Resumo: O texto sob análise tem por objeto a proposta de um sistema punitivo, não apenas com o objetivo de ressocialização, mas também com o objetivo de finalizar a pena do indivíduo. Assim, busca-se de forma demasiada a punição e menos a recuperação, sendo a realidade marginal latina-americana e o negócio jurídico principal deste trabalho, que tem como objetivos demonstrar pontos positivos e as problemáticas deste pacto. Será analisado, com efeito, a cultura do encarceramento diante dos âmbitos da sociedade e a verdadeira socialização. Demonstra-se que a cultura do encarceramento, que envolve muitos outros âmbitos de sociabilidade, precisa ser transformada em uma cultura da aproximação dos corpos e mentes, em uma cultura de verdadeira socialização sem grades.
Palavras Chave: Sistema Punitivo, Ressocialização, Pena, Punição, Encarceramento, Socialização,
Abstract: Critical analysis is the proposal of a punitive system, not only with the objective of resocialization, but also with the objective of ending the individual's sentence. Thus, too much is sought for punishment and less for recovery, being the Latin American marginal reality, being the main legal business of this present work, which aims to demonstrate positive points and problems of this pact. Indeed, the culture of incarceration will be analysed, in face of the scope of society and true socialization. The culture of incarceration, which involves many other areas of sociability, needs to be transformed into a culture of bringing bodies and minds together, into a culture of true socialization without bars – it seems to be more worthwhile.
Keywords: Punitive System, Resocialization, Penalty, Punishment, Incarceration, Socialization,
INTRODUÇÃO
A busca pelas pernas perdidas pode ser a mesma que procura por pessoas que se perderam (ou que foram perdidas). Pelas apenadas vidas que se viram tolhidas de sociabilidade, de subjetividade.
Buscar pelo que é do outro, enxergar esse outro, conhecê-lo: esse parece ser o objetivo principal do estudo crítico a respeito do Sistema Penal. Não faria sentido buscar pelas teorias mais acertadas, ou pelas perspectivas mais coerentes se não houvesse um sentimento mais humano por trás de tudo. Se não houvesse um outro a ser resgatado – e, por inúmeras vezes, descobre-se que esse outro é o próprio investigador.
Zaffaroni é capaz de transmitir sensações e anseios que apenas gente latino-americana é capaz de fazer. E não porque há características imanentes ao ser humano nascido na América Latina, mas porque existem emanações sociais impossíveis de serem captadas por teóricos centrais. Eugenio Raul Zaffaroni traduz os anseios e as necessidades de uma região marginal e marginalizada. De um povo à Central submetido, sobrepujado.
A lógica jurídico-penal nada mais é do que a reprodução das estratégias de poder que se somam nas sociedades. Ainda que as óbvias idiossincrasias sejam capazes de conferir elementos próprios a cada uma dessas sociedades, é geral a noção de que esse saber não responde às respostas formuladas pelas nações ex-colônias, nem oferece mecanismos de superar as perguntas.
A teorização dos países centrais em muito compromete as formulações marginais ao passo que os teóricos desta colocam aquela como marco a ser alcançado, como modelo a ser seguido. Enquanto o que deveria ser, de fato, buscado, é o entendimento de como os próprios mecanismos de poder social atuam e como se perfazem as relações intersubjetivas em solos marginais. Redimensionar as teorias centrais é, mais uma vez, submeter os países latinoamericano à “produção da verdade” de outrem, é fazê-los desconhecer a si mesmos.
Submergir nas teorias é ter a oportunidade de reconhecer nelas as conclusões do real. E a quem serve essa realidade.
EM BUSCA DAS PENAS PERDIDAS
Eugenio Raúl Zaffaroni
1.A SITUAÇÃO CRÍTICA DO PENALISMO LATINO-AMERICANO.
A proposta de um sistema punitivo, calcado em teorias de países centrais, que visam não apenas à ressocialização do indivíduo, considerado infrator, o verdadeiro pária social, mas, igualmente, à promessa de finalização da criminalidade revela-se, em verdade, obscura, inócua, inútil. Não seria necessária a leitura de inúmeros textos e tratados para se extrair tal conclusão, dado que a realidade do sistema punitivo, em mazelas manifestas aos mais ingênuos olhares, parece se mostrar tão acessível a qualquer um, que a crise não precisa ser documentada em trabalhos acadêmicos intensos. A bem da verdade, revela-se tão crítica a situação em que se encontra a realidade marginal latinoamericana, no que diz respeito ao distanciamento entre seus fatos e os signos teóricos sobre os quais se baseia o discurso jurídico penal que o mesmo acaba se tornando um embuste. Daí que se pode extrair a “perda” das penas, no sentido de que, cada vez mais, mostra-se o sistema punitivo deslegitimado: pela própria legalidade, pelos próprios fatos, pelo próprio embasamento teórico conceitual, originado da realidade política de países centrais. Uma crise mais do que sentimental. Uma crise que se revela em gritos e mortes, ao longo de toda a marginalidade em que vive a América Latina.
A busca pelas penas perdidas é uma procura, quase que utópica, pela racionalidade de tais penas. Em outras palavras, como bem diz Zaffaroni, “achamo-nos, em verdade, frente a um discurso que se desarma ao mais leve toque da realidade”. A dor e a morte que o sistema punitivo produz, e que o discurso jurídico penal oculta, são tantas, que se revela esse último totalmente desarrazoado ante a realidade marginal latino-americana. E como ressaltado anteriormente, o sistema punitivo acaba por se deslegitimar, não apenas através da revelada falsidade de seu discurso, mas também porque, desprendido de legitimidade, desobedece plenamente a uma legalidade criada para conter seus excessos, porque se distancia completamente dos fatos que tende a evitar, porque se estabelece ainda sobre teorias conceituais vetustas, justificadoras de um sistema punitivo em países centrais. Perde-se, pois, a racionalidade, perde-se a razão de existir, perde-se a legitimidade sobre a qual poderia o Estado locupletar-se, no exercício do dito jus puniendi. É um direito de punir, que surge da longa manus estatal, mas que foge do controle burocratizante de seus instrumentos, reproduzindo determinadas mazelas que se mostram totalmente desumanas em nosso contexto marginal.
Perde, assim, o sistema punitivo a sua racionalidade. E como dito acima, ele o faz, primeiramente, porque a sua operacionalidade, de per si, nega a legitimidade e a legalidade sobre a qual deveria se calcar. Uma legitimidade só se faria concreta mediante a presença conjunta, na atuação de um contexto teórico-social, da verdade e da coerência interna dos enunciados de seu discurso. Percebe que é uma legitimidade lógica, por meio da qual se pode tirar toda a construção do sistema punitivo. Não se poderia erigir um castelo de cartas se não tivéssemos as cartas, se não tivéssemos a básica de ideia de como fazê-lo. Da mesma forma, pretende o sistema punitivo se legitimar: através da conjugação dos elementos de verdade e de coerência interna que fariam seus pressupostos se comunicarem.
Carece, ainda, o discurso jurídico penal de uma fundamentação antropológica básica, que seria necessária à justificação do sistema teórico que se pretende defender, uma vez que é essa base que permite a aproximação entre os fatos e a teoria. Desobedecendo a qualquer um desses elementos, o discurso teórico se torna falso, iludido, pervertido. Ainda, em meio àquilo que se tendeu a chamar de discurso dogmático, encontra-se o sistema punitivo deslegitimado, uma vez que oferece a impossibilidade de um dever ser que nunca poderá vir a ser. Por meio de tipificações de condutas, o discurso jurídico penal visa a coibir determinadas condutas ditas lesivas à sociedade, mas, ante a presença de um Estado que, operacionalmente, não oferece condições para a represália de todas essas ações, por sua natureza, acaba punindo apenas certas camadas, ao passo que os delitos de outras passam desapercebidos. Uma seletividade natural, para um sistema que carece, completamente, de legitimidade, por uma quebra teórica e social de sua estrutura.
O discurso jurídico-penal também nega, por si próprio, a legalidade sobre a qual se sustenta. Não seria para tanto. A própria legalidade se nega, quando colocada no contexto do sistema punitivo, em nossa realidade marginal latino-americana. Assim o faz porque, apesar de impor certos limites, inclusive constitucionais, ao poder de punir, extrapola irracionalmente certas considerações, excluindo de seu âmbito os menores, os idosos, os enfermos mentais e desprendendo-se de instituições que lhes são congêneres e que reproduzem suas mesmas mazelas, como o sistema manicomial, o sócio-educativo, o assistencialista etc. Outrossim, nega-se, comumente, a sua legalidade processual, no sentido de que os órgãos que executam as medidas sancionatórias acabam por ultrapassar os limites que lhes são impostos, de modo que se tornam manifestas as violações que, a priori, pretender-se-iam evitar, como acontece no caso do uso abusivo e prolongado das conhecidas prisões cautelares e provisórias.[1]
A bem da verdade, o sistema punitivo se mostra deslegitimo, porquanto paira sobre ele o modelo verticalizador-horizontal, militarizado, do organização social. Apenas os indesejados, apenas os excluídos, apenas os marginalizados são colocados em instituições de sequestro, sob o pretexto da ressocialização, visando, por outro lado, ao exercício do poder disciplinar de suas condutas [2]. A marca, o estigma, a perpetuação de sua condição enquanto pessoa marginal se faz presente por meio do rótulo que se lhe põe. Nesse ínterim, a perda da legalidade também se mostra assente no número de tipificações que esbarram em nossas condutas cotidianas, criando uma espécie de vigilância interna, um eu-consciente das ações que se praticam e que, a todo custo, estão sendo observadas pelo Estado. São delitos, infrações, contravenções e crimes, que variam de acordo com o grau de lesão que provocam sobre o bem jurídico tutelado e que, monstruosamente, acrescentam em seu sistema grande parte das pessoas como criminosas, embora nem todas sejam punidas.
E eis a característica mais assombrosa do sistema punitivo. Possui todo um arcabouço criminalizante que acaba por envolver todos dentro de suas considerações, mas apenas possui capacidade física e operacional para punir determinadas condutas. Camadas certas, condutas certas, em situações certas. O sistema punitivo aproveita-se de uma seletividade que deixa assente a quem ele visa proteger e a quem ele pretende punir. Em verdade, se o sistema tivesse a capacidade de punir todos aqueles que, dogmaticamente, praticam atos típicos, antijurídicos e culpáveis, ter-se-ia uma catástrofe mundial, maior do que qualquer outra que já pairou sobre a Terra. Toda uma sociedade criminalizada. Toda uma sociedade estigmatizada. Toda uma sociedade rotulada pelos seus atos, pelos seus gestos, por seu estilo de vida. Em meio a toda a seletividade perene, sobre o qual se sustenta o sistema punitivo, propagam-se as condutas que exatamente visa coibir: a prostituição, o tráfico, a corrupção, a extorsão, a tortura, a morte. Resta a sua legalidade rejeitada em todos os âmbitos de consideração. O que cabe ao sistema punitivo é locupletar-se da crença que produz, em seu ofício perverso.
Cabe entender o que significa perversão. Não seria qualquer tradução natural da linguagem popular, no sentido de mal, ou de maléfico. Etimologicamente, perverso é referência à inversão, à alucinação, ao ato de girar em torno de si mesmo. Tal é o efeito fundamental do sistema punitivo. Erigido nas bases teóricas de um pensamento central, que em muito se distancia de nossa realidade marginal, o sistema punitivo consegue agradar a praticamente todos os gostos: ainda que sejam assentes as violações, em sede de direitos humanos, produzidas pelos atos abusivos constantes do sistema punitivo, acredita-se, quase que cegamente, que se destina o mesmo à ressocialização, à melhora do indivíduo, à reinserção de seus atos à vida em comum, quando, faticamente, revelam-se seus efeitos de forma exatamente contrária. Eis o perigosíssimo efeito que oferece o sistema punitivo. Através de um discurso que encanta até os mais recentes teóricos, consegue alucinar, inverter, girar, perverter. É obvio que foram produzidos, em sede de contexto marginal latinoamericano, inúmeros signos teóricos que tentaram, de alguma forma, deslegitimar o sistema punitivo, por meio de crítica intensa ao discurso que propaga, como a crítica ao direito, Novoa Monreal, o desenvolvimento de legitimidade de poder, Hernández Vega, os trabalhos jus-humanistas de grupos de direitos humanos, bem como o desenvolvimento, muito frutífero, da criminologia crítica, mormente de uma de suas teorias maiores, a da rotulação. Contudo, ainda se verificam, com muito mais frequência do que se deveriam, discursos que tentam rechaçar tais signos, por meio de subterfúgios e fugas, mais uma vez reafirmando o sentido perverso que segue o sistema punitivo.
Tem-se, pois, um discurso que se deslegitima através da própria legalidade, que não é seguida, e que é negada em sua própria construção estrutural. Tem-se ainda, um discurso que se deslegitima pelos próprios fatos. Não seria, pois, um absurdo que um sistema que se calcasse num discurso tendente a abolir a dor e o sofrimento, na verdade, acabasse por reproduzi-lo? Não para a o sistema punitivo na realidade marginal latinoamericana. É, pois, bem evidente que a dor e o sofrimento, muito claramente, a morte, são altamente reproduzidas nesse contexto, de modo a ultrapassar tão execrada violência privada, satanizada de forma tão ampla pelos meios de comunicação midiáticos.[3] Dessa forma, como se pode perfeitamente perceber, o discurso jurídico-penal se deslegitima por perder a sua conexão com a realidade, por se desprender dos fatos de que deveria tratar, por se situar fora da concreta vivência dos homens.
Ademais disso, é perfeitamente possível perceber a deslegitimação do discurso jurídico-penal pelo próprio embasamento teórico sobre os quais atua. Não apenas remetem para a sua atuação presente as construções positivistas que influenciam, ainda que com grau um pouco mais reduzido do que no passado, tal discurso, o que acabou por desembocar em considerações de cunho étnico-racistas. Outrossim, é ainda influenciado por um discurso neo-kantiano valorativo, segundo o qual a conduta não deve apenas ser avaliada de acordo com o mero nexo causal de ação e resultado, bem como consoante a lesividade que esse produz, mas deve, igualmente, levar em consideração a imoralidade de que se eiva tal ato, que transmite a ideia geral de culpabilidade. Dessa forma, calcado em teorias vetustas e segregacionistas, o discurso jurídico-penal se mostra totalmente desarrazoado diante de nossa realidade marginal latino-americana.
2.CAPÍTULO SEGUNDO.
2.1. O desprestígio dos discursos jurídicos-penais e a deslegitimação dos sistemas penais.
O segundo capítulo da obra de Zaffaroni nos remete ao desprestígio dos discursos jurídicos penais, bem como à deslegitimação dos sistemas penais. Carece de se pensar, como ponto de partida, que qualquer formulação teórica se mostrará insuficiente quando desconhecem as realidades nas quais se pretendem aplicar. Além disso, as formulações teóricas esbarram na problemática de falar em nomes dos sujeitos a quem lhes foram negados tudo, sujeitos estes que são os principais afetados por qualquer política criminal, discurso jurídico penalizante, e sistema penal. Pensa-se, de tal maneira, a partir de teorias as quais quase nunca – arriscamos dizer – atendem aos anseios e particularidades desses sujeitos, reforçando a sua invisibilidade. Tal crítica deve ser feita, inclusive, em relação a teorias trazidas pela criminologia crítica, quando estas se furtam de conhecer uma realidade e apenas existem para alimentar o abismo entre a realidade e o sistema punitivista, como bem pontua a professora Vera Regina Pereira[4], ao retratar a assepsia entre o sistema penal e o sistema social. Não se pode, assim, reforçar, seja qual for a vertente teórica, esse processo de controle que tem no sistema penal a sua última faceta.
É-nos apresentado, no livro, o processo que resultou na deslegitimação do sistema penal a partir do desprestígio dos discursos jurídicos-penais. Esse processo se deu a partir na apresentação de dados da realidade os quais confrontavam tal discurso, ao passo que, também, o discurso jurídico-penal não mais se assegurava em seu arcabouço filosófico. Assim, de um lado, havia o embate dos dados fáticos e, de outro, os aspectos antropofilosóficos do discurso jurídico-penal se mostravam superados e anacrônicos. Devido a essa debilidade, a deslegitimação se deu a partir do saber sociológico.
O discurso jurídico-penal se estruturou a partir de um jogo de ficções combinado a um jogo de metáforas. Por não conhecer a realidade – tampouco procurar conhecê-la – esses discursos se mostravam vazios, e tal vazio era preenchido a partir de idealizações trazidas por quem esse discurso jurídico penal se fazia válido: a quem ele servia. Assim, o discurso jurídico-penal se converteu em um exercício de poder em que a autoridade suprimiu a vítima, e se fez valer a partir de suas próprias vontades, a partir de uma realidade fictícia que foi sendo artificialmente construída, isto é, elementos inventados ou trazidos de fora, os quais nunca operam com dados concretos da realidade social.
Essa construção, por outro lado, para se legitimar, necessitava de uma justificação e, para tal, foram utilizadas “imagens”. Em outras palavras, o discurso jurídico-penal se utilizou de paradigmas que justificavam o sistema penal e o seu mecanismo. Passamos a tais paradigmas.
2.2 Da construção de um discurso forjado.
Como paradigmas, tem-se o organicismo, o contratualismo e o argumento da guerra de “todos contra todos”. O primeiro consiste no paradigma que possuiu maior vigência temporal, fundado na ideia de uma sociedade enquanto organismo. Os aportes utilizados por esse paradigma foram o positivismo e o funcionalismo sistêmico, os quais deram vestes cientificistas para uma ideia antidemocrática a qual tinha como objeto de interesse o organismo, e não as células.
O paradigma do contratualismo, por sua vez, é uma ficção para a qual, devido à sua fragilidade, nem se quer se construiu uma tentativa de defesa de realidade antropológica, visto que sempre foi tratada enquanto uma figura. Por fim, argumento da guerra de todos contra todos, trouxe um argumento de medo, de uma ameaça à regressão, que justificava o direito penal enquanto um “melhor do que”, visto haver, ainda, o fantasma da guerra civil. Todos esses paradigmas compunham o jogo de ficções que constitui o direito penal.
Em contrapartida a estes paradigmas, tem-se a deslegitimação do sistema penal a partir do marco teórico marxista. Zaffaroni pontua a necessidade de se perceber que a delimitação da teoria marxista é dificultosa, considerando-se que ao termo são dadas várias conotações e suas utilizações são diversas. Marx propôs uma analise da historia pautada pela compreensão de um marco teórico de luta dos marginalizados europeus de seu tempo. Trouxe, assim, a questão da luta de classes. Como repercussão desse pensamento, vários foram os “marxismos” com linhas de pensamento deslegitimante e, algumas, relegitimantes. Há, inclusive, correntes que se afastam do pensamento de Marx a ponto de se questionar se, de fato, são marxistas.
O autor recorre a algumas destas teorias para que se conheçam algumas das vias deslegitimantes fundadas no aporte teórico do marxismo. O primeiro exemplo trazido esta na teoria de Pasukanis. A institucionalização do marxismo na União Soviética possibilitou o crescimento das teorias deslegitimantes e relegitimantes em seu contexto de revolução, sendo a teoria de Pasukanis o marco teórico mais importante. Ele entendia que o direito é uma mera forma jurídica, produto de uma sociedade capitalista, tendo como sua principal obra “A teoria geral do direito e o marxismo”. Assim, com o advento do socialismo, as relações de troca não iriam se extinguir de imediato, porque a sociedade ainda carregaria vestígios do capitalismo. Quando, por outro lado, essas relações pudessem ser superadas, o direito e suas formas jurídicas não seriam necessários, porque os crimes que permaneceriam – como o contra a vida e delitos semelhantes – seriam considerados problemas medico-pedagógicos.
Também em um contexto de institucionalização do socialismo, a teoria de Stucka concebeu o direito de uma maneira contrária da trazida por Pasukanis, entendendo a necessidade de o direito ser um instrumento revolucionário, um instrumento de luta do qual o proletariado não poderia se furtar. Esta, inclusive, foi uma das principais críticas realizadas a Pasukanis, pois sua teoria, ao desconsiderar o direito, estaria desqualificando uma potente arma.
Outra teoria foi trazida pela “Escola de Frankfurt”, a qual aparece como uma reação antipositivista dentro do marxismo, sendo chamada de “Teoria Crítica da Sociedade”. Por esse motivo, inclusive, a teoria, para alguns, causou dúvidas em ser ou não uma teoria marxista. Essa teoria defende que a classe operária haveria perdido a sua capacidade revolucionária. Assim, a crítica seria incapaz de mobilizar a sociedade e produzir mudanças sociais pelos meios tidos como tradicionais, mas, sim, por meio de uma intervenção ainda desconhecida.
As noções deslegitimantes do sistema penal estendem-se ao ponto de atingir vários autores, através dos quais se faz possível compreender o paradigma penalista a partir de perspectivas sociais coexistentes.
Numa elaboração bastante abolicionista, o pensamento deslegitimante de Quinney atrela o fracasso do sistema penal ao fracasso do capitalismo. Ao passo que este seja superado, não haveria mais que se falar naquele – já que se mostram como sistemas interdependentes e retroalimentáveis. Quinney invoca a necessidade de serem observados os mecanismos de construção do delito, e a quem esse instrumento tão poderoso irá atingir.
Em nota de rodapé, Zaffaroni afirma que Quinney apenas se voltou ao marxismo quando se percebeu decepcionado com os anos 60 e com os protestos estudantis. Talvez a lógica desse século, com a emergência de novos modelos de produção e novas estruturações sociais tenham o feito compreender que o direito penal fortalece-se como meio de conter o que poderia ser chamado de “população excedente” – os não queridos.
Ainda que afirmações nesse sentido tenham sido feitas há tão distante tempo, em muito elas se aproximam ao que se assiste do sistema penal atualmente. Na verdade, este sistema não tem parecido apresentar outra coisa a não ser servir à contenção de parcelas de indesejáveis sociais – como um dia o fez o manicômio na visão de Michel Focault. E, com muita propriedade, disse-nos este autor: “acredita-se acabar com a miséria pondo para fora do circuito e mantendo, pela caridade, uma população pobre. Na verdade, mascara-se artificialmente a pobreza, e na verdade se suprime uma parte da população”[5]. Faz sentido pensar a partir de noções como essas, rapidamente trazidas à baila, que refletem a verdadeira face da institucionalização, pelo poder, dos flagelos.
É esse mesmo Focault que extrapola os limites do que estava imposto e traz afirmações como as que revelam o fato de que a produção da verdade cabe a quem ocupa o poder verticalizado. Esse alguém submeterá determinados indivíduos à legitimação de suas verdades – porque a verdade, nada mais é do que exercício de força.
A sociedade, rapidamente, industrializou-se, mas não se cientificou de que precisariam ser criados instrumentos para inserção dos indivíduos nesse processo de evoluções. Em não se vislumbrando uma saída eficaz de afastamento dos não inseridos, os agentes de poder viram-se munidos de uma forte, porém perigosa, ferramenta: o sistema penal.
O capitalismo fomentou a legitimação de um sistema ilegítimo ao passo que se utilizou de suas vantagens. Não quer dizer que um tenha germinado o outro, ou que ambos não possam existir separadamente: apenas se encontraram numa harmonia quase perfeita, em simbiose.
Nesse exato sentido, Alessandro Baratta impõe a necessidade de se pensar o sistema penal a partir da compreensão de que este é o perfeito reprodutor das mazelas advindas com o capitalismo. Os altos índices de desigualdade social acabam por transportar os indivíduos para realidades apartadas. Como o sistema penal não pode se fazer presente em todas elas (afinal de contas isso seria fatalmente inexequível), a parcela mais vulnerável acaba sendo, justamente, o alvo das investidas penalistas.
Esses indivíduos veem suas vulnerabilidades potencializadas quando submetidos ao crivo de uma instituição responsável por lhes conter. É tamanha a vigilância (tanto no plano externo, quanto no íntimo de cada um deles) que os indivíduos passam a se compreender como pertencentes a uma categoria que precisa ser controlada.
Impor flagelos tão complexamente profundos a outros seres humanos não parece obra exclusiva do sistema penal, ou do capitalismo, ou de apenas a união deles. Parece pertencer a um plano teórico-argumentativo muito maior. Ter sob controle essas pessoas, ainda que sem que estejam diretamente “institucionalizadas” (custodiadas) é um dos mecanismos mais eficazes desse sistema. Excluídos de uma lógica de consumo e incluídos numa realidade de privações, os indivíduos marginalizados acabam sendo capazes de entender a si mesmos como desviados (ou potencialmente desviantes), fechando o ciclo esperado pela lógica punitivista.
E, nesse diapasão, tem-se a marcada presença da fenomenologia, diante da qual se emancipa o entendimento de que o sistema penal (e mais objetivamente o cárcere) opera no sentido de relegitimar, e de redimensionar, as situações de vulnerabilidade das pessoas. Opera construindo a noção de pertencimento ao que há de pior na sociedade: as pessoas marginalizadas são vistas como perigosas, criminosas, desviantes, repugnantes (muitas vezes por elas próprias).
A fragilidade do discurso jurídico-penal é tamanha que ele precisa se valer de meios escusos, tal qual a construção de uma realidade, em certo ponto, paralela àquela em que as pessoas estão, de fato, submetidas. Se são estímulos morais que afastam as pessoas de práticas infracionais, são também eles que podem as impelir a elas. Entender-se como potencial criminoso é conformar-se em tornar-se um, é corroborar o pensamento dos que nisso creem. É armar a farsa da legitimidade de dados da “realidade”.
Mas basta que se olhe para a verdadeira realidade. Basta que se permita enxergar a realidade do outro para além de delimitações de classe (para além do capitalismo) a fim de poder enxergar o que realmente é provocado por esses discursos. E a quem cabe o poder de legitimar essas múltiplas estruturas? A quem incumbe o dever de zelar pela manutenção do status quo? A quem é negada a participação na produção do conhecimento referente a tal assunto?
Focault apresenta um leque de instituições que se orientam no sentido de corroborar o saber jurídico concebido como verdade. São saberes que se somam e se complementam. Não necessariamente ordenados a partir de mesmos ideais, mas capazes de reproduzir a legitimação da regulação social.
2.3. Da centralização da verdade à marginalização de um povo.
Compreender os papeis ocupados pelas teorias centrais nos ordenamentos e mentalidades marginais é mais do que tangenciar as possíveis origens de certas concepções. É verificar a posição de subordinação social e intelectual responsável por toda a estruturação de um sistema que já nasceu falido.
Colonizar é o contrário de desenvolver. Colonizar é não se preocupar. Ter sido colonizado é correr o risco de reproduzir os mesmos mecanismos sequestradores da individualidade latinoamericana. Estudar as teses centrais é conhecer parte da gênese das opressões.
O resultado do olhar para si foi que: ao passo que o sistema penal da região marginal é responsável pela contenção dos “indesejáveis” - enquanto criam-se mecanismos legitimadores do afastamento de certas camadas sociais e reafirmam-se teorias que produzem as verdades - repete-se o que os países centrais fazem com suas colônias: ordenam-nas, tolhem suas vontades, estigmatizam, excluem, condenam, penalizam.
A teoria penalista é colonizadora: de corpos, mentes, países, povos. Ela retira a humanidade, a humanização das relações, destrói vidas. Não importa, exatamente, em que contexto a lógica jurídico-penal esteja inserida: ela sempre desumaniza alguns “escolhidos” a fim de ratificar que todos são suficientemente humanos para racionalizar.
3.AS RESPOSTAS CENTRAIS E MARGINAIS PARA A DESLEGITIMAÇÃO DO SISTEMA PENAL
Eugenio Zaffaroni mostra que as respostas que surgem à deslegitimação do direito penal são bastante heterogêneas, tendo diferentes vertentes e sendo oriundas de motivos diversos. Em verdade, no Ocidente, há dois tipos de respostas que se apresentam: as formulações teóricas e as atitudes.
As atitudes são pouco importantes nos países centrais, tendo em vista que a formação do sistema penal em tais nações se deu de forma diversa. Contudo, na região marginal, as atitudes são de suma importância.
Zaffaroni explica – de modo que beira a uma deliciosa crueza – o porquê das atitudes como forma de resposta à deslegitimação do sistema penal serem importantes. O jurista argentino apresenta o conceito de instituição de sequestro (aquela instituição que retira do homem sua autodeterminação social e molda seus comportamentos) à colônia. Ou seja, as colônias são instituições de sequestro, nos termos em que definiu Foucault. Sendo assim, as prisões nas regiões coloniais não teriam a mesma função das prisões centrais: enquanto lá o cárcere visava a prender e ressocializar o criminoso, nas regiões coloniais a prisão funcionava como uma “solitária” de uma grande instituição de sequestro maior.
A comparação do criminoso central com o selvagem das colônias vem daí. Por isso o modelo utilizado nas colônias não foi o da grande produção e disciplinamento que era o Panóptico de Bentham, mas o modelo biologista e racialista (racista) de Cesare Lombroso. Tanto os teóricos das nações ricas, ex-metrópoles em maioria, quanto as minorias descendentes dos colonizadores que governam as nações periféricas, utilizavam Lombroso para justificar seus sistemas penais. Contudo, Lombroso levou um grande golpe: quando Hitler resolveu mostrar em solo europeu o que o modelo do criminalista europeu legitimava, após o horror da Segunda Guerra Mundial, sua ideia foi rapidamente arquivada.
3.1. A necessidade de atitudes marginais.
As minorias controladoras das regiões marginais se viram de mãos atadas após as nações centrais aniquilarem seu modelo teórico penal. Seu modelo de legitimidade do sistema penal fora arquivado após o horror que ocorria em seus solos acontecer na rica Europa; não havia mais modelos teóricos de legitimação. Assim, as nações periféricas estão em dois tapumes: de um lado, os “centros do saber” reproduzem os novos discursos criminológicos centrais, enquanto os órgãos do sistema penal agem diferente, mas tomam atitudes que negam a deslegitimação de tal sistema.
As atitudes dos órgãos dos sistemas penais marginais são diversas – mais danosas que outra. Elas residem em uma negação com base epistemológica da deslegitimação, que ocorre através de prestigiados autores penalistas que creem no discurso jurídico-penal e não encontram incoerências entre este e a realidade de nossos sistemas penais. Há ainda uma fuga capenga e infundada para o retribucionismo, defendendo que a pena se legitima em virtude de o criminoso ter infringido a liberdade de escolher a não violação da lei.
Entretanto, talvez a atitude mais hedionda dos sistemas penais marginais – mormente os latino-americanos – seja o funcionalismo burocrático da agência judicial. Isso porque a mesma agência que deveria ser guardiã do discurso garantista dos direitos fundamentais que é o discurso jurídico-penal em face do sistema penal se exime de reconhecer sua deslegitimação. Sob o manto do casuísmo, nega-se a ver a realidade, afirmando que somente pode aplicar o direito ao caso concreto que lhe é apresentado pelas outras agências. Sob o manto da aplicação do direito, nega a realidade de seleção e controle social que são as principais funções do direito penal.
3.2. As respostas teóricas das nações centrais
Nas nações mais ricas do globo, mormente as ocidentais europeias, surgiram uma série de construções teóricas que vieram responder às crescentes críticas criminológicas que cresciam acerca da deslegitimação do sistema penal. Delas, três se destacam como ponta do processo de resposta, sendo uma de esquivo e duas de enfrentamento direto – sendo as mais polêmicas.
A construção teórica que visa encarar a deslegitimação, mas, em verdade, esquivando-se dela, é o discurso sistêmico. Em síntese, trata-se de aplicação da teoria dos sistemas da sociologia ao campo do discurso jurídico-penal. Tendo como uma das principais bases o discurso de Niklas Luhmann – o qual afirmava que o ser humano era subsistema, em contato com o sistema social –, a pena legitimar-se-ia por estabilizar as expectativas normativas; o sistema, pois.
Não importaria, assim, as reais condições do sistema penal e sua aplicabilidade no muno. A pena serviria para equilibrar o sistema. Uma patética frase clamada por deputados da bancada da bala no plenário da Câmara dos Deputados na votação de texto substitutivo da PEC 171, que reduz a maioridade penal para 16 anos, retratou (inconscientemente) bem tal sistemática: “não quero a redução da maioridade para acabar com a violência, mas para punir o criminoso, assim como não me cubro para acabar com o inverno, mas para me proteger do frio”. Patética e capenga, é a frase que resume bem o discurso sistêmico: o importante é o sistema, “dane-se” o criminoso.
Duas soluções que se localizam no âmbito político-criminal buscam soluções reais à deslegitimação do sistema penal. É o caso da teoria da intervenção mínima, cujo principal cabeça é o italiano Luigi Ferrajoli. Os teóricos da intervenção mínima aceitam a deslegitimação do sistema penal atual; contudo, creem em um sistema futuro que possa ser legítimo. O sistema penal deveria ser reduzido a um ponto em que somente bens jurídicos de importância seriam protegidos; para Ferrajoli, é necessário um direito penal mínimo em virtude de impedir a vingança privada pelo cometimento de crimes. A intervenção mínima, assim, seria a proteção do mais fraco contra o mais forte. A pena ganha contornos utilitaristas.
Zaffaroni faz uma epifania que, apesar de parecer contraditória, é incrível: a diminuição do sistema penal deve vir acompanhada do aumento do discurso jurídico penal. Isso porque ambos não se confundem; este é a faceta legitimante e garantista daquele, que é muito maior. Quando o direito penal e suas garantias crescem, o sistema penal – que, em alguns casos, tende inclusive a fugir de tal discurso jurídico. Assim, um direito penal mínimo pode prevalecer com o aumento do discurso jurídico-penal.
A outra alternativa é a mais radical já proposta nas ricas nações do norte: o abolicionismo penal. Proposta altamente heterogênea, os teóricos do absolutismo aceitam a deslegitimação do sistema penal atual, mas a ampliam: todo e qualquer sistema pena que surgir será ilegítimo. A proposta tem por núcleo abolir a forma de solucionar os conflitos sociais passando pelos órgãos penais. Para tanto, propostas heterogêneas surgem, desde a fenomenologia de Louk Hulsman ao estruturalismo de Foucault.
A proposta de Hulsman é interessante no ponto de vista de que pretende o teórico abolir o sistema de solução penal e criar diferentes instâncias para a solução dos conflitos sociais. Outras formas de solução dos conflitos, além de serem menos violentas que as formas penais, são mais eficazes em dirimir a contenda social que se ergueu. Seria uma redução de complexidade da sociedade, a fim de reativar os laços de solidariedade e comunidade que as revoluções industriais – que nos enriqueceram, mas nos afastaram da convivência comunitária – cortaram.
A proposta abolicionista é polêmica e recebe inúmeras críticas, inclusive de Ferrajoli. Afirma o autor garantista que o fim do sistema penal talvez podasse a liberdade do indivíduo em escolher o crime ou a retidão, através da introspecção de uma série de controles sociais. O fim do sistema penal poderia levar a uma ditadura do controle dos impulsos. Haveria, segundo Ferrajoli, um novo modelo de sociedade (utópico?).
Ocorre que os teóricos do minimalismo penal também propõem um novo modelo de sociedade. Sendo o sistema penal um exercício de um poder configurador positivo, servindo de instrumento de controle social de certas classes, a diminuição deste mexeria nos pilares do poder nas sociedades. Ambos os sistemas propõem um novo modelo de sociedade; ambos visam modificar as estruturas do poder.
Desta feita, em relação ao sistema penal atual, o minimalismo penal parece ser a resposta político-criminal mais próximo de se concretizar. Em verdade, os princípios intrassistemáticos e extrassistemáticos propostos por Baratta podem ser aplicados em um sistema como o nosso: o respeito aos direitos e garantias fundamentais do discurso jurídico-penal e a abolição da cultura da criminalização dos problemas sociais são pilares desta nova sociedade.
A construção de um direito penal mínimo ainda não precisa ser um fim em si mesmo, mas um caminho rumo a uma sociedade que não precise do direito penal para resolver seus problemas. Uma sociedade igualitária e democrática que balize seus conflitos por soluções perenes e realmente viáveis. O abolicionismo, assim, seria um caminho a alcançar. Utopia? Bem, crer que o sistema penal atual cumprirá seu discurso e será legítimo e legal é uma utopia maior.
Se construir uma sociedade democrática, mais igualitária, que cada vez mais resolva seus conflitos de maneira solidária e sem estruturas tão hediondas de poder e controle social é utopia, que seja com a definição dada pelo nosso conterrâneo latino Eduardo Galeano, para o qual as utopias servem para que nos mantenhamos caminhando rumo ao que queremos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo de todo o caminho de buscas, Zaffaroni permite que se encontre a premente necessidade de se modificar o olhar a respeito das estruturas de dominação social, e, em especial, do sistema penal. Permite que se desmascare o alinhamento de determinadas estruturas de poder que, através de seu revestimento de legitimidade, coordenam e manipulam a realidade.
Se, hoje, é óbvia a desumanidade dos flagelos antigos narrados por Focault[6], nada garante que a sociedade atual não será olhada com asco pelos seus futuros descendentes. O fato de encarcerar indivíduos, desde o nascimento selecionados, e utilizar-se de um discurso forjado para legitimar tal prática será motivo de angústia – que na verdade já o é. A humanidade presente será o modelo do que não se repetir.
Nesse sentido, também podemos recorrer à provocadora ideia do sociólogo Luciano Oliveira, quando sugere que deixemos de falar em “ressocialização” e passemos a discutir a partir de um pressuposto inegável: a prisão produz males. Assim, sequer falemos em ressocialização, mas, sim, entendamos o peso de uma “constatação que é antiga e conhecida de todo mundo, faltando-nos apenas a coragem de dizer publicamente o que reconhecemos todos na hora do cafezinho: a prisão é um mal irremediável”[7].
Diante dessa conclusão, é insustentável a permissão de permanência desse sistema de flagelos atualizado. É urgente a adoção de posturas que visem a abolir a segregação, o genocídio, a perpetuação de mazelas que se materializa através do cárcere. Desse cárcere de latinoamericanos outrora encarcerados por europeus e que hoje encarceram seus próprios filhos. O grande defeito do sistema penal é seu falso embasamento, seu falso discurso legitimador e sua verdadeira força de sublimação de indivíduos indesejados.
A cultura do encarceramento, que envolve muitos outros âmbitos de sociabilidade, precisa ser transformada em uma cultura da aproximação dos corpos e mentes, numa cultura de verdadeira socialização sem grades – parece valer mais a pena.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT. Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
_________________. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. 41ª edição. Petrópolis: Editora Vozes. 2013.
OLIVEIRA, Luciano. Notas sobre a ressocialização penal. Disponível em: <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1104>; Acesso em: jul/2015
PEREIRA, Vera Regina. Violência, intersecionalidades e seletividade penal na experiência de travestis presas. 2014
[1] De acordo com o último relatório feito pelo Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da justiça, no Brasil, existiam, em 2012, cerca de 549 mil presos, numa média 288 presos para cada 100 mil habitantes, número que, desde a década de 1990, cresceu cerca de 380,5%, ao passo que cresceu, no mesmo interregno, a população brasileira numa média de 28%. Além da clara inflação prisional, causada pelo uso abusivo das medidas cautelares do processo penal, que deveriam, sobretudo, significar uma exceção, encontram-se também inúmeros casos de violação causados pelas mesmas, no que diz respeito ao seu tempo de duração. Algumas chegam a durar 12, outras 14 anos, como assim demonstraram os mutirões carcerários organizados em 2013, pelo CNJ. MENDES, Gilmar. É preciso repensar o modelo cautelar no processo penal. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2013-fev-09/observatorio-constitucional-abuso-prisoes-provisorias-pais>. Acesso em 13 de junho de 2015.
[2]A s disciplinas, organizando as ‘celas’, os ‘lugares’ e as ‘fileiras’ criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem e permitem a circulação, recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias, marcam lugares e indicam valores, garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais, pois regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois se projetam sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de “quadros vivos” que transformam as multidões confusas inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas.” FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. 41ª edição. Petrópolis: Editora Vozes. 2013. Pags. 142 a 143.
[3] “[...] o Brasil concentra isoladamente o maior número de casos. Em 2012, 50.108 pessoas foram vítimas de homicídio no país, ou uma taxa de 25,2 mortos para cada 100 mil habitantes. [...] Honduras foi o país com a maior taxa de homicídios do mundo, com um índice de 90,4 mortes para cada 100 mil habitantes. O país centro-americano é seguido pela Venezuela, com taxa de homicídios de 53,7. [...]Na América Latina, o Chile foi o país com o menor número de homicídios, com um total de 550 mortes, equivalente a uma taxa de 3,1 para cada 100 mil pessoas. No entanto, este número não coloca o país entre a lista de nações com menor ocorrência de homicídios do mundo, já que fica atrás de quase todos os países da Oceania e muitos da Europa e da Ásia.” In: ONU: Países da América Latina lideram índice de homicídios no mundo. Disponível em:< http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140410_homicidio_onu_mm>. Acesso em: 13 de julho de 2015.
[4] PEREIRA, Vera Regina. Violência, intersecionalidades e seletividade penal na experiência de travestis presas. 2014
[5] FOCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
[6] FOCAULT, Michel. Op. cit. p. 9-11
[7] OLIVEIRA, Luciano. Notas sobre a ressocialização penal. Disponível em: <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1104>; Acesso em: jul/2015
Advogada. Especialização em direito tributário pelo IBET, bacharel em direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Débora Pascal de. Análise crítica de “em busca das penas perdidas” de Eugenio Raúl Zaffaroni Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jan 2023, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60763/anlise-crtica-de-em-busca-das-penas-perdidas-de-eugenio-ral-zaffaroni. Acesso em: 21 nov 2024.
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