LUCIANA FERREIRA LIMA[1]
(coautora)
RESUMO: O sistema civil law vem se aproximando, paulatinamente, do uso dos precedentes na prática jurídica. No estudo da gênese da aproximação entre os sistemas common law e civil law, o presente artigo visa investigar a origem remota dos precedentes vinculantes, especificamente com relação ao sistema romano-germânico, com objetivo de verificar os elementos de aproximação e distinção entre estes dois sistemas, a partir do estudo das fontes do direito romano.
Palavras-chaves: precedentes; common law; sistema romano-germânico; fontes do direito.
ABSTRACT: The civil law system has been gradually approaching the use of precedents in legal practice. In the study of the genesis of the approximation between the common law and civil law systems, this article aims to investigate the remote origin of binding precedents, specifically in relation to the Roman-Germanic system, in order to verify the elements of approximation and distinction between these two systems from the study of the sources of Roman law.
Keywords: precedents; common law; Romano-Germanic system; law sources.
INTRODUÇÃO
Com a adoção do sistema de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro – entendido como um dos pilares do Novo Código Civil - passou-se a discutir com maior profundidade a eficácia do sistema da civil law frente às novas demandas por celeridade, previsibilidade e segurança.
Certo é que atualmente os sistemas jurídicos não se apresentam mais como “modelos puros”, dada a complexidade e convergência entre os sistemas de common law e civil law. Cada vez mais, os países de tradição civil law, como é o caso do Brasil, vêm apresentando, em sua prática jurídica, um modelo de aplicação de precedentes na construção do Direito. A discussão sobre o uso dos precedentes no país intensificou-se a partir da Emenda Constitucional 03/93, com a inclusão do efeito vinculante no nosso sistema jurídico.
Em vista do desenvolvimento dessa convergência entre o common law e o civil law, este artigo propõe a estudar as origens mais remotas da vinculação dos precedentes, buscando elementos de aproximação e distinção entre o sistema common law e o sistema romano-germânico.
Com efeito, o sistema de precedentes é marcante no sistema da common law, mas não lhe é exclusivo, podendo ser identificado já na origem do direito processual romano, o que lhe transforma em apenas um ponto em comum entre os sistemas.
Para tanto, inicia-se os estudos tecendo breves considerações sobre a história das instituições políticas romanas correlacionando-a com a evolução do processo civil, desde a leges actiones, no período pré-clássico do direito, até a cognitio extra ordinem, do período pós-clássico, passando pelo período clássico com o processo formular.
Na sequência, realizar-se-á uma breve análise das fontes do direito romano e das origens dos precedentes nessa tradição jurídica a partir da responsa prudentio e, mais adiante, do decreta e do rescripta emitidos pelo imperador. Por fim, a pesquisa demonstrará pontos de aproximação e distinção entre os sistemas common law e o romano germânico.
1 BREVIÁRIO DA HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS ROMANAS: ENTRE AS FONTES DO DIREITO E O PROCESSO ROMANO
Das civilizações antigas, Roma foi a que mais contribui para o desenvolvimento da história do Direito, história essa que se desenvolve no mesmo contexto da história política romana. Os romanos, desde sua antiguidade, vivenciaram, como forma de governo, a monarquia (753 a.C. até 509 a.C.), a república (509 a.C. até 27 a.C.) e o império (27 a.C. até 565 d.C.)[2]. O período de expansão imperialista romana divide-se, ainda, em duas fases: Principado e Dominato.
O Principado teve início em 27 a.C. até 285 d.C., quando o Senado investiu Otaviano (Caio Júlio César Otaviano), herdeiro de Júlio César[3], com o título de princeps, passando a exercer o poder supremo no Império, passando a se chamar Augusto (BRANDÃO, 2020, p.17). A principal característica dessa fase é que, enquanto em Roma a monarquia era exercida de forma mitigada, pois o princeps, como primeiro cidadão, respeitava as instituições políticas; nas províncias imperiais se vivia sob uma verdadeira monarquia absolutista, pois o princeps tinha poderes discricionários:
O imperium majus de Otávio Augusto concedeu-lhe a liberdade de interferir nas províncias senatoriais e seria até esperado que os senadores sancionassem os nomes dos pró-magistrados após consultarem o imperador (...), uma inversão da tradicional consulta ao senado (COLLARES, 2010 p. 67).
Na fase do Dominato, de 285 d.C. a 565 d.C., estreado pelo imperador Diocleciano, a monarquia torna-se tirânica por todo Império – tanto em Roma quanto em suas províncias. O princeps converte-se em dominus: onde antes existia o respeito ao Senado e as instituições passa a ser um governo absolutista. “Após (...) a consolidação do Dominato – regime autoritário do Estado romano – o imperador passou a concentrar poderes de caráter despóticos, monopolizando as fontes criadoras do direito (...)” (BOAMORTE, 2021, p. 236).
A história do direito romano é compreendida em três períodos: o período o pré-clássico, que vai desde as origens da Roma Antiga (753 a.C.) até, aproximadamente, entre os anos de 149-126 a.C., onde o processo se desenvolvia através da leges actiones; o período clássico, vivenciado sob os regimes da República e do Império, entre os anos de 149-126 a.C. – com a criação da Lex Aebutia, introduzindo o processo formular – até o término do reinado de Diocleciano[4], em 305 d.C.; e, por fim, sob o imperialismo do Dominato, o período pós-clássico, com início em 305 d.C., perdurando até a morte de Justiniano[5], em 565 d.C., período no qual o processo se dava por meio da cognitio extra ordinem (ou cognitio extraordinária). Em suma, o processo romano teve como fases as leges actiones (Ações da Lei), o per formulas (processo formular) e o cognitio extraordinária (processo extraordinário).
1.1 LEGES ACTIONES (AÇÕES DA LEI)
A leges actiones, traduzidas com “ações da lei”, eram os processos civis legais, reservados, inicialmente, aos cidadãos romanos, chefes de família, para o reconhecimento de um direito ou para a execução de um julgamento. Actio (ação) era o direito de perseguir em juízo aquilo que lhe era devido, no direito romano o direito subjetivo é tutelado pela ação (SERRANO; CASEIRO NETO, 2002, p. 194 e 196).
Oral, formalista e rigoroso, o procedimento na leges actiones era excessivamente solene, com a rituais inderrogáveis que deveriam ser obedecidos nos seus exatos termos: qualquer desvio ou omissão de um gesto ou palavra poderia ensejar em anulação do processo. Os litigantes não podiam sustentar suas pretensões utilizando as próprias palavras, devendo empregar vocabulário exato e gestos determinados, pronunciando fórmulas orais prescritas.
(...) para caracterizar sua rigidez, este exemplo colhido nas Institutas de Gaio (IV, 11): se alguém, ao intentar ação de perdas e danos contra outrem que lhe cortara videiras do terreno, usasse do termo uites (videiras), em vez de arbores (árvores), como estabelecia a lei, somente por isso perderia a demanda (ALVES, 2018).
Os procedimentos da leges actiones foram estabelecidos pela lei ou nos termos da lei (DUCOS, 2007, p.114), substituindo os antigos processos consuetudinários. Eram, também, submetidos à ordo judiciorum privatorum (ordem dos juízos privados), que consistia na divisão da instância em duas fases: in jure e in judicio. A instância in jure ocorria perante o magistrado (pretor), figura que representava o Estado, que, no exercício das funções judiciárias não podiam atribuir direitos a ninguém, mas apenas conceder ou negar ações (ALVES, 2018). Nessa fase processual, o autor da ação convidava o réu para comparecer em juízo, que poderia ser conduzido à força no caso de recusa ao comparecimento. O pretor-magistrado, que se limitava a presidir à instauração do processo, após ouvir o autor decidia se conceder-lhe-ia ou não a ação. Uma vez concedida, era fixado os elementos da controvérsia e designado para o caso um juiz (iudex).
Na instância in judicio, se dava perante o juiz (iudex), similar a figura do árbitro, tratava-se de um terceiro particular, geralmente escolhido de comum acordo pelas partes ou escolhido pelo magistrado se não houvesse acordo. O iudex, a partir dos elementos fixados pelo pretor-magistrado, analisava as provas produzidas, conduzia os debates e proferia a sentença.
Havia cinco diferentes tipos de ação, sendo três ações de conhecimento – actio per sacramentum, actio per judicis postulationem e actio per condictionem – e duas de execução – actio per manus injectionem e actio per pignoris capionem.
Apresentada como actio generalis (ação genérica), no início, a actio per sacramentum ou leges actio sacramento era o único modo de propor ação: sempre que a lei não determinasse um tipo especial, esta ação poderia ser intentada, tanto contra uma pessoa – sacramentum in personam – quanto contra uma coisa – sacramentum in rem. “Era a ação pela qual as partes se comprometiam, perante o magistrado, mediante juramento, a entregar ao Estado o produto de uma aposta (sacramentum) por parte daquele que fosse vencido na demanda” (BORGES, 1987, p. 42). Era uma espécie de caução ou fiança que os litigantes depositavam como garantia, quem perdia o pleito, perdia, também, a caução. Era chamado de sacramentum, pois, originalmente era um juramento com implicações religiosas.
A actio per judicis postulationem, era uma ação especial utilizada para demandar direito oriundo de um contrato verbal solene (stipulatio), de partilha de bens (actio familiae erciscundade), de divisão de bem comum (actio communi dividundo), demarcação de bens imóveis (actio finium regundirum) (BORGES, 1987, p. 44).
O processo per condicionem tinha por objeto a tutela de créditos, in pecunia ou in natura, oriundo de empréstimo sem garantias consoante a simples promessa (sponsio) de quitação, por parte do devedor. Caracterizada por procedimentos mais simples e rápidos do que o sacramentum, a actio condictio era uma forma de intimação em que o demandante se dirige ao demandado para que este, dentro de trinta dias, compareça diante do magistrado, para que, além de tomar conhecimento do litígio, seja designado o iudex. Tratava-se de ação abstrata, uma vez que o autor não necessitava declarar o fundamento (causa) do crédito (MEIRA, 1988, p. 267).
Nas ações executivas, actio per manus injectionem e per pignoris capionem, a primeira tinha por objeto a cobrança de dívidas, podendo o devedor apresentar defesa e nomear um fiador, em caso de não apresentar defesa o magistrado entregava o réu ao credor, que poderia aprisioná-lo por até 60 dias. Se, transcorrido o prazo, não houvesse o pagamento, o credor poderia vender o devedor (BORGES, 1987, p. 46-47). Já o processo per pignoris capionem, consistia na apreensão por parte do credor, de objeto pertencente ao devedor, sem necessidade de prévia autorização do magistrado; o objeto era conservado na posse do credor como garantia, até que a dívida seja paga (DUCOS, 2007, p.117). Há muita discussão doutrinária sobre a natureza e o procedimento desta ação, tão pouco se sabe ao certo o que acontecia após a apreensão do bem (MEIRA, 1988, p. 269).
1.2 PER FORMULAS (PROCESSO FORMULAR)
No início, o ius civile e o acesso ao magistrado estavam disponíveis apenas aos cidadãos romanos, chamados de patrícios; os plebeus (estrangeiros), não tinham direitos tutelados pela ordem jurídica romana. Com o desenvolvimento de Roma e a pressão plebeia, surgiu a figura do pretor peregrino (242 a.C.), com o objetivo de solucionar os litígios entre os estrangeiros e entre estes e os cidadão romanos, através da fixação das fórmulas predeterminadas. O processo formular foi criado nesse contexto de inclusão dos estrangeiros no direito, e, paulatinamente, foi substituindo a leges actiones, pois, além do seu formalismo excessivo, essa só poderia ser aplicada aos cidadãos romanos. Duas são as leis romanas que instituíram as fórmulas: a Lex Aebutia e as Leges Juliae[6]. Muito pouco se sabe sobre estas duas leis, porém é inegável suas contribuições para o desaparecimento da leges actiones.
Tratava-se do exercício do direito de perseguir aquilo que lhe é devido, através do uso das fórmulas (SERRANO; CASEIRO NETO, 2002, p. 196), que era um documento redigido pelo magistrado in jure, que continha a indicação da questão que o iudex deveria resolver. Todo o processo formular é realizado de forma oral, mas, diferentemente do período das ações da lei, as partes poderiam ser assistidas ou se fazer representadas por advogado ou procurador (ALVES, 2018).
Note-se que o processo formular também era submetido à ordo judiciorum privatorum, dividida nas instâncias in jure e in judicio. Na primeira fase, in jure, as partes comparecem à presença do magistrado – se acaso o réu nega o comparecimento poderia ser conduzido à força. Sem o formalismo do período da leges actiones, o pretor magistrado ouve as pretensões das partes, podendo, o réu, confessar (confessio in jure) ou negar (infitiatio). A partir das informações colhidas nessa oitiva, o magistrado concedia a ação redigindo a fórmula que deveria ser aplicada pelo iudex (árbitro) escolhido pelas partes.
Em princípio, a fórmula devia compreender três partes (...): a nominação do juiz, as pretensões do demandante – que se chamava intentio –, e a condemnatio, pela qual o juiz era convidado a condenar o réu, ou absolvê-lo, se lhe parecesse (...) que a pretensão do demandante não tivesse fundamento. A fórmula era, portanto, mais ou menos da seguinte maneira: “Que Lucius Titius seja o juiz. Se lhe parecer que Numerius Nigidius deva dar 10 mil sestércios a Aulus Agerius, julgue, condene Numerius Nigidius a dar 10 mil sestércius a Aulus Agerius; se não lhe parecer, absolva-o” (DUCOS, 2007, p. 119).
A fase in judicio, era o julgamento propriamente dito. Se dava na presença do iudex, onde as partes, ou seus representantes, debatiam entre si, expondo suas pretensões de forma livre e produzindo suas provas, admitindo-se a possibilidade de prova testemunhal, mas “contra a prova escrita não era procedente a não escrita” (SERRANO; CASEIRO NETO, 2002, p. 198). Após ouvir as partes e apreciar as provas, o iudex julgava, fixando, de forma oral, a sentença condenatória, que era sempre em dinheiro, independentemente da espécie da lide. Uma vez condenado, se o réu não efetuar o pagamento, poderia o credor obter do pretor um decreto que autoriza a tomada das posses dos bens do réu.
1.3 COGNITIO EXTRAORDINARIA (PROCESSO EXTRAORDINÁRIO)
O processo extraordinário desenvolveu-se durante o Principado – se prolongando até o final do reinado de Justiniano. Denominado de cognitio extra ordinem ou cognitio extraordinária, uma vez que o procedimento extraordinário se deu alheio ao procedimento habitual da ordo iudiciorum privatorum: agora o processo tinha apenas uma fase, desenvolvendo-se todo diante do magistrado que verificava as pretensões, analisava as provas e deliberava por sentença (CRETELLA JR., 2010, p. 307). Durante o período clássico do direito, a extraordinaria cognitio era tido como um processo especial, coexistindo com o processo formular (procedimento comum).
Em decorrência da ausência da bipartição do processo nas instâncias in jure e in judicio, e a estatização do processo, desaparece a fórmula como instituto jurídico de natureza processual. Passa a existir a possibilidade de recurso contra a sentença, uma vez que o magistrado que a profere é um funcionário do Estado hierarquicamente subordinado, cujo julgamento pode ser revisto por seus superiores. Além disso, sendo o juiz representante do Estado, a sentença proferida por ele pode ser executada com o emprego de força pública (manu militari). No entanto, com a extinção das fórmulas, os magistrados não podem criar ações para tutelar situações ainda não protegidas pela lei: as questões passam a ser julgadas com base somente no direito objetivo (ALVES, 2018). Isso tudo tornava a cognitio extraordinaria um procedimento mais célere, razão desse sistema ter sido adotado pelos romanos.
Com a estatização do processo, tornando-se matéria de Direito Público, a citação passa ser realizada por um funcionário do Estado (DUCOS, 2007, p. 121). Se o réu fosse domiciliado na localidade de jurisdição do juiz, este mandaria um funcionário convidá-lo, oralmente, a comparecer a juízo para apresentar defesa. Mas, se o réu residisse em local de jurisdição de outro juiz, o magistrado que recebeu a ação entregaria ao autor uma carta que deveria ser entregue ao juiz da jurisdição do domicílio do réu para que a citação fosse efetuada. Ainda, se acaso o réu estivesse ausente, ou em local incerto ou se era desconhecida a sua residência, a citação era feita mediante editos dos magistrados, lidos pelo praeco (mensageiro), que depois, os fixava em local público – semelhante à nossa citação por edital (ALVES, 2018).
No início surgimento do processo extraordinário, ainda havia a possibilidade de a citação ser feita pela denuntiatio ex auctoritate: a citação do réu era realizada pelo próprio autor, mas somente após ter obtido a aquiescência do juiz. Mais adiante, tendo o processo extraordinário já substituído o processo formulário, criou-se a citação por meio da litis denuntiatio. Nesse sistema de citação, a denuntiatio era anotada nos registros de um funcionário judiciário ou simplesmente administrativo, o qual atribuiria fé pública à citação, com a finalidade de evitar eventual falsidade na citação privada (ALVES, 2018). O que se sabe dessa espécie de citação são mais conjecturas históricas e doutrinárias do que certezas.
Mais tarde, a litis denuntiato foi substituída pela citação ex officio, já no processo por libellus conventionis (petição de citação), da época de Justiniano (SERRANO; CASEIRO NETO, 2002, p. 199).
O libellus conventionis era uma petição feita pelo autor – se acaso o autor não soubesse escrever, a petição poderia ser feita pelo tabularius –, dirigida ao juiz com suas pretensões: indicando os fatos em que ensejam a demanda e o pedido (objeto da demanda). O juiz recebia o libellus, examina seu conteúdo para verificar a legalidade e a não ofensa à princípios morais ou jurídicos e, estando dentro das especificações, ordenada que o executor (agente judiciário) efetuasse a citação do réu. Uma vez recebida o libellus, o réu teria o prazo de 10 dias (mais tarde aumentado para 20) para apresentar contestação às alegações do autor por meio do libellus contradictionis, que deveria ser entregue ao juiz (CRETELLA JR., 2010, p. 309).
Depois da apresentação da contestação ocorria o iusiurandum calumniae: os litigantes e seus advogados juravam perante as Sagradas Escrituras, que não estavam em juízo por mero espírito de chicana, mas que estavam defendendo um direito. Em seguida, a questão era exposta ao juiz, inicia-se os debates com a apresentação das respectivas as provas, e, por fim, o juiz proferia a sentença, que era lida em audiência diante das partes (recitare sententiam ex periculo). Se, acaso, o juiz não soubesse como julgar, uma vez que estava vinculado à observância da lei, em vez de sentenciar poderia remeter os autos ao seu superior, magistrado ou ao próprio imperador: era a denominada consultatio (ALVES, 2018). Proferida a sentença, que deveria conter a condenação ou a absolvição do réu, o vencido podia apelar para magistrado superior ou simplesmente cumpri-la; tal apelação tinha efeitos devolutivo e suspensivo. Se a sentença fosse confirmada pela instância superior, produzia efeitos retroativo à data em que fora proferida, e não da data em que foi julgada a apelação (CRETELLA JR., 2010, p. 310-311).
Passado o prazo[7] sem que a ordem judicial fosse espontaneamente cumprida, a depender da espécie de obrigação, o vencedor poderia promover a execução por meio da actio iudicati, que seguia o processo normal das ações, culminando com uma sentença, inapelável, julgando-a procedente, ou não. Se a ação de execução fosse jugada procedente e a obrigação fosse de restituição ou exibição de coisa certa, poder-se-ia utilizar a força (manu militari). Já se a condenação era para pagamento de quantia certa, procedia-se à penhora de bens do executado, que era realizada pelos funcionários do judiciário – apparitores ou executores –; a penhora seguia uma ordem, iniciando-se com bens móveis e semoventes, passando aos imóveis e, até mesmo, a penhora de direitos. Logo após a penhora, os bens eram vendidos em leilão, para pagamento ao exequente, sendo o excesso era restituído ao executado (ALVES, 2018).
2 FONTES DO DIREITO
Conforme nos ensina Cretella Jr. (2010, p. 27), “fonte do direito romano é todo órgão revelador do direito romanos”. Assim, indagar de que modo nasce ou se revela o direito romano em cada período é estudar o direito dentro de cada período da história política romana.
No período da realeza romana, duas eram as fontes do direito: o costume e a lei. O costume (consuetudo) é o uso repetitivo e prolongado de uma regra jurídica, sem que tivesse sido proclamada por um órgão Legislativo. Se identificava um costume pelo usus, que era a constância na obediência à norma, e pela opinio necessitatis, a convicção de que a norma eleita tem força de lei, em virtude da concordância tácita dos cidadãos. O desuso de uma lei resultava na revogação da regra. Já a lei resulta da declaração formal feita pela autoridade competente: o rei (CRETELLA Jr., 2010, p. 28).
Na República, às fontes do direito romano acrescia-se, além do costume e da lei, o plebiscito, a interpretação dos prudentes (jurisprudência) e os editos dos magistrados.
A mais importante lei desse período foi a Lei das XII Tábuas, surgida da tensão entre patrícios e plebeus, pois estes últimos buscavam o acesso aos magistrados e a segurança jurídica das decisões por meio da elaboração de um código. Em 462 a.C., por iniciativa do tribuno plebeu Terentílio Arsa, formou-se uma comissão cujo encargo era de elaborar um código para a plebe. Houve muita resistência por parte dos patrícios, o que fez com que somente em 450 a.C. é que o código de leis, constituído em doze tábuas (por isso o nome Lei das XII Tábuas), fosse aprovado. As XII Tábuas foram afixadas no fórum, mas um incêndio, em 390 a.C., as destrói por completo (CRETELLA Jr., 2010, p. 33).
Ainda no período republicano, havia duas modalidades de lei: lex rogata e lex data. A primeira era proposta por um magistrado e aprovada em assembleia comicial, ou, ainda, a lei proposta por um tribuno da plebe e votada, pelos concilia plebis: aqui temos os plebiscitos, que se equiparavam às leis[8]. Já a lex data era a lei emanada de um magistrado em decorrência de poderes que, para tanto, lhe concederam os comícios (ALVES, 2018). A Lex Aebutia (meado do século II a.C.) e a Leges Juliae (nos tempos de Augusto), foram espécies de leges rogatae de grande importância para o direito privado, pois introduziram o processo formulário através de regras de procedimento já não tão rígidas, em comparação com as leges actione, e mais adaptadas as realidades do povo romano.
A jurisprudência[9] era o trabalho realizado pelos chamados jurisprudentes ou prudentes, que eram os jurisconsultos que interpretavam o texto legal ou preenchiam as lacunas acomodando a lei ao caso concreto, fazendo com que o direito acompanhasse a evolução social. Essa atividade dos prudentes era chamada de interpretatio prudentium (ALVES, 2018). Também competia aos jurisconsultos emitir pareceres ou opiniões sobre uma questão de fato, fixando o direito, que eram chamados de responsa prudentium (prudente resposta). Após Augusto, os princeps passaram a conceder o jus publice respondendi, uma espécie de título ou autorização oficial dada a certos juristas, de maior renome, para emitir pareceres (respostas) em casos litigiosos (CRETELLA Jr., 2010, p. 35).
Os editos eram declarações (edicta), regulamentos ou prescrições dos magistrados romanos no exercício de suas funções jurisdicionais, ou seja, os pretores (urbano e peregrino) e os edis curuis (GUANDALINI JR., 2017, p. 12). O magistrado enumerava diversos caso atribuindo uma determinada ação, que seguia segundo a fórmula descrita no edito. A validade de edito era o tempo em que o pretor permanecia no cargo; com isso os pretores poderiam adaptar, atualiza, modificar o direito, segundo a realidade da sociedade (DUCOS, 2007, p. 39-40). Havia o edictum perpetuum, que era divulgado no início de cada ano, e durava durante esse espaço de tempo, e o edictum repentinum, que era o que regulava situações não previstas no edictum perpetuum. Com o decorrer do tempo, em 67 a.C., a Lei Cornelia proibiu a emissão de edictum repentinum: os magistrados passaram a ter o poder de apenas copiar os editos de seus antecessores.
No Principado, além das fontes anteriormente citadas, existia o senatusconsultos e as constituições imperiais como principais fontes do direito romano.
Durante a República Romana, as deliberações do senado não possuíam valor normativo, situação que muda no período do Principado, onde o senatusconsulto passa a ter um lugar de destaque na criação do direito. Tratava-se de deliberações do Senado sobre questões contenciosas colocada sob sua auctoritas, que eram dirigidas aos magistrados de forma obrigatória (DUCOS, 2007, p. 37-38).
Formalmente, ao princeps nunca foi atribuído o poder de legislar, mas na prática, em virtude de ter absorvido os cargos de muitas magistraturas republicanos, acabou intervindo na criação do direito através das constitutiones imperiais, que eram de quatro tipos: edicta, mandata, rescripta e decreta. Sendo a decreta e a rescripta as mais importantes para o direito privado romano. Edicta eram normas gerais que, em virtude do direito do príncipe de emitir editos (ius edicendi), assemelhando aos editos dos magistrados republicanos. Mandata eram instruções do princeps para os funcionários do império – governadores e funcionários provincianos. Rescripta eram respostas dadas pelo imperador à consulta de particulares ou de magistrados, sobre uma questão jurídica: quando a resposta era dirigia à um particular dava-se o nome de subscriptiones, pois eram escritas logo abaixo da pergunta, para que desta não se separasse; no segundo caso, a resposta era dirigia ao magistrado, chamava-se de epistulae, pois eram redigidas em carta. Decreta eram sentenças proferidas pelo princeps em determinados casos litigiosos submetidos a ele em primeira instância ou em grau de recurso.
No Dominato, caracterizado pelo absolutismo monárquico, permanecem apenas as constitutiones imperiais como fonte criadora do direito. Os costumes ainda existem como fonte subsidiária, limitado ao preenchimento de eventuais lacunas das constituições imperiais, e as normas jurídicas dos períodos anteriores só poderiam ser aplicadas se não tivessem sido revogadas pelas constituições. A jurisprudência foi se extinguindo gradativamente, pois quase não existe jurisconsultos, mas sim práticos que confeccionavam as iuras, que eram compilações das obras dos jurisconsultos clássicos. Em decorrência da incerteza jurídica proveniente do uso das iuras, os imperadores restringiam sua invocação.
No ano de 426 d.C., a constituição de Teodósio II e Valentiniano III, regulamentou a forma de se invocar a jurisprudência, restringindo o número de jurisconsultos aos quais era possível recorrer: apenas poderiam ser citados Gaio, Papiniano, Ulpiano, Paulo e Modestino. Se esses jurisconsultos tratassem a questão de forma uníssona, seus escritos vinculariam o juiz, mas se houvesse divergência entre eles, deveria seguir a opinião da maioria. Havendo empate, deveria ser aplicada a jurisprudência em que estivesse Papiniano; se este não tivesse se manifestado, o juiz se encontrava livre para decidir (ALVES, 2018).
3 BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A ORIGEM DOS PRECEDENTES NO DIREITO ROMANO
Durante o processo formular, os precedentes romanos eram aplicados de jurisconsulto para jurisconsulto, e destes para o iudex (árbitro), que decidia segundo o seu entendimento. Na fase da extraordinaria cognitio, o juiz como autoridade estatal passa a ter que decidir com fundamento na lei.
Labeon, primeiro líder da escola proculiana – uma das duas escolas jurisprudenciais do período imperial inicial (Principado) – foi o criador do Método Labeoniano, onde as regras jurídicas passaram a ser construídas pelos juristas a partir da solução justa (equidade) de um caso concreto:
Frente a un caso concreto (que un cliente le expone, por ejemplo), el jurista debe por tanto reducir la situación a sus elementos jurídicos significativos. En ese punto, posee un tipo de situación (Tatbestand). Si su repertorio de reglas casuísticas conoce ya ese Tatbestand, la solución del caso es inmediatamente conocida. De lo contrario, el jurista debe resolver ese caso y añadir la solución (que ya es típica) a su repertorio. A veces aprecia que el caso-tipo nuevamente determinado puede asimilarse a otro caso-tipo ya adquirido en su repertorio (analogía); en efecto, ocurre que dos casos-tipo únicamente se distinguen por el hecho de que uno y otro sólo fueron sometidos de forma incompleta al proceso de abstracción. El jurista debe entonces formular la regla casuística de una forma más amplia, para que corresponda a un nivel más alto de abstracción (ATAÍDE JR. apud CANNATA, 1996. p. 64).
O common law e o direito romano clássico foram se desenvolvendo de forma lenta, gradual e casuística, através, respectivamente, dos precedentes judiciais e da responsa prudentium. O direito romano, eu seu período clássico, se assemelha muito mais ao common law do que o próprio civil law (ATAÍDE JR., 2018, p. 179).
É possível identificar a existência de precedentes em uma fase mais avançada do direito romano clássico, quando “o case law romano passa a se dar também a partir dos rescripta e dos decreta (decretos) do imperador (sumo magistrado)” (ATAÍDE JR., 2018, p. 181).
As constituições imperiais eram formadas pela decreta, entendida como resultado de demandas decididas pelo imperador originariamente ou em grau recursal, e pela rescripta, que tinha relação ao caso concreto de que se originava a consulta ao imperador, ou seja, decidia-se uma questão de direito antes do julgamento da demanda. Embora exista certa controvérsia sobre a aplicabilidade das constituições imperiais aos casos futuros e semelhantes, uns defendendo a normatividade apenas no caso concreto decidido, dotada de eficácia meramente persuasiva, é possível defender a força vinculante da decreta e da rescripta, com efetiva força de norma geral, ditando a solução de casos futuros.
Para Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior (2018, p. 184), “a melhor forma de explicar a natureza de precedente vinculante dos precedentes no direito romano consiste de uma comparação entre a responsa prudentio (ciência do direito), de um lado, e, de outro, os decreta e os rescripta (constituições imperiais) (...)”
Segundo o citado autor, a responsa prudentio é formada pelas opiniões dos jurisconsultos. A constituição de Adriano (117-138 d.C.) estabeleceu que as opiniões dos jurisconsultos munidos do ius publice respondendi deveriam ser obrigatoriamente seguidas, caso se constituíssem em opinio communis (opinião comum): “a responsa prudentio (...) passou a ter força de lei, vinculando os juízes não apenas dos casos concretos a que se referiam, mas também dos futuros casos semelhantes” (ATAÍDE JR., 2018, p. 184).
Outrossim, a responsa prudentio também passou a ser composta pelo conjunto da obra dos jurisconsultos, inclusive, doutrinária, não se limitando aos pareceres elaborados em resposta às consultas realizadas em casos concretos (responsum) (ATAÍDE JR., 2018, p. 188).
Portanto, mesmo aqueles que negavam a força vinculante para os casos futuros da decreta e da rescripta admitiam que gozavam de respeitabilidade como precedente, que eram citados pelos jurisconsultos e magistrados e, também, que somente não eram aplicados esses precedentes em virtude de alguma distinção.
Nessa linha, é possível defender, como faz Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior, que havia caráter vinculante já na decreta e na rescripta, pois não há sentido lógico afirmar que as opiniões dos jurisconsultos teriam força de norma geral e aplicabilidade em casos futuros e semelhantes enquanto não teria a opinião do próprio imperador, que outorgava aos jurisconsultos a autoridade, exarada nas constituições imperiais.
Destarte, é plenamente possível identificar já no direito romano, a partir da decrepta e da rescripta a origem de um precedente, com força vinculante para os casos futuros e semelhantes.
4 PONTOS DE APROXIMAÇÃO E DISTINÇÃO ENTRE OS SISTEMAS COMMON LAW E O ROMANO GERMÂNICO
Apesar de ser possível identificar a existência de precedentes vinculantes no sistema Romano, o método de precedentes é resultado de construção cultural na comunidade anglo-americana.
Apresenta-se como características do método de precedentes da common law: 1) Se baseia no sistema de equidade; 2) Prescinde de autorização Legislativa; 3) Fundamentos bases na igualdade e segurança jurídica.
A vinculação ou obrigatoriedade não se mostrou sempre presente, mesmo no sistema da common law, sendo mais correto identificar um compromisso moral fundado pela busca da certeza e segurança jurídica. Na cultura dos precedentes, o julgador somente não aplicaria um precedente em caso de distinção, mas não pelo fato de não concordar com ele ou por interpretar a norma geral de um modo diferente.
De acordo com a doutrinadora Andreia Costa Vieira (p. 33):
Apenas no século XIX, a monarquia e o Parlamento, com base na já consolidada prática do Judiciário, e após a costumeira organização dos Law Reports, declararam obrigatória a observância dos precedentes, que, a partir de então, se tornaram vinculantes por lei e ordem real, seguindo a hierarquia das Cortes judiciais da Inglaterra.
A cultura dos precedentes se mostra presente já na Universidade, uma vez que o estudo se direciona não para o aprendizado de Leis e Códigos, mas sim para “terem expertise em encontrar the binding element,” (VIEIRA, p. 34).
Merece destaque que no sistema de precedentes que vem sendo implementado no Brasil, a tese que se torna vinculante é composta de apenas uma súmula da decisão, em regra marcada pela interpretação jurídica de um determinado tema, na qual não se incluem as premissas fáticas que levaram à conclusão.
De outro lado, no sistema da common law, o precedente não se desvincula do conjunto fático que o formou. A solução jurídica não é “sumulada” em uma tese interpretativa para formar o precedente, sendo esse composto por todo o arrazoado de fato e de direito.
Conclui-se, com Sabrina Nasser de Carvalho (2015, p 446), que:
A integração dos precedentes judiciais nos países de cultura civil law deve ocorrer sem que os operadores do direito se descurem das diferenças que marcam a sua polarização com o common law. Por esta razão, a aproximação entre eles deve ocorrer de forma gradual, respeitando-se a tradição histórica e cultural do sistema jurídico de cada país. Isso, no entanto, não impede que eles se influenciem mutuamente, tornando-os permeáveis aos benefícios e às vantagens que cada um pode oferecer.
Nota-se, portanto, a existência de duas correntes dominantes no direito contemporâneo. Na primeira, defende-se que common law valoriza o direito construído (consuetudinário), formado a partir de decisões de casos concretos, atribuindo força normativa aos precedentes judiciais, e na segunda defende-se que no civil law se restringe a força normativa do precedente porque cabe apenas à lei o papel de criar o ordenamento jurídico.
Há, ainda, que se mencionar a resistência cultural do nosso sistema em dar à jurisprudência o reconhecimento científico de fonte de direito, já que apenas a Lei seria considerada a fonte primária, de modo que os precedentes não poderiam ter nada além do que eficácia persuasiva para os casos futuros.
Já Luiz Guilherme Marinoni indica maior aproximação entre os sistemas por entender pela caracterização de coisa julgada erga omnes na decisão de incidente de demandas repetitivas.
Segundo Marinoni (2015, p. 403), o que se chama de collateral estoppel no common law é, em substância, o que se denomina de coisa julgada sobre questões no civil law. Em outras situações, passa a ser designado non-mutual collateral estoppel exatamente para evidenciar a possibilidade de terceiro poder invocar a proibição de rediscussão contra aquele que participou
E continua:
Existem vários casos em que terceiro invoca a proibição de rediscussão para obter condenação daquele que, num primeiro processo, foi responsabilizado e condenado a pagar indenização em virtude do acidente que também o vitimou. Fala-se, nesse caso, de offensive collateral estoppel (MARINONI, 2015, p. 403),
Juntamente com Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Junior (2018, p. 191)., podemos destacar que “afigura-se equivocado afirmar que aqueles que propõe em a construção de um sistema de precedentes, no Brasil, pretendem empreender a commonlização do direito brasileiro, até por que precedente vinculante, definitivamente, não é instituto exclusivo do common law.”
De todo modo, destaca-se que o fortalecimento dos precedentes vinculantes no Brasil tem como pano de fundo a famigerada duração excessiva dos processos aliada à imprevisibilidade do resultado da prestação jurisdicional o que leva à insegurança, para aqueles que defendem a previsibilidade como uma das faces da segurança jurídica.
Percebe-se, outrossim, que embora exista bastante divergência entre os sistemas, o common law não só influência de forma gradual na formação do sistema da civil law, mas dele também sofre importante influência. É possível se identificar constante crescimento do número de leis em países como Estados Unidos e Inglaterra.
CONCLUSÃO
Estudar a história do direito romano, suas fontes, influências e convergências, significa estudar a história política dessa grande civilização que, ao longo de seu desenvolvimento, vivenciou a monarquia, a república e o império, como formas de governo.
O Principado e Dominato foram duas fases do período Império Romano importantíssimas para o desenvolvimento do processo. No primeiro, ocorreu o desenvolvimento do processo formular, que tinha sido introduzido na República Romana, com a Lex Aebutia, mas ganhou força nesse período do Império, sob a liderança de Augusto. Na segunda fase do Império, do Dominato, foi o período em que o processo se dava por meio da cognitio extraordinária (processo extraordinário). Anteriormente a essas fases, existia a leges actiones do período pré-clássico da história do direito.
Na fase da leges actiones (ações da lei), os processos civis legais, eram utilizados para o reconhecimento de um direito de ação, ou execução, para que o cidadão possa perseguir em juízo a sua pretensão. Tratava-se de um processo rigoroso e formalista, realizado de forma oral, que exigia das partes a obediência a uma solenidade inafastável: qualquer desvio ou omissão de um gesto ou palavra poderia ensejar em anulação do processo. Em seguida, a fase do processo per formulas consistia na aplicação de fórmulas jurídicas pré-definidas pelo pretor-magistrado que deveriam ser aplicadas pelo iudex (árbitro), ao caso concreto.
Tanto a leges actiones quanto o processo formular eram submetidos à ordo judiciorum privatorum, que consistia na divisão do processo em duas instâncias: in jure, onde as partes comparecem à presença do pretor-magistrado, representante do governo, que não atribuía direitos, mas apenas concedia ou negava ações; e a instância in judicio, que se dava perante o iudex, escolhido de comum acordo pelas partes ou pelo magistrado, se não houvesse acordo, cuja função precípua era analisar as provas, conduzir os debates e proferir a sentença.
Na fase da cognitio extraordinária (processo extraordinário), já no período pós-clássico – pois durante o final do período clássico do direito, a extraordinaria cognitio era considerado um processo especial, coexistindo com o processo formular (procedimento comum) – não havia mais o procedimento da ordo iudiciorum privatorum, o processo se desenvolvia inteiramente diante do magistrado, que verificava as pretensões, analisava as provas e determinava a sentença.
No decorrer da história jurídica e política de Roma, as fontes do direito foram surgindo gradativamente, conforme a fase desta civilização, a começar pelos costumes e as leis, que surgiram durante a monarquia antiga. Na República, além do costume e da lei – sendo as principais Leis das XII Tábuas, Lex Aebutia e Leges Juliae – foram acrescidas como fonte do direito, o plebiscito, a interpretação dos prudentes (interpretatio prudentio e responsa prudentio) e os editos dos magistrados. No Império, vieram os senatusconsultos e as constitutiones imperiais (edicta, mandata, rescripta e decreta).
A partir da análise das fases do processo romano e de suas fontes, podemos verificar que nesta tradição jurídica, na fase do ordo iudiciorum privatorum os precedentes romanos eram aplicados através da responsa prudentio, de jurisconsulto para jurisconsulto, e, destes para o iudex (árbitro), mas ainda este decidia segundo o seu entendimento, sem obrigação de seguir a opinião do jurisconsulto. Adiante, no processo extraordinário, a constituição do imperador Adriano (117-138 d.C.) estabeleceu que as responsa prudentium deveriam ser obrigatoriamente seguidas.
Ainda na extraordinaria cognitio, é possível identificar a existência de precedentes através dos rescripta e dos decreta determinados pelo imperador, através de suas constituições. O decreta era normas gerais resultado de demandas decididas pelo imperador, originariamente ou em grau recursal, que existiam em virtude do direito do príncipe de emitir editos (ius edicendi). O rescripta era resposta do imperador dada à consulta de um particular ou magistrados sobre uma determinada questão jurídica. Apesar da existência de grande controvérsia sobre a vinculação das constituições imperiais, é possível identificar na força vinculante da decreta e da rescripta a origem dos precedentes, com seu poder de norma geral, ditando a solução de casos futuros e semelhantes.
Mesmo sendo possível identificar essa característica vinculante no sistema jurídico romano, a metodologia dos precedentes é uma construção do direito anglo-americano.
Nessa aproximação do sistema civil law com o common law, paradoxalmente, se mantém um distanciamento em virtude da aplicação prática dos precedentes, pois, por exemplo, no sistema civil law brasileiro, a tese vinculante é formada apenas de uma súmula da decisão: enunciado geral e objetivo que resume a jurisprudência, onde são excluídas as premissas fáticas e jurídicas que levaram à conclusão do julgado.
Ainda não se tem os efetivos contornos do uso de precedentes no Brasil, de forma que não se pode deixar que a subsunção do fato à norma seja transformada na subsunção do fato ao precedente. O conjunto fático probatório não pode ser ignorado como vêm ocorrendo em grande parte das decisões judiciais, a despeito do esforço do Novo Código de Processo Civil em detalhar o conceito de sentença efetivamente fundamentada.
Isso não acontece no sistema da common law, onde necessariamente o precedente não se desvincula do conjunto fático e jurídico que o formou. Embora exista divergências entre estes sistemas, cada vez mais o common law, não só influência o sistema da civil law, como também por ele é influenciado, como se observa com o crescimento constante do número de leis em países como a Inglaterra e Estados Unidos.
REFERÊNCIAS
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[1] Doutoranda em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos no programa de pós-graduação da Instituição Toledo de Ensino. Mestre em Direitos Humanos e Fundamentais pelo Centro Universitário FIEO. Máster (Título Propio) en Cuestiones Contemporáneas en Derechos Humanos pela Universidad Pablo de Olavide. Especialista em Direito e Comunicação Digital pela FMU. Bacharel em Direito pela Faculdade de Presidente Epitácio/SP. Membro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Professora de pós-graduação e graduação em Direito. Advogada.
[2] As datas que se apresentam neste trabalho não são precisas, mas apenas uma proximidade, dada as divergências que foram encontradas durante a pesquisa.
[3] Júlio César (Caio Júlio César) foi um importante militar, patrício e político romano, governou Roma entre 49 e 44 a.C. como um ditador absoluto.
[4] Diocleciano (Caio Aurélio Valério Diocleciano) foi o imperador romano de 284 d.C., até sua abdicação em 305 d.C.
[5] Também chamado de Justiniano, o Grande (Flávio Pedro Sabácio Justiniano Augusto), foi imperador romano oriental que governou desde 527d.C. até à sua morte, em 565 d.C.
[6] Alguns entendem que a Lex Aebutia somente aboliu a actio per condicionem e que foram as Leges Juliae – les iudiciorumm privatorum e lex iudiciorum publicorum – que extinguiram a legis actiones, passando a vigorar somente o processo formular (BORGES, 1987, p. 12)
[7] Inicialmente o prazo para cumprimento da obrigação era de dois meses, mais tarde passou a ser de quatro meses (ALVES, 2018).
[8] O plebiscito adquire caráter vinculante para todo o povo com a Lex Hortensia, de 287 a.C. (GUANDALINI JR., 2017, p. 12); a qualificação Lex vem do fato da equiparação dos plebiscitos às leis.
[9] À época da República romana, o termo jurisprudência tinha significado de interpretação ou parecer de um jurisconsulto, diferente do que entendemos na atualidade como decisões reiteradas dos tribunais.
Doutorando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos no programa de pós-graduação da Instituição Toledo de Ensino. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário pela Escola Paulista da Magistratura. Especialista em Direito Notarial e Registral pelo IBMEC. Juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Professor de pós-graduação e graduação em Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REGINALDO LOURENçO PIERROTTI JúNIOR, . Os precedentes e a aproximação e distinção do sistema romano-germânico e o common law Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2022, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59187/os-precedentes-e-a-aproximao-e-distino-do-sistema-romano-germnico-e-o-common-law. Acesso em: 24 nov 2024.
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Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
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