DARIO AMAURI LOPES DE ALMEIDA
(orientador)
RESUMO: O presente estudo dedica-se à análise da segurança jurídica de pessoas transexuais que sofrem violência no âmbito doméstico com a aplicabilidade da Lei n. 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, sando ênfase às mulheres transgênero em situação de violência doméstica e familiar. Para tanto, faz uma análise dos conceitos de sexo, gênero e orientação sexual, trazendo o entendimento da doutrina sobre o tema. Adiante, passa à contextualização da Lei Maria da Penha. Por fim, é apresentada a possibilidade de a mulher transgênero figurar como vítima de violência doméstica e familiar, apresentando-se o posicionamento de diferentes instituições relacionadas ao Poder Judiciário, além de se proceder à análise da jurisprudência em segunda instância de tribunais de diferentes estados brasileiros que versam sobre o assunto. Trata-se de uma pesquisa qualitativa com análise documental e de conteúdo, tendo como objeto de análise, julgados sobre a temática. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha à mulher transgênero mostra-se, além de adequada, necessária, para a proteção destes sujeitos de direito e garantia de sua dignidade humana.
PALAVRAS-CHAVE: Pessoas Transexuais; Identidade de Gênero; Violência de Gênero; Violência Doméstica; Direito Penal.
Define-se “gênero” como um conjunto de comportamentos socioculturais impostos, delimitados pela lógica binária para definir o que é ser homem ou mulher (Connell, 2015). Essa definição dificulta a auto percepção sobre si, que é subjetiva e dinâmica. A identidade de gênero congrega um conjunto de valores, motivações e experiências apreendidas ao longo da vida que legitima outras formas de ser. As pessoas que se identificam nos padrões de aparências e comportamentos culturalmente impostos ao sexo biológico são denominadas homem ou mulher cisgênero ou cis, cuja identidade e expressão de gênero correspondem ao sexo (Connell, 2015). A linearidade entre corpo-sexo-gênero na sociedade ocidental faz com que pessoas transgênero ou trans não se identifiquem com o gênero atribuído ao nascimento, legitimado por meio de características sexuais anatômicas. Assim, mulheres transgênero não se reconhecem no gênero masculino designado ao nascimento, mas, ao longo da vida, reconhecem-se no gênero feminino como mulheres transexuais ou travestis (Flotskaya, 2018).
Mulheres transgênero se deparam, frequentemente, com ações discriminatórias na sociedade que são oriundas de estigmas decorrentes de um histórico de patologização de sua identidade pelas ciências médicas (Ring, 2018). Ao buscarem a realização da hormonização ou até de procedimentos cirúrgicos a fim de ter a imagem corporal feminina, deparam-se com o despreparo e falta de sensibilização dos profissionais nos serviços de saúde para o acolhimento e atendimento dessas necessidades. Tal situação pode resultar em tratamento abusivo, negligência e culminar em condições prejudiciais à saúde mental, física e sexual (Caravaca-Morera, 2017).
As mulheres cisgênero ou transgênero estão mais suscetíveis a sofrer violência a qualquer momento da vida pelo fato de serem mulheres (Brilhante, 2016). A violência de gênero se torna mais grave para aquelas que possuem condições socioeconômicas precárias, que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas e as que são profissionais do sexo, pois estão mais expostas aos processos históricos que as vulnerabilizam (Leddy, 2019).
Ainda, ressalta-se que a violência de gênero envolve três estruturas sociais — o patriarcado, o machismo e o capitalismo —, que agem de modo insidioso e operam por meio de lógicas que vão hierarquizar corpos e vidas (Meneghel, 2017). As relações de poder que permeiam a sociedade e as famílias, e que se valem da inferiorização do gênero feminino mediante a supremacia do patriarcado, alimentam a violência de gênero reproduzida contra as mulheres trans. Essa violência pode resultar em assassinatos, estupros, agressões físicas, verbais, psicológicas, sexuais, coerção, ataques em ambientes públicos ou privados, discriminação em locais de trabalho formal, serviços de saúde e instituições de ensino (United Nations, 2011).
A violência de gênero perpetrada contra as mulheres trans nos serviços de saúde ocorre, por vezes, pela reprodução de uma prática assistencial binária e discriminatória, imersa numa estrutura de opressão denominada transfobia institucionalizada. Tais situações contribuem para a assistência dissonante às necessidades em saúde das mulheres trans, bem como para a desconsideração de suas especificidades e favorecimento da não procura por cuidados à saúde (United Nations, 2011). De acordo com a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, a atenção integral à saúde dessas pessoas no Sistema Único de Saúde (SUS) reconhece que o estigma, a discriminação, a violência doméstica, sexual e social são causadores de adoecimento e necessitam de estratégias de enfrentamento e cuidado de forma intrassetorial e intersetorial, como consta nas diretrizes e atribuições trazidas pela política no âmbito do Ministério da Saúde e Secretarias Estadual e Municipal de Saúde (Ministério da Saúde, 2013).
Diante dos esclarecimentos intróitos, é fundamental que os enfermeiros conheçam as evidências científicas sobre o fenômeno da violência de gênero que permeiam a vida das pessoas trans, em especial das mulheres trans, a fim de exercer a prática coerente com as suas necessidades jurídico-sociais e de saúde. Destaca-se ainda, que a aquisição ou a ampliação de conhecimentos necessários ao cuidado integral à vida dessas mulheres pode contribuir para a redução de novas situações de violência nos serviços públicos e possibilitar a visibilização por meio do debate sobre a temática nos espaços sociais e políticos.
2 GÊNERO E SEXO
Compreende-se por sexo biológico, o órgão genital que integra a estrutura corporal, dividindo-se em dois grupos: homem e mulher. Rubio diferencia o sexo biológico da seguinte forma:
As diferenças de sexo seriam dadas pela natureza e marcariam a fronteira biológica (flexível, embora nos inquiete sair do sistema binário) que nos classifica em homens e mulheres. [...] o sexo continua nos dividindo em duas grandes categorias com base nos órgãos reprodutores, cromossomos e hormônios (RUBIO, 2020, p. 94).
Diferente do sexo biológico o gênero está associado ao modo como cada indivíduo se enxerga. No caso das pessoas transexuais, relaciona-se à quando se nasce com o órgão genital masculino ou feminino, porém, a identificação se dá com o sexo oposto (GUEDES, 2019, p. 30).
Desde o momento do nascimento a questão biológica é fator balizador de conduta futura a ser repassada. O destino é traçado conforme a genitália de cada pessoa (JESUS, 2012, P.07).
A ideia de que a genitália está ligada ao gênero, limita as pessoas que não se identificam com o seu sexo biológico, criando portanto, uma lacuna onde se encontram os transexuais (BENTO, 2017, P.09). Berenice Bento define a transexualidade da seguinte maneira: [...] a transexualidade é uma experiência identitária, caracterizada pelo conflito com as normas de gênero. Essa definição se confronta com a aceita pela medicina e pelas ciências psi que a qualificam como uma “doença mental” e a relaciona ao campo da sexualidade e não ao gênero. Definir a pessoa transexual como doente é aprisioná-la, fixá-la em uma posição existencial que encontra no próprio indivíduo a fonte explicativa para seus conflitos, perspectiva divergente daqueles que a interpretam como uma experiência identitária (BENTO, 2017, P.10).
No livro “Corpo e(m) Discurso: Ressignificando a Transexualidade”, Mônica Ferreira Cassana narra a luta que as pessoas transexuais enfrentam para assegurar um lugar de pertencimento na sociedade, dada a rejeição que esse grupo enfrenta: Muito mais do que um corpo de exclusão (não é homem, não é mulher), o sujeito transexual apresenta um corpo de transição entre um gênero e outro. Nessa transição, que foge à organização estabilizada da norma, da rigidez da estrutura, configura-se um corpo ambivalente, (in)capaz de ser significado como legítimo nessa sociedade, configurando-se como um corpo (im)possível, cujos sentidos significam justamente no lugar do discurso (CASSANA, 2018, p. 25).
3 ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO
Perfazendo uma conexão com o tema, Berenice Bento em sua obra “O que é transexualidade” discorre sobre: No Brasil, são as pessoas transexuais que reivindicam a identidade legal de gênero e que têm apontado os limites de uma visão interna à própria transexualidade que resume a violência, a discriminação e marginalização que sofrem, a uma única pauta: a cirurgia de transgenitalização (BENTO, 2017, P.56).
Em recente Resolução normativa nº 2.265/2019, o Conselho Federal de Medicina atualizou o protocolo para os cuidados voltados ao público transgênero. Assim dispõe o artigo 1º:
Art. 1º Compreende-se por transgênero ou incongruência de gênero a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento, incluindo-se neste grupo transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero.
§ 1º Considera-se identidade de gênero o reconhecimento de cada pessoa sobre seu próprio gênero.
§ 2º Consideram-se homens transexuais aqueles nascidos com o sexo feminino que se identificam como homem.
§ 3º Consideram-se mulheres transexuais aquelas nascidas com o sexo masculino que se identificam como mulher.
§ 4º Considera-se travesti a pessoa que nasceu com um sexo, identifica-se e apresenta-se fenotipicamente no outro gênero, mas aceita sua genitália.
§ 5º Considera-se afirmação de gênero o procedimento terapêutico multidisciplinar para a pessoa que necessita adequar seu corpo à sua identidade de gênero por meio de hormonioterapia e/ou cirurgias (BRASIL, 2019).
A Resolução aperfeiçoa o protocolo para os cuidados com a saúde de pessoas transgênero, desclassificando a transexualidade como patologia de transtorno mental no rol da Classificação Internacional de Doenças (CID-10).
A ciência jurídica vem se adaptando às constantes mudanças que ocorrem na sociedade, acolhendo pleitos para alteração de gênero sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização, conforme exemplo abaixo:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por auto identificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada procedente (STF - ADI: 4275 DF - DISTRITO FEDERAL 0005730-88.2009.1.00.0000, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 01/03/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-045 07-03-2019).
A decisão afeta de maneira positiva a vida da mulher transexual, observado o reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Os Ministros acolheram o pedido com base no que dispõe o Pacto de São José da Costa Rica cumulado com a Constituição Federal, aplicando a Lei de Registros Públicos (LRP) - Lei nº 6.015 de 31 de Dezembro de 1973 consoante seu artigo 58, o qual alude que “o prenome será definitivo, admitindo-se todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.” (BRASIL, 1973).
4 AS RELAÇÕES DE GÊNEROS E OS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE HUMANA
A alteração no registro civil, traz consigo a legitimidade jurídica que as pessoas transexuais buscam, proporcionando-lhes dignidade conforme prevê o artigo 1º, inciso III da Constituição Federal:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, Formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como Fundamentos: [...]
III – a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988).
Os índices de violência e assassinatos só aumentam, observados relatórios de 2018 com 163 mortes e 2017 com 179. (BOND, 2019)
4.1 Princípio da igualdade
Este princípio foi consagrado pela Constituição federal no seu artigo 5°, inciso I:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.
O princípio da igualdade ou isonomia, é fundamentado no pensamento de que todos os seres humanos, nascem iguais e desta forma devem possuir as mesmas oportunidades de tratamento. Portando, é através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, criada na França que o princípio da igualdade passou a servir de alicerce do Estado moderno, dando assim grande colaboração a todas as constituições modernas.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas afirma em seu artigo 1°:
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade
O conceito de igualdade está diretamente ligado ao sentimento de justiça. E este princípio pode ser analisado sob dois enfoques interligados entre si. Uma igualdade entendida como formal e outra considerada como material. A formal, refere-se a expressão utilizada de que “todos são iguais perante a lei’’, é a igualdade diante da lei vigente e da lei a ser elaborada, impedindo privilégios a qualquer grupo. E proibindo o tratamento diferenciado aos indivíduos com base em critérios como : raça, sexo, classe social, religião e convicções filosóficas e políticas como consta no artigo 3º inciso IV da Constituição Federal.
Enquanto a material, pressupõe que as pessoas inseridas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual, tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Servindo de instrumento de concretização da igualdade em sentido formal, para aplica-la ao mundo prático.
Assim ensina, Lenza (2010, p. 124):
O art. 5º, caput, consagra que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material, na medida em que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Isso porque, no Estado social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei (2009, p. 679).
Esta desigualdade é necessária, com o objetivo de obter um resultado mais justo, já que as diferenças existentes entre os cidadãos não podem ser ignoradas. O tratamento desigual não tem como finalidade descriminar negativamente , e sim reduzir essas desproporcionalidades na sociedade.
Merece destaque, ainda, que em virtude deste princípio seja possível o ajuizamento de ‘’ ações afirmativas’’. Visando, colocá-las em um mesmo patamar, equiparando com as demais que não sofreram as mesmas espécies de restrições.
Portanto, a violação desse princípio ofende não somente a constituição, e sim a essência do próprio ser humano. Assim, o princípio da igualdade deverá ser aplicado de forma que se alcance a sua plenitude, a ideia de igualdade não só perante a lei, mas a todo o Direito e perante a justiça. Destacando, a necessidade de observância do Direito Penal à luz deste princípio e de um Estado Democrático de Direito. Somente assim, poderá atingir uma real e efetiva igualdade e a verdadeira justiça.
4.2 Princípio da dignidade da pessoa humana
Um indivíduo, pelo só fato de integrar o gênero humano, já é detentor de dignidade. Esta é qualidade ou atributo inerente a todos os homens, decorrente da própria condição humana, que o torna credor de igual con- sideração e respeito por parte de seus semelhantes.
Sarlet (2001, p. 60), analiticamente, define a dignidade da pessoa humana como: “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos
Para Dallari (2002, p. 8), constitui a dignidade um valor universal, não obstante as diversidades sócio-culturais dos povos. A despeito de todas as suas diferenças físicas, intelectuais, psicológicas, as pessoas são detentoras de igual dignidade. Embora diferentes em sua individualidade, apresentam, pela sua humana condição, as mesmas necessidades e faculdades vitais.
Corroborando com a perspectiva, Sponville, (1999 p. 126):
A dignidade é composta por um conjunto de direitos existenciais compartilhados por todos os homens, em igual proporção. Partindo dessa premissa, contesta-se aqui toda e qualquer ideia de que a dignidade humana encontre seu fundamento na autonomia da vontade. A titularidade dos direitos existenciais, porque decorre da própria condição humana, independe até da capacidade da pessoa de se relacionar, expressar, comunicar, criar, sentir. Dispensa a autoconsciência ou a compreensão da própria existência, porque “um homem continua sendo homem mesmo quando cessa de funcionar normalmente”.
Como observa Sarlet: (2001, p. 50) “mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la considerada e respeitada.”
O respeito à dignidade humana, por esse prisma, não constitui ato de generosidade, mas dever de solidariedade. Dever que a todos é imposto pela ética, antes que pelo direito ou pela religião.
Por isso, é auspiciosa a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana no art. 1º, lll, da nossa Constituição Federal. Significativa, mesmo, é a inclusão do princípio no pórtico da Constituição como fundamento da própria República Federativa do Brasil, como símbolo do compromisso assumido pela Constituição Federal com os valores mais caros ao homem.
5 TIPOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER TRANS
Os diversos tipos de violência diferem a partir da forma como se manifestam. Ocorrem a partir da utilização de força física ou poder sobre si mesmo, pessoa ou grupo, causando algum tipo de dano. Os tipos de violência podem ser classificados como violência física, psicológica, moral, sexual, econômica e social.
Os atos de violência podem utilizar um ou mais tipos de violência. Como nos casos de violência doméstica em que, geralmente, os atos de violência física podem vir acompanhados de violência psicológica, moral, sexual ou econômica.
5.1 Violência física
A violência física é a utilização da força física sobre alguém. Tapas, golpes, socos, chutes, puxões, empurrões ou a utilização de algum artefato com o objetivo de impor-se pelo uso da força física, oprimir, ferir ou causar qualquer tipo de dano físico.
5.2 Violência psicológica e moral
Com a inserção do art. 147-B no Código Penal, passa a ser crime praticar violência psicológica contra a mulher. Tutela-se, no novel crime, o direito fundamental “a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Convenção de Belém do Pará, Decreto n. 1.973/1996, art. 3º), em especial a liberdade da ofendida de viver sem medo, traumas ou fragilidades emocionais impostos dolosamente por terceiro. Vejamos:
Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:
Pena — reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
A pena cominada ao delito admitiria a aplicação de ambos os benefícios da Lei n. 9.099/1995 (transação penal e suspensão condicional do processo). Para o contexto de violência doméstica contra a mulher são vedados estes benefícios, cf. art. 41 da Lei n. 11.340/2006 (Súmula 536 do STJ) e, para os demais casos, caberá avaliar a presença dos requisitos subjetivos. Eventualmente admitida a transação penal, fica inviabilizado o acordo de não persecução penal, nos exatos termos do art. 28-A, § 2º, inc. I, do CPP.
De qualquer forma, tão ou mais importantes do que as consequências jurídicas para o agressor, deve o operador ficar atento para garantir a proteção da mulher, estabelecendo-se medidas que assegurem sua segurança, intimidade, privacidade, mesmo que a infração admita algum benefício despenalizador. De certo modo, pecou o legislador.
Cabe ressaltar que a violência psicológica e a moral utilizam-se de palavras ou atos ofensivos como forma de agressão. Humilhação, exposição, xingamentos ou a opressão e submissão fazem com que a vítima seja coagida sem a necessidade de utilização da força física.
5.3 Violência sexual
A violência sexual ocorre quando os atos de violência assumem um caráter sexual. Assédios, abusos, violações e estupros são considerados atos de violência sexual. Esses casos ocorrem quando não há o consentimento entre as partes ou quando a vítima é incapaz de opor-se ao ato. Como nos casos de violência contra crianças, idosos, pessoas com déficits cognitivos, ou temporariamente inaptas.
5.4 Violência econômica
A violência patrimonial ou econômica ocorre quando a propriedade ou os meios de subsistência são negados ou retirados por uma pessoa,ou grupo. Furtos, roubos, subtrações ou impedimentos podem ser caracterizados como esse tipo de violência. Em alguns casos de violência contra a pessoa trans, o agressor utiliza-se da dependência financeira da vítima para oprimir e subjugá-la.
5.5 Violência social
A violência social ocorre devido à utilização da força de um grupo social sobre outro. Discriminação, preconceito, desrespeito às diferenças, intolerância ou submissão de um grupo é entendido como violência social.
5.6 Violência doméstica
A violência doméstica ocorre dentro do núcleo familiar. Pode ser causada por companheiros, parentes ou tutores. Dentro dessa tipificação, predominam os casos de violência contra a mulher e os casos de violência co ntra criança.
Cada categoria de violência recebe uma atenção diferente do Estado a partir de leis e formas de prevenção. A violência contra a mulher e as pessoas trans, incluindo as lésbicas pode ocorrer dentro das relações de conjugalidade (casamento legal ou relacionamento íntimo) e do núcleo familiar, e as tipificações e punições para os agressores estão previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06).
6 A LEI MARIA DA PENHA E SUA APLICAÇÃO NO CONTEXTO DE PESSOAS TRANS
A Lei nº 11.340/2006 foi criada para proteger a mulher vítima de violência doméstica, uma vez que o Estado percebeu a necessidade da criação de políticas públicas voltadas a garantir uma maior proteção a esse grupo específico, devido a sua vulnerabilidade a esse tipo de ofensa.
O artigo 5º, inciso I, II e III da Lei supracitada dispõe da seguinte forma:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (BRASIL, 2006).
Observa-se que o artigo 5º inclui a palavra gênero ao se referir ao grupo que é tutelado pela Lei Maria da Penha. Com isso, a mulher transexual passa a configurar como vítima de violência doméstica e familiar. O ofensor irá responder nos termos da referida Lei.
Essa Lei foi criada para salvaguardar a vida da mulher, visto que a violência praticada contra esse grupo da sociedade é recorrente e está em constante crescimento. Essa violência está ligada de forma intrínseca ao fator cultural no qual a mulher é vista como ser inferior.
Culturalmente, em várias partes do mundo, a mulher é inferiorizada sob diversos prismas. Pior ainda, quando é violentada e até mesmo morta, em razão de costumes, tradições ou regras questionáveis sob a aura dos direitos humanos fundamentais. No Brasil, verifica-se uma subjugação da mulher no nível cultural, que resvala em costumes e tradições (NUCCI, 2020, p. 850).
Por unanimidade, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais. Considerando que, para efeito de incidência da lei, mulher trans é mulher também, o colegiado deu provimento a recurso do Ministério Público de São Paulo e determinou a aplicação das medidas protetivas requeridas por uma transexual, nos termos do artigo 22 da Lei 11.340/2006, após ela sofrer agressões do seu pai na residência da família.
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003 ;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e (Incluído pela Lei nº 13.984, de 2020)
VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio. (Incluído pela Lei nº 13.984, de 2020)
§ 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.
§ 2º Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6º da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.
§ 3º Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.
§ 4º Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos § § 5º e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).
"Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias", afirmou o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz.
O juízo de primeiro grau e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negaram as medidas protetivas, entendendo que a proteção da Maria da Penha seria limitada à condição de mulher biológica. Ao STJ, o Ministério Público argumentou que não se trata de fazer analogia, mas de aplicar simplesmente o texto da lei, cujo artigo 5º, ao definir seu âmbito de incidência, refere-se à violência "baseada no gênero", e não no sexo biológico. Violência contra a mulher nasce da relação de dominação
Em seu voto, o relator abordou os conceitos de sexo, gênero e identidade de gênero, com base na doutrina especializada e na Recomendação 128 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que adotou protocolo para julgamentos com perspectiva de gênero. Segundo o magistrado, "gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres", enquanto sexo se refere às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, de modo que, para ele, o conceito de sexo "não define a identidade de gênero".
Para o ministro, a Lei Maria da Penha não faz considerações sobre a motivação do agressor, mas apenas exige, para sua aplicação, que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico e familiar ou no contexto de relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida.
Schietti ressaltou entendimentos doutrinários segundo os quais o elemento diferenciador da abrangência da lei é o gênero feminino, sendo que nem sempre o sexo biológico e a identidade subjetiva coincidem. "O verdadeiro objetivo da Lei Maria da Penha seria punir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher em virtude do gênero, e não por razão do sexo", declarou o magistrado. Ele mencionou que o Brasil responde, sozinho, por 38,2% dos homicídios contra pessoas trans no mundo, e apontou a necessidade de "desconstrução do cenário da heteronormatividade", permitindo o acolhimento e o tratamento igualitário de pessoas com diferenças. Quanto à aplicação da Maria da Penha, o ministro lembrou que a violência de gênero "é resultante da organização social de gênero, a qual atribui posição de superioridade ao homem. A violência contra a mulher nasce da relação de dominação/subordinação, de modo que ela sofre as agressões pelo fato de ser mulher".
7 DA CONFIGURAÇÃO DA PESSOA TRANSEXUAL COMO VÍTIMA DE FEMINICÍDIO
De início, tal como lecionam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, "o transexual não se confunde com o homossexual, bissexual, intersexual ou mesmo com o travesti. O transexual é aquele que sofre uma dicotomia físico-psíquica, possuindo um sexo físico, distinto de sua conformação sexual psicológica. Nesse quadro, a cirurgia de mudança de sexo pode se apresentar como um modo necessário para a conformação do seu estado físico e psíquico". Desta forma, entende-se que igualmente o transexual, comporta personalidade singular e dominante para estar dentro do amparo legal de normas que versem sobre o direito Feminino.
Surge, porém referente à indagação inicial dois posicionamentos: um primeiro, conservador, entendendo que o transexual, geneticamente, não é mulher (apenas passa a ter órgão genital de conformidade feminina), e que, portanto, descarta, para a hipótese, a proteção especial;
A segunda, já para uma corrente mais moderna, desde que a pessoa portadora de transexualismo transmute suas características sexuais (por cirurgia e modo irreversível), deve ser encarada de acordo com sua nova realidade morfológica, eis que a jurisprudência admite, inclusive, retificação de registro civil.
Rogério Greco (2016, p. 99), não sem razão, explica: "Se existe alguma dúvida sobre a possibilidade de o legislador transformar um homem em uma mulher, isso não acontece quando estamos diante de uma decisão transitada em julgado. Se o Poder Judiciário, depois de cumprido o devido processo legal, determinar a modificação da condição sexual de alguém, tal fato deverá repercutir em todos os âmbitos de sua vida, inclusive o penal”.
A nosso ver, a mulher de que trata a qualificadora é aquela assim reconhecida juridicamente, a doutrina aponta alguns critérios para definir o que se pode considerar mulher para os efeitos desta qualificadora: a) psicológico: o indivíduo nasce do sexo masculino, mas, psicologicamente, não aceita esta condição e se identifica com o sexo oposto. É o que move os transexuais a buscar a o procedimento de reversão genital; b) biológico: identifica-se a mulher por sua constituição genética e suas implicações físicas externas; c) jurídico: para este critério, é mulher quem é assim reconhecido juridicamente, ou seja, quem exibe em seu registro civil identidade do gênero feminino, ainda que não tenha nascido nesta condição, nem exiba as caracterfsticas próprias do sexo feminino. É o que normalmente ocorre com os transexuais, que, após a reversão, buscam também alterar seu registro civil.
No caso de transexual que formalmente obtém o direito de ser identificado civilmente como mulher, não há como negar a incidência da lei penal porque, para todos os demais efeitos, esta pessoa será considerada mulher. A proteção especial não se estende, todavia, ao travesti, que não pode ser identificado como pessoa do gênero feminino. Se a Lei Maria da Penha tem sido interpretada extensivamente para que sua rede de proteção se estenda à pessoa que, embora não seja juridicamente reconhecida como mulher, assim se identifique, devemos lembrar que a norma em estudo tem natureza penal, e a extração de seu significado deve ser balizada pela regra de que é vedada a analogia in malam partem. E, ao contrário do que ocorre com outras qualificadoras do homicídio em que se admite a interpretação analógica, neste caso não se utiliza a mesma fórmula, nem há espaço para interpretação extensiva, pois não é o caso de ampliar o significado de uma expressão para que se alcance o real significado da norma. Mulher, portanto, para os efeitos penais desta qualificadora, é o ser humano do gênero feminino. A simples identidade de gênero não tem relevância para que se caracterize a qualificadora.
Ressalta-se, por fim, que a qualificadora do feminicídio é subjetiva, pressupondo motivação especial: o homicídio deve ser cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Mesmo no caso do inciso I do § 2°-A, o fato de a conceituação de violência doméstica e familiar ser um dado objetivo, extraído da lei, não afasta a subjetividade. Isso porque o § 2°-A é apenas explicativo; a qualificadora está verdadeiramente no inciso VI, que, ao estabelecer que o homicídio se qualifica quando cometido por razões da condição do sexo feminino, deixa evidente que isso ocorre pela motivação, não pelos meios de execução.
Temos decisão pioneira do TJDFT em sentido contrário, argumentando que a novel qualificadora é objetiva:
"A inclusão da qualificadora agora prevista no art. 121, § 2º, inciso VI, do CP, não poderá servir apenas como substitutivo das qualificadoras de motivo torpe ou fútil, que são de natureza subjetiva, sob pena de menosprezar o esforço do legislador. A Lei 13.104/2015 veio a lume na esteira da doutrina inspiradora da Lei Maria da Penha, buscando conferir maior proteção à mulher brasileira, vítima de condições culturais atávicas que lhe impuseram a subserviência ao homem. Resgatar a dignidade perdida ao longo da história da dominação masculina foi a ratio essendi da nova lei, e o seu sentido teleológico estaria perdido se fosse simplesmente substituída a torpeza pelo feminicídio. Ambas as qualificadoras podem coexistir perfeitamente, porque é diversa a natureza de cada uma: a torpeza continua ligada umbilicalmente à motivação da ação homicida, e o feminicídio ocorrerá toda vez que, objetivamente, haja uma agressão à mulher proveniente de convivência doméstica familiar. 3 Recurso provido. (Acórdão n.904781, 20150310069727RSE, Relator: GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 29/10/2015, Publicado no DJE: 11/11/2015. Pág.: 105).
Já a violência psicológica e a moral utilizam-se de palavras ou atos ofensivos como forma de agressão. Humilhação, exposição, xingamentos ou a opressão e submissão fazem com que a vítima seja coagida sem a necessidade de utilização da força física.
A mulher transgênero, embora tenha nascido com características físicas do sexo masculino, identifica-se com o gênero oposto e passa a agir de acordo com o papel por este desempenhado, emoldurando-se em um cenário em que sofre duplo preconceito: por não se identificar com seu sexo biológico e por desempenhar papel social de mulher, o que acaba por contribuir para sua marginalização na sociedade.
Durante a elaboração desta pesquisa, uma grande dificuldade constatada foi a falta de literatura jurídica tratando, em específico, sobre a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transgênero, tendo pouca visibilidade e alcance as poucas obras que versam sobre o tema. De igual maneira, o reduzido número de decisões abordando a temática, bem como a falta de posicionamento por parte dos Tribunais Superiores.
Embora a Lei Maria da Penha contemple a violência psicológica no art. 7º, inc. II, até a entrada em vigor da Lei n. 14.188/2021 não havia no ordenamento jurídico brasileiro um tipo penal correspondente. Era contraditório constar expressamente essa forma de violência em uma das leis mais conhecidas e importantes do país, que a define como uma “violação dos direitos humanos” (art. 6º) e, ao mesmo tempo, a conduta correspondente não configurar necessariamente um ilícito penal. Diversas condutas consistentes em violência psicológica – como manipulação, humilhação, ridicularização, rebaixamento, vigilância, isolamento – não configuravam, na imensa maioria dos casos, infração penal. Apesar de serem ilícitos civis, não configuravam crime. Não raras vezes, vítimas compareciam perante autoridades para registrar boletins de ocorrência por violência psicológica e eram informadas de que a conduta não configurava infração penal.
A ausência de tipificação também dificultava o deferimento de medidas protetivas de urgência, pois, embora os tribunais superiores e o art. 24-A da Lei Maria da Penha permitam a medida protetiva civil autônoma, ainda há, lamentavelmente, muita resistência em se conceder instrumentos de proteção divorciados da infração penal, de um registro de boletim de ocorrência ou procedimento criminal.
A nova legislação sinaliza quanto à maior gravidade da lesão corporal em contexto de violência de gênero e dá maior visibilidade à violência psicológica, tanto na esfera criminal quanto para o deferimento de medidas protetivas de urgência.
Por outro lado, a visão humanizada dos poucos estudiosos que enfrentam o tema e que possuem, majoritariamente, um entendimento compartilhado, de maneira unânime, por parte das instituições que compõem o Poder Judiciário, conferiu segurança para ser apresentada percepções que convergem em diversos aspectos, defendendo a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans em situação de violência doméstica e familiar.
A análise realizada neste estudo foi motivada a partir de um desconforto ao observar a maneira como a temática ainda é enfrentada no meio jurídico, existindo, ainda, uma quantidade considerável de casos que são levados aos tribunais de segunda instância em razão, unicamente, de um entendimento arcaico e desumano por parte dos operadores do Direito no país, o que reflete a urgente necessidade de uma oxigenação em âmbito jurídico, indo ao encontro do que preconizava Belchior, em 1976, em sua ainda atual poesia, quando cantava sobre o envelhecimento do que, há pouco tempo, ainda era novo, ressaltando a necessidade de um rejuvenescimento geral, que acompanhasse as evoluções da sociedade.
Por fim, cumpre ressaltar que a elevação de penas ou criação de crimes, isoladamente, não possuem o condão de trazer automaticamente efeito dissuasório da prática de novos atos de violência contra as mulheres. É essencial que as novas normas penais sejam aplicadas dentro no espírito holístico da Lei Maria da Penha, que prevê a necessidade de concretização de políticas públicas de prevenção e proteção à mulher. Não se deve cair na ilusão do populismo punitivo, ofuscando a centralidade das políticas públicas de prevenção à violência contra as mulheres, sendo o coração da Lei Maria da Penha.
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Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário FAMETRO
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Nassara Fonseca. A segurança jurídica dos transexuais violentados no âmbito doméstico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2022, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60354/a-segurana-jurdica-dos-transexuais-violentados-no-mbito-domstico. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
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Por: IGOR DANIEL BORDINI MARTINENA
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