MARCO ANTÔNIO ALVES BEZERRA
(orientador)
RESUMO: Em consideração aos recorrentes delitos de estelionato cometidos contra vítimas, na maioria das vezes, do gênero feminino, mediante a implementação de fraude sentimental, este trabalho científico de conclusão de curso se destina a discorrer sobre o conceito e caracterização do Estelionato Amoroso ou também conhecido como sentimental, buscando assim alinhar o texto da pesquisa com o ordenamento jurídico atual. Apesar de ser comum a criação de uma série de expectativas quando do início e no decorrer de um relacionamento afetivo, esse estudo se debruça em situações em que a vítima é levada a abrir mão de bens materiais, dinheiro e propriedades, mediante a utilização de uma fraude, que caracterize o crime contido no artigo 171 do Código Penal em suas formas e elementos. Assim, o estelionato amoroso, que pode ocorrer tanto de forma presencial quanto de forma virtual, posto que esse meio de ultrapassar as barreiras do real para o ambiente virtual não inibe de nenhuma forma como atingir o psicológico da pessoa. Portanto, o trabalho pontua principalmente a possibilidade jurídica de responsabilização criminal e cível para tais situações, mediante a implementação de uma análise bibliográfica e descritiva da legislação, da doutrina e da jurisprudência disponível no Brasil.
Palavras-chave: Estelionato amoroso. Violência Psicológica. Responsabilidade. Ordenamento Jurídico.
ABSTRACT: In consideration of the recurring crimes of embezzlement committed against victims, most of the time, of the female gender, through the implementation of sentimental fraud, this scientific work of conclusion of course is intended to discuss the concept and characterization of Embezzlement Amoroso or also known as sentimental, thus seeking to align the text of the research with the current legal system. Although it is common to create a series of expectations at the beginning and during the course of an affective relationship, this study focuses on situations in which the victim is led to give up material goods, money and properties, through the use of a fraud, which characterizes the crime contained in Article 171 of the Penal Code in its forms and elements. Thus, the love fraud, which can occur both in person and virtually, since this means of overcoming the barriers of the real to the virtual environment does not inhibit in any way how to reach the person's psychology. Therefore, the work points out mainly the legal possibility of criminal and civil liability for such situations, through the implementation of a bibliographical and descriptive analysis of the legislation, doctrine and jurisprudence available in Brazil.
Keywords: Loving larceny. Psychological violence. Responsibility. Legal Order.
INTRODUÇÃO
Em tempos em que facilmente se falsificam relações com certa facilidade, o mesmo se dá com os sentimentos entre os indivíduos. De modo que, pode ocorrer um relacionamento em que uma das partes esteja simulando o afeto que nutre perante o outro, o que normalmente se dá em relações constituídas à distância.
Utilizando-se do afeto que a outra pessoa nutre, quase sempre sem racionalidade, muitos criminosos se passam por envolvidos emocionalmente, mas com finalidade única de alcançar benefícios materiais, bens e valores, mediante fraude.
Dentre os mecanismos atuais de comunicação entre as pessoas na atualidade, pode-se considerar a internet o maior meio de contato entre as pessoas e também de interações sociais, podendo os indivíduos estarem a quilômetros de distância e mesmo assim conversar como se presente estivesse.
Em que pese se destine à aproximação das pessoas, através dessas novas tecnologias, que vêm muitas vezes de forma benéfica, existem também pessoas que utilizam das redes para praticar o crime de estelionato, que pode se utilizar não apenas de um produto, um serviço, mas também um sentimento.
Deste modo, considerando o crescimento das interações de cunho amoroso de forma virtual, a presente pesquisa apresenta como objeto de estudo o estelionato amoroso ou sentimental, onde o indivíduo se vale da intenção amorosa da vítima para poder conseguir bens e dinheiro, com destaque para a responsabilização do autor do fato segundo a recente doutrina e jurisprudência.
Assim, este trabalho conceitua essa modalidade e discorre sobre o seu amparo no ordenamento jurídico brasileiro, apresentando a forma como agem os criminosos para ludibriar as vítimas.
MATERIAIS E MÉTODOS
Apresentado para à Universidade de Gurupi, este estudo jurídico consiste em trabalho de conclusão de curso desenvolvido mediante pesquisa bibliográfica, uma vez que analisa posicionamentos já publicados; selecionados mediante buscas em sites, documentos, legislação vigente e doutrina; analisados através da metodologia de análise de dados de forma descritiva, nem necessidade de aprovação junto ao Comitê de Ética em Pesquisa, por não se basear em intervenção ou abordagem direta junto aos seres humanos, sem risco ao sujeito.
1 AS RELAÇÕES AMOROSAS VIRTUAIS E O DIREITO BRASILEIRO
Os avanços tecnológicos em comunicação se tornaram destaque nas últimas décadas, especialmente pela facilitação obtida através do uso da rede mundial de computadores: a internet significa um importante mecanismo de contato entre os indivíduos em todo o mundo.
No novo contexto social, a comunicação mantém a sua relevância para a manutenção das relações, mas com um novo método de realização, que não mais depende do contato presencial entre os interlocutores, podendo se dar em locais diferentes do mundo.
Tal feito foi possibilitado pelo desenvolvimento da tecnologia da Internet (ou www – world wide web), que é uma rede mundial de computadores que estão conectados, servindo, inclusive, de suporte para desenvolvimento de outras tecnologias, como os próprios aplicativos de comunicação como: WhastApp, Telegram, Teams, Instagram, Outlook, Google, etc.
O uso desta tecnologia modificou profundamente a estrutura das relações humanas, possibilitando a execução de atividades profissionais à distância, a realização de complexas transações financeiras, a criação de moedas virtuais, a criação de novas profissões e novos tipos de bens intangíveis, a prestação de serviços digitais, entre vários outros aspectos (TEÓFILO e RODRIGUES, 2022, p. 01).
Com a implementação da internet na sociedade, tem-se o surgimento do que se denomina ciberespaço, como uma nova realidade de convivência e interação social, mas com ampla importância na vida das pessoas (GLASENAPP e VOLPI, 2017).
Evidente que, da ampla utilização da internet, tal uso não se limita ao desenvolvimento de atividades sociais, financeiras e laborais, mas também se apresenta o manuseio das ferramentas virtuais para a construção de relacionamentos amorosos entre os usuários.
A psicóloga Ana Lúcia Ody Henkel destaca a mudança dos relacionamentos humanos:
As relações humanas mudaram, assim como o mundo em que ocorrem os relacionamentos também mudou. Neste mundo contemporâneo a Internet desponta como um fenômeno social na esfera dos relacionamentos humanos, sendo que os sites de namoro e os aplicativos apresentam-se como um importante instrumento de acesso ao outro.
Os aplicativos de relacionamento apresentam uma imensa gama de possibilidades tanto de escolhas quanto de formas de viabilizar as escolhas ou de estabelecer a relação. Nos dias de hoje, pode-se afirmar que a Internet se tornou uma via fundamental para contatos sociais (HENKEL, 2018, p. 01).
De fato, os aplicativos de relacionamento proporcionam ao usuário conhecer novas pessoas, todas elas com o mesmo interesse de se relacionar afetivamente e também sexualmente. Como fator negativo, tem-se a exposição de pessoas como se fosse coisas, bens de consumo.
As relações, tendo essa característica de bem de consumo, e as pessoas, sendo consideradas mercadorias, levam aplicativos como o Tinder e outros a ser “vitrines de pessoas”. Os pretendentes ficam “expostos” através de um perfil para serem “arrematados” por
quem der o melhor lance/cantada. A diferença das negociações comerciais propriamente ditas está no fato de ambas as pessoas envolvidas serem compradoras e mercadorias ao mesmo
tempo, sendo a avaliação mútua nessa “transação” (GLASENAPP e RODRIGUES, 2017, p. 06).
Por outro lado, considerando que as pessoas que buscam as relações virtuais estão cientes do procedimento adotado e concordam com os métodos de comunicação, o lado positivo consiste no aumento da possibilidade de relação, com a construção de relacionamentos que se propagam por muitos anos, chegando à construção de famílias, nas melhores hipóteses.
Uma característica positiva que cabe salientar é que as possibilidades relacionais foram ampliadas enormemente com o advento dos aplicativos e da Internet. Hoje, conhecer pessoas de lugares distantes e distintos tornou-se muito mais fácil e acessível do que era antigamente. Muitas são também as relações que dão certo por meio de aplicativos e muitos conhecem as pessoas com quem viverão uma vida inteira (GLASENAPP e RODRIGUES, 2017, p.11).
Contudo, além de todos os fatores até aqui apresentados, há também uma crescente necessidade de tomada de cuidado no decorrer desses relacionamentos, haja vista que, assim como se dá nos demais setores da sociedade, existem aquelas pessoas que se aproveitam para cometer crimes e obter vantagem ilícita mediante fraude amorosa.
Sendo assim, um dos fenômenos mais recentes e preocupantes se denomina estelionato sentimental ou amoroso.
2 O ESTELIONATO SENTIMENTAL: DEFINIÇÃO E O PERFIL DA VITIMA E DO ESTELIONATÁRIO
Com a implementação dos meios virtuais de comunicação, auxiliado pela popularização do uso das redes sociais e aplicativos de relacionamento, são cada vez mais comuns os relatos de pessoas que disseram ter sido enganadas sentimentalmente por indivíduos que lhes deram, em decorrência disso, sérios prejuízos materiais.
Em decorrência de tais situações, surgiu um novo termo no meio jurídico para denominar as fraudes amorosas as quais muitas pessoas são vítimas: o estelionato sentimental.
O termo foi inicialmente utilizado por uma brasiliense que, apaixonada, deixou-se ludibriar pelo parceiro que, aproveitando-se da fase enamorada da mesma lhe prometia casamento enquanto requisitava (e era atendido) com vários empréstimos e depósitos em conta corrente, prometendo que seriam quitados assim que conseguisse a tão sonhada estabilidade financeira. Passados alguns meses, o namorado retomou o casamento com a ex-mulher, deixando a apaixonada provedora descrente no amor e no recebimento dos valores que havia desembolsado. Ela então ajuizou uma ação buscando o ressarcimento dos danos materiais (os empréstimos totalizaram R$ 101.537,71) e morais sofridos. Em sua defesa, o Réu alegou que o desembolso dos valores deviam ser considerados “mimos”, presentes doados espontaneamente e, como tal, não era de bom tom exigir a devolução ou ressarcimento. O Juiz de primeiro grau aceitou as alegações da autora, afirmando que embora a ajuda financeira no curso de uma relação não seja ILÍCITA (ou seja, não é contrária à lei), a questão posta nos autos na verdade configura abuso do direito de ajuda e desrespeito aos deveres decorrentes da boa-fé objetiva: lealdade e confiança. Assim, o requerido foi condenado em primeiro grau a ressarcir integralmente o valor dos empréstimos, tendo a decisão sido confirmada em grau de recurso (SPAGNOL, 2016, p. 01).
Portanto, diz-se que ocorre o estelionato sentimental quando, “no campo dos relacionamentos, um dos parceiros age com má-fé e, de forma proposital, se utiliza do afeto alheio para obter vantagens pessoais” (SPAGNOL, 2016, p. 01).
Neste sentido, trata-se de conduta caracterizada por um comportamento específico do estelionatário sentimental, que nas palavras de Cristiane Dupret, consiste no aproveitamento da condição da vítima, normalmente apaixonada pelo autor do fato.
Assim, o estelionatário sentimental se aproveita do fato de a vítima estar apaixonada, acreditando que a relação amorosa é verdadeira e está sendo construída na base da confiança. Contudo, após iludir a vítima, o sujeito começa a realizar pedidos de ajuda financeira, empréstimos com a promessa de recompensa e ressarcimento futuro, sem que nunca haja uma devolução destes valores.
Em outras palavras, o estelionatário se vale dos sentimentos da vítima, envolvendo a vítima com declarações, e da confiança amorosa típica de um casal, além de promessas, como a de um futuro casamento, a induzindo e mantendo em erro, com o intuito de obter vantagens, praticando assim estelionato afetivo (DUPRET, 2022, p. 01).
Da lição citada, é fácil constatar os métodos utilizados pelo agente estelionatário sentimental, os quais levam à vítima a conceder o seu consentimento acerca de transações financeiras de forma viciada, já que o faz movida por um sentimento amoroso e pela crença de reciprocidade da outra parte.
Quando se fala em “estelionato sentimental”, há que se destacar o uso de artifício, malícia, astúcia, resultando em verdadeira fraude intelectual, ou seja: a vítima é induzida ao erro, através de uma falsa percepção da realidade, mantendo-se nessa condição até que se alcance o objetivo desejado. Induzindo a vítima a acreditar que há recíproca de sentimentos, o aproveitador cativa-a pelos laços afetivos e conquista sua confiança, muitas vezes colocando-se como a parte frágil e dependente da relação. Sentindo-se envolvida, a vítima abandona a razão e decide com base no sentimentalismo, cedendo aos pedidos do “estelionatário”. Por isso se diz que há um “vício de consentimento”, eis que a pessoa enganada não possui noção perfeita do que está acontecendo. Muitas vezes, a vítima é induzida a acreditar que há a recíproca sentimental. (STAGNOL, 2016, p. 01)
Na prática, existem vários relatos de mulheres vitimadas por estelionatários mediante o acesso a redes sociais e aplicativos de relacionamento amoroso, instrumento muito utilizado pelos indivíduos, em razão da facilidade em alterar sua imagem e informações pessoais.
Também buscando ressarcimento de valores subtraídos por um golpista que se utilizava do aplicativo Tinder, 25 mulheres de cinco Estados e do DF criaram grupos via WhatsApp para, em conjunto, receber denúncias, rastrear e alertar os novos alvos do acusado. Seu método era muito simples: conhecia mulheres a quem se apresentava como o verdadeiro “príncipe encantado”: charmoso, educado, culto e louco para casar. Em pouco tempo, conquistava a confiança das vítimas e falava dos problemas financeiros, convencendo-as a emprestar dinheiro que seria devolvido em breve, sumindo em seguida (STAGNOL, 2016, p. 01).
A fraude inicia-se com um pedido de ajuda financeira. Nos argumentos utilizados pelos golpistas se destacam as promessas de devolução do dinheiro, que seriam utilizados para pagamentos de contas e cartão de crédito, tudo sob a promessa de futura devolução das quantias.
Diante do que se viu até o momento, com o aumento de práticas que violam direitos dos usuários, tornou-se uma pauta relevante para telecomunicação, qual seja, a segurança da informação na Internet, para que os usuários da Internet sejam protegidos (TEÓFILO e RODRIGUES, 2022).
Em se tratando do estelionato sentimental, é possível a responsabilização do agente nos âmbitos criminal e cível, conforme a seguir se analisa.
3 A CRIMINALIZAÇÃO DO ESTELIONADO SENTIMENTAL
Como visto, ainda que em um relacionamento amoroso, as partes podem acabar cometendo um delito previsto na legislação penal nacional. Em se tratando de fraudes com base em falsos sentimentos, o crime de estelionato sentimental se caracterizará.
Oras, não é novidade que toda a relação (afetiva ou comercial) se estabelece com base na boa-fé e lealdade dos parceiros, sendo livre a forma de pactuação dos contratos. Porém, mesmo o contrato tácito (aquele que não possui documento escrito) faz lei entre as partes.
Quando uma das partes demonstra má-fé na condução de um contrato ou relação comercial, utilizando-se de artifício ou induz terceira pessoa a erro para, assim obter para si ou para outrem uma vantagem ilícita, comete um crime contra o patrimônio: o estelionato, previsto no art. 171, do Código Penal (SPAGNOL, 2016, p. 01).
Desta feita, para ser responsabilizado penalmente pelo estelionato amoroso, como o próprio nome diz, é preciso que a conduta se enquadre nas disposições do delito de estelionato, tipificado no artigo 171, que na forma simples está assim previsto no Código Penal:
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis (BRASIL, 1940).
Para Fernando Capez, o crime em tela tutela “a inviolabilidade do patrimônio. O dispositivo penal visa, em especial, reprimir a fraude causadora de dano ao patrimônio do indivíduo”. (2018, p. 428).
Segundo tem entendido a Justiça, quando ocorrem situações em que a vítima: efetua continuadas transferências ao parceiro; faz pagamentos de dívidas em instituições financeiras; adquire, fora de patamar razoável, bens móveis tais como roupas, calcados e aparelho de telefonia celular; efetua o pagamento de contas e assume o pagamento de diversas despesas; e faz tudo isto por conta de juras de amor de seu parceiro, que está enganando a vítima com o único propósito de lhe tirar dinheiro, todos esses fatos podem caracterizar o estelionato sentimental. (SOUZA, 2021, p.01)
Especificamente sobre essa forma delitiva, Sérgio Souza leciona sobre o método adotado pelo estelionatário sentimental:
Para chegar ao seu objetivo, o estelionatário cria uma ilusão na vítima, a qual acredita vivenciar um relacionamento perfeito, embalado em atitudes simuladas de atenção e afeto. O estelionatário sentimental se aproveita do fato da vítima estar apaixonada e na crença de que vive uma relação pautada em um sentimento recíproco e verdadeiro. Devidamente iludida, esta passa a ser objeto de pedidos de ajuda financeira, empréstimos com a promessa de recompensa e ressarcimento futuro, sem que nunca haja uma devolução destes valores. (SOUZA, 2021, p. 01)
O estelionato trata-se de crime em que o elemento subjetivo é o dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de realizar a conduta fraudulenta em prejuízo alheio, com especial finalidade de agir com vontade de obter a vantagem que sabe ser ilícita, sob pena de se caracterizar apenas o exercício arbitrário das próprias razões (CAPEZ, 2018).
É importante notar que esta situação é muito mais complexa do que se imagina e requer uma análise muito produtiva para determinar a verdadeira intenção de explorar a confiança e boa vontade da vítima para obter ganhos e causar sua perda e responsabilidade. Parceiros com a clara intenção de qualquer benefício recíproco. Geralmente, o estelionatário sentimental manterá a relação enquanto lhe for conveniente, ou até conseguir tudo o que deseja, mesmo quando encontrar outra vítima que julgue mais propícia a outro golpe. As técnicas aplicadas geralmente não duram. Na verdade, eles são breves e levam o tempo necessário para obter a vantagem desejada. (NEVES,2020)
Na jurisprudência, existem exemplos reais de condenação por estelionato sentimental, dentre as quais, destaca-se o caso em que a vítima se sentiu enganada por seu companheiro, que posteriormente se tornou seu marido. No caso em apreço, o dolo específico ficou bem evidenciado, levando à imposição de sanção penal devida.
PENAL. PROCESSO PENAL. ESTELIONATÁRIO. RECURSO DEFENSIVO. ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. RECONHECIMENTO DA CAUSA DE ISENÇÃO DE PENA PREVISTA NO ARTIGO 181, INCISO I, DO CP. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DA DERROTABILIDADE DA NORMA. INAPLICABILIDADE DA ESCUSA ABSOLUTÓRIA (ART. 181 DO CP) AO DELITO DE ESTELIONATO SENTIMENTAL. PEDIDO DE REDUÇÃO DA PENA BASE. IMPOSSIBILIDADE. PEDIDO DE APLICAÇÃO DA AGRAVANTE NO PATAMAR DE 1/6 (RECURSO MINISTERIAL). POSSIBILIDADE. POSSIBILIDADE DE MAJORAÇÃO DA PENA BASE. RECURSO DEFENSIVO DESPROVIDO. RECURSO MINISTERIAL PROVIDO. 1. O conjunto probatório carreado não deixa dúvidas e é suficientemente claro no sentido de comprovar a veracidade dos fatos narrados pelo parquet de 1º grau, estando materialidade e autoria devidamente comprovadas. 2. Trata-se a escusa absolutória do art. 181, inc. I, do CP, de uma causa de isenção de pena inserida no Código Criminal por motivo de política criminal. O objetivo seria, em tese, preservar a unidade familiar. Com base na linha cronológica dos fatos praticados, somente o primeiro estelionato seria punível. Em outras palavras, os demais atos delituosos estariam abarcados pela escusa absolutória, pois praticados após o casamento. Diz-se em tese pois há uma certa peculiaridade que se deve enfrentar, qual seja: a validade do negócio jurídico (casamento) celebrado e a produção de seus efeitos. Poderia o réu, in casu, beneficiar-se de sua própria torpeza, ficando isento de pena na maior parte das fraudes praticadas contra a esposa? Tal desfecho jurídico é compatível com a boa-fé que deve permear até mesmo as relações sentimentais? A situação narrada nos autos evidencia um claro erro sobre a pessoa. A vítima acreditou que o acusado possuía certas características essenciais para a manutenção de um relacionamento amoroso e celebração de um casamento. Contudo, tais características essenciais estavam, em verdade, ausentes. Além disso, o réu atuou com evidente má-fé, mantendo a vítima em erro com o fim de obter vantagem patrimonial indevida. Como corolário da má-fé, observa-se que a vontade da vítima restou viciada. Independentemente da discussão sobre a natureza da nulidade (relativa x absoluta), certo é que o fato – existência de erro – pode ser levado em consideração na fundamentação deste voto como forma de afastar/derrogar a incidência do art. 181 do CP, sob pena de incorrermos em situação de verdadeira injustiça, bem como beneficiarmos o algoz que impôs intenso sofrimento à vítima. Frise-se, aqui, que não se está fazendo um controle de constitucionalidade do dispositivo em comento, mas sim um levantamento episódico e casuístico de uma regra válida, compatível com o sistema jurídico e princípios inerentes a esse sistema, em razão de uma peculiaridade do caso concreto que autoriza esse afastamento. O réu manteve a vítima em erro quanto à sua pessoa, utilizando-se de seus conhecimentos jurídicos para concretizar o intento criminoso. Não se deve admitir que o agente se beneficie da própria torpeza, beneficiando-se da isenção de pena quando agiu de maneira premeditada e calculista, antes mesmo de contrair o matrimônio, antevendo todos os atos necessários para obter a vantagem patrimonial indevida em detrimento do sentimento e finanças de sua esposa. Assim, deve ser afastada a regra do art. 181, inc. I, do CP, rememorando que não estamos, aqui, reconhecendo a invalidade da norma perante o ordenamento jurídico, mas sim realizando um levantamento episódico da regra, em razão da existência de exceção relevante: ausência de intenção de constituição do vínculo familiar; existência de conhecimentos jurídicos mais detalhados como forma de praticar a fraude e permanecer impune e, por fim, a manutenção da vítima em erro quanto ao marido. 3. No caso narrado, é inaplicável a escusa absolutória ou causa de isenção da pena, já que demonstrado o dolo de praticar o crime patrimonial desde o início das investidas. Ou seja, o agente pediu para ser apresentado à vítima já com o objetivo ilícito em mente, não podendo ser beneficiado por sua própria torpeza. 4. A violência psicológica sofrida pela vítima autoriza a exasperação da pena base, conforme requerido pelo MP. Isso porque a violência psicológica extrapola a culpabilidade do tipo penal violado, de modo que constitui elemento concreto idôneo para exasperar a pena-base (AgRg no HC n. 622.022/SC, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reios Junior, DJe de 29/03/2021). É entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça a utilização da fração de 1/6 (um sexto) para majoração da pena na 2ª fase da dosimetria. Precedentes. 5 Recurso ministerial provido. Recurso defensivo desprovido. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo TJ- ES – Apelação Criminal: APR XXXXX-23.2014.8.08.0035. Primeira Câmara Criminal. Relator: Willian Silva. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-es/1629242210>. Acesso em 09 nov. 2022).
Além da forma acima apresentada, em que há a convivência presencial dos envolvidos; no estelionato sentimental, a utilização da internet é muito comum, uma vez que a sua utilização estreitou os laços de relacionamento a distância e se tornou um meio para abusos, golpes, depredação de imagem e violência contra a mulher (NUNAN; PENIDO, 2019).
Para coibir tal acontecimento, dentre as causas de aumento de pena contidas no Código Penal, se destacam as relacionadas à fraude eletrônica, incluídas na legislação no ano passado mediante a sanção da Lei nº. 14.155:
Fraude eletrônica
§ 2º-A. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo. (Incluído pela Lei nº 14.155, de 2021)
§ 2º-B. A pena prevista no § 2º-A deste artigo, considerada a relevância do resultado gravoso, aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do território nacional. (Incluído pela Lei nº 14.155, de 2021) (BRASIL, 1940)
Ocorre que, apesar dos muitos relatos existentes, na prática, são poucas as jurisprudências sobre a matéria nos tribunais brasileiros, que divergem quanto a ocorrência ou não de um crime.
Contudo, para tornar mais precisa a responsabilização por essa modalidade de estelionato, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 6444/2019, de autoria do Deputado Júlio Cesar Ribeiro, do Distrito Federal, que pretende alterar o art. 171 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, para dispor sobre o estelionato sentimental. Na proposta, tem-se a inclusão do inciso VII ao §2º, do artigo de lei, com a seguinte redação: “Estelionato Sentimental VII - induz a vítima, com a promessa de constituição de relação afetiva, a entregar bens ou valores para si ou para outrem” (BRASIL, PL 9444/2019).
Enquanto não aprovada a lei pelo Poder5 Legislativo brasileiro, o estelionato sentimental segue sendo passível de responsabilização penal na forma do caput do artigo 171, de forma cumulativa com a imposição de responsabilização civil, melhor tratada a seguir.
4 EFEITOS DO ESTELIONATO SENTIMENTAL NO DIREITO CIVIL: A RESPONSABILIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS
Assim como se dá com várias outras espécies de crimes contra o patrimônio ou contra a dignidade humana, etc., é possível que a vítima, violada em seus direitos fundamentais, pleiteie uma condenação judicial do responsável ao pagamento de uma indenização que, além da reparação dos danos materiais, pode ainda atribuir uma condenação pelos danos morais suportados.
Quando o assunto é estelionato sentimental, razão assiste a vítima em requerer a indenização mencionada, uma vez que, violada substancialmente em sua dignidade e honra.
Além da possível condenação penal, também é possível pleitear a referida reparação civil, bem como a devida indenização por danos materiais e morais, sendo necessário comprovar os repasses de valores e bens que houver ocorrido. O estelionato afetivo viola os deveres de confiança e de lealdade, além de causar frustração, insegurança, vergonha e constrangimentos para a vítima, o que constitui fato ofensivo ao seu direito de personalidade (DUPRET, 2022, p. 01).
No entanto, para que seja deferida a indenização, é necessário que a responsabilidade civil do agente esteja comprovada, o que se dá mediante o preenchimento dos elementos legais, são eles: a conduta humana, o dano e o nexo de causalidade, conforme o artigo 186 do Código Civil determina ao dizer: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2002).
Quando o ato lesivo se dá em uma relação amorosa, “no estelionato sentimental, a responsabilidade civil ocorre de modo subjetivo, ou seja, necessariamente a conduta do agente deve causar um dano e é necessário comprovar a culpa do agente, para que haja indenização” (BARBOSA, 2022, p. 01)
Portanto, para que o indivíduo seja responsabilizado pelo estelionatário sentimental cometido, é preciso compreender os requisitos legais neste contexto afetivo:
O primeiro elemento a ser levado em consideração é o ato ilícito: nas relações de namoro em regra, devem imperar o dever de lealdade e fidelidade entre os namorados, se um dos sujeitos resolve cometer um direito contrário que incide sobre a coisa ou a pessoa, nesta oportunidade, a conduta praticada enseja em vantagem indevida, um dos namorados aproveita-se das condições decorridas do relacionamento para causar um dano através de um ato que contraria a lei ou princípios do direito. Como segundo elemento que caracteriza o instituto, deve-se observar a conduta dolosa do namorado (a), este tem a intenção através de uma ação ou omissão de ferir o direito do seu par, nesse momento, nas relações de namoro, há a quebra no princípio da boa-fé, portanto a conduta dolosa traduz vontade de praticar determinado ato que tenha a intenção de lesar um direito. [...] O terceiro elemento presente para configuração do estelionato sentimental é o nexo de causalidade, onde se pretende identificar o sujeito responsável pelo dano, e tem a função de delimitar o âmbito da reparação. A causa do dano tem que estar relacionada com a conduta adotada pelo agente para que possa haver a reparação, com a análise deste componente é indispensável que o namorado (a) cometa um ato que tenha a intenção de ferir a esfera patrimonial do seu par, fazendo com que, em decorrência da relação, este assuma uma determinada obrigação que não lhe é devida. (BARBOSA, 2022, p. 01).
A compreensão dos requisitos da responsabilidade é indispensável, uma vez que, ausente um deles, o pedido indenizatório apresentado pela vítima seja julgado improcedente pelo Poder Judiciário, uma vez que são elementos cumulativos. É o que ocorreu, por exemplo, no Distrito Federal, em que a prova do ato ilícito não se deu, levando ao improvimento da demanda.
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL E MORAL. ESTELIONATO SENTIMENTAL. NÃO CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE ATO ILÍCITO. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. O estelionato sentimental, fundado basicamente na figura do estelionato previsto no art. 171 do Código Penal, exige, para ficar caracterizado, a prova de artifícios, ardis e dissimulações do agente, que conduzam a vítima a erro e falsas percepções. 2. Inexistindo provas de que a Autora tenha sido enganada, induzida a erro ou que tenha tido falsa percepção da realidade no curso da relação amorosa que manteve, não há elementos para configuração do estelionato sentimental. 3. Recurso conhecido e não provido. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. TJ-DF – XXXXX20208070001 Segredo de Justiça XXXXX-68.2020.8.07.0001. 7ª Turma Cível. Relator: Getúlio de Moraes Oliveira. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-df/1290597522>. Acesso em 09 nov. 2022).
Por outro lado, um exemplo de procedência da ação indenizatória se encontra no julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em que condena o estelionatário à restituição do valor obtido mediante dissimulação, além de fixar uma indenização pelos abalos morais causados à vítima:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ESTELIONATO SENTIMENTAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. INCONFORMISMO DO RÉU. 1. Restou demonstrado nos autos que a autora efetivamente foi vítima de estelionato sentimental, tendo o réu obtido a expressiva quantia de R$ 50.000,00 com promessas de investimentos e compra de imóvel. 2. Em que pese o réu alegar que a irresignação da autora seria em razão do fim do relacionamento, verifica-se através do Laudo de Exame em Material Audiovisual emitido pelo ICCE que o réu reconhece que recebeu os dois valores indicados na inicial como dano material, sendo que o primeiro valor estaria aplicado e o segundo estaria na sua conta do Itaú. 3. Danos morais configurados, em razão da insegurança e do abalo psicológico sofrido pela Autora ao se descobrir enganada financeira e afetivamente pelo réu. O valor da indenização, fixada em R$ 20.000,00, atende aos critérios da razoabilidade e proporcionalidade. 4. Improvimento do recurso. Sentença mantida. Majorados os honorários advocatícios em 2% do valor da condenação, conforme a regra do art. 85, §11 do CPC, observada a gratuidade de justiça deferida. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – TJRJ – APELAÇÃO APL XXXXX20208190001. Décima Sexta Câmara Cível. Relator: Des. Marco Aurélio Bezerra de Melo. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-rj/1543991954>. Acesso em 09 nov. 2022).
Desde modo, não há dúvidas quanto a possibilidade jurídica de responsabilização civil pela prática de estelionato sentimental, bastando apenas à parte interessada, demonstrar ao Judiciário o preenchimento dos requisitos legais e a ocorrência de prejuízo material e abalo moral indenizável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na sociedade brasileira, consubstanciada em um ordenamento jurídico alicerçado na Constituição Federal de 1988 e também em documentos internacionais que dizem sobre a ampla proteção dos direitos humanos, com foco na dignidade da pessoa, sua imagem e honra, sempre que tais garantias forem violadas poderá haver a responsabilização do autor do fato.
De igual modo, a proteção ao patrimônio das pessoas, até mesmo diante de suas relações pessoais, uma vez constatado o uso de fraude e de artifícios, ardis e dissimulações, deve ocorrer tanto em busca da restituição do prejuízo material, mas também com a imposição de uma pena, desde que caracterizado o tipo penal respectivo.
Neste sentido, entende-se que quando há a prática de um estelionato sentimental, em que a vítima, envolvida emocionalmente pelo agente, acaba por entregar para ele seus bens, mediante o uso de artifícios e dissimulações que fazem com que a disposição do patrimônio ocorra de forma viciada, caberá o processamento de uma ação penal e também cível, caso da vítima deseja.
No Brasil, com base na legislação em vigência, apesar de não haver um crime específico para a prática, o estelionato sentimental é penalizado segundo o artigo 171 do Código Penal, podendo ser a pena aumentada em caso de ser cometido mediante fraude eletrônica. A responsabilidade do agente poderá ser ao mesmo tempo civil, já que não há impedimentos para a cumulação da sanção patrimonial, no entanto, dependerá também da comprovação do ato ilícito, dano e nexo causal.
REFERENCIAS
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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo TJ- ES – Apelação Criminal: APR XXXXX-23.2014.8.08.0035. Primeira Câmara Criminal. Relator: Willian Silva. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-es/1629242210>. Acesso em 09 nov. 2022.
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Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Gurupi - UnirG. [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, jovelino sabino rodrigues. Estudo sobre o estelionato sentimental no ordenamento jurídico brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jan 2023, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60831/estudo-sobre-o-estelionato-sentimental-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 21 nov 2024.
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