LUIZ GUSTAVO SIMÕES VALENÇA DE MELO
(orientador)[1]
Resumo: O presente trabalho apresentou como objeto de análise elementos axiológicos e pragmáticos do acordo de não persecução penal, sob o prisma da mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública no processo penal brasileiro. O objetivo geral do presente trabalho foi discorrer sobre a aplicação do acordo de não persecução penal em um viés axiológico e pragmático. O presente estudo desenvolveu-se de modo teórico e descritivo, utilizando-se o tipo de pesquisa documental e bibliográfica, abordando-se o tema por meio de uma pesquisa quanti-qualitativa. No decorrer do trabalho, é discutido o acordo de não persecução penal sob um viés axiológico e pragmático, relacionando-o com todos os conteúdos abordados no decorrer do trabalho. Em sede de considerações finais, o trabalho aponta o acordo de não persecução penal como forma de resolução de conflito construtiva, não podendo o referido instituto ser imposto, bem como, sustentou a mudança do valor ético coletivo do princípio da obrigatoriedade para os dias atuais, sendo o acordo de não persecução penal um instrumento legítimo de política criminal e faculdade do Ministério Público, não constituindo um direito subjetivo do acusado, conforme entendimento da 6ª Turma do STJ em 2022.
Palavras-chave: Justiça Penal Consensual. Princípio da obrigatoriedade. Acordo de não persecução penal
Abstract: The present work presented as an object of analysis axiological and pragmatic elements of the non-prosecution agreement, under the prism of mitigation of the principle of mandatory public criminal action in the Brazilian criminal procedure. The general objective of the present work was to discuss the application of the criminal non-prosecution agreement in an axiological and pragmatic bias. The present study was developed in a theoretical and descriptive way, using the type of documentary and bibliographical research, approaching the theme through a quantitative and qualitative research. In the course of the work, the agreement of non-criminal prosecution is discussed under an axiological and pragmatic bias, relating it to all the contents addressed in the course of the work. In terms of final considerations, the work points to the non-criminal prosecution agreement as a form of constructive conflict resolution, since the aforementioned institute cannot be imposed, as well as supporting the change in the collective ethical value of the principle of obligation to the present day, the non-prosecution agreement being a legitimate instrument of criminal policy and the power of the Public Ministry, not constituting a subjective right of the accused, as understood by the 6th Panel of the STJ in 2022.
Keywords: Consensual Criminal Justice. Principle of obligation. Non-Persecution Criminal Agreement
Sumário: Introdução. 1 Consenso e Direito Processual. 1.1 Justiça Penal Consensual. 2 Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública no processo penal brasileiro e sua mitigação. 2.1 Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública sob o prisma do funcionalismo de Claus Roxin. 3 Acordo de não persecução penal: legitimação do instituto a partir de uma reflexão axiológica e pragmática. Conclusão. Referências
Introdução
O consenso é o futuro da Justiça no Brasil. Indubitavelmente, o grande desafio de escrever sobre Justiça Penal Consensual é quebrar paradigmas, vencer ideologias e trazer à tona que negociar uma não persecução penal não se trata de uma privatização de garantias, mas sim de efetivação de direitos e de um caminho mais célere para o acesso pleno à cidadania, tendo como base o Estado Democrático de Direito.
O acordo de não persecução penal foi criado pela Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, e posteriormente, legislado pelo Congresso Nacional, através da Lei 13.964/2019, constatando-se que o referido instituto é um dos temas mais debatidos atualmente no âmbito do Direito, tendo em vista um grande descontentamento da sociedade em face da criminalidade que a cada dia mais cresce no Brasil, alinhados à forte descrença com a Justiça, que por diversas vezes é extremamente morosa e acaba interferindo diretamente no status dignitate de um indivíduo que está sofrendo uma persecução criminal.
O problema de pesquisa trazido pelo presente trabalho diz respeito a uma reflexão axiológica e pragmática da aplicação do acordo de não persecução penal. Não incorremos em exposições que discutam a constitucionalidade do instituto. Ater-nos-emos exclusivamente às perspectivas axiológicas (valorativas) e pragmáticas (sociais) da aplicação do acordo de não persecução penal, no que atine a mitigação do princípio da obrigatoriedade.
O objetivo geral do presente trabalho foi discorrer sobre a aplicação do acordo de não persecução penal em um viés axiológico e pragmático, sob o prisma da mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública.
Registre-se, agora em sede de justificativa do tema, fazer menção a experiência como estagiário credenciado do Ministério Público de Pernambuco, o qual nos permitiu refletir de um ponto de vista axiológico e pragmático a aplicação da obrigatoriedade da ação penal pública, devendo ela ser repensada no dicotômico empírico e ético, de modo a legitimar o acordo de não persecução penal como um instrumento legítimo de política criminal.
Dessa feita, o trabalho desenvolveu-se inicialmente realizando uma abordagem filosófica acerca do consenso e o direito processual, mantendo a mesma abordagem ao tratar do princípio da obrigatoriedade. Tratou-se da evolução legislativa da Justiça Penal Consensual e a relacionou com os fundamentos axiológicos (mudança no valor ético coletivo do princípio da obrigatoriedade) e pragmáticos (dados estatísticos do CNJ e funcionalismo de Claus Roxin) para fundamentar a legitimidade do acordo de não persecução penal, editado pela Lei 13.964/2019.
1 Consenso e Direito Processual
A etimologia da palavra consenso advém do latim consensus, derivado de consentire, que significa ‘‘estar de acordo’’. Da família etimológica de sentir (verbo)[2]. O contraponto do consenso, sem dúvidas, é o conflito, que nos remete a ideia de choque, embate ou até mesmo luta. Nos remonta a ideia do Coliseu Romano: cada indivíduo é colocado para se enfrentar, tendo que concentrar todos os seus esforços para vencer a disputa.
Os conflitos estão no DNA do ser humano, intrínseco em suas próprias raízes, não sendo possível evitá-los. Nesse sentido, percebe-se ao longo da história que a violência foi subvertida como um instrumento de legitimação do poder. O Estado passou a deter o jus puniendi, de forma a evitar a vingança pessoal, evitando-se, consequentemente, o uso da força arbitrária das próprias razões.
Portanto, concebeu-se uma formação civilizatória para a sociedade, de forma a tentar se evitar o uso da autotutela, e se trazer no âmbito do Estado a responsabilidade para resolver todos os conflitos sociais.
O Estado assume a função “pacificadora”, instituindo o sistema processual, concebendo normas de direito processual e estabelecendo uma grande sistemática de resolução de conflitos. A pilastra principal do direito processual é a jurisdição. Concomitantemente, surge o direito de ação como o meio que a população exige para que o Estado exerça seu poder jurisdição. Por fim, o processo surge como o instrumento da ação.
Sobre a premissa de como lidar com o conflito, vejamos as lições de Morton Deutsch, citado por Carlos Eduardo de Vasconcelos:
Conforme Morton Deutsch, o modo de lidar com o conflito, o meio de resolver o conflito, pode ser construtivo ou destrutivo. Para esse autor, os processos destrutivos caracterizam-se pelo enfraquecimento ou rompimento da relação social preexistente à disputa, em virtude da feição competitiva de como essa é conduzida. Nesses processos destrutivos o conflito tende a expandir-se em espiral, frequentemente tornando-se independente de suas causas iniciais. Já nos processos construtivos, segundo Deutsch, são aqueles em que as partes vão fortalecendo a relação social preexistente à disputa.[3]
É fácil se constatar que o modelo processual brasileiro nos remete a ideia de uma resolução de conflito destrutiva, onde as partes são colocadas para litigar uma contra a outra, cada uma expondo suas razões, até que no fim de um processo, o Juiz, ao proferir sua decisão, ainda será desafiado por incontáveis recursos que estão previstos no nosso ordenamento.
O modo de lidar com o conflito do Estado, segundo Focault, baseava-se na imposição de suplícios físicos a que eram submetidos aqueles que transgrediam a ordem social cometendo infrações penais[4]. O preso, principalmente nos dias atuais, é marginalizado, vive um sofrimento imensurável no cárcere e muito dificilmente é ressocializado. Percebe-se assim, que uma condenação criminal, na maioria das vezes, nos remete a ideia de resolução de conflito destrutiva, pois há um rompimento total deste indivíduo com a sociedade, em razão da postura punitiva utilizada pelo Estado.
Neste viés, Frederico Oliveira trata de uma chamada “crise no sistema de elaboração de justiça”:
Ter-se-ia, assim, uma crise no sistema oficial de elaboração da justiça. Seja no âmbito processual penal, seja na esfera processual civil, a crise evidencia-se não só pela precariedade estrutural do Estado-Juiz (humano-quantitativa, humano-qualitativa[ética], logística, tecnológica, material), mas principalmente em função de certas premissas que informam esse sistema: penalmente retributivo, civilmente individualista, em ambos os casos adversarial, com uma cultura de precedência do procedimento sobre o mérito das questões.[5]
Para minorar essa crise no âmbito do sistema de justiça criminal, podemos ver algumas soluções alternativas a imposição de uma medida privativa de liberdade, entre as quais se incluem a solução negociada do conflito.
Na visão de Habermas, citado por Fernanda Regina Vilares, a ética do discurso deve nortear as relações interpessoais, baseando-se em valores éticos discursivos e democráticos, de maneira a pôr uma solução negociada a um conflito sem o emprego violência por uma das partes. Vejamos suas lições:
Os processos de entendimento mútuo visam um acordo que dependem do assentimento racionalmente motivado ao conteúdo de um proferimento. O acordo não pode ser imposto à outra parte, não pode ser extorquido ao adversário por meio de manipulações: o que manifestamente advém graças a uma intervenção externa não pode ser tido na conta de um acordo. Este assenta-se sempre em convicções comuns. A formação de convicções pode ser analisada segundo o modelo das tomadas de posição em face de uma oferta de ato de fala. O ato de fala de um só terá êxito se o outro aceitar a oferta nele contida, tomando posição afirmativamente, nem que seja de maneira implícita, em face de uma pretensão de valides em princípio criticável.[6]
A partir de tais ideias colacionadas ao presente trabalho, podemos destacar que o consenso Habermasiano[7] se encaixa perfeitamente com concepção de resolução construtiva de Deutsch[8]. Compulsando as referidas explanações, podemos interligá-las ao ponto deste presente trabalho, remetendo-se a uma ideia de consenso como um acordo de vontades, baseando-se em valores éticos discursivos e democráticos associados a práticas de comunicação, com a finalidade de fortalecer uma relação social construtiva preexistente à disputa.
De tal arte, tendo por base a crise no sistema oficial de elaboração de justiça retromencionada, a direção a ser seguida pelo sistema processual brasileiro é abrir caminhos para os sistemas alternativos de resolução de conflitos, que já vem sendo bastante adotados e fomentados no âmbito cível, sendo, portanto, a grande questão a ser discutida a possibilidade de aplicar essa sistemática, com suas próprias peculiaridades, ao sistema de justiça criminal, dado os vários paradigmas envolvidos.
1.1 Justiça Penal Consensual
Rogério Sanches Cunha e Renee do Ó Souza apontam a existência de vários modelos de resposta estatal, destacando-se, o dissuasório clássico: consistente no toque punitivo da pena como retribuição pelo injusto causado pela prática criminosa, bem como meio de evitar o cometimento de outros crimes; o ressocializador: baseado na ideia de colocar o indivíduo novamente na sociedade, reintegrando-o de forma positiva; e por fim, o consensuado: inspirado na ideia de processos construtivos de solução de disputas, compreendendo-se a partir de modelos de acordo, conciliação, mediação e colaboração entre as partes, caracterizado pela pactuação dos envolvidos quanto ao desfecho da lide penal, tendo como finalidade a reparação de danos e de otimização da resposta estatal frente aos clamores sociais por Justiça[9].
Diante das lições mencionadas, podemos apontar que o Brasil adotou um pouco de cada modelo de resposta estatal. O Código de Processo Penal, de uma forma implícita, adota o modelo dissuasório clássico, incentivando o conflito entre acusação e defesa, quase que colocando um muro entre as partes, não permitindo que essas negociem a melhor solução do conflito. As partes são colocadas para litigar para o Juiz ao final decidir. Nem sempre ao final, a decisão judicial é agradável as duas partes. A compreensão de se colocar na parte contrária, tentando entender suas opiniões e sentimentos é a verdadeira essência do processo, que é a resolução da lide. Sobre o tema, Carlos Eduardo de Vasconcelos:
A falta desta compreensão desvirtuou o princípio constitucional do contraditório, que perdeu, quase que totalmente, o seu sentido dialético, e se converteu em algo ambíguo, tecnista e alienador da cidadania. (…) Razões são produzidas pelas partes, cada uma delas encastelada em posições nas quais o dizer alheio – o do ex adverso – é o pretexto tão só para o desafio do desmoronamento da sua própria arquitetura conceitual.[10]
Pondere-se, no entanto, que a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória, no Brasil utiliza-se do modelo ressocializador, fomentando a volta do indivíduo para a sociedade, baseado na ideia criminológica de prevenção especial positiva.
Chegamos ao modelo de resposta estatal consensuado, que ainda pode ser subdivido em três: a) modelo reparador; b) modelo pacificador ou restaurativo; c) modelo de justiça negociada; e por fim, d) modelo de justiça colaborativa[11].
O Brasil começou a adotar o modelo consensuado em sua modalidade colaborativa, a partir da criação do instituto da colaboração premiada prevista na Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), que estabelece, em seu art. 8º, parágrafo único, a possibilidade de redução de pena em caso de colaboração de um dos participantes da societate delitis na elucidação dos fatos. No mesmo sentido, seguiu-se a Lei 9.034/1995 (revogada pela Lei 12.850/2013), Lei 9.080/1995, Lei 9.807/1999, Lei 9.613/1998, Lei 11.343/06 e a Lei 12.529/2001[12].
Ademais, é de se ver que o sistema de justiça restaurativa teve como marco a entrada em vigor da Lei 9.099/1995, que consagrou o modelo consensual no ordenamento pátrio, apesar de várias críticas à época, acabou por mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal como regra principal, abrindo-se espaço para o princípio da oportunidade.
Essa nova visão do Direito Penal, não mais baseado no modelo dissuasório clássico, permite facilitar o encontro de soluções consensuadas, que precisam ser compreendias aos poucos no sistema jurídico-penal brasileiro, buscando-se a modificação do toque meramente punitivo do Estado e que necessariamente precise ser tratado obrigatoriamente no âmbito de sua Jurisdição.
O modelo de resposta estatal consensual, permite que se ouça mais a vítima, promovendo sempre que possível, a reparação de dano entre o infrator e aquela, de forma que se retire o muro entre as partes e permita-se que elas resolvam o conflito sem estarem em uma litigância exacerbada. Para isso, é necessário quebrar algumas premissas que envolvem a justiça criminal, sendo considerada como a principal, para fins do presente trabalho, a obrigatoriedade da ação penal pública no processo penal brasileiro, o qual tentaremos desmitificar e defender sua mitigação no presente trabalho.
2 Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública no processo penal brasileiro e sua mitigação
A primeira noção de Direito para a sociedade comum está ligada a ideia de justiça. Se observa, portanto, que antes de se observar o direito positivo, o operador do direito deve observar os valores axiológicos e fáticos que levaram a elaboração dessa norma. Por trás de cada norma, podemos enxergar ainda que implicitamente, um princípio.
O estudo dos princípios ganha bastante relevância quando estamos diante da ciência jurídica, tendo em vista o seu caráter tridimensional que é levantado por Miguel Reale. Para o renomado jurista, o direito possui um mínimo ético, que fundamenta o aspecto axiológico do Direito. O direito é visto como a concretização da ideia de justiça, na pluridiversidade de seu dever ser histórico[13].
Neste viés, os princípios ganham destaque em qualquer estudo jurídico, tanto para nortear a aplicação das normas positivas, como para sua própria aplicação imediata. De fato, conhecer o estudo dos princípios é de suma importância para o operador do direito, que também deve observar o que levou a um ordenamento a adotar determinado princípio.
Frederico de Oliveira trata de fundamentos axiológicos do procedimento judicial, ressaltando que a norma processual é revestida de componentes axiológicos, observados na própria vida social, tentando submeter, formas coletivamente aceitáveis de resolução de conflitos de interesses[14].
A partir dessa consideração, Frederico de Oliveira extrai que os princípios éticos normativos formam a denominada consciência jurídica popular, que servem de alicerces éticos da norma e concomitantemente atribuem-lhe legitimidade[15] . O referido autor, continua a lição ressaltando que “Os princípios agregados à norma jurídica são, em verdade, “princípios de justiça” estabelecidos histórica e culturalmente.”[16]
Nesse ponto é que os referidos autores guardam pertinência com o nosso tema de estudo, pois a crítica mais recorrente ao acordo de não persecução penal, é a aparente violação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, e entender o fundamento valorativo desse princípio é a chave para defender sua mitigação, sem desrespeitar o valor ético que está subsumido no referido princípio.
O posicionamento da doutrina majoritária é reconhecendo a existência do princípio da obrigatoriedade da ação penal no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo sem previsão expressa. O referido princípio, é portanto, uma construção doutrinária, não sendo encontrado explicitamente no nosso ordenamento jurídico.
A tese de doutorado de André Luís Alves de Melo na PUC-SP, abordou a evolução do direito penal no mundo sob a égide histórica, bem como no âmbito da criminologia, política criminal e aspectos práticos, concluindo pela releitura dos artigos 24 e 28 do CPP e Art. 100, §1º do Código Penal em face da não recepção pela Constituição de 1988, considerando a autonomia do Ministério Público e independência funcional do Membro do Ministério Público[17].
O referido pesquisador enaltece que o Brasil é o país ocidental mais atrasado nas inovações e pesquisas para se evoluir o funcionalismo penal, ressaltando que vários países da Europa e das Américas já adotam formas legais e jurisprudenciais para se flexibilizar a obrigatoriedade da ação penal. Nas palavras do dito autor, “tenta-se flexibilizar a execução penal (ao final) em vez de fazer a triagem no início (investigação e denúncia)[18].
Pacelli explica que o princípio da obrigatoriedade não obriga o Promotor de Justiça a denunciar e mover incansavelmente a ação penal até a condenação, tendo em vista que o referido Promotor, caso verifique a existência de causas excludentes de ilicitude, pode pedir a absolvição do réu, bem como, caso vislumbre o princípio da insignificância em alguma peça de informação, pode requerer o arquivamento do feito[19].
Nesta sintonia, entendemos que o princípio da obrigatoriedade está mais relacionado ao dever de agir – onde o Ministério Público, a partir de critérios objetivos fixados na lei, não poderá se eximir de suas atribuições, o que não enseja dizer que o referido membro do Ministério Público deva oferecer a denúncia em todos os casos.
Se assim fosse, haveria previsão constitucional ou legal expressa sobre a obrigatoriedade da ação penal, como ocorre no art. 112 da Constituição Italiana[20], ou como ocorre no art. 30 do Código de Processo Penal Militar[21], ambas normas citadas por André Luis Alves de Melo em sua tese de doutorado[22].
Por tudo que foi exposto, o tratamento com o acusado deve ser o mais seletivo possível (seletividade definida em lei), de acordo com a gravidade do crime que lhe foi imputado, devendo-se tentar aplicar, com todas as forças, o princípio da intervenção mínima do Direito Penal.
A Constituição Federal de 1988, manteve o viés ideológico adotado pelo legislador do Códex Processual Penal, conferindo ao Ministério Público, a titularidade da ação penal pública[23], e assim sendo, o referido termo deve ser entendido como o de dominus litti, que detém atribuições não tão somente de ser o órgão acusador, mas também de ser o principal agente público de política criminal no país.
2.1 Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública sob o prisma do funcionalismo de Claus Roxin
No campo da Criminologia, Nereu José Giacomolli define a situação no processo penal brasileiro como instável e perturbadora:
A situação no processo penal brasileiro, na atualidade, é instável e perturbadora, em face da necessidade de sua vinculação à Constituição e de sua atuação infrutífera, desastrosa e destruidora dos sujeitos no processo, maquiadora do processo como sistema e aniquiladora dos sujeitos que atuam no processo; aniquiladora do ser que recebe a carga coativa (réu – sanção). Como regra, a situação é mais perturbadora porque o sistema criminal está destinado para incluir nele, negativamente, como sujeito passivo, o excluído pela sociedade, quem é, como regra, o réu do processo criminal. O tratamento recebido pelo sistema e pela potestade jurisdicional, quem deveria amenizar os danos, é de excluído do sistema, como sujeito que ingressa no processo já como culpado. Assim é tratado em todo o processo, ocorrendo uma inversão da presunção. Ademais, não é perfeita, pela própria natureza dos agentes que atuam no processo[24].
As críticas supracitadas são extremamente pertinentes com o nosso estudo, pois quando o Ministério Público se torna um acusador automático, são jogados incontáveis processos para lotarem ainda mais as Varas Criminais do país.
Esse estado de coisas abre espaço para o desenvolvimento da ideologia penal do Funcionalismo, a partir de decisões valorativas político-criminais, conforme se referia Claus Roxin, citado por Rogério Sanches Cunha[25].
Para entender a necessidade de adoção do Funcionalismo, devemos vislumbrar as consequências da adoção da obrigatoriedade da ação penal no atual cenário do sistema de justiça criminal brasileiro, que vê cada dia mais aumentar o número de processos, de modo a afetar diretamente os sujeitos de cada relação processual. A função do Juiz, ficou bastante limitada nos dias de hoje, tendo em vista que o referido não possui um tempo hábil para analisar intrinsecamente cada processo.
De acordo com dados de um levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o tempo de um processo de conhecimento criminal é de 3 anos e dez meses, ressaltando-se que no ano de 2018, o acervo da Justiça Criminal cresceu 0,7% em um ingresso de 2,7 milhões de casos novos. Segundo os referidos dados, no total, somando os processos pendentes e baixados, havia 9,1 milhões de ações que tramitaram nesta esfera em 2018, excluídas as execuções penais[26].
Abrir espaços para a Justiça Penal Consensual no Brasil é uma das formas de se enfrentar essa tramitação morosa que verificamos no Judiciário através de um meio alternativo de resolução de conflito que também garanta os direitos fundamentais do acusado.
As soluções alternativas à persecução penal são uma forma célere e eficaz de promover a responsabilidade do acusado e dar uma resposta rápida a sociedade. Evidentemente, no mundo ideal, seria muito melhor que todos os casos fossem levados para o Poder Judiciário, porém a realidade nos mostra que sendo possível solucionar o conflito sem a Jurisdição, mais rápida a solução do conflito para as duas partes.
A mitigação do princípio da obrigatoriedade abre espaço para o princípio da oportunidade, que se compatibiliza com os princípios da economia processual e celeridade do processo. Na visão de Binder, citado por Rodrigo Leite Ferreira Cabral[27], o princípio da oportunidade também se relaciona com os princípios da intervenção mínima, da não naturalização, da economia da violência, da utilidade e do princípio do respaldo.
O princípio da oportunidade é consequência da ideologia penal do Funcionalismo, pois o Ministério Público poderá, adotando critérios de política criminal, abrir mão da obrigatoriedade para oferecer uma solução mais célere ao conflito. Não parece razoável todos os litígios envolvendo o sistema processual penal passarem por uma fase de conhecimento, pois conforme restou-se devidamente mostrado, o tempo médio de um processo criminal no Brasil é de 3 anos e 10 meses.
Rogério Sanches e Renee do Ó Souza entendem que a definição de requisitos para a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, por meio de uma norma infralegal, equivale a legítima e salutar penetração das decisões valorativas político-criminais no sistema do Direito Penal a que se refere Claus Roxin[28].
Neste contexto de implantação de medidas de política criminal para combater a morosidade do Poder Judiciário, foi criado o acordo de não persecução penal pela Resolução nº 181/17-CNMP, sendo posteriormente inserido no Código de Processo Penal, após as alterações trazidas pela Lei 13.964/2019.
3 Acordo de não persecução penal: legitimação do instituto a partir de uma reflexão axiológica e pragmática
O direito de ação penal, para ser efetivamente instrumentalizado, necessita percorrer um caminho previamente previsto no ordenamento para evitar o excesso de poder que advém do jus puniendi. Isso é, para o Estado exercer o poder de punir, ele deve perseguir o acusado para promover sua responsabilidade penal, sendo esse caminho chamado de persecução penal.
Mougenot define a denominada “persecução penal” como “o caminho que percorre o Estado-Administração para satisfazer a pretensão punitiva, que nasce no exato instante da perpetração da infração penal”[29].
Neste viés, a partir de uma interpretação da definição do supracitado autor, já podemos concluir que a persecução penal não nasce na esfera judicial – ou seja, com a instrumentalização do direito de ação, no caso, através da denúncia. A persecução penal nasce no exato momento em que é praticada a infração penal.
Por isso, o supracitado autor divide a persecutio criminis em três fases: a primeira fase, chamada de investigação preliminar, onde se apura a existência da infração penal cometida (prova da materialidade), e se há indícios suficientes para responsabilizar alguém (indícios de autoria). A segunda fase, se inicia com a ação penal, cujo momento em que o direito penal material se concretizará diante de cada caso concreto. E por fim, a terceira e última fase, é a da execução penal, onde encontra-se satisfeito o jus puniendi estatal.
A doutrina clássica desenvolveu o princípio da obrigatoriedade para reger a ação penal pública, o que implica dizer que a persecução penal, seja ela desenvolvida primeiramente pela polícia ou diretamente pelo Ministério Público, tornou-se um instrumento de litigiosidade exacerbada. Dessa feita, o modelo de persecução penal adotado nos últimos anos evidenciou a ineficácia da Justiça Criminal, o que levou a um fomento à adoção do consenso no âmbito do referido modelo de justiça.
Os espaços de consenso na Justiça Criminal, isto é, a Justiça Penal Consensual, vem se desenvolvendo no Brasil. Conforme explicitado alhures no início do presente trabalho, o referido sistema de justiça ganhou diversas leis que criaram formas de resolução de conflito fundadas no consenso entre a acusação e o acusado. Repita-se, a título de frisar o referido argumento: seguiu-se a Lei 9.034/1995 (revogada pela Lei 12.850/2013), Lei 9.080/1995, Lei 9.807/1999, Lei 9.099/95 (mitigou o princípio da obrigatoriedade), Lei 9.613/1998, Lei 11.343/06 e a Lei 12.529/2001.
Forçoso é o entendimento que essas leis sugerem uma mudança no valor ético que estava subsumido no princípio da obrigatoriedade desenvolvido pela doutrina clássica, e não apenas no Brasil, pois conforme também já foi destacado, a ampliação dos espaços de consenso envolvendo conflitos penais se deu anteriormente em diversos países de origem democrática.
Foi nesse viés de Justiça Penal Consensual, que o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 181/17-CNMP, com as alterações da Resolução nº 183/18-CNMP., prevendo em seu artigo 18º, o acordo de não persecução penal pela primeira vez.
Com o mesmo espírito, o Congresso Nacional previu o acordo de não persecução penal na Lei 13.964/2019, trazendo a nova redação contida no art. 28-A do Código de Processo Penal, e afastando as discussões envolvendo a constitucionalidade formal do instituto. Vejamos, ipsis litteris:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente […][30]
O acordo de não persecução penal traz uma nova exceção para o princípio da obrigatoriedade, expandindo a possibilidade de acordo na seara penal não mais apenas para delitos cuja pena máxima seja inferior a 2(dois) anos (âmbito da Lei 9.099/95), e sim agora, indo muito mais além, podendo ser proposto o referido acordo para delitos cuja pena mínima seja inferior a 4 (quatro) anos.
A compreensão de uma abordagem axiológica do acordo de não persecução penal, nos permite legitimar o instituto de modo a fomentar ainda mais o espaço para consenso nos litígios penais como instrumentos legítimos de política criminal, minimizando-se os atuais problemas envolvendo a Justiça Criminal do país.
Conforme restou-se devidamente colacionado no presente trabalho, o direito possui um mínimo ético, que fundamenta o aspecto axiológico do Direito. O aspecto axiológico está relacionado a ideia de Justiça, e assim sendo, a partir da pesquisa desenvolvida, podemos relacionar o acordo de não persecução sob alguns prismas axiológicos que foram abordados no presente trabalho.
Primeiramente, é bastante discutível o equivocado paradigma que o acordo de não persecução se trataria de uma privatização de garantias, sob o argumento que o julgamento sumário supostamente suprimiria o devido processo legal.
Na nossa ótica, os argumentos supracitados não merecem prosperar, pois abrir espaços para o consenso na Justiça Penal, não é suprimir garantias, e sim ampliá-las a um patamar ainda maior: selecionar a persecução penal para casos menos graves.
Por essa razão também, vale frisar que o acordo de não persecução penal é voltado para crimes sem violência e grave ameaça, o que foi uma decisão acertada, pois para esses tipos de delitos mais graves, nos parece mais adequado adotar uma postura de Justiça Retributiva. Sobre o tema, trazemos as preciosas lições de Guilherme Nucci:
Há crimes que merecem punição, com foco voltado mais à retribuição do que à restauração (ex.: homicídio, extorsão mediante sequestro, tráfico ilícito de drogas). Outros, sem dúvida, já admitem a possibilidade de se pensar, primordialmente, em restauração (ex.: crimes contra a propriedade, sem violência; crimes contra a honra; crimes contra a liberdade individual). Nenhuma solução em favor desta ou daquela Justiça (retributiva ou restaurativa) pode ser absoluta. Se a retribuição, como pilar exclusivo do Direito Penal e do Processo Penal, não se manteve, não será a migração completa para a restauração que proporcionará a tão almejada situação de equilíbrio[31].
O autor demonstra que a Justiça Retributiva e a Justiça Restaurativa, in casu, o dicotômico retribuição e restauração deve ser analisado intrinsecamente pelo estudioso do Direito Penal e Processual Penal.
Nesse sentido, o acordo de não persecução penal está buscando a restauração para os crimes menos graves, e deixando para os agentes de política criminal, como Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário, focar suas forças na retribuição de crimes mais graves.
Quando todo e qualquer delito, excetuados os previstos na Lei 9.099/95, são apurados e promovidos incansavelmente por uma acusação litigante, diante do princípio da obrigatoriedade pura, buscando a condenação, estamos promovendo, uma resolução de conflito destrutiva para o indivíduo.
No início do presente trabalho, abordamos as lições de Morton Deutsch[32], que preceituava que o modo de lidar com o conflito, poderia ser construtiva ou destrutiva. Indubitavelmente, mesmo se adotarmos a postura retributiva, o Estado tentará buscar a ressocialização do agente, após promover o jus puniendi. Porém, sabemos que a ressocialização no Brasil está longe de ser uma realidade, fato reconhecido pelo Pleno do Colendo Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Min. Marco Aurélio, que reconheceu que o sistema prisional do Brasil experimenta um “estado de coisas inconstitucional”[33].
Outrossim, consideramos que a persecução penal e o consequente jus puniendi, são uma forma de lidar com o conflito destrutiva, pois o indivíduo muito dificilmente conseguirá ser ressocializado, assim como, sua privação de liberdade, não necessariamente vai trazer a “justiça” para a vítima.
Assim sendo, quando o Estado promove o acordo de não persecução penal, está promovendo a postura restaurativa, retirando o muro entre acusação e defesa, e permitindo que as partes decidam o conflito da lide sem precisar do crive do Judiciário. Portanto, entendemos que o acordo de não persecução penal é um modo de lidar com o conflito construtivo, pois promoverá sempre que possível, a reparação de danos, e ainda que o indivíduo seja hipossuficiente, poderá prestar serviços à comunidade, o que dá para a obrigação imposta pelo acordo de não persecução penal, um caráter pedagógico.
Ademais, também fazemos uma ligação entre o acordo de não persecução penal e ao consenso habermasiano[34]. O ponto entre essa ligação é que o acordo de não persecução penal não pode ser imposto a outra parte, se ela desejar exercer seus direitos constitucionais ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa.
A ética do discurso, desenvolvida por Habermas[35], salienta que todo e qualquer acordo é um processo de entendimento mútuo. Neste ínterim, quando o Ministério Público oferecer o acordo de não persecução penal, tem o dever de informar ao acusado sobre seus direitos, em igualdade de condições, salientar as consequências de aceitar o acordo em caso de eventuais inocências, dentre outros fatores que devem nortear uma relação de cooperação entre as partes[36].
A respeito da suposta violação ao princípio da obrigatoriedade, devemos relembrar que o princípio é um valor ético, valor este que está em constante mudança de acordo com a evolução social. O valor ético coletivo que estava subsumido no princípio da obrigatoriedade teve seu sentido alterado de “obrigatoriedade de acusar”, para “obrigatoriedade de agir”. O que não enseja dizer que daremos espaço para o “princípio da oportunidade pura”, e sim para o “princípio da oportunidade regrada”.
É latente a mudança no valor ético coletivo quando tratamos do princípio da obrigatoriedade. Aproximadamente 20(vinte) países na América Latina vem adotando o princípio da oportunidade, sendo alguns deles citados por André Luis Alves de Melo em sua tese de doutorado: Argentina, Chile, Uruguai, México, Paraguai, Venezuela, Peru, Colômbia, Equador, Bolívia, República Dominicana, Costa Rica, Guatemala, Honduras, Nicarágua, El Salvador e Cuba[37].
Adrián Marchisio, citado por André Luis Alves em sua tese de doutorado, leciona que:
La incorporación Del principio de oportunidad em la legislación argentina es un medio adecuado para aumentar los niveles de eficiencia del sistema de administración de justicia, evitar a actual selectividade informal, y reducir La priorización de recursos.[38]
Trazendo para a realidade da mudança do valor ético para nosso país, vale transcrever as lições de José Antônio Paganella Boschi, também citado por André Luis Alves de Melo:
A flexibilização do princípio da oportunidade, ou, ainda mais radicalmente, a instituição do princípio da oportunidade da ação penal pública entre nós, desde que, observada a recomendação de Roxin, o Ministério Público estabelecesse uma política de persecução penal, daria melhores condições para a Instituição priorizar a atividade de punição dos fatos que causam maior lesividade social e ao mesmo tempo propiciaria o alívio das pautas judiciárias em favor da otimização orçamentária, como propõe conhecido princípio de direito administrativo. Enfim, está aberta a discussão e, para que ela seja fecundada, parece-nos que é preciso nos desapegarmos das fórmulas legais que a doutrina transformou em dogmas repassados aos alunos desde os primeiros anos de faculdade, em nosso país.[39]
Portanto, verifica-se a patente mudança no valor ético que existia quando foi criado o princípio da obrigatoriedade, que com a chegada do acordo de não persecução penal, acaba por se tornar mais um instrumento célere e eficaz de política criminal, seguindo-se o Funcionalismo de Claus Roxin[40], para uma resolução de conflito construtiva para todos os envolvidos.
Dessa feita, sendo uma opção legítima de política criminal, o acordo de não persecução penal, na visão de Francisco Dirceu de Barros, obedece aos princípios constitucionais da celeridade processual, efetividade, economia processual. Trata-se, portanto, uma garantia fundamental do acusado, e nesse sentido, poderia ser aplicado até mesmo nos casos já denunciados pelo Ministério Público[41].
Vale a transcrição das palavras de André Luis Alves de Melo[42]:
O Jus puniendi não é tão absoluto como tradicionalmente se ressalta nos livros de processo penal, pois temos o indulto, a anistia, a prescrição, a representação da vítima, e não faz sentido que esta tenha mais poder que o Estado estabelecer prioridades, pois no Estado Democrático de Direito deve-se focar nos direitos fundamentais, mas ressaltando a questão da “reserva do possível”, ou seja, em que o Estado é responsável dentro dos limites orçamentários e das prioridades, logo a ação penal precisa ser racionalizada para ser a ultima ratio, considerando a gravidade de uma ação penal, não pode ser banalizada.
A partir dessa consideração, André Luis trata que a obrigatoriedade da ação penal, sem critérios de racionalização, viola os direitos fundamentais e os princípios da Administração Pública. Diaulas Costa, citado pelo antedito autor, fala que na ausência de um princípio da oportunidade pura, a delimitação da pena máxima em concreto pelo Ministério Público, antes da ação penal, permitiria uma solução para que aqueles 40% dos processos em curso na Justiça não fossem sequer iniciados[43].
Neste sentido, podemos relacionar o termo “oportunidade pura” com as lições de Vladmirir Aras:
Um dos dispositivos úteis para a construção de um espaço de consenso para a não-persecução penal é o próprio art. 28 do Código de Processo Penal, pois este cânon não específica nem diz quais são as “razões invocadas” pelo Ministério Público para a promoção do arquivamento do inquérito policial. O promotor ou o procurador pode, perfeitamente, invocar razões de política criminal ou de utilidade para não promover a demanda penal, tendo em vista, por exemplo, a aproximação do termo final do prazo prescricional máximo previsto para aquele delito. Pode, ainda, alegar o membro do Parquet a insignificância penal da conduta apurada no inquérito, ou a inconveniência da ação, por motivos de mérito administrativo.[44]
Reconhecemos, outrossim, que o acordo de não persecução penal obedece aos princípios de celeridade processual, efetividade, economia processual, sendo, portanto, uma garantia fundamental do acusado, pois indubitavelmente, uma persecutio criminis atingirá seu status dignitate, independentemente de ser culpado ou inocente. Portanto, a persecução penal em juízo só deve ser utilizada como ultima ratio, para os delitos mais graves, conforme preceitua o referido instituto.
Em contraponto, discordamos que o acordo de não persecução penal, seja utilizado pelo Parquet a partir de um princípio da oportunidade pura, e principalmente, por critérios de mérito administrativo. Não podemos considerar que o princípio da obrigatoriedade está superado, e sim reconhecer sua mitigação, pois um dos fundamentos do princípio da obrigatoriedade que não se pode abandonar é seu caráter democrático: o Ministério Público não pode escolher quem denunciar adotando critérios de oportunidade e conveniência, o que se deve ter, é um regramento preestabelecido que permita que os membros do Parquet ofereçam um acordo mediante regras previamente estabelecidas, que em nossa visão, assim que deve ser interpretado e utilizado o acordo de não persecução penal.
Ante o exposto, acreditamos que o acordo de não persecução penal deve se fundamentar em uma obrigatoriedade mitigada ou melhor dizendo, em uma oportunidade regrada, observando-se o princípio constitucional da segurança jurídica, pois assim, se evitará casos em que o Ministério Público possa escolher quem denunciar.
Isso não significa que o Ministério Público, ao verificar o cumprimento dos requisitos estabelecidos no art. 28-A do Código de Processo Penal, com as alterações da Lei 13.964/2019, tenha o poder-dever de oferecer o acordo de não persecução penal.
Se o modelo de acusação automática (viés clássico da obrigatoriedade) não atende as exigências contemporâneas de política criminal, o oferecimento do acordo de não persecução penal (também de forma automática) em qualquer caso viola a independência funcional do Ministério Público e sua condição de dominus litti. Enfim, o acordo de não persecução penal não pode ser considerado direito subjetivo do réu, tese acolhida pela 6ª Turma do STJ em 2022, no julgamento do AgRg no REsp 1970975/SP.
Conclusão
O novel acordo de não persecução penal promove uma resolução de conflito construtiva, baseando-se nas ideias de Deutsch, tendo em vista que permite que as partes resolvam o conflito sem a imposição da litigância que o modelo de Justiça Criminal há algum tempo antes tinha como foco principal, contribuindo com o modelo de resolução restaurativo entre as partes, e a reparação de danos, que substituem a reprimenda penal cominada à espécie, bem como eventualmente, o caráter pedagógico que eventuais obrigações pactuadas poderão impor àquele acusado da prática de uma infração penal.
O acordo de não persecução penal não poderá ser imposto a outra parte, devendo-se basear na ética do discurso, promovendo a igualdade entre as partes, conforme lecionou Habermas. Importa dizer, o Ministério Público jamais deverá coagir ou obrigar a parte que realize um acordo, e se assim o fizer agirá com abuso de direito. A ética do discurso impõe que as obrigações impostas ao acusado devem ser negociadas, cabendo ao acordante aceitar ou não as condições estipuladas sem nenhuma coação.
O acordo de não persecução penal reflete a ampliação dos espaços de consenso no Brasil, sendo um marco importante para a Justiça Penal Consensual.
O princípio da obrigatoriedade está recebendo uma nova interpretação doutrinária, pois como os princípios são valores éticos coletivos, percebemos ao longo do presente trabalho a mudança do valor ético da obrigatoriedade de acusar para a obrigatoriedade de agir, fato evidenciado pela: adoção do princípio da oportunidade em diversos países; pela evolução do pensamento doutrinário de autores nacionais e internacionais; pela própria intenção do Poder Constituinte, ao atribuir a titularidade exclusiva do Ministério Público da ação penal; e ainda pelo legislador do Códex Processual Penal, que deu ao Parquet o status de sus generis e dominus litti, o que implica dizer que o Ministério Público não está obrigado a ser um acusador automático, fundamentando-se assim, a adoção do princípio da oportunidade regrada.
O acordo de não persecução penal é um instrumento legítimo de política criminal, baseando-se no Funcionalismo de Claus Roxin, fato evidenciado tanto pelas novas sustentações doutrinárias, como pelos dados empíricos trazidos à colação. No ponto de vista pragmático, o acordo de não persecução penal servirá como um filtro para o Poder Judiciário, que se concentrará na reprimenda penal de crimes mais graves, os quais merecem um enfoque mais retributivo do que reparador.
O acordo de não persecução penal não retira caráter democrático do princípio da obrigatoriedade, sendo compatível com o nosso sistema processual penal pelas razões supra expostas. A dimensão democrática do princípio da obrigatoriedade (assim entendida como obrigatoriedade de agir ou oportunidade regrada) restará respeitada quando o Ministério Público adotar critérios objetivos para o oferecimento ou não do acordo de não persecução penal (afastamento da tese do mérito administrativo), devendo sempre justificar aos órgãos de controle ministerial quando o acordo não oferecido.
Por tudo que foi exposto, é inegável concluir que o acordo de não persecução penal é, do ponto de vista axiológico (valor justiça) e pragmático (valor social), um instrumento legítimo de política criminal e faculdade do Ministério Público, não constituindo um direito subjetivo do acusado.
Referências
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[1] Doutor em Direito pela Universidade de Castilla – La Mancha. Mestre em Direito pela Universidad de Salamanca. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Sociedade Caruaruense de Ensino Superior. Graduado em Direito pela Sociedade Caruaruense de Ensino Superior. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco
[2] Disponível em <https://www.dicio.com.br/consenso/>. Acesso em 20/08/2019.
[3] DEUTSH, Morton apud VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5. ed. São Paulo: Editora Forense., 2017, p. 25.
[4] FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 31. ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 18.
[5] OLIVEIRA, Frederico José Santos de. Círculo restaurativo e procedimento judicial: análise de uma axiologia (as) simétrica. Caruaru/PE: Asces, 2019, p. 16
[6] HABERMAS, aputd VILARES, Fernanda Regina. O consenso habermasiano no processo penal: justiça penal consensual e o princípio da oportunidade nos crimes tributários. <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc50000016d49aeb3f2e05cf069&docguid=Ic6e7a590142d11e2b814010000000000&hitguid=Ic6e7a590142d11e2b814010000000000&spos=1&epos=1&td=1018&context=27&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=true&isFromMultiSumm=true&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em 19/09/2019.
[7] Id, Ibid.
[8] DEUTSH, Morton apud VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5. ed. São Paulo: Editora Forense., 2017, p. 25.
[9] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,) CUNHA, Rogério Sanches e SOUZA, Renee do Ó. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 123.
[10] VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5. ed. São Paulo: Editora Forense., 2017, p. 25.
[11] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,) CUNHA, Rogério Sanches e SOUZA, Renee do Ó. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 123.
[12] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). ALVES, Jamil Chaim. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 219/220.
[13] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 64/68.
[14] OLIVEIRA, Frederico José Santos de. Círculo restaurativo e procedimento judicial: análise de uma axiologia (as) simétrica. Caruaru/PE: Asces, 2019, p. 30.
[15] Id, Ibid, pp. 30-31.
[16] Id, Ibid., pp. 30-31.
[17] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). MELO. André Luis Alves de Melo Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 173.
[18] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). MELO. André Luis Alves de Melo Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 173.
[19] Id, Ibid, pp. 117/118.
[20] ITÁLIA. Constituição da República Italiana. Artigo 112 da Constituição Italiana: O Ministério Público tem a obrigação de exercer a ação penal.
[21] BRASIL. Código de Processo Penal Militar. Artigo 30: A denúncia deve ser apresentada sempre que houver: a) prova de fato que, em tese, constitua crime; b) indícios de autoria.
[22] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). MELO. André Luis Alves. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 173
[23] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. [...]
[24] GUAER, Ruth Maria Chittó (Org.). GIACOMOLLI, Nereu José. Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos II. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. p. 287.
[25] ROXIN, Claus apud CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). CUNHA, Rogério Sanches e SOUZA, Renee do Ó. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 128.
[26] <https://www.cnj.jus.br/processos-criminais-91-milhoes-tramitaram-na-justica-em-2018/ >. Acessado em 10/10/2019
[27] BINDER apud CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). CABRAL. Rodrigo Leite Ferreira. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 38.
[28] ROXIN, Claus apud CUNHA e SOUZA, Rogério Sanches Cunha e Renee do Ó Souza. A legalidade do acordo de não persecução penal (Res. 181/17 CNMP): uma opção legítima de política criminal. Set 2017. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2017/09/14/legalidade-acordo-de-nao-persecucao-penal-res-18117-cnmp-uma-opcao-legitima-de-politica-criminal/. Acesso em: 19/05/2019.
[29] BONFIM. Edilson Mougenot . Curso de processo penal. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 165.
[30] BRASIL. Código de Processo Penal.
[31] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. pp. 59/60
[32] DEUTSH, Morton apud VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 5. ed. São Paulo: Editora Forense LTDA., 2017, p. 25.
[33] STF, ADPF 347 MC
[34] HABERMAS, aputd VILARES, Fernanda Regina. O consenso habermasiano no processo penal: justiça penal consensual e o princípio da oportunidade nos crimes tributários. <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc50000016d49aeb3f2e05cf069&docguid=Ic6e7a590142d11e2b814010000000000&hitguid=Ic6e7a590142d11e2b814010000000000&spos=1&epos=1&td=1018&context=27&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=true&isFromMultiSumm=true&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em 19/09/2019.
[35] Id, Ibidem.
[36] Id, Ibidem.
[37] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). MELO. André Luis Alves. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, pp. 210/213
[38] MARCHISIO, Adrián apud CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). MELO. André Luis Alves. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 185.
[39] BOSCHI, José Antônio Paganella apud CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). MELO. André Luis Alves. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, pp. 182/183
[40] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). MELO. André Luis Alves. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 177.
[41] BARROS. Francisco Dirceu. Acordo de não continuidade da persecução penal: a possibilidade jurídica do uso da Resolução 181 do CNMP no curso da ação penal. Editora JH Mizuno, 2019. pp. 04/07.
[42] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). MELO. André Luis Alves. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 177.
[43] COSTA, Diaulas apud CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). MELO. André Luis Alves. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 183
[44] CUNHA, Rogério Sanches et al (Coord,). ARAS, Vladmir. Acordo de não persecução penal. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 285.
Pós-graduado lato sensu em Direito do Estado pelo Centro Universitário de Valença/RJ. Graduado em Direito pelo Centro Universitário Tabosa de Almeida – Associação Caruaruense de Ensino Superior/PE. Advogado
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COUTO, Lucas Leonardo Marques do. Justiça penal consensual e acordo de não persecução penal: uma análise axiológica e pragmática do acordo de não persecução penal sob o prisma da mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública no processo penal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2022, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60535/justia-penal-consensual-e-acordo-de-no-persecuo-penal-uma-anlise-axiolgica-e-pragmtica-do-acordo-de-no-persecuo-penal-sob-o-prisma-da-mitigao-do-princpio-da-obrigatoriedade-da-ao-penal-pblica-no-processo-penal-brasileiro. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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