YURI ANDERSON PEREIRA JURUBEBA[1]
(coautor)
RESUMO: O presente artigo traz como objetivo central apresentar as questões e discussões oriundas da introdução da qualificadora do feminicídio no sistema jurídico brasileiro, realizando uma breve análise acerca da efetividade e do alcance dessa nova modalidade criminal no que tange ao resguardo da mulher frente à violência de gênero no país. Para tanto, aborda o conceito e o histórico do sistema patriarcal, principal fator por trás dos altos índices de feminicídio que acometem as mulheres brasileiras, e de que forma tal sistema ainda exerce influência sob as relações de gênero e entra em conflito com o progresso obtido através das normas específicas de amparo à mulher vigentes no Brasil. Buscou-se, ainda, apresentar à correlação entre a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) com a Lei do Feminicídio, bem como traçar um paralelo entre a lei mais recente e o Direito Penal Simbólico. Por fim, buscou-se apresentar a nova qualificadora trazer reflexões acerca de sua importância, bem como analisar brevemente a eficácia da criminalização do feminicídio como medida de viabilização da proteção à mulher e como meio de combate à violência de gênero.
Palavras-chave: feminicídio; direito penal; qualificadora; violência de gênero.
ABSTRACT: The main objective of this article is to present the questions and discussions arising from the introduction of the femicide qualifier in the Brazilian legal system, making a brief analysis of the effectiveness and scope of this new criminal modality regarding the protection of women against gender violence in the country. In order to do so, it addresses the concept and history of the patriarchal system, the main factor behind the high rates of femicide that affect Brazilian women, and how such a system still influences gender relations and conflicts with the progress achieved through the specific norms of protection for women in force in Brazil. It was also sought to present the correlation between Law nº 11.340/2006 (Maria da Penha Law) with the Femicide Law, as well as to draw a parallel between the most recent law and the Symbolic Criminal Law. Finally, it was sought to present the new qualifier and to bring reflections about its importance, as well as to briefly analyze the effectiveness of the criminalization of femicide as a measure to enable the protection of women and as a means of combating gender violence.
Keywords: femicide; criminal law; qualifier; gender violence
INTRODUÇÃO
Mesmo diante de um longo caminho que as mulheres galgaram ao longo do tempo na luta pela conquista aos seus direitos, sob a liderança de grandes movimentos feministas ao redor do mundo, ainda hoje é possível perceber como seu espaço na sociedade continua cerceado, em diversas esferas, pela sobreposição do sexo masculino em relação ao feminino.
Diferentemente de eras passadas, é possível perceber a evolução do mundo contemporâneo com relação a movimentos e políticas públicas que tem fomentado o respeito à diversidade e a diminuição das desigualdades, garantindo direitos igualitários a todos. Mesmo frente a esse cenário positivo, ainda é possível visualizar certos preconceitos e entraves enfrentados pelas mulheres, bem como a visão ainda predominante do homem como figura central da família, assumindo o papel de provedor e dominante dentro do seio familiar. Essa estrutura patriarcal perpetuada há séculos decorre de padrões culturais repassados de geração para geração.
A violência de gênero, termo utilizado para definir quaisquer violações aos direitos das mulheres em razão da condição de pertencer ao sexo feminino, permanece sendo um problema insistentemente presente no convívio em sociedade, como bem demonstram as estatísticas. Em que pese tais estatísticas serem cruéis na esfera brasileira, duas leis atualmente em vigor dispõem especificamente sobre a violência a mulher visando enfraquecer essa chaga social, sendo a mais recente delas e tema central abordado neste artigo a Lei 13.104/2015, denominada como a Lei do Feminicídio.
Entrando em vigor em 9 de março de 2015, a lei 13.104 altera o artigo 121 do Código Penal brasileiro, passando a prever o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio. A pena é de 12 a 30 anos de reclusão, podendo ser elevada em até 50% caso o crime seja praticado na presença de filhos, pais ou avós da vítima, durante a gestação ou nos três meses imediatamente pós-parto e ainda contra vítima menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência.
Indo na contramão do avanço proporcionado pela vigência da lei supracitada, dados do 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que o país registrou 449 casos de feminicídio em 2015, contra 621 registros no ano de 2016, representando um aumento de 38,3%. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a taxa de feminicídios no Brasil — de 4,8 para 100 mil mulheres — é a quinta maior do mundo.
Diante de tal fato, pergunta-se: A lei 13.104/2015 cumpre seu papel como instrumento viabilizador da proteção à mulher no ordenamento jurídico brasileiro? Por que mesmo diante de um visível avanço no que tange ao amparo jurídico à mulher no Brasil os dados mostram uma perspectiva contrária?
Tal questão vai além dos aspectos jurídico normativos, perpassando também pelos aspectos socioculturais de uma sociedade de raízes patriarcais e machistas, fonte de onde emana a violência de gênero, que frequentemente alcança seu patamar mais alto: o feminicídio. Como abordam Narvaz e Koller (2006), mesmo que não se possa atribuir ao patriarcado a explicação de todas as opressões sofridas pelo sexo feminino, é a partir de tal sistema que a violência contra as mulheres surge.
Não obstante, o amparo jurídico se faz necessário e imprescindível para combater esse tipo de crime. Ainda que os feminicídios ocorram em escala mundial, as estatísticas brasileiras são alarmantes. Tipificar especificamente a conduta foi um grande avanço no combate deste fenômeno, entretanto, é nítido como ainda há muito que evoluir nessa questão.
O objetivo geral deste estudo é refletir sobre a importância da Lei 13.104/2015 enquanto agente modificador da compreensão do papel social da mulher a partir da necessidade da proteção de seus direitos e de sua integridade física. Nesse contexto, inicialmente, serão abordados conceitos de patriarcado e sua relação direta com a violência de gênero, bem como a ocorrência dessa violência na atualidade especialmente dentro do contexto brasileiro. Em seguida, versará acerca da criação da Lei 13.104/2015, por meio da qual os assassinatos de mulheres por questões de gênero passaram a ser considerados feminicídios.
Nesta pesquisa busca-se analisar o alcance da lei estudada com relação a sua aplicação prática, estabelecendo um paralelo entre o que é possível ser controlado pela lei e o que foge ao controle do seu escopo, buscando compreender os fatores intrínsecos ligados a violência doméstica e familiar. Ademais, tem-se como objetivos específicos: abordar, em uma breve reflexão, a cultura brasileira e o ainda grande favorecimento de uma posição desfavorável da mulher, discutir sobre a violência contra o corpo feminino como reflexo de uma visão patriarcal da mulher reforçada por parâmetros de ordem cultural, abordar a Lei 13.104/2015 e seu alcance na proteção da integridade física e dos direitos da mulher, e, por fim, abordar sobre o que ainda falta melhorar no que diz respeito à plena eficácia da lei em questão.
O presente trabalho terá enfoque, dentre outros aspectos, em como a Lei do Feminicídio representa, ao mesmo tempo, um avanço na luta contra o crime ao qual se dispõe a combater e uma estagnação frente a diversos outros fatores que fogem ao controle do escopo da lei. Para isso, a metodologia empregada na pesquisa utilizará o método de abordagem qualitativa.
Em relação à técnica, será de caráter bibliográfico, pois “é a que se desenvolve tentando explicar um problema, utilizando o conhecimento disponível a partir das teorias publicadas em livros e obras congêneres” (KOCHE, 2013, p. 122). Assim, o estudo terá como base fontes de pesquisa como livros, doutrinas, jurisprudências, reportagens e artigos veiculados em revistas jurídicas e científicas, artigos científicos publicados sobre o tema e legislação, bem como materiais publicados em ambiente virtual.
1 A CULTURA PATRIARCAL E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Pode-se definir patriarcado como uma instituição social caracterizada pela dominação masculina nas sociedades nos mais variados âmbitos, sejam eles políticos, econômicos, sociais ou familiares. O patriarcado se configura num "sistema de estruturas no qual o homem domina, oprime e explora as mulheres" (WALBY, 1990, p. 20). Esse sistema não se trata de relações individuais ou de explicações de fatores científico-biológicos para a compreensão da dominação masculina, e sim parte de um problema de profundas raízes estruturais que afetam o coletivo e se encontra nas diversas dimensões da vida ao longo da história.
O patriarcado pode, ainda, ser compreendido como um sistema contínuo de dominação masculina ainda predominante nas estruturas sociais e estatais, mantendo as formas de divisão sexual do trabalho e perpetuando, consequentemente, a violência cotidiana contra as mulheres (MATOS; PARADIS, 2014).
A compreensão dos conceitos e significados de patriarcado é primordial para assimilar a opressão sofrida pelas mulheres historicamente. Em meio a diversos significados conceituados por autores diversos, é de entendimento comum que o patriarcado é um sistema social no qual impera a dominação masculina acima da feminina, mantendo assim os indivíduos do sexo feminino à margem da sociedade e submissos ao poder masculino nas várias esferas que compõem a vida como um todo.
A violência e o assassinato de mulheres são banalizados nesse sistema patriarcal, falocêntrico e misógino, no qual ficam submetidas ao controle masculino, seja pela figura de um cônjuge, familiar ou desconhecido. Estes crimes não são ocasionados por condições patológicas dos agressores, mas devido ao desejo e sensação de posse das mulheres, vistas constantemente em uma posição de submissão, por não corresponderem aos papéis de gênero designados pelo regime.
O patriarcado se apoia na formatação da construção social do gênero, sendo que é esperado da mulher o papel de um indivíduo frágil, quieto, passivo. Em contrapartida, o homem deve criar uma masculinidade dominante, agressiva. Este é o ponto central da constituição da família patriarcal, que transforma mulheres em vítimas e homens em agressores. A violência é, portanto, um instrumento de reforço para tais papeis de gênero. Ainda que criminalizadas por lei, condutas violentas como estupro, violência doméstica, assédio sexual e feminicídio são frequentes devido ao fato de terem uma base de sustentação ideológica e serem validadas pela estrutura do patriarcado.
O sistema patriarcal que rege as relações entre indivíduos do sexo oposto se relaciona diretamente com as estatísticas da chamada violência de gênero, que por muitas vezes acaba culminando no feminicídio, sendo que a violência de gênero ocorre com base na ideia propagada de que há uma obrigação da mulher perante o homem, sendo que esta é coagida a se portar de acordo com o esperado, sofrendo consequências caso não o faça.
1.1 A influência da cultura patriarcal na violência contra a mulher no Brasil
Pilar central de sustentação do sistema patriarcal, o machismo se faz extremamente presente no cenário cotidiano brasileiro. Papéis de gênero são atribuídos aos sujeitos desde o ventre, os quais espera-se que sejam performados durante toda a vida. Às mulheres, atribui-se o papel de sensibilidade, bom comportamento, retenção de emoções, delicadeza e submissão, enquanto que aos homens é atribuído um papel inteiramente oposto, qual seja, o de protetor, provedor, chefe. Como elucida Drummontt (1980):
O machismo enquanto sistema ideológico oferece modelos de identidade, tanto para o elemento masculino como para o elemento feminino: Desde criança, o menino e a menina entram em determinadas relações, que independem de suas vontades, e que formam suas consciências: por exemplo, o sentimento de superioridade do garoto pelo simples fato de ser macho e em contraposição o de inferioridade da menina (DRUMMONTT, 1980, p.81).
Esse sistema preconceituoso encontra-se inserido majoritariamente nos ambientes familiares, onde são construídas as regras e normas da vida social. O processo de educação transmite a cada um de nós as regras e os valores construídos pelos que nos antecederam (GIKOVATE, 1989). Cada indivíduo é guiado a aprender tudo o que a cultura considera como importante no processo da vida em sociedade e é a partir dessa bagagem que certo padrão pessoal de vida masculina é inserido. Como aborda Blay (2003), tal violência de gênero perpetua-se pela história visto que tais comportamentos são apreendidos e repassados de geração em geração:
Agredir, matar, estuprar uma mulher ou uma menina são fatos que têm acontecido ao longo da história em praticamente todos os países ditos civilizados e dotados dos mais diferentes regimes econômicos e políticos. A magnitude da agressão, porém, varia. É mais frequente em países de uma prevalecente cultura masculina, e menor em culturas que buscam soluções igualitárias para as diferenças de gênero. (BLAY, 2003, p. 87).
Ainda abordando a problemática através de um viés histórico, é possível relacionar a perpetuação deste sistema misógino no país ao período escravocrata, no qual a violência à mulher era uma constante, sendo que estas eram espancadas e violentadas de todas as formas pelos senhores de engenho. Mesmo diante de um longo período de evoluções no que tange a posição da mulher brasileira perante a sociedade, ainda é possível observar as cicatrizes deixadas por tais períodos da história, refletindo-se no modelo patriarcal que ainda hoje rege as relações de gênero.
De acordo com uma pesquisa realizada pela ONU, 81% dos homens entrevistados concordaram que o machismo é recorrente no Brasil, identificando o sentimento de posse sobre a mulher, controle sobre seu corpo, desejo e autonomia, limitação da ascensão profissional e da autonomia econômica, tratamento da mulher como objeto sexual e manifestação de desprezo e ódio por sua condição de gênero como alguns dos fatores comuns nos casos de violência doméstica e feminicídios no país no âmbito familiar e social.
Portanto, depreende-se que é predominante a visão do Brasil como um país de cultura machista. Tal reconhecimento crítico é importante e demonstra posturas mais atentas, ao passo que revela também obstáculos ainda persistentes mesmo diante de propostas de reorganização social e reestruturação das relações de gênero (GONZALEZ, 2014).
Mesmo diante de um panorama cada vez mais otimista na luta feminina pelo resguardo de seus direitos e pela equidade entre os gêneros, a cultura do patriarcado pouco se alterou ao longo de tais conquistas. As formas de opressão apenas transformaram-se, tornando-se mais amenas se comparadas com a realidade de séculos passados, quando a mulher ainda não era sujeito possuidor de direitos perante a sociedade, entretanto é irreal afirmar que foram erradicadas.
A mulher continua sendo sobrecarregada no seio familiar e se vê obrigada na grande maioria das vezes a cumprir dupla jornada de trabalho, ficando dividida entre os afazeres do lar e os trabalhos externos, quando inserida no mercado de trabalho. A responsabilidade de gerenciar a família, educar os filhos e cuidá-los, bem como preservar a harmonia no matrimônio continua recaindo sobre a mulher.
Embora haja uma crescente discussão a respeito da posição da mulher diante da sociedade e do aumento de movimentos feministas que lutam pela abolição de todas as formas de opressão patriarcal, no Brasil ainda são frequentes as vezes em que casos de feminicídio são abordados a partir de uma visão que busca amenizar a gravidade do crime cometido e até mesmo justificar a ação tomada pelo agressor.
Até metade do século 20, eram comuns situações nas quais mulheres eram assassinadas por seus maridos, e estes receberem penas brandas por alegarem crimes passionais e a defesa da honra. Esses crimes seriam motivados “por amor”, induzindo o réu a cometer tal barbárie. Esse fator influencia o modo como a questão do feminicídio é tratada no Brasil ainda hoje, visto que é corriqueiro se deparar com canais midiáticos expondo o assassinato de mulheres como sendo uma consequência de um momento de descontrole por parte do agressor, e não raras vezes apresentam o comportamento da vítima como uma justificativa para a conduta criminosa:
Expressões como ‘enciumado’, ‘inconformado com o término’, ‘descontrolado’ ou até mesmo ‘apaixonado’ são os adjetivos utilizados em manchetes a fim de romantizar os crimes bárbaros de feminicídio, encarados como “crimes passionais” pela sociedade, pela mídia e até mesmo pelo Sistema Judiciário (SOUZA, 2019).
Assim, questão do feminicídio no Brasil está intrinsecamente relacionada à subjugação da mulher, e também à reprodução sociocultural de falas carregadas de preconceito e misoginia, consideradas comuns e absorvidas pelo repertório popular como algo normal, sendo a grande massa incapaz de atentar-se a mácula presente em tais falas aparentemente inofensivas, mas que, além de perpetuar a postura machista nos meios sociais, ainda atribuem à mulher a responsabilidade pela agressão sofrida.
Dessa forma, faz-se necessário abordar a maneira como a questão tem sido tratada no Brasil a partir de um exame crítico. A compreensão do assunto ainda é, em grande parte, comprimida e limitada ao âmbito jurídico. A sociedade brasileira carece de ações que traduzam a gravidade dessas condutas e auxiliem a combatê-las e preveni-las, de modo a promover uma cultura de respeito pela mulher e também a desenvolver uma forma de ação auto defensiva das próprias mulheres.
2 LEGISLAÇÃO CONTRA A VIOLÊNCIA A MULHER NO BRASIL
2.1 Lei nº 11.340/06
Irrefutavelmente, um dos marcos mais importantes na luta pela proteção das mulheres em face da violência foi a Lei nº 11.340/06, conhecida popularmente como “Lei Maria da Penha”. Essa lei adveio do resultado da atuação dos movimentos feministas e da tramitação do caso Maria da Penha versus Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no ano de 2001.
A partir de então, o Estado brasileiro iniciou um processo de revisão das estratégias e políticas públicas de defesa dos direitos humanos de suas cidadãs, e, dentre algumas das providências, pode-se ressaltar a criação da lei supracitada como um dos mais relevantes avanços legislativos no combate à violência contra a mulher, por denunciar o cotidiano de violência doméstica e tornar visível uma violação de direitos protegida pelo véu da vida privada (MACHADO et al., 2015).
A nova legislação trouxe um leque de instrumentos a fim de viabilizar a proteção e o acolhimento emergencial à vítima, isolando-a do agressor, por exemplo, por meio das medidas protetivas de urgência, ao mesmo tempo em que criou ferramentas visando a garantia da assistência social da ofendida. A Lei nº 11.340/06 representou um avanço indiscutível no que tange ao resguardo da mulher na esfera jurídica brasileira, ao prever cinco tipos de violência doméstica, a saber: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial.
Embora haja lacunas na Lei Maria da Penha, é inegável que a sua edição deu uma visibilidade maior à violência doméstica baseada no gênero, que por muitos anos foi ignorada. Sua promulgação voltou olhares do mundo jurídico em busca de medidas mais eficazes na proteção das mulheres.
Em razão da gravidade e da alta incidência da violência contra as mulheres, as discussões sobre a possibilidade de tipificar o feminicídio como crime eclodiram e, em março de 2015, o Congresso Nacional aprovou e o Poder Executivo Federal sancionou a Lei nº. 13.104, que passou a viger desde então, tornando-se conhecida como Lei do Feminicídio.
2.2 Lei nº 13.104/2015
A tipificação do feminicídio surge como uma forma de dar continuidade à política legislativa iniciada com a chamada Lei Maria da Penha no enfrentamento à violência contra a mulher. Apesar dos reconhecidos avanços tidos pela Lei nº 11.340/2006, nota-se uma carência em sua tutela criminal, uma vez que a referida lei disciplina de forma diferenciada, em suma, apenas lesões corporais em razão da violência doméstica, não abrangendo a morte decorrente desse tipo de violência. Assim, a Lei nº 13.104 entrou em vigor em 10 de março de 2015 discorrendo sobre o Feminicídio, tendo sua origem em 2012, na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) de Violência contra a Mulher no Brasil e no Projeto de Lei do Senado nº 292 de 2013. Segundo afirma a Relatora da CPMI, Ana Rita:
O projeto é oriundo da CPMI Mista da Violência contra a Mulher. Na justificativa da proposta, a comissão observa que a aprovação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) foi um ponto de partida, e não de chegada, no combate à violência contra a mulher. Daí a defesa da inclusão do feminicídio no Código Penal, em sintonia com recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU).
A Lei nº. 13.104/2015 tipifica o feminicídio como homicídio qualificado, considerado crime hediondo. Assim, os casos de violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação contra a condição feminina passam a ser vistos como qualificadores do crime, se essa violência resultar em homicídio. Os homicídios qualificados têm pena de 12 a 30 anos de reclusão, conforme o art. 121, § 2º do Código Penal Brasileiro, enquanto os homicídios simples preveem reclusão de 6 a 20 anos de acordo com a mesma norma.
A criminalização do feminicídio foi uma medida necessária e coerente diante da dívida histórica que a sociedade carrega em relação as mulheres, mas a judicialização dessa conduta criminosa é apenas o pontapé inicial de muitas modificações que o Estado deve instituir a fim de erradicá-la. O cerne da questão do combate ao feminicídio não deve ser simplificado a mera instituição da norma, sendo a redução da desigualdade entre os gêneros um dos fatores primordiais para a resolução desse conflito. É correto dizer, contudo, que o estabelecimento da lei específica significa um avanço na forma de enfrentamento da questão no país.
3 ESTATÍSTICAS DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO E FEMINICÍDIO NO BRASIL
Como já citado anteriormente na introdução do presente estudo, mesmo após iniciada a vigência de uma lei mais específica destinada a conter os assassinatos de mulheres no Brasil, ao analisar-se os dados notou-se um crescimento nas taxas de feminicídio entre 2015 e 2016, o que demonstra uma grande contradição em relação a eficácia da referida lei. Foram 449 casos de feminicídio registrados em 2015, contra 621 registros no ano de 2016, representando um aumento de 38,3%.
Nos anos posteriores esse crescimento também foi observado. Uma pesquisa promovida pelo jornal Folha de S. Paulo entre os 27 estados da federação revelou que, em 2019, 1.310 assassinatos decorrentes de violência doméstica ou motivados pela condição de gênero, características do feminicídio, foram registrados no país, revelando um aumento de 7,2 % em relação a 2018, ano em que foram registrados 1.222 casos.
Ainda de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, no ano de 2020 foram contabilizados no país 3.913 homicídios contra mulheres, com 230.160 casos de lesão corporal dolosa por violência doméstica, registrados na Polícia Civil. Foram 1350 feminicídios, dos quais 81,5% cometidos por companheiros ou ex-companheiros. Esta relação indica que 34,5% do total de assassinatos de mulheres foi considerado como feminicídio pelas Polícias Civis estaduais. Atualmente, a taxa de feminicídios no Brasil é registrada como a 5ª mais alta do mundo, sendo a proporção de assassinatos registrados de 3,6 para cada 100 mil mulheres no ano de 2020.
É possível observar, portanto, a partir dos dados expostos, que nem mesmo a instituição de uma norma específica direcionada a combater o assassinato de mulheres tem sido eficiente o bastante para a diminuição destas estatísticas no Brasil. Isso reforça, mais uma vez, como somente uma modificação no sistema jurídico é insuficiente para combater a chaga do feminicídio no país.
Segundo a deputada Flávia Arruda (PL-DF), coordenadora de uma comissão externa da Câmara para o combate à violência contra a mulher, existe a necessidade de uma mudança cultural: "Temos um problema muito sério no Brasil, que é um machismo arraigado na sociedade, que a gente precisa trabalhar isso na base. Desde a educação, nas escolas, dentro de casa, porque só assim essa cultura vai acabar", opina.
4 A EFICÁCIA OU INEFICÁCIA DA LEI 13.104/2015
4.1 Lei do Feminicídio e Direito Simbólico
O Direito Penal Simbólico é um instrumento utilizado como forma de aprovação de leis penais mais severas, como uma resposta ao clamor público que surge usualmente após crimes bárbaros de grande repercussão social e midiática, mas que na prática, não representa uma resposta de fato efetiva à solução do conflito.
As leis penais de caráter simbólico surgem, então, a fim de criar novos tipos penais ou aumentar a severidade em normas penais que já estão em vigor. Pode-se dizer que são leis que surgem com a finalidade de trazer tranquilidade à sociedade e trazer uma resposta as suas demandas de caráter urgente. Como elucida Roxin (2000):
Assim, portanto, haverá de ser entendida a expressão "direito penal simbólico", como sendo o conjunto de normas penais elaboradas no clamor da opinião pública, suscitadas geralmente na ocorrência de crimes violentos ou não, envolvendo pessoas famosas no Brasil, com grande repercussão na mídia, dada a atenção para casos determinados, específicos e escolhidos sob o critério exclusivo dos operadores da comunicação, objetivando escamotear as causas históricas, sociais e políticas da criminalidade, apresentando como única resposta para a segurança da sociedade a criação de novos e mais rigorosos comandos normativos penais. (ROXIN, 2000)
Dessa forma, é possível estabelecer a relação direta entre a Lei do Feminicídio e o Direito Penal Simbólico, considerando o objetivo principal do Estado ao sancionar a lei ter sido responder aos clamores da população face aos crimes bárbaros praticados contra as mulheres diariamente. A lei mais severa vem como uma forma de colocar “panos quentes” diante da situação pela qual a sociedade exige uma resposta, demostrando a plena atividade e posicionamento do Estado frente a tais cobranças.
Apesar disso, como restou comprovado ao longo deste artigo e principalmente através da exposição de estatísticas, é possível notar como a mera instituição da norma não apresenta grande funcionalidade e eficácia sem a junção de outros fatores que coadunem com seu conteúdo. Assim, fica evidente como o Direito Penal Simbólico foi uma ferramenta jurisdicional utilizada pelo Estado a fim de oferecer uma resposta ao quadro alarmante de violência contra a mulher e feminicídios ocorridos no país.
4.2 Medidas complementares como forma de extensão da eficácia da lei
O Direito Penal unicamente não é capaz de prover inteiramente a solução para a problemática da violência contra a mulher no Brasil. Existem questões muito mais profundas a serem curadas desde a “raiz” do problema para que a lei possa efetivamente funcionar como dispõe em seu texto.
Medidas preventivas são necessárias para que façam a diferença antes de chegar ao direito penal. A utilização do direito penal é eficaz como forma de coerção e repressão após a conduta criminosa, mas até que se chegue a esse ponto é necessária uma mobilização para que esta seja evitada ao máximo. Há a necessidade da criação de medidas que previnam a ocorrência da violência em todos os seus níveis, seja física, psicológica, moral entre outras para que se evite que elas alcancem seu patamar mais avançado: o feminicídio. A desconstrução do modelo de sociedade patriarcal e da ideia da inferioridade feminina enraizadas em grande parte das relações de gênero são certamente grandes dificuldades a serem enfrentadas, assim como a negação da desigualdade existente entre homens e mulheres, que ocasiona um obstáculo ao identificar a violência e consequentemente a criação de medidas eficazes para combatê-la.
Ainda que diante de tais dificuldades, há um leque extenso de opções do que seriam potenciais mudanças significativas nessa luta. Uma maior capacitação dos profissionais do judiciário, palestras ofertadas gratuitamente às comunidades que orientem como agir e identificar uma violência de gênero, campanhas de sensibilização nas escolas e ambientes de trabalho, serviços que orientem mulheres a buscar ajuda e proteção, uma reformulação do conceito de família atual, atribuindo igualdade ao papel de homem e mulher no meio conjugal, bem como um oferecimento por parte do poder judiciário de uma rede de proteção e apoio moral e psicológico para mulheres vitimizadas pela violência doméstica são apenas algumas medidas que, uma vez instituídas e levadas rigorosamente a sério, surtiriam efeitos positivos no combate à questão do feminicídio.
Em entrevista concedida ao Instituto Humanisa Unisinos On-Line, Luanna Tomaz, mestra e doutora em Direito, comenta a respeito da tipificação da lei do feminicídio:
Nesse sentido, a lei do feminicídio é importante e significativa em um país como o Brasil que, historicamente, tratou esse assunto de forma não explícita. Na verdade, nunca se deu visibilidade a essa questão; ignorou-se esse problema. Então, o fato de identificar e sinalizar a existência do problema facilita, por exemplo, a elaboração de políticas públicas. Agora, a lei do feminicídio não pode ser a única política pública, não é possível acreditarmos que tudo se resolve a partir do direito penal; precisamos ter outras ações. A própria Lei Maria da Penha menciona a necessidade de realizar ações de prevenção, de assistência, mas ainda há um viés muito grande na questão punitiva.
Portanto, ainda que o direito penal não seja o principal meio de combater à violência contra as mulheres, a tipificação do feminicídio é de grande valia para que novas medidas sejam criadas, e, por fim, as políticas públicas devem ser complementares a reformas estruturais em todos os sistemas, desde a educação básica ao exercício da cidadania e perpassando todas as etapas da vida do indivíduo inserido em sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando todos os dados apresentados nesse estudo, fica nítido que a lei 13.104/2015, embora tenha representado um progresso no respaldo jurídico da proteção à mulher no Brasil, e, não obstante a análise proposta no presente artigo ter sido sucinta, observou-se que o sancionamento da lei em questão não provocou mudanças significativas no combate ao feminicídio na prática.
Ante o exposto, pode-se concluir que o Estado não tem sido capaz de trazer soluções efetivamente eficazes para os estigmas sociais através de legislações, haja vista que mesmo sancionando leis de caráter emergencial, a criminalidade continua crescendo. Contudo, a raiz de tal problema é muito mais difícil de ser sanada, visto que a violência contra a mulher é consequência de uma sociedade historicamente pautada no machismo e na estrutura patriarcal, que por um longo período de tempo ditou a submissão e opressão do gênero feminino como pilares da relação homem-mulher.
A problemática do feminicídio não será solucionada simplesmente através de leis mais rigorosas e sim através de programas de educação e conscientização, da desconstrução da objetificação e da submissão feminina perante o masculino num trabalho minucioso e detalhado desde a base educacional. É preciso disseminar a necessidade da emancipação feminina perante os homens e sua reconstrução como sujeito de direitos e deveres e de forma equitativa como se prevê a Constituição Federal de 1988.
Por fim, é essencial que o Estado forneça sempre meios seguros para que as mulheres possam engajar ativamente na luta pelos seus direitos, ofertando cada vez mais delegacias especializadas à proteção à mulher e garantindo sua segurança e integridade física para que se sintam seguras e amparadas ao denunciar um caso de agressão. É o conjunto de ações que devem ser empreendidas entre a tríade sociedade, Estado e sistema judiciário que será capaz de combater de forma mais eficaz e, principalmente, evitar que os feminicídios aconteçam, reduzindo finalmente as estatísticas que continuam a crescer a cada ano no país.
REFERÊNCIAS
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[1] Doutorando em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Professor da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Assessor Jurídico de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins.
Graduanda em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Laura Stefani Soares e. Feminicídio: a Lei 13.104/2015 como instrumento viabilizador da proteção à mulher no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 out 2022, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59690/feminicdio-a-lei-13-104-2015-como-instrumento-viabilizador-da-proteo-mulher-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 04 dez 2024.
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