RESUMO: O presente trabalho possui como objetivo a demonstração de que o modelo de processo cooperativo, fundado na maximização do princípio do contraditório, sob o aspecto da não surpresa, ao processo penal, especificamente ao instituto denominado de emendatio libelli, se mostra perfeitamente possível e compatível com a Constituição Federal de 1988. A aplicação do Código de Processo Civil aos processos penais é possível não apenas de modo subsidiário, mas de modo principal, sobretudo, em razão dos grandes avanços que traz ao contraditório, mesmo sendo um código destinado a regular o processo nas relações privadas, se mostra bem mais garantista do que o Código destinado a regular o processo de cunho eminentemente restritivo das liberdades individuais. Faz-se uma proposta de interpretação à luz da moderna teoria do ordenamento jurídico, de modo que as normas não são interpretadas isoladamente, mas de acordo com a unicidade de todo o sistema jurídico.
Palavras-chave: Contraditório. Prévio. Emendatio. Libelli. Não Surpresa.
1.INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa a uma abordagem da aplicação do Código de Processo Civil ao processo penal, especificamente, da regra contida no artigo 10 do CPC, a partir de uma contextualização necessária que se fará em relação ao instituto denominado “emendatio libelli”, previsto no artigo 383 do Código de Processo Penal.
Para tanto, tomar-se-á como base o texto Constitucional, no que se refere à garantia do contraditório e da ampla defesa – artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, os já referidos artigos do Código de Processo Civil e Código de Processo Penal, além da doutrina correlata.
O Código de Processo Penal, criado em 1941 sob a forma de decreto-lei, espécie normativa já extinta do ordenamento jurídico pátrio e que em muito se assemelha à atual medida provisória, com a diferença de que não precisava passar pelo parlamento para ingressar no ordenamento com presunção de definitividade, prevê, em seu artigo 383, o que a doutrina denomina de “emendatio libelli”.
Tal instituto jurídico consiste na possibilidade de o juiz, após as alegações finais das partes, já na sentença, atribuir ao fato descrito na denúncia classificação jurídica diversa daquela indicada pelo Ministério Público, conforme se ver da transcrição do dispositivo legal: “o juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”.
A seu turno, o Código de Processo Civil, com forte inspiração nos tratados de direitos humanos, que visam a promover valores tidos por universais no que tange, sobretudo, às garantias processuais, e regulamentador de diversos princípios constitucionais ligados a tais, sobretudo, o contraditório e ampla defesa, institui, em seu artigo 10, que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
Partindo-se da perspectiva apresentada e observando um aparente conflito de normas processuais, embora cada um dos dispositivos dizem respeito a espécies procedimentais ou processuais diferentes, à luz da divisão clássica entre processo civil e processo penal, far-se-á uma análise cuidadosa e reflexiva da aplicação dos dispositivos, sobretudo, sobre um viés de interdisciplinariedade e do princípio fundamental da unidade do ordenamento jurídico, que deve guiar o intérprete na aplicação da norma jurídica.
2. BREVE ANOTAÇÃO SOBRE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO CONTRADITÓRIO.
A doutrina processual brasileira sempre cunhou o princípio do contraditório como um corolário do princípio da imparcialidade, reduzindo a sua conformação a mero direito de bilateralidade de audiência, ou seja, direito de dizer e contradizer.
Theodoro Júnior, Nunes, Bahia e Pedron, aduzem que o princípio do contraditório:
“foi relegado a uma mecânica contraposição de direitos e obrigações ou, como se tornou costumeiro afirmar, tão somente como um direito de bilateralidade da audiência, possibilitando às partes a devida informação e possibilidade de reação”. (Theodoro Júnior, Nunes, Bahia e Pedron, 2015, p. 69 – 70).
Ainda segundo os autores mencionados, é possível se extrair que:
“Ao notar a insuficiência do conteúdo atribuído ao contraditório, e já o vislumbrando como garantia dinâmica e como núcleo do processo, a doutrina italiana configurou, porém, perfis dinâmicos para um contraditório, agora substancial, atribuindo às partes possibilidades de participação preventiva sob qualquer aspecto fático ou jurídico que esteja sendo discutido e julgado. Na França, o art. 16 do Noveau Code de Procédure Civile impede o juiz de fundamentar sua decisão sobre aspectos jurídicos que ele suscitou de ofício sem ter antecipadamente convidado as partes a se manifestar acerca de suas observações. Assim, a garantia opera não somente no confronto entre as partes, transformando-se também num dever-ônus para o juiz, que passa a ter de provocar de ofício o prévio debate das partes sobre quaisquer questões de fato ou de direito determinantes para a resolução da demanda”. (Theodoro Júnior, Nunes, Bahia e Pedron, 2015, p. 69 – 70).
É no contexto exposto, que o princípio do contraditório, sobretudo com o advento do Código de Processo Civil de 2015, Lei 13.105/2015, ganhou uma abordagem cooperativa ainda quando era apenas um projeto de lei, conforme se depreende dos artigos 5º, 9º e 10 do Projeto de Lei do Senado Federal nº 166/2010. Veja-se a transcrição dos artigos do citado projeto:
“Art. 5.º As partes têm direito de participar ativamente do processo, cooperando entre si e com o juiz e fornecendo-lhe subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas de urgência” (sem grifo no original).
Art. 9.º Não se proferirá sentença ou decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida, salvo se se tratar de medida de urgência ou concedida a fim de evitar o perecimento de direito”
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício”.
Conquanto a redação do projeto de lei tenha constado os trechos acima transcritos, apenas o mencionado artigo 10 fora aprovado e passou a integrar a redação final da Lei 13.105/2015, positivando, no ordenamento pátrio, o dever de o juiz oportunizar o contraditório prévio, ainda que a matéria a ser decidida seja cognoscível de ofício, como é o caso previsto no artigo 383 do Código de Processo Penal, objeto do presente estudo.
Na doutrina italiana, encontra-se a posição de Civinini, para quem:
“o contraditório deve ser desenvolvido em todo o inter processual, em relação tanto às atividades das partes quanto às atividades do juiz, de modo que o exercício dos poderes oficiosos constitua expressão de um princípio de colaboração e não de autoridade no processo”. (CIVICINI, 1999, p. 6).
Também na Itália, é possível encontrar julgado importante da Corte de Cassação, que decidiu que “é nula a sentença que se funda em uma questão conhecida de ofício e não submetida pelo juiz ao conhecimento das partes” (Itália, Corte de Cassação, Seção I, 21 de novembro de 2001, n.º 14637, Pres. Criscuolo, Província de Pesaro e Urbino, p. 1.611-1.612.).
No Brasil, ainda é tímida a posição dos tribunais, sobretudo, Superiores, em relação ao tema. Com efeito, sempre se adotou uma postura formalista, fundada no modelo positivista de produção do Direito, de modo que a decisão que se funda na lei, não declarada incompatível com o seu fundamento de validade, é válida, não podendo ser objeto de controle por parte do órgão judiciário recursal.
Assim, com base no posicionamento mencionado, tanto os órgãos de primeira instância quanto os tribunais, têm mantido uma posição de deferência em relação ao artigo 383 do Código de Processo Penal, o que, no modesto entendimento da autora, contraria a Constituição da República Federativa do Brasil, especificamente a norma que se extrai do artigo 5º, inciso LV, além de apresentar incompatibilidade com a norma do artigo 10 do Código de Processo Civil, legislação mais moderna do ponto de vista temporal e compatível com o texto da Constituição.
3. OS CRITÉRIOS TRADICIONAIS DE SOLUÇÃO DE ANTINOMIAS SERIAM SUFICIENTES PARA SOLUCIONAR A CELEUMA APRESENTADA?
Por antinomia normativa há de se compreender o conflito entre duas ou mais normas, dentro de um mesmo espaço de aplicabilidade, ou seja, para o mesmo fato concreto, há duas ou mais normas, excludentes entre si, mas que se encontram em plena vigência, integrando, assim, o ordenamento jurídico.
Tradicionalmente, a doutrina, a parir da identificação da antinomia, propõe três critérios de solução a saber: a) hierárquico; b) cronológico; e c) de especialidade.
Celso Ribeiro Bastos, citando Carlos Maximilado, assim resume os critérios ora apresentados?
“O primeiro é o hierárquico, que está baseado na superioridade de uma fonte de produção jurídica sobre a outra, embora, às vezes, possa haver incerteza para decidir qual das duas normas antinômicas é a superior. O critério hierárquico, por meio do brocardo lex superior derogat inferiori (norma superior revoga inferior), informa que deve sempre prevalecer a lei superior no conflito.
O segundo critério apontado é o cronológico, que remonta ao tempo em que as normas começaram a ter vigência. O critério cronológico, por intermédio do brocardo lex posterior derogat priori (norma posterior revoga anterior), conforme expressamente prevê o art. 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil, preceitua que a lei mais nova, editada posteriormente, prevalece sobre a lei mais velha.
Por derradeiro, há o critério da especialidade, que visa a consideração da matéria normada. A superioridade da norma especial sobre a geral constitui expressão da exigência de um caminho de justiça: da legalidade à igualdade. O critério da especialidade, por meio do postulado lex specialis derogat generali (norma especial revoga a geral), opta pela prevalência da norma especial em detrimento da norma geral. Referido critério ancora-se na justificativa de que o legislador, ao tratar de maneira específica de um determinado tema, o faz, presumivelmente, com maior precisão”. (BASTOS, 2002, p. 86).
Do cotejo entre o artigo 383 do Código de Processo Penal e o Artigo 10 do Código de Processo Civil, observa-se que nenhum dos critérios acima elencados são capazes de resolver a antinomia e, ao mesmo tempo, preservar o efetivo contraditório, nos moldes já expostos.
Primeiramente, as duas normas são extraídas de leis de igual hierarquia, não sendo possível a solução por tal critério.
O critério cronológico levaria à aplicação da norma extraída do Artigo 10 do Código de Processo Civil. Contudo, pelo critério da especialidade, prevalece a norma do Artigo 383 do Código de Processo Penal.
Assim sendo, por serem critérios que dão uma solução antagônica entre si, sem que se apresente uma argumentação racional, nos moldes da moderna prática jurídica, qualquer solução a se chegar pela utilização dos métodos mencionados, de modo isolado, será inadequada, pois o Direito não mais admite interpretações que ignorem o todo do Ordenamento, ou seja, que desrespeitem a sua coerência e integridade, conforme se mostrará a seguir.
4 – O PRINCÍPIO DA UNIDADE DO ORDENAMENTO JURÍDICO: NÃO SE DEVE INTERPRETAR AS NORMAS JURÍDICAS DE MODO ISOLADO.
Das diversas acepções que podem assumir a palava Direito, adota-se, no presente texto, aquela que o define como um “sistema de normas, emanadas do Estado, com poder de coerção, composto por regras e princípios” (Dworkin, p. 25, 2010), concepção esta que se aproxima da daquela proposta por Bobbio, em sua Teoria do Ordenamento Jurídico e, ainda, à concepção pós positivista da ciência jurídica, que prevalece nos dias atuais, tendo em vista a superação do modelo positivista outrora prevalente e que guiou os juristas até meados do século XX.
Norberto Bobbio assevera que:
“As normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto com relações particulares entre si. Esse contexto de normas costuma ser chamado de ordenamento. E será bom observarmos que a palavra ‘direito’, entre vários sentidos, tem também o de ‘ordenamento jurídico’, por exemplo nas expressões ‘Direito romano’, ‘Direito canônico’, ‘Direito italiano’, ‘Direito brasileiro’.” (Bobbio, p. 19, 1999).
Mais adiante, o mesmo Bobbio deixa claro que:
“Só se pode falar de Direito onde haja um complexo de normas formando um ordenamento, e que, portanto, o Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo.” ( Bobbio, p. 21, 1999).
As palavras do mestre de Turim são bastante esclarecedoras no contexto apresentado, sobretudo, porque a norma jurídica do Artigo 283 do Código de Processo Penal não pode ser interpretada isoladamente, dando prevalência à especialidade, tampouco, a norma do artigo 10 do Código de Processo Civil Código de Processo Civil não pode ser apontada como prevalente apenas por ser cronologicamente mais nova.
A solução passa antes pela análise das normas em suposto conflito, num contexto de unidade e coerência do ordenamento, destacando-se o fato de que não só de regras é composto o sistema jurídico, mas também de princípios e, quando da aplicação do Direito ao caso concreto, regras e princípios se imbricam, não se excluem.
Para ilustrar o que ora se afirma, importante mencionar o caso Riggs v. Palmer, amplamente citado na literatura jurídica sobre Filosofia do Direito, e citado por Dworking na sua clássica obra “Levando os Direitos a Sério”, datada de 1977 com o título original de Taking rights seriously.
Em artigo esclarecedor sobre o caso em tela, Engelmann, Honhendorff e Santos, assim o narram:
“Em Riggs vs. Palmer, a autora do litígio foi uma das filhas de Francis Palmer, Mrs. Riggs. O caso foi apelado pelo réu Elmer Palmer, neto do falecido Francis Palmer, e também seu assassino, que veio em segunda instância pleitear a decisão da Corte Superior que lhe negara o recebimento da herança, vontade que seu avô havia deixado registrado em testamento.
Os fatos decorrem do assassinato de Francis Palmer, que fora envenenado por seu neto Elmer Palmer, o beneficiário de uma pequena fortuna acumulada por seu avô. Elmer, que vivia com seu avô na época de seu assassinato e sabia da existência do testamento, veio a envenenar-lhe logo após o novo casamento de seu avô Francis, que era viúvo, porém adentrava em um pacto antenupcial com sua nova esposa; tal mudança traria a Elmer a perda dos bens de seu avô perante o seu falecimento.” (Engelmann, Honhendorff e Santos, p. 324, 2017).
A solução apresentada ao caso acima proposto passa, antes de tudo, pela concepção de completude do Ordenamento Jurídico, ou seja, a norma jurídica que garantia o Direito à herança não poderia ser interpretada isoladamente, de modo a beneficiar o autor do homicídio do autor da herança.
Os autores acima mencionados, cintando trecho de obra de Engelmann, detalham o voto condutor do acórdão, proferido pelo juiz Robert Earl. Veja-se:
“O juiz Earl, usando o argumento de que era necessário considerar as intenções do legislador como de especificar a verdadeira lei, votou em sentido diferente. Isto significa dizer que é necessário pensar um pouco mais além das meras palavras utilizadas pelo legislador. Além destes aspectos, o juiz entendia que deveria ser mensurado o contexto histórico no momento de ser interpretada a lei. Além disso, defendia, igualmente, que fossem levados em conta os chamados princípios gerais do direito. Isto representava considerar os princípios de justiça pressupostos em outras partes do direito. Dentro desta linha de ideias, o juiz defendia que ‘o direito respeita o princípio de que ninguém deve beneficiar-se de seu próprio erro”.
Desta maneira, a lei sucessória deveria ser interpretada no sentido de negar a herança para aquele que tivesse cometido um homicídio para facilitar o seu recebimento. Este voto foi seguido por outros juízes, fazendo com que Elmer não recebesse a sua parte que havia sido destinada no testamento.” (Engelmann, Honhendorff e Santos, p. 324, 2017).
A menção ao caso Riggs v. Palmer se dá no contexto proposto, sobretudo, em razão do seguinte: caso se fizesse uma interpretação isolada da norma que garante o direito de herança, o autor do homicídio seria o beneficiário. Além do sentimento de injustiça a ser extraído da própria decisão nesse sentido, a repercussão negativa do julgado estimularia comportamentos contrários ao Direito, violando a paz social buscada pelas instituições jurídicas.
Mutatis mutandis, na relação entre Processo Civil e Processo Penal, as normas não podem ou não devem ser interpretadas ou aplicadas de modo isolado ou excludente, devendo ser interpretadas de acordo com o princípio fundamental do Direito, o da unidade do Ordenamento Jurídico.
No caso das normas dos artigos 283 do Código de Processo Penal e 10 do Código de Processo Penal, além da unidade e completude do Direito, há de se dá uma interpretação e aplicação que privilegie os direitos fundamentais, sobretudo, aqueles que constam no rol do Texto Constitucional, conforme se mostrará no tópico seguinte.
5. UMA PROPOSTA À LUZ DA TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Direito pátrio, sobretudo o Processo Civil, passou por uma grande transformação, deixando a tradição privatista e individualista de processo para adotar um modelo publicista e calcado nos direitos fundamentais, estes elencados no extenso rol de direitos constantes no Texto Magno.
José Herval Sampaio Junior, citando Virgílio Afonso da Silva, aduz que:
“A Constituição, que não pretende ser uma ordenação axiologicamente neutra, funda, no título dos direitos fundamentais, uma ordem objetiva de valores, por meio da qual se expressa um (...) fortalecimento da validade (ou) dos direitos fundamentais. Esse sistema de valores, que tem seu ponto central no livre desenvolvimento da personalidade e na dignidade humana no seio da comunidade social, deve valer como decisão fundamental para todos os ramos do direito; legislação, administração e jurisprudência recebem dele diretrizes e impulsos.” (Junior, p. 428, 2010).
Neste contexto, necessária a menção a Kelsen, para quem o Ordenamento Jurídico possui uma estrutura escalonada, analogicamente a uma pirâmide normativa, estando a Constituição Federal no ápice desta pirâmide e sendo a fonte de validade de todas as demais normas jurídicas, que lhe são hierarquicamente inferiores.
Embora muito se conteste o positivismo de Kelsen, a sua contribuição para a compreensão do Direito é bem relevante, pois é daí que se concebe a necessária obediência de todas as normas jurídicas ao texto da Constituição. É a partir dessa ideia de Ordenamento Jurídico escalonado, que se extrai a superioridade das normas constitucionais sobre as demais normas.
Luiz Guilherme Marinoni aduz que:
“Compreendida a nova concepção de Direito e as principais características do Estado constitucional, isto é, a subordinação da lei às normas constitucionais, a transformação do princípio da legalidade e da ciência do direito, a rigidez da Constituição, a plena eficácia jurídica das suas normas, a função unificadora da Constituição, assim como a imprescindibilidade de controle jurisdicional da constitucionalidade da lei e de sua omissão e a necessidade de a lei ser aplicada sempre de acordo com a Constituição, resta agora tratar da função que a nova ciência jurídica emprestou aos direitos fundamentais, construindo uma teoria que faz de tais direitos não só um suporte para o controle das atividades do Poder Público, mas também um arsenal destinado: i) a conferir à sociedade os meios imprescindíveis para o seu justo desenvolvimento (direitos a prestações sociais); ii) a proteger os direitos de um particular contra o outro, seja mediante atividades fáticas da administração, seja através de normas legais de proteção (direitos à proteção); e iii) a estruturar vias para que o cidadão possa participar de forma direta na reivindicação dos seus direitos (direitos à participação).... Por outro lado, para se compreender o que o juiz faz quando decide - se atua a vontade da lei etc. -, é necessário entender, além da concepção de direito do Estado contemporâneo, a função dos direitos fundamentais materiais. Mas, como a adequada prestação jurisdicional depende da universalidade do acesso à justiça, do plano normativo processual, da estrutura material da administração da justiça, bem como do com portamento do juiz, também é preciso pensar na relação entre o direito fundamental à tutela jurisdicional e o “modo de ser” da jurisdição, ou melhor, entre o direito fundamental processual do particular e a capacidade de o Estado efetivamente prestar a tutela jurisdicional.” (Marinoni, p. 63 – 64, 2006).
De notar-se que todo o ordenamento se funda nas bases de uma Constituição e a interpretação de todas as normas, sejam elas materiais ou processuais, devem ser aplicadas de modo a dá máxima efetividade ao texto constitucional.
Atento a isso, o legislador ordinário estabeleceu, no artigo 1º do Código de Processo Civil que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”.
Sobre o modelo ora discutido, Alexandre Freitas Câmara aduz que:
“O modelo constitucional de processo impõe, assim, um processo comparticipativo, policêntrico, não mais centrado na pessoa do juiz, mas que é conduzido por diversos sujeitos (partes, juiz, Ministério Público), todos eles igualmente importantes na construção do resultado da atividade processual”. (Câmara, p. 26, 2017).
É no contexto apresentado, que se propõe que as normas processuais sejam elas de natureza civil, penal ou administrativa, sejam interpretadas a partir das normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais.
Sendo, pois a norma do artigo 10 do Código de Processo Civil a que melhor se amolda à interpretação com base nos direitos fundamentais, não se pode afastar a sua aplicação no âmbito do processo penal, em relação ao instituto da emendatio libelli, ainda que se usem argumentos, até certo ponto, racionais e que tomem por base critérios já tradicionais de interpretação jurídica.
Para Gustavo Badaró,
o brocardo iuria novit curia que continua aplicável, somente autorizará a mudança da qualificação jurídica dos fatos alegados no processo, se as partes tiverem tido a oportunidade de se pronunciar sobre o novo enquadramento legal antes da decisão. A finalidade da regra é exatamente evitar a decisão surpresa, ou, como denomina a doutrina italiana, ‘decisione della terza via’.” (Badaró, p. 375, 2016).
Em suma, somente com a aplicação do Código de Processo Civil no contexto apresentado é possível a preservação dos direitos fundamentais no âmbito do processo penal e evitar decisão surpresa sobre argumentos não levados ao conhecimento das partes para discussão prévia à decisão judicial.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, portanto, que com as transformações pelas quais passou o Direito, sobretudo, após a Constituição Federal de 1988, não se pode interpretar as normas processuais de modo isolado, em desrespeito à unidade do Ordenamento Jurídico, tampouco deixar de considerar o texto constitucional, em especial, os direitos fundamentais.
Assim, advoga-se a tese de que o instituto da emendatio libelli continua válido e eficaz, contudo, não pode ser aplicado de modo isolado e sem considerar o direito fundamental ao contraditório, de modo que a aplicação do artigo 10 do Código de Processo Civil é suficiente para sanar o problema e preservar o direito das partes envolvidas, sem desprestigiar a faculdade de o Juiz interpretar os fatos e apontar classificação diversa da apontada na denúncia pelo Ministério Público.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BADARÓ, Gustavo. Correlação entre acusação e sentença: releitura da emendatio libelli à luz do contraditório sobre questões de direito, no novo Código de Processo Civil. In: Antonio do Passo Cabral; Eugênio Pacelli; Rogerio Schietti Cruz. (Org.) Repercussões do Novo CPC no Processo Penal. Salvador, Juspodivm, 2016, p. 357-378).
BASTOS, Celso Ribeiro: Hermenêutica e interpretação constitucional, 3ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002.
BOBBIO, Norberto: Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª ed. Brasília: Editora UNB, 1999.
CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 4ª edição – São Paulo: Atlas, 2017.
CIVININI, Maria Juliana. Poteri del giudice e poteri delle parti nel processo ordinario di cognizione. Rilievo ufficioso delle questioni e contraddittorio. Il Foro Italiano, Roma, v. CXXII, p. 3, 1999.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direito a Sério. 3ª edição. Editora WMF, 2010.
JUNIOR, José Herval Sampaio A influência da constitucionalização do Direito no ramo processual: neoprocessualismo ou processo constitucional? Independente da nomenclatura adotada, uma realidade inquestionável. In: DIDIER JR, Fredie. Teoria do Processo: Panorama Doutrinário Mundial. Volume 2. Salvador: Editora Juspdvim, 2010.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual. 4.ª série. São Paulo: Saraiva, 1989.
SANTOS, Paulo Júnior Trindade dos; ENGELMANN, Wilson; HOHENDORFF, Raquel von. O caso Riggs vs Palmer como Modelo adequado para decidis sobre os direitos fundamentais no panorama da constitucionalização do Direito no Brasil. Volume 18, n. 2, p. 321 – 346. Joaçaba, 2017.
Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins - UNITINS. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Única e Especialista em Direito Empresarial pela Faculdade Legale.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, PRISCILLA PEREIRA. Aplicação da regra do contraditório prévio ao instituto da emendatio libelli Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2022, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59222/aplicao-da-regra-do-contraditrio-prvio-ao-instituto-da-emendatio-libelli. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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