. Ela possui natureza instrumental, vinculada a uma utilidade processual. Diante disso, a utilização do instituto da prisão cautelar como forma de antecipar o cumprimento da pena mitiga a presunção de inocência do indivíduo, ferindo um dos princípios basilares do processo penal.
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Advogada (OAB 127.216-RS). Pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HEINZMANN, Anna Carollina Tisatto. A extensão da presunção de inocência no Brasil após a Constituição de 1988 correlacionada às prisões cautelares Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2022, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59162/a-extenso-da-presuno-de-inocncia-no-brasil-aps-a-constituio-de-1988-correlacionada-s-prises-cautelares. Acesso em: 26 dez 2024.
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