JULIANO DE OLIVEIRA LEONEL [1]
(orientador)
RESUMO: O presente artigo analisa a valoração da palavra da vítima nos crimes contra a dignidade sexual, cujo depoimento pessoal da vítima é o único meio de prova. Tem-se por problema de pesquisa: em que medida é possível à luz da presunção de inocência se discutir a condenação com base apenas na palavra da vítima. Dessa forma, objetivou-se analisar se a sentença condenatória pautada na palavra da vítima ofende o princípio da inocência, posto que em crimes contra a dignidade sexual, que na maioria das vezes são praticados na clandestinidade, restam somente os relatos da vítima. No que tange aos meios, a pesquisa classifica-se em bibliográfica, pelo fato de a fundamentação teórico-metodológica ser imprescindível para este trabalho.
Palavras-chave: Standards probatórios; Presunção de inocência; Epistemologia jurídica; Falsas-memórias.
O presente estudo tem por objetivo analisar a valoração da palavra da vítima nos delitos contra a dignidade sexual haja vista que, em sua grade maioria, são praticados na clandestinidade, às escuras, sem a presença de testemunhas. Para tanto, sugere-se como problema de pesquisa: Em que medida é possível à luz da presunção de inocência se discutir a condenação com base apenas na palavra da vítima? A pesquisa será desenvolvida tendo como base a revisão bibliográfica acerca dos temas: standards probatórios, presunção de inocência, epistemologia jurídica e falsas memórias.
Constata-se que a palavra da vítima dentro do processo penal é relevante sim, entretanto, o julgador quando da prolação da sentença condenatória deve levar em consideração outros meios de prova, utilizando-se da técnica de ponderação, de modo haja congruência entre as alegações da vítima e as provas existentes, sob pena de aplicar-se o brocardo in dubio pro reo.
Logo, será analisado o suposto desrespeito à presunção de inocência ante a condenação do réu pautada tão somente na palavra da vítima, posto que a jurisprudência tem apoiado esse meio de prova como supedâneo para a condenação, uma vez que alguns delitos de crimes contra a dignidade sexual não deixam vestígios, como por exemplo, a importunação sexual e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal no estupro de vulnerável, por vezes é praticado as escuras, na clandestinidade, isto é, que na maioria das vezes não deixa vestígios, restando tão somente a palavra da vítima contra seu algoz. Bem como, serão analisados os possíveis problemas relacionados a confiabilidade da prova oral e sua recepção em relação aos outros meios de prova e suas implicações dentro do processo penal, como a denunciação caluniosa e o incidente de falsas memórias.
A relevância da pesquisa reside em discutir o desrespeito as garantias constitucionais do réu, as arbitrariedades por parte do judiciário brasileiro, bem como mostrar que ainda persiste um processo penal permeado pelo modelo inquisitorial.
Metodologicamente o estudo realiza a revisão bibliográfica em Direito Penal sobre o estupro de vulnerável, identificar em que medida é possível à luz da presunção de inocência se discutir a condenação com base apenas na palavra da vítima e discutir o standard probatório no processo penal brasileiro para só então analisar se é possível à luz da presunção de inocência se discutir a condenação com base apenas na palavra da vítima.
O artigo será desenvolvido através de uma pesquisa bibliográfica do tipo narrativa com abordagem dedutiva, por meio de consulta em obras, legislação, teses, dissertações, doutrinas e jurisprudência brasileira, relacionadas ao tema, sem, contudo, esgotar o assunto, mas de tão somente fomentá-lo.
2 PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO GARANTISTA
Acerca do modelo garantista, cumpre destacar que Luigi Ferrajoli, em sua obra Direito e Razão, propõe o mesmo como sendo um modelo pautado pela legalidade, próprio de um Estado de Direito, sob o pilar da intervenção mínima do Estado, mitigação da violência, de uma maior liberdade dos cidadãos e como corolário o respeito aos direitos destes. E continua aduzindo o grande jusfilósofo italiano que só é garantista o sistema penal que está de acordo com o ordenamento jurídico e que tenha eficácia no plano prático (FERRAJOLI, 2002).
Entretanto, renomado autor adverte que esse modelo enquanto parâmetro da racionalidade, da justiça, e da legitimidade da intervenção punitiva do Estado é desrespeitado pela não efetivação das normas infraconstitucionais em face da Constituição, o que pode redundar em uma farsa. Foi justamente por causa dessa antinomia entre o modelo constitucional e sua inefetividade pelas normas inferiores que surgiu o garantismo como resposta a esta incongruência.[2]
Em que pese a palavra garantismo seja utilizada há muito mais tempo, foi somente no século passado que ela passou a designar o que hoje entendemos. Nesse sentido, de acordo com Ippolito (2011, p. 36, apud RABELO, 2020, p. 29), “[...] foi somente a partir das décadas de 60 e 70 que o termo “garantismo” se consolidou na filosofia política italiana e viu seu sentido ser fortemente relacionado ao constitucionalismo rígido e à defesa das garantias constitucionais das liberdades fundamentais.”
Aury Lopes Jr. (2006) dissertando sobre a instrumentalidade do processo penal e criticando aqueles que acreditam que essa dita instrumentalidade está a serviço aos anseios da sociedade bem como aos que dizem agir em nome da Constituição, na verdade estão equivocados, porque não é essa a finalidade do processo penal, pois para ele seria inconcebível o Direito Penal sem o respectivo processo, assim como pena sem processo, uma vez que perderia sua aplicabilidade, diferentemente do direito civil que para ser aplicado, não depende do seu respectivo processo, aí onde reside a instrumentalidade do processo penal.
E conclui o autor (2006, p. 11) afirmando que:
[...] a instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas com uma especial característica: é um instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais. É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se manifesta no processo penal, pois trata-se de instrumentalidade relacionada ao Direito Penal e à pena, mas, principalmente, a um instrumento a serviço da máxima eficácia das garantias constitucionais.
Destarte, não basta que tenhamos um sistema garantista estabelecido no modelo constitucional, se essas garantias não se traduzem no plano concreto, isto é, sua não efetivação pelas normas infraconstitucionais. É preciso que o garantismo seja efetivamente posto em prática, e isso ocorre no processo penal na medida em que são obedecidos e respeitados os comandos da Constituição, posto que o processo não é um fim em si mesmo, que não a efetivação dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos em face as arbitrariedades perpetradas pelo próprio Estado na figura do juiz, mormente o direito à liberdade e a presunção de inocência.
2.1. O princípio da presunção de inocência
Foi com a Revolução Francesa, de 1789, e mais precisamente com seus ideais influenciados pelo Iluminismo que a liberdade passou a ganhar especial conotação, tanto que expressou-se na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que todo acusado é considerado inocente até que sobrevenha sentença condenatória, no seu art. 9º (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, 1789).
Do mesmo modo a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, após o regime fascista e o fim da Segunda Guerra Mundial, estatuiu o princípio da presunção de inocência, no seu art. 11 ao estabelecer que “todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS).
A presunção de inocência no estágio atual traduz-se como um axioma constitucional, conforme se depreende do inciso LVII, da Constituição da República, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988). E vai muito além disso, vez que a presunção de inocência apresenta conteúdo mais amplo.
Nesse sentido, para Delmanto Júnior (2019, p.177), referido princípio "é regra de tratamento, uma orientação política que se consubstancia em um direito público subjetivo, uma presunção constitucional relativa (juris tantum) no sentido da não culpabilidade do acusado, até que se demonstre, no processo penal, cabalmente o contrário."
É um princípio de status constitucional, conforme visto, bem como está intrinsecamente relacionado ao Estado Democrático de Direito, uma vez que como norma positivada deve ser respeitada pelo próprio Estado, que deve assegurar a não culpabilidade do cidadão até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível. Para além disso, para que a presunção de inocência mantenha-se intacta durante o trâmite da persecução penal deve se valer de outros princípios devidamente elencados no rol dos direitos fundamentais da Lei Maior, como o juiz natural, o contraditório e a ampla defesa, e principalmente o do devido processo legal – respectivamente nos incisos LIII, LV e LIV, todos do art. 5º (BRASIL, 1988)
Barroso (2022, p. 678) afirma
É inegável que a tipificação e punição de um crime interferem, inexoravelmente, com os direitos fundamentais, notadamente com o direito à liberdade. Por vezes, interferirá também com o direito de propriedade, em caso de multa ou perda de bens. Porém, como já se assentou, nenhum direito fundamental é absoluto, e existe sempre a possibilidade de tais direitos colidirem entre si ou com outros bens e valores constitucionais. Há uma tensão permanente entre a pretensão punitiva do Estado e os direitos individuais dos acusados. Para serem medidas válidas, a criminalização de condutas, a imposição de penas e o regime de sua execução deverão realizar os desígnios da Constituição, precisam ser justificados, e não poderão ter natureza arbitrária, caprichosa ou desmesurada.
Deve-se registrar a título de esclarecimento que a expressão “pretensão punitiva” usada por Barroso é um termo equivocado, uma vez que Lopes Jr. (2021) explica que o detentor da ação penal, seja o Ministério Público, seja o particular, tem o poder de exercer a acusação formulada contra alguém ao Estado, eis que surge a pretensão acusatória (ius ut procedatur), enquanto que a pretensão punitiva cabe somente ao juiz, pois somente ele pode punir, razão pela qual é mais correto falar-se em pretensão acusatória. Assim, o acusador (Ministério Público ou particular) leva até o conhecimento do julgador um fato definido como crime com as provas que achar pertinente e, uma vez respeitado o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, se convencido estiver o juiz, este aplicará a reprimenda imputando ao condenado a prática de um delito com a sua correspondente pena.
Se existe uma tensão permanente entre a pretensão acusatória do Estado e os direitos individuais dos acusados, obviamente que a presunção de inocência deve se sobrepor, visto que serve como um filtro antes que os direitos dos acusados sejam retirados. Ao passo que um processo penal sem a presunção de inocência seria inconcebível no estágio atual do Estado Democrático de Direito.
Desse modo, a instrumentalidade do processo penal passa pelo respeito as garantias constitucionalmente previstas e a sua máxima eficácia, posto que o processo penal é o termómetro da democracia de um país, devendo ser livre do autoritarismo e arbitrariedade perpetrados por julgadores que dizem agir em nome da Constituição, no qual devem proferir um provimento final devidamente fundamentado,[3] sob pena de nulidade do processo.
3 DA PROVA NO PROCESSO PENAL, EPISTEMOLOGIA JUDICIÁRIA E VERDADE
O conceito de prova, nas palavras de Capez (2022, p. 708):
Do latim probatio, é o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz (CPP, arts. 156, I e II, 209 e 234) e por terceiros (p. ex., peritos), destinados a levar ao magistrado a convicção acerca da existência ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação. Trata-se, portanto, de todo e qualquer meio de percepção empregado pelo homem com a finalidade de comprovar a verdade de uma alegação.
No mesmo sentido, de acordo com Marcão (2016) conclui-se que prova são informações necessárias e pertinentes na fase de instrução que visam convencer o julgador acerca do crime e suas circunstâncias, para que só então possa tomar uma decisão fundamentada, haja vista que deve ele proferir uma sentença, seja condenatória, seja absolutória.
Em outras palavras, prova é todo meio hábil e admitido por lei[4] a comprovar aquilo que a parte – entenda parte aqui como a acusação, tendo em vista que no processo penal o ônus da prova é do Ministério Público em razão da sua pretensão acusatória, conforme visto anteriormente – alega como sendo verdade.
No que tange a classificação das provas, Bonfim (2019, p. 793-794) didaticamente leciona que:
Quanto ao objeto, pode ser direta ou indireta. A primeira demonstra o fato de forma imediata (ex.: o flagrante, a confissão, o corpo de delito); a segunda, ao contrário, afirma um fato do qual se infira, por dedução ou indução, a existência do fato que se busque provar (ex.: os indícios, presunções e suspeitas). Quanto ao sujeito ou causa, poderá ser real, se surgir de coisa ou objeto (ex.: aquela extraída dos vestígios deixados pelo crime); ou pessoal, quando emanar da manifestação consciente do ser humano (ex.: a testemunha que narra os fatos a que assistiu; o laudo assinado por dois peritos). Quanto à forma, são divididas em: testemunhal, documental e material. A prova testemunhal é aquela feita por afirmação pessoal. Documental, ao contrário, é aquela feita por prova escrita ou gravada. Por fim, a prova material é a que consiste em qualquer materialidade que sirva de elemento para o convencimento do juiz sobre o fato probando.
Sobre o objeto da prova, Capez (2022, p. 709) ainda preleciona:
Objeto da prova é toda circunstância, fato ou alegação referente ao litígio sobre os quais pesa incerteza, e que precisam ser demonstrados perante o juiz para o deslinde da causa. São, portanto, fatos capazes de influir na decisão do processo, na responsabilidade penal e na fixação da pena ou medida de segurança, necessitando, por essa razão, de adequada comprovação em juízo. Somente os fatos que revelem dúvida na sua configuração e que tenham alguma relevância para o julgamento da causa merecem ser alcançados pela atividade probatória, como corolário do princípio da economia processual.
São muitos os meios de prova pelo qual o juiz pode ter acesso e formar sua convicção para só então dizer se o acusado cometeu ou não o crime, de modo que não pode haver dúvidas, porque nesse caso não estaria cometendo outra coisa senão injustiça.
Ainda de acordo com Beccaria (2001), as provas são divididas em perfeitas e imperfeitas, as primeiras são aquelas que por si só já demostram que o acusado não é inocente, de modo que apenas uma basta para a condenação, já as segundas por não serem capazes de sozinhas demonstrarem a culpa do acusado exigem que sejam numerosas para valerem como perfeitas.
Feitas essas considerações, agora passaremos a analisar a própria ideia de prova, com seus aspectos formais, para que só então se possa chegar à valoração desta sem que se retire as características da instrumentalidade do processo, isto é, as garantias constitucionais.
3.1 Epistemologia judiciária e verdade no processo penal
Sabe-se que os magistrados têm o livre convencimento na valoração da prova, e isto se dá devido a discricionariedade que a lei lhes dá, no entanto, é necessário que façam bom uso desse livre convencimento, sob pena de transformar-se em um ato verdadeiramente arbitrário. Logo, é indispensável que haja o aprimoramento da atividade cognitiva sem, contudo, retirar essa discricionariedade, eis que surge a epistemologia.
De acordo com Badaró (2019), há divergências na teoria do conhecimento, isto porque de um lado os céticos negam a possibilidade de se chegar a um conhecimento verdadeiro, o que já denota por si só não ter utilidade alguma para o processo, já que é por meio da prova que o magistrado toma conhecimento dos fatos, por outro lado, aceitar-se uma proposição como verdadeira, como se fosse um dogma também não é admissível. Assim, para o autor é possível o conhecimento da verdade, porém, ad cautelam é preciso que haja reflexões críticas acerca dos seus pressupostos para saber se realmente condiz com a realidade alicerçado no conhecimento humano.
Destarte, deve haver congruência entre conhecimento e realidade, como critério adotado pelo homem médio, para saber se tal proposição é verdadeira ou falsa, tendo em foco que há a imputação de um crime, como enunciado fático, enunciado este que é objeto do processo. No campo processual o critério adotado é o de verdade. Nesse sentido, “é necessário que haja uma relação de correspondência entre uma entidade linguística (o enunciado que contém o fato a ser provado) e uma entidade extralinguística (o fato real objeto do julgamento)” (BADARÓ, 2019, p. 88).
O autor ainda aponta que existem outras teorias sobre a verdade, e que por não se basearem em correspondentes empíricos, não são epistemológicas, são assim, teorias normativas, justamente por isso não devem ser aplicadas no processo, são elas: a que equipara a verdade à coerência da narrativa, e a que considera a verdade como consenso.
Um adendo, em razão da profundidade e problemática acerca do tema sobre as teorias da verdade, optou-se por não abordar referido tema, vez que demandaria um esforço teórico especifico, o que não comportaria no presente artigo.
Em suma, para um julgamento correto, é mister que no processo deve haver a transformação do fato que está sendo julgado no enunciado, isto é, no fato que efetivamente ocorreu, e aceitar-se a teoria da verdade como sendo legítima a formar a convicção do julgador parece ser a decisão mais acertada.
4 STANDARDS PROBATÓRIOS E A PALAVRA DA VÍTIMA NOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL
Os crimes contra a dignidade sexual estão regulados no Título VI, na Parte Especial do Código Penal, título este que foi alterado significativamente pela lei nº 12.015 de 7 de agosto 2009, o qual tinha como redação anterior crimes contra os costumes (BRASIL, 2009).
Essa mudança foi crucial, tendo em vista que o Código Penal brasileiro foi editado em 1941, sob a égide da ditadura de Getúlio Vargas, época em que o modo como as pessoas viviam era diferente, de modo que no contexto atual da sociedade, a Lei Penal já não estava mais conseguindo proteger o bem jurídico, isto é, a dignidade sexual.
Nesse sentido, Greco (2017, p. 61) preleciona:
As modificações ocorridas na sociedade trouxeram novas e graves preocupações. Em vez de procurar proteger a virgindade das mulheres, como acontecia com o revogado crime de sedução, agora, o Estado estava diante de outros desafios, a exemplo da exploração sexual de crianças.
Praticado um fato supostamente delituoso, abre-se a fase investigatória por meio do inquérito policial, no qual a polícia investigativa vai averiguar por meio do depoimento da vítima, testemunhas, do acusado, bem como proceder a realização do exame de corpo de delito se o crime comportar, ato contínuo o Ministério Público com base nessas informações oferecerá denúncia realizando assim sua pretensão acusatória, aceita a denúncia pelo juiz, este determinará a citação do acusado para defender-se, eis que se inicia a fase processual, assim como também a fase instrutória, onde o julgador vai analisar se preenchidas estão os elementos de autoria e materialidade, para ao final prolatar sua sentença.
Entretanto, até o juiz proferir uma decisão final, um longo caminho deve ser percorrido, isto porque, tudo gira em torno das provas, é por meio delas que se demonstrará a autoria e materialidade, assim, é fundamental o exame de corpo de delito. A esse respeito Avena (2009 apud SPERANDIO, 2017) explica que referido exame:
Compreende-se a perícia destinada à comprovação da materialidade da infração que deixa vestígio [...] Tal conceituação decorre da exegese do art. 158 do Código de Processo Penal, dispondo que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.
O grande problema é a abrangência do significado de “atos libidinosos” no crime de estupro de vulnerável trazido pela lei nº 12.015/2009, na medida em que tais atos não deixam vestígios, nem hematomas, o que torna difícil a realização do exame de corpo de delito, pois o crime pode ser consumado sem que haja conjunção carnal.
Por outro lado, se não há como ser feita a perícia, também dificilmente haverá testemunha, uma vez que crimes dessa natureza são praticados às escuras, na clandestinidade, sem a presença de um terceiro, o que dificulta ainda mais a instrução probatória.
Dadas essas noções introdutórias chega-se a seguinte indagação: a jurisprudência tem dado relevância especial à palavra da vítima nos delitos sexuais, entretanto, tal entendimento vai de acordo com as garantias do réu ou se trata de uma farsa onde o processo é um meio onde se pratica injustiças? É justamente sobra essa indagação que versa o objeto deste trabalho, conforme se verá abaixo.
4.1 O depoimento pessoal da vítima e suas falhas no campo da epistemologia
O depoimento pessoal da vítima nos crimes contra a dignidade sexual, é de suma importância, haja vista que a depender do crime praticado pelo infrator, a palavra da vítima pode ser o único meio de prova, como o ato libidinoso no estupro de vulnerável, que prescinde a conjunção carnal. Entretanto, casos há em que a suposta vítima tenta distorcer os fatos com o intuito de prejudicar, difamar a imagem de alguém. Um caso que repercutiu mundialmente, foi o do jogador de futebol Neymar que foi acusado de estupro pela modelo Najila Trindade, depois que os dois tiveram um encontro em um hotel em Paris, na França (EL PAÍS, 2019).
A notícia refletiu de forma negativa na vida do esportista, já que o afastou de competições, além do público que ficou dividido com a notícia, mas, felizmente, com o desenrolar da fase investigatória a polícia concluiu pelo arquivamento do inquérito policial ante a falta de provas, ao passo que a modelo foi indiciada por denunciação caluniosa, fraude processual e extorsão (EL PAÍS, 2019).
No entanto, nem sempre o acusado consegue se esquivar da persecução criminal, como no HC 177239 AgR/MG, em que o Supremo Tribunal Federal – STF, só então no dia 05 de outubro de 2021, inocentou um homem condenado a 09 anos e 04 meses de reclusão, por estupro de vulnerável praticado em 2012, ocasião em que a vítima tinha apenas 12 anos de idade, o acusado prestava serviços na propriedade rural do pai da suposta vítima.
Tudo mudou quando a jovem, já com 21 anos de idade descobriu que os seus relatos em sede de depoimento foram suficientes para a condenação do acusado. De acordo com ela, as falsas afirmações foram frutos de coerção advinda de seu pai, com o objetivo de afastar boatos que circulavam na cidade sobre sua honra, o qual exigiu que ela afirmasse que fora vítima de estupro pelo empregado. Ela ainda afirmou que na época dos fatos, namorava um garoto de sua escola, que tinha a mesma idade que ela, sendo que ambos praticavam relação sexual, o que de fato foi constatado por laudo médico, mas escondia esse fato dos pais temendo represália em relação ao garoto por parte do pai e também pelos comentários de colegas de escola que poderia gerar constrangimento.
O fato é que, o advogado do condenado de posse dessas informações, ajuizou ação de revisão criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, argumentando a descoberta de prova nova para demonstrar a sua inocência, contudo o referido tribunal extinguiu o processo em decisão liminar, alegando que o pedido revisional não se enquadrava nas hipóteses legais. A defesa, todavia, não desistiu mesmo não obtendo êxito no pedido até que o caso foi parar no STF, em que resultou na absolvição do réu.
A tese que se analisa aqui é o valor especial que é dado a palavra da vítima diante dos crimes contra a dignidade sexual, tendo em vista que dificilmente há outro meio de prova que não o relato da suposta vítima. Assim, é possível perceber esse raciocínio em diversos julgados, como exemplo, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no Agravo Regimental no REsp n. 1.774.080/RS (BRASIL, 2019), vejamos:
A jurisprudência desta Corte é no sentido de que, em razão das dificuldades que envolvem a obtenção de provas de crimes contra a liberdade sexual - praticados, na maioria das vezes, longe dos olhos de testemunhas e, normalmente, sem vestígios físicos que permitam a comprovação dos eventos - a palavra da vítima adquire relevo diferenciado.
Idêntico argumento pode ser encontrado em outros julgados, como no AgRg no HC 655153/SP (BRASIL, 2021), segundo a decisão do relator:
nos crimes contra a dignidade sexual, em virtude das dificuldades relacionadas à obtenção de provas, os quais, o mais das vezes, são praticados sem testemunhas e não deixam vestígios físicos, a palavra da vítima, quando consentânea com os demais elementos dos autos, assume especial valor probante.
Cabe ressaltar que conforme já visto anteriormente a instrumentalidade do processo penal se traduz em um processo que respeite todas as garantias estabelecidas constitucionalmente e mais que isso, que sejam efetivadas no plano prático, para que só então a atuação do Estado na persecutio criminis seja legítima.
Com a devida vênia ao mérito dos casos aqui trazidos, uma vez que não é isso que se quer discutir no presente artigo, mas valorar certos tipos de prova conforme a natureza do crime não nos parece coerente com um processo justo e imparcial, na medida em que supervalorizar uma prova em detrimento da ausência de outras, mostra-se de longe um claro objetivo: condenar a qualquer custo. Nesse diapasão, Lopes Junior e Rosa esclarecem que “constitui um grande erro supor que determinados crimes (seja pela gravidade ou complexidade) admitam "menos prova" para condenar do que outros”.
Com efeito, afirmar que “a palavra da vítima (...) assume especial valor probante” se revelaria inadequada ao processo por não se apoiar em um referencial empírico, uma realidade prática, perceptível pela sensibilidade humana, já que o processo se baseia na teoria epistemológica e não na teoria normativa da verdade. Assim, uma narrativa coerente nem sempre será verdadeira, o exemplo do caso julgado no HC 177239 AgR/MG, demonstrou a falha na aplicação dessa teoria.
Outrossim, deve-se observar que a expressão “consentânea com os demais elementos dos autos” se de um lado demonstra ceticismo por parte do judiciário, forma essa que deve ser dada as provas que chegam até o crivo do julgador, por outro, em uma análise mais acurada, pode chegar à conclusão que acarretaria em uma inversão do ônus da prova para o acusado, quando se sabe que esse encargo de trazer provas aos autos é da acusação.
Por fim, decisão ainda mais radical foi proferida por aquela Corte quando assentou-se no HC n. 213.045/SP, que: “esta Corte de Justiça possui entendimento no sentido de que a ausência de exame de corpo de delito nos crimes contra a dignidade sexual não enseja nulidade do processo, se existirem nos autos outros elementos aptos a comprovar a materialidade e autoria do delito” (BRASIL, 2011).
Ora, se o próprio art, 564, inciso III, alínea “b” do Código de Processo Penal traz a hipótese de nulidade em caso de ausência de exame de corpo de delito em crimes que deixam vestígios, trazendo a exceção quando possa ser suprido por testemunha, conforme dispõe o art. 167, da mesma lei, o que não é o caso desses delitos, pois conforme já explicitado, é um delito praticado na clandestinidade sem a presença de testemunhas, assim, estar-se-ia manifestamente diante de uma violação do princípio da presunção de inocência, posto que mais uma vez confirma-se a ideia da condenação a qualquer custo.
Deve-se ressaltar que como já tratado em capítulo anterior, o objetivo da presunção de inocência é assegurar a não-culpabilidade do réu até a eventual condenação, nesse passo as provas trazidas ao processo devem ser contundentes no sentido de demonstrar com a certeza que se exige a autoria e materialidade do delito que imputa ao réu, de modo que não podem deixar dúvidas. Entretanto, a expressão usada acima quando afirma que deve a palavra da vítima estar em consonância com as demais provas, acaba levando o encargo probatório para o réu que, se não trouxer provas que contradigam com a palavra da vítima, sua condenação é certa, visto que tem esta uma valoração especial e, diga-se que a acusação não trará provas que contradiga a si mesma.
As falhas epistemológicas demonstradas aqui ante da valoração da palavra da suposta vítima, não objetivam defender a impunidade, muito pelo contrário, é preciso que o poder punitivo do Estado atinja sua finalidade respeitando as garantias constitucionais do réu, e isso é possível a partir da produção e interpretação das provas de acordo com essas garantias, sem que possam ser elididas, diante das peculiaridades dos delitos objeto desse estudo.
O que se espera na verdade, é um processo penal justo, que condene o culpado e absolva o inocente, para tanto, até se chegar a essa finalidade um longo e árduo caminho deve ser seguido, de modo que respeite as formas de cada ato do processo. Nesse sentido Fernando Capez (2022, p.86) didaticamente argumenta que "no processo penal, deve-se buscar reconstruir historicamente um fato e todas as suas circunstâncias, com o objetivo de que a instrução probatória se aproxime o máximo possível da forma como esse fato ocorreu."
Se se pensa um processo penal como forma de revisitação do passado na reconstrução do fato delituoso que é imputado ao réu, certamente a memória é o elemento fundamental, pois só assim o juiz formará sua convicção para que possa proferir decisão fundamentada. Nesse passo é importante compreender o conceito de memória.
Izquierdo (2011, p.13) explica que:
“Memória” significa aquisição, formação, conservação e evocação de informações. A aquisição é também chamada de aprendizado ou aprendizagem: só se “grava” aquilo que foi aprendido. A evocação é também chamada de recordação, lembrança, recuperação. Só lembramos aquilo que gravamos, aquilo que foi aprendido.
Feitas essas considerações, cumpre ressaltar que a parte que nos interessa é a da recordação, mais precisamente aquela atinente as circunstâncias em que ocorreu o delito, posto que é delas que o processo penal deve se servir, como dito alhures. Assim, é de se supor que tanto os relatos da vítima quanto os da testemunha (quando houver) são imprescindíveis.
Entretanto, uma adoção da teoria da verdade como consenso, que leva em consideração a crença da vítima, poderia resultar em uma condenação errônea, visto que é incorreta não só por ser normativa, bem como, por não ser epistêmica, ou seja, não calcada em algo real, perceptível pela sensibilidade humana, isso porque quem assegurará que a crença da vítima se pauta pela verdade? É por essas razões que o Direito deve se valer dos avanços das outras ciências, mormente quanto as técnicas investigativas, posto que, em pese o magistrado tenha livre convencimento para decidir, este não deve ficar adstrito exclusivamente ao campo jurídico (HERDY; MATIDA; NARDELLI, 2020).
A forma de abordagem na investigação que apura a prática de crimes sexuais com ausência de vestígios, como por exemplo, com perguntas indutivas, podem ser determinantes para a produção de falsas memórias na vítima, através da sugestionabilidade, assim, as falsas memórias “podem ser provocadas a partir da sugestão de informações falsas que são apresentadas aos sujeitos – deliberadamente ou não – como fazendo parte da experiência real vivenciada” (WELTER; FEIX; STEIN, 2010, p. 167).
Insta salientar que nas falsas memórias o indivíduo não age de má-fé, já que acredita fielmente que o fato mencionado em seu relato realmente aconteceu. Contudo, não se pode olvidar que nem sempre relembrar uma maior quantidade de informações emocionais significará confiabilidade e precisão (WELTER; FEIX; STEIN, 2010). Assim, atribuir valoração especial à palavra da vítima porque sua fala é admitida como consenso, não nos parece a solução mais viável ao caso, que como visto pode cercear a liberdade de alguém de forma injusta.
Desta feita, uma decisão que se assenta estritamente no campo jurídico, sem contudo, apoiar-se no conhecimento das outras ciências, e que leva em consideração uma teoria que não se baseia em um referencial empírico, não está respeitando as garantias do acusado, e portanto, agindo em flagrante ilegalidade
4.3 Standards probatórios no processo penal
Promulgada a Constituição da República em 1988, iniciou-se a redemocratização, uma vez que o país saia de uma ditadura militar e ao mesmo tempo houve a volta do restabelecimento dos direitos e garantias fundamentais, só que dessa vez mais amplo, direitos estes que protegiam o cidadão das garras do Estado. Um exemplo claro disso foi o que a Lei Fundamental estabeleceu em seu art. 93, inciso IX, em que toda decisão do Poder Judiciário será fundamentada, sob pena de nulidade. Com isso, verifica-se o claro intuito de evitar decisões sem um fundamento legal, ou seja, arbitrárias, como as perseguições ocorridas naquela época, assim, tornar obrigatória a fundamentação judicial possibilita que cidadãos possam tomar conhecimento do motivo pelo qual foram condenados.
Contudo, atualmente com a valoração especial de certas provas em detrimento de outras, apenas a fundamentação, não é mais adequada necessitando assim de critérios objetivos que sejam coerentes com a finalidade do processo, ou seja, que respeitem as garantias do acusado.
Logo, surgem os standards probatórios, que representam padrões mínimos que devem interferir na atividade cognitiva do juiz quanto à formação de convicção e valoração das provas. Nesse sentido, Lopes Jr. conceitua standards como sendo “os critérios para aferir a suficiência probatória, o "quanto" de prova é necessário para proferir uma decisão, o grau de confirmação da hipótese acusatória”.
Originário do direito anglo-saxão nos países que adotam o sistema da common law, ainda é um tema novo no Brasil, que aos poucos vem sendo incorporado ao nosso ordenamento, especialmente nas decisões judiciais, visto que como exposto pelo autor acima está ligada ao acervo probatório.
Tratando sobre os padrões probatórios, Badaró (2019, p. 242) esclarece que:
Nos tribunais norte-americanos é comum o emprego de, pelo menos, três “standards de prova” definidos a partir de parâmetros jurisprudenciais: (i) simples “preponderância de provas” (preponderance evidence), (ii) “prova clara e convincente” (clear and convincing evidence), (iii) e prova “além da dúvida razoável” (beyond a reasonable doubt). A preponderância de provas, também conhecida como “mais provável que não”, significa simplesmente a probabilidade de um fato ter ocorrido. A “prova clara e convincente” pode ser identificada como um standard probatório intermediário, em que se exige uma probabilidade mais elevada ou reforçada, não bastando ser mais provável do que não. Finalmente, a “prova “além da dúvida razoável”, do ponto de vista comparativo, pode ser considerada como sendo uma probabilidade elevadíssima de que um conhecimento seja verdadeiro.
Cumpre-nos ressaltar que a análise detalhada recairá sobre o standard “além da dúvida razoável”, posto que seu grau é elevadíssimo (e por isso mais indicado ao processo penal) e que ademais os dois primeiros por exigirem um grau menor de provas são utilizados no âmbito cível e administrativo.
O uso de standards (na sentença penal) se faz necessário posto que atua como um controle epistêmico, na medida em que afasta o decisionismo do juiz na sua decisão que a profere de acordo com sua livre convicção e assim estar-se-ia afastado o autoritarismo e principalmente o erro judiciário, ou seja, sai de um critério subjetivo para um objetivo.
Contudo, engana-se quem acredita que a adoção de tal critério leva em consideração a variação da gravidade do delito, isto é, que crimes menos graves necessitam de menos provas do que os mais graves, destarte, pensar dessa forma estar-se-ia na verdade incorrendo em erro crasso. Nesse diapasão, Lopes Jr. (2019) afirma que:
Constitui um grande erro supor que determinados crimes (seja pela gravidade ou complexidade) admitam "menos prova" para condenar do que outros. É absolutamente equivocada a prática decisória brasileira de, por exemplo, supervalorizar a palavra da vítima em determinados crimes (violência doméstica, crimes sexuais, crimes contra o patrimônio mediante violência ou grave ameaça etc.) e admitir a condenação exclusivamente com base na palavra da vítima ou quase exclusivamente, quando se recorre, por exemplo, às "testemunhas de ouvir dizer" que nada viram, mas ouvira... Isso não rompe com o circularidade probatória da "palavra da vítima", e, em última análise, ainda que não pareça, se está condenando apenas com base na palavra dela. Isso é um rebaixamento não justificado e não autorizado do standard probatório.
A adoção do standard “além da dúvida razoável” leva em consideração o tipo de decisão que será proferida e não a natureza da infração penal praticada, assim, na fase investigativa o Código de Processo Penal, no § 3º do art. 5º, determina que qualquer pessoa que tiver conhecimento da existência de infração penal, comunique a autoridade policial, para se for o caso, que esta proceda a instauração de inquérito policial (BRASIL, 1941). O que é completamente diferente na fase da sentença, visto que o peso probatório deve ser maior, com efeito, “é perfeitamente sustentável um rebaixamento do standard probatório conforme a fase procedimental” (LOPES JR.; ROSA, 2019.
O legislador constituinte ao estabelecer a presunção de inocência enquanto direito e garantia fundamental, optou por inseri-lo num rol de direitos mínimos que o Estado deve resguardar e respeitar face à liberdade individual dos cidadãos, dessa forma, resta evidente que a adoção do standard “além da dúvida razoável” se mostra mais razoável e coerente com as garantias do indivíduo, de modo somente preenchido estaria legitimada a decisão condenatória e, se por acaso restar uma dúvida sobra o caso, deve-se resolver in dubio pro reo.
O presente artigo teve como finalidade a análise da relevância dada a palavra da vítima nos delitos contra a dignidade sexual em contraponto a presunção de inocência do réu, especialmente na sua mitigação em face das teorias adotada pelo judiciário brasileiro.
Em um primeiro momento buscou-se analisar a instrumentalidade do processo penal, no qual restou configurado, que a problemática reside justamente na sua não aplicabilidade prática, especialmente no desrespeito a presunção de inocência.
Em seguida analisou-se o conceito e valoração de provas e a epistemologia judiciária, no que tange às teorias referentes à verdade, não foram abordadas conforme justificativa já mencionada, bem como demonstrando a importância da correspondência entre a entidade extralinguística dos fatos, com a entidade linguística do processo.
Ato contínuo, demonstrou-se a problemática acerca da produção de provas nos delitos contra a dignidade sexual, mormente pela ausência tanto de vestígios quanto de prova testemunhal. Assim, chegou-se no objeto desse estudo: analisar em que medida é possível à luz da presunção de inocência se discutir a condenação com base apenas na palavra da vítima, em razão da adoção por parte da jurisprudência da valoração especial da palavra da vítima em crimes dessa natureza.
Desse modo, partindo-se da análise dos jugados comentados verificou-se a preferência por parte do judiciário brasileiro, pela valoração especial da palavra da vítima mesmo que sem exame que comprove a materialidade do delito, o que acaba invertendo o ônus probatório para o réu. Constata-se ainda a não relevância de incidentes que podem contaminar o processo, como as falsas memórias.
Diante disso, constata-se a adoção da jurisprudência brasileira de teoria que em nada é compatível com as garantias do réu, posto que no processo penal uma teoria que não se baseia em um referencial empírico, o revela que é inadequada, bem como a adoção do standard probatório “além da dúvida razoável” mostra-se como o mais adequado ao processo penal, por ser o mais elevado entre os outros e por afastar o decisionismo do juiz, isto é, seu subjetivismo, garantindo que haja compatibilidade e que o processo atinja sua finalidade.
Em suma, devem os julgadores adotar o criticismo sobre o relevante valor especial que é dado à palavra da vítima, para que as garantias do réu não sejam desrespeitadas e nem haja desvirtuação do ônus da prova, e além disso que inocentes não sejam condenados, como já ocorreu.
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[1] Doutorando em Ciências Criminais pela PUCRS. Mestre em Direito pela UCB. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UFPI. Professor do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA e do Centro Universitário Uninovafapi – UNINOVAFAPI e Defensor Público do Estado do Piauí. E-mail: [email protected]
[2] Ibid., p. 683
[3] A Emenda Constitucional nº 45, trouxe uma significativa reforma no judiciário brasileiro, alterando vários dispositivos da Constituição, dentre eles o inciso IX, do art. 93, passando a dispor que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)”. Já no Código de Processo Penal, essa disposição encontrasse prevista no art. 564, inciso V, ao prescrever que “A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: (...) em decorrência de decisão carente de fundamentação”.
[4] O art. 5º, LVI, da Constituição da República dispõe que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Acadêmico do 9º período do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA. Estagiário no Ministério Público do Estado do Píauí.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Jamil Guilherme Rodrigues. Crimes contra a dignidade sexual: e a condenação com base na palavra da vítima Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2022, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60587/crimes-contra-a-dignidade-sexual-e-a-condenao-com-base-na-palavra-da-vtima. Acesso em: 23 nov 2024.
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