RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise das agências reguladoras, entidades integrantes da Administração Pública indireta, em sua competência normativa, estabelecendo um paralelo com o fenômeno da deslegalização, termo em crescente ascensão em vista da corrente de desburocratização da Administração. Para tal, imperioso analisar entendimento do Supremo Tribunal Federal e da doutrina correlata.
Palavras-chave: Agências Reguladoras. Deslegalização. Competência normativa.
Abstract: This work aims to analyze the regulatory agencies, entities that are part of the indirect Public Administration, in their normative competence, establishing a parallel with the phenomenon of delegalization, a term on the rise in view of the stream of debureaucratization in the Administration. To this end, it is imperative to analyze the understanding of the Federal Supreme Court and the doctrine.
Keywords: Regulatory Agencies. Delegalization. Normative competence.
Introdução
As agências reguladoras são importantes para a atuação do Poder Executivo. Espécies do tipo autarquias, são integrantes da Administração Indireta. Sua atividade é regulatória de setores importantes para a vida em sociedade, eis que regulam as atividades dos particulares que exercem serviços públicos, bem como dos que exercem atividades econômicas em sentido estrito.
Essas detêm algumas prerrogativas conferidas por lei que lhe conferem o título de autarquias sob regime especial, isso para lhes permitir a atuação tecnicamente correta. Dentre o espectro de autonomia concedida, é de se destacar a autonomia normativa, sendo através da elaboração de normas que essas regulam o setor do mercado respectivo.
Essa autonomia é mister para que haja a regulação técnica do setor. Isso porque do contrário haveria uma constante pressão das forças políticas para que a regulação se desse num ou noutro sentido, o que fosse mais benéfico para os fatores reais do poder. Assim, essa autonomia possibilita que sejam produzidas normas tecnicamente elaboradas, sendo essa razão de ser das próprias entidades. Se não, haveria uma regulação qualquer através da produção de leis, e apenas quando necessário.
O presente trabalho, através de uma análise legal, jurisprudencial e, principalmente, doutrinária, se presta a analisar a natureza jurídica e amplitude da capacidade regulamentar dessas entidades, bem como das demais espécie de autonomia a que se sujeitam.
Inicialmente, é de se destacar que as agências Reguladoras são espécies de autarquias, que, por sua vez, são pessoas jurídicas de direito público que exercem atividade típica de Estado, com patrimônio próprio e autonomia administrativa, criadas por lei específica para exercerem tal atividade típica de Estado.
Se submetem ao regime dual administrativo que engloba tanto as limitações, a exemplo da obrigatoriedade de licitação, quanto as prerrogativas, como o prazo processual em dobro.
Vale salientar que se diz regime dual porque o regime jurídico administrativo abrange as limitações a que está submetida a Administração, tendo em vista a indisponibilidade do interesse público, bem como as prerrogativas, que são expressas em razão da supremacia do interesse público sobre o privado, algo natural, eis que o patrimônio público é o que viabiliza a gestão da vida em coletividade pelo Estado.
Ato contínuo, as agências reguladoras são autarquias sob regime especial, conceito que inclui igualmente as agências executivas, autarquias fundacionais e as associações públicas. Essas são autarquias que gozam de algumas características de distinção em relação às demais autarquias. Em relação às agências reguladoras, mais especificamente, é imperioso tecer sua origem histórica.
Elas foram criadas diante do quadro de privatizações ocorridas no governo de Fenando Henrique Cardoso, passando a ser as responsáveis pela fiscalização dos particulares que exerciam serviços públicos, bem como dos que exerciam atividades econômicas em sentido estrito. Nesse diapasão, se percebe que exercem atividades típicas de Estado, daí porque classificadas como autarquias especiais.
A criação dessas entidades teve início na década de 90, com um viés de fortalecer a diminuição da intervenção estatal na economia, ideias liberais, portanto. Houve uma espécie de inspiração no modelo norte-americano, mas com uma ressalva.
É que lá as agências foram criadas no meio da Grande Depressão de 1929, tendo como percursor a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque. O mercado se viu impossibilitado de se reerguer por si, necessitando, portanto, de uma ajuda estatal no sentido de impossibilitar que os motivos que levaram à crise continuassem existindo. Assim, “o Estado norte-americano utilizou-se do modelo das agências reguladoras para promover uma intervenção enérgica na ordem econômica e social, corrigindo falhas de mercado”[1].
Dessa forma, a ressalva a ser feita, que mais é uma contradição, é que, em que pese o modelo adotado pelo brasil tenha se inspirado no norte-americano, em nada se identificam no pressuposto de existência. Enquanto lá as agências se criam num momento de fortalecimento do Estado, e mais intervenção, portanto, num sistema que adotava o modelo abstencionista – em que não há, ou há minimamente, a intervenção do Estado na economia –, no ordenamento pátrio, elas o fazem num período em que há diminuição intervenção estatal na economia, antes intervencionista, buscando uma regulação leve, apenas do indispensável.
Ato contínuo, a configuração dessas agências como autarquias em regime especial se dá pelo reforço de sua autonomia em relação ao Ente a que está vinculada. A razão de ser é a despolitização, de forma a assegurar uma maior segurança jurídica no setor, em razão do tratamento técnico das normas pertinentes, além de conferir uma imperiosa celeridade nas elaborações, para não tornar inoperantes as normas em relação ao mercado. Isso porque o mercado é muito rápido, e as leis que lhe regulam, para que sejam eficientes, hão de ser igualmente elaboradas de maneira célere.
A lei de regência, em nosso ordenamento, é a lei de nº. 13.848/19, cujo teor do art. 3º expressas as diferenças na entidade. É de se colacionar o artigo:
Art. 3º A natureza especial conferida à agência reguladora é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei ou de leis específicas voltadas à sua implementação.
Essas entidades concentram poderes das mais diversas ordens: normativos, administrativos e judicantes. Os primeiros são caracterizados pela prerrogativa de editar atos normativos, que deverão ser seguidos pelo setor econômico. Os administrativos, pelo inerente poder de polícia exercido – trata-se de atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público. As habilidades judicantes se mostram na competência para resolver embates entre os agentes regulados – o que fortalece, inclusive, o sistema de justiça multiportas, eis que promove a autocomposição dos problemas.
Observe que não há enumeração de atividade legislativa nem jurisdicional: a elaboração da norma primária, geral e abstrata segue à cargo do Legislativo, bem como a capacidade de dar a última palavra aos conflitos, fazendo coisa julgada, segue nas mãos do Judiciário.
As agências podem ser dos mais variados tipos. Podem ser, conforme já mencionado, reguladoras de serviços públicos concedidos, à exemplo da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), ou de atividades econômicas em sentido estrito, como a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
A depender do Ente que a instituir, podem ser federais, vinculadas à União, estaduais, vinculadas aos Estados, distritais, vinculadas ao Distrito Federal, ou municipais, quando vinculadas aos Municípios. O que nos permite afirmar que todos detém capacidade para criá-las.
Ainda, ao mesmo tempo que podem regular uma atividade apenas, seja um serviço público concedido ou econômica, sendo monossetoriais, também conseguem ser plurissetoriais, regulando diversas atividades ao mesmo tempo, qualquer seja sua natureza.
Segundo Rafael Oliveira, “o ideal é a instituição de agências monossetoriais, dotadas de maior especialização, o que permite maior eficiência na regulação do setor”[2].
1.2 Regime Jurídico aplicável
Em primeiro ponto, é de se apontar a autonomia administrativas inerente às entidades. Nos dizeres do supramencionado art. 3º, essa se mostra, inicialmente, pelo reforço da estabilidade dos seus dirigentes. O art. 5º da lei de nº 9.986/00, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências aqui estudadas, alterado pela lei já citada, de nº. 13.848/19, estabelece:
Art. 5º O Presidente, Diretor-Presidente ou Diretor-Geral (CD I) e os demais membros do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada (CD II) serão brasileiros, indicados pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea “f” do inciso III do art. 52 da Constituição Federal, entre cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento no campo de sua especialidade, devendo ser atendidos 1 (um) dos requisitos das alíneas “a”, “b” e “c” do inciso I e, cumulativamente, o inciso II:
I - ter experiência profissional de, no mínimo:
a) 10 (dez) anos, no setor público ou privado, no campo de atividade da agência reguladora ou em área a ela conexa, em função de direção superior; ou
b) 4 (quatro) anos ocupando pelo menos um dos seguintes cargos:
1. cargo de direção ou de chefia superior em empresa no campo de atividade da agência reguladora, entendendo-se como cargo de chefia superior aquele situado nos 2 (dois) níveis hierárquicos não estatutários mais altos da empresa;
2. cargo em comissão ou função de confiança equivalente a DAS-4 ou superior, no setor público;
3. cargo de docente ou de pesquisador no campo de atividade da agência reguladora ou em área conexa;
c) 10 (dez) anos de experiência como profissional liberal no campo de atividade da agência reguladora ou em área conexa; e
II - ter formação acadêmica compatível com o cargo para o qual foi indicado.
O mandato será a termo, com duração de 5 anos, e não coincidirá com o do agente político. É impossível a sua exoneração imotivada, ou ad nutum, de forma que o dirigente só poderá perder o seu cargo por renúncia, sentença judicial transitada em julgado e processo administrativo com observância da ampla defesa e contraditório.
Vale ressaltar que há uma divergência doutrinária em relação à não coincidência do mandato dos dirigentes em relação ao agente político que lhe nomeia. Celso Antônio Bandeira de Mello entende pela inconstitucionalidade, por violação ao princípio republicano, que pressupõe a temporariedade dos mandatos[3]. É que o dirigente nomeado seguirá no cargo mesmo diante da troca de governo, configurando uma manutenção do governante passado, que não mais ocupa a chefia do Poder Executivo.
Todavia, não merece prosperar esse argumento, tendo em vista que o objetivo da regulação é, exatamente, despolitizar o setor. Além do que o chefe do Executivo, que faz a nomeação, não exerce formalmente poder de gerência e pressão – tendo em vista a vedação à exoneração ad nutum. Não há como argumentar pela manutenção de um governo se esse não exerce formalmente a condução dessas entidades.
A participação do Executivo e Legislativo nas nomeações encontra limites na própria lei de nº. 9.986/00, de forma a corroborar o fundamento da despolitização do setor, tornando imperioso citar o artigo:
Art. 8º-A. É vedada a indicação para o Conselho Diretor ou a Diretoria Colegiada:
I - de Ministro de Estado, Secretário de Estado, Secretário Municipal, dirigente estatutário de partido político e titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados dos cargos;
II - de pessoa que tenha atuado, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;
III - de pessoa que exerça cargo em organização sindical;
IV - de pessoa que tenha participação, direta ou indireta, em empresa ou entidade que atue no setor sujeito à regulação exercida pela agência reguladora em que atuaria, ou que tenha matéria ou ato submetido à apreciação dessa agência reguladora;
V - de pessoa que se enquadre nas hipóteses de inelegibilidade previstas no inciso I do caput do art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990;
VI - (VETADO);
VII - de membro de conselho ou de diretoria de associação, regional ou nacional, representativa de interesses patronais ou trabalhistas ligados às atividades reguladas pela respectiva agência.
Parágrafo único. A vedação prevista no inciso I do caput estende-se também aos parentes consanguíneos ou afins até o terceiro grau das pessoas nele mencionadas.
Os dirigentes que saírem do cargo deverão passar por uma quarentena, também prevista na legislação. Ficam impedidos de exercer atividade ou prestar qualquer serviço no setor regulado pelo prazo de seis meses, contados da exoneração ou término do mandato, assegurada uma remuneração compensatória, sob pena de inviabilizar a manutenção econômica do agente no período estabelecido.
Outro fator que reforça a autonomia administrativa é a impossibilidade de recurso hierárquico impróprio. Esse, por sua vez, é a possibilidade de, no âmbito do processo administrativo, haver pedido de revisão de decisão que será analisado por pessoa jurídica diversa da que proferiu a decisão. Daí porque impróprio: é que não há hierarquia na relação entre as pessoas jurídicas envolvidas, mas será analisado como se houvesse (por pessoa jurídica superior).
O descabimento se justifica pela necessidade de decisões técnicas no âmbito das agências reguladoras, de forma que a decisão final há de ser dela, detentora da expertise necessária. A possibilidade de revisão por pessoa jurídica diversa acabaria por tolher a autonomia indispensável à finalidade da entidade. Para a doutrina majoritária, a impossibilidade decorre da ausência de previsão na lei específica das agências.
Todavia, a Advocacia Geral da União possui entendimento próprio. Segundo o parecer de nº AC-51, emitido pelo órgão em 2006:
PORTO DE SALVADOR. THC2. DECISÃO DA ANTAQ. AGÊNCIA REGULADORA. CONHECIMENTO E PROVIMENTO DE RECURSO HIERÁRQUICO IMPRÓPRIO PELO MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES. SUPERVISÃO MINISTERIAL. INSTRUMENTOS. REVISÃO ADMINISTRATIVA. LIMITAÇÕES.
I - -O Presidente da República, por motivo relevante de interesse público, poderá avocar e decidir qualquer assunto na esfera da Administração Federal- (DL nº 200/67, art. 170).
II - Estão sujeitas à revisão ministerial, de ofício ou por provocação dos interessados, inclusive pela apresentação de recurso hierárquico impróprio, as decisões das agências reguladoras referentes às suas atividades administrativas ou que ultrapassem os limites de suas competências materiais definidas em lei ou regulamento, ou, ainda, violem as políticas públicas definidas para o setor regulado pela Administração direta.
III - Excepcionalmente, por ausente o instrumento da revisão administrativa ministerial, não pode ser provido recurso hierárquico impróprio dirigido aos Ministérios supervisores contra as decisões das agências reguladoras adotadas finalisticamente no estrito âmbito de suas competências regulatórias previstas em lei e que estejam adequadas às políticas públicas definidas para o setor.
IV - No caso em análise, a decisão adotada pela ANTAQ deve ser mantida, porque afeta à sua área de competência finalística, sendo incabível, no presente caso, o provimento de recurso hierárquico impróprio para a revisão da decisão da Agência pelo Ministério dos Transportes, restando sem efeito a aprovação ministerial do Parecer CONJUR/MT nº 244/2005.
V - A coordenação das Procuradorias Federais junto às agências reguladoras pelas Consultorias Jurídicas dos Ministérios não se estende às decisões adotadas por essas entidades da Administração indireta quando referentes às competências regulatórias desses entes especificadas em lei, porque, para tanto, decorreria do poder de revisão ministerial, o qual, se excepcionalmente ausente nas circunstâncias esclarecidas precedentemente, afasta também as competências das Consultorias Jurídicas. O mesmo ocorre em relação à vinculação das agências reguladoras aos pareceres ministeriais, não estando elas obrigadas a rever suas decisões para lhes dar cumprimento, de forma também excepcional, desde que nesse mesmo âmbito de sua atuação regulatória.
VI - Havendo disputa entre os Ministérios e as agências reguladoras quanto à fixação de suas competências, ou mesmo divergência de atribuições entre uma agência reguladora e outra entidade da Administração indireta, a questão deve ser submetida à Advocacia-Geral da União.
VII - As orientações normativas da AGU vinculam as agências reguladoras.
VIII - As agências reguladoras devem adotar todas as providências para que, à exceção dos casos previstos em lei, nenhum agente que não integre a carreira de Procurador Federal exerça quaisquer das atribuições previstas no artigo 37 da MP nº 2.229-43/2001[4].
Referido parecer foi aprovado pelo Presidente da República, de forma que, nos termos do art. 40, §1º, da Lei Complementar de nº. 73/93, passou a ter efeitos normativos com caráter vinculante para toda a Administração Pública. Segundo ele, portanto, quando os atos das agências extrapolarem os limites suas competências previstas em lei ou regulamento, ou violarem políticas públicas setoriais, ou, ainda, disserem respeito às atividades administrativas, estão sujeitas à revisão ministerial, de ofício ou por provocação dos interessados, inclusive pela apresentação de recurso hierárquico impróprio.
Isso com base na direção superior exercida pelo Chefe do Executivo sobre todo o Poder. Mas, ainda nesse pensamento permissivo, não é qualquer ato das agências que se sujeitam ao controle, de forma que as decisões das agências reguladoras adotadas finalisticamente, no estrito âmbito de suas competências regulatórias previstas em lei, e que estejam adequadas às políticas públicas definidas para o setor não se sujeitam ao controle – permanecerão com a decisão final à cargo dos pormenores técnicos das agências.
Segundo Rafael Oliveira,
Em nossa opinião, não cabe recurso hierárquico impróprio contra as decisões das agências reguladoras, em razão da ausência de previsão legal expressa. O recurso hierárquico impróprio é modalidade recursal excepcional só tolerada nos casos expressamente previstos em lei, tendo em vista a sua utilização no bojo de uma relação administrativa em que inexiste hierarquia (subordinação é inerente à estrutura interna das pessoas administrativas e órgãos públicos), mas apenas vinculação (a relação de vinculação existe entre pessoas administrativas).
Assim, é de se entender no sentido da doutrina majoritária, em que pese o argumento contrário, uma vez que, apesar de previsto na Constituição o papel do Chefe do Executivo, é certo que a CF, igualmente, prevê a descentralização administrativa, pela criação das entidades da Administração Indireta, não havendo qualquer relação de hierarquia aplicável ao caso e, sendo imperioso conferir autonomia às entidades criadas.
Ato contínuo, as agências reguladoras também dispõem de autonomia financeira especial. Isso é corroborado pela possibilidade de criação das taxas regulatórias. Sobre essas, muito se discute se têm natureza tributária. A resposta depende de uma análise da atividade desempenhada pela agência.
Será tributo na hipótese de a atividade desempenhada ser a regulação de atividades econômicas, isso porque presentes os pressupostos da criação por lei, obrigatoriedade e o fato gerador decorrer do poder de polícia: trata-se de uma taxa propriamente dita.
Por sua vez, se se tratar do desempenho da regulação de serviços públicos: será tarifa, tendo em vista a natureza contratual da cobrança, bem como não haver desempenho do poder de polícia. Trata-se do exercício do poder disciplinar no âmbito de uma relação especial do particular com a Administração – através do contrato de concessão.
Nesse ponto, é mister colacionar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
Não há violação do princípio da legalidade na aplicação de multa previstas em resoluções criadas por agências reguladoras, haja vista que elas foram criadas no intuito de regular, em sentido amplo, os serviços públicos, havendo previsão na legislação ordinária delegando à agência reguladora competência para a edição de normas e regulamentos no seu âmbito de atuação[5].
Também há comprovação da autonomia financeira pelo fato de que a proposta orçamentária pertinente à agência será enviada diretamente por essa ao Ministério ao qual está vinculada.
Por fim, e mais importante, temos a autonomia das agências para produção de atos normativos para o setor regulado. Esses, dotados dos aspectos técnicos necessários – que, conforme dito anteriormente, legitimam a própria criação da entidade.
Quanto à amplitude dessa autonomia, a doutrina diverge. É que há quem entenda pela inconstitucionalidade dessa amplitude – é o caso de Maria Sylvia Zanella Di Pietro[6], que ressalva a legitimidade da amplitude apenas em relação às agências com fundamento na CF (ANATEL e ANP). A inconstitucionalidade do poder normativo amplo seria baseada na violação à separação dos poderes e ao princípio da legalidade, eis que configuraria criação de direitos e deveres por meio de atos regulatórios exercidos em delegação normativa inominada.
Inclusive, a doutrina que assim entende, determina a possibilidade de exercício de poder normativo primário pelo Executivo apenas pelas Medidas Provisórias e Leis Delegadas, com amparo constitucional.
Mas, a doutrina majoritária entende pela constitucionalidade. Isso porque as Agências detêm esse poder normativo, mas devem respeitar parâmetros legais. Nesse sentido, o STF já entendeu pela constitucionalidade:
É constitucional o art. 7º, III e XV, da Lei nº 9.782/99, que preveem que compete à ANVISA:
III - estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária;
XV - proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde;
Entendeu-se que tais normas consagram o poder normativo desta agência reguladora, sendo importante instrumento para a implementação das diretrizes, finalidades, objetivos e princípios expressos na Constituição e na legislação setorial. (....) [7]
Assim, o poder normativo dessas agências é ínsito à implementação de suas diretrizes, finalidades, objetivos e princípios A função regulatória é justificada capacidade técnica que elas detêm, inerente à regulação e imperiosa para a normatividade, sua aplicação prática.
1.3 A questão da deslegalização
Segundo Renério de Castro Júnior, “a deslegalização consiste, basicamente, em uma amenização do princípio da legalidade”[8]. Através desse fenômeno, o Poder Legislativo retira determinada matéria de sua competência para que possa ser regulada por regulamentos, desburocratizando a feitura da norma. Afinal, um mínimo de burocracia é inerente ao sistema de feitura das leis. Trata-se de verdadeiro rebaixamento hierárquico da matéria – daí porque atenuação do princípio.
À título de exemplo, o STF entende haver deslegalização ou delegificação em relação ao salário-mínimo: é que se admite o reajuste e aumento por decreto do Presidente, matéria que, à época (anterior ao julgamento do STF) necessitava de lei em sentido formal. Importância ímpar, inclusive, porque é a própria CF que determina a necessidade de lei para tal determinação.
Conforme já dito, a questão da amplitude da autonomia concedida insere-se nessa discussão. É que se deve analisar se há verdadeira inovação jurídica e, ainda, se seria possível haver sem ser por meio de lei.
Em relação às agências, especificamente, a possibilidade de inovação, foi objeto de análise do STF repetidas vezes. Tendo, inclusive, em vista a justificativa de serem elas as detentoras da expertise técnica necessária, e de que o legislador ordinário incapaz seria de disciplinar essas questões afetas aos objetivos institucionais dessas entidades.
Todavia, o STF, quando do recente julgamento da ADI de nº. 1668/DF parece ter refutado que, em relação às agências executivas, temos caso de delegação legislativa – ou deslegalização.
Vale salientar, para ressaltar a importância da discussão, que esse era o entendimento da doutrina majoritária, cristalizada por Rafael Oliveira, para quem:
“o fundamento do poder normativo das agências reguladoras seria a técnica da deslegalização (ou delegificação), que significa ‘a retirada, pelo próprio legislador, de certas matérias do domínio da lei (domaine de la loi), passando-as ao domínio do regulamento (domaine de l'ordonnance”)’”[9].
Segundo o STF, é fato que as agências reguladoras desempenham a função ordenadora e fiscalizatória dos setores, e, para tal, implicitamente é concedido o poder de expelir normas – fenômeno inerente à atividade principal. Todavia, tal competência será exercida nos limites de sua atuação e nos limites do arcabouço legal aplicável – como é de se esperar.
Essa função inclusive, mesmo antes já era tido como compatível com a CF, inclusive pelo julgamento mencionado anteriormente da ADI de nº. 4874. Ilustrativamente, os limites legais são explicados com maestria por Egon Bickmann, para quem:
“(...) as agências são independentes, mas não soberanas; sua competência precisa ser definida em standards legislativos (subordinam-se às leis e à Constituição); possuem as respectivas competências regulamentares balizadas pelas respectivas legislações de origem; os regulamentos por elas emanados dirigem-se imediatamente aos agentes econômicos (produtores e consumidores) do respectivo setor; todas elas se submetem a controle externo. Mas todas elas possuem um núcleo duro intangível: a competência para disciplinar o respectivo setor da Economia, por meio da edição de regulamentos econômicos”[10].
O que mudou no julgamento da ADI de nº. 1668[11] foi: segundo a Corte, a expedição de normas regulatórias não se trada da delegação de poderes legislativos, eis que é sempre exercida fundamentando-se na lei, que lhe serve de limitação. Não poderia haver uma delegação da responsabilidade pela decisão política pelo legislador à agência.
O que é transferido para a entidade é a faculdade dos meios para obtenção da política definida pelo Legislativo, havendo reconhecimento de inferioridade em relação à legislação – isso em vista de dignificar a importante atuação das agências reguladoras, mas sem conferir-lhes capacidades ilimitadas ou soberanas. O que difere é um viés qualitativo, tendo em vista sua capacidade técnica, imprescindível à correta regulação setorial. Segundo a Ministra Rosa Weber:
O poder normativo atribuído às agências reguladoras pelas respectivas leis instituidoras consiste em instrumento para que dele lance mão o agente regulador de um determinado setor econômico ou social para a implementação das diretrizes, finalidades, objetivos e princípios expressos na Constituição e na legislação setorial. No domínio da regulação setorial, a edição de ato normativo geral e abstrato (poder normativo) destina-se à especificação de direitos e obrigações dos particulares, sem que possa, a agência reguladora, criá-los ou extingui-los. Com efeito, a norma regulatória deve compatibilizar-se com a ordem legal, integrar a espécie normativa primária, adaptando e especificando o seu conteúdo, e não substituí-la ao inovar na criação de direitos e obrigações. Seu domínio próprio é o do preenchimento, à luz de critérios técnicos, dos espaços normativos deixados em aberto pela legislação, não o da criação de novos espaços. Hierarquicamente subordinado à lei, o poder normativo atribuído às agências reguladoras não lhes faculta inovar ab ovo na ordem jurídica, mormente para “impor restrições à liberdade, igualdade e propriedade ou determinar alteração do estado das pessoas[12].
O que há, em verdade, é uma função normativa que visa tratar de uma lacuna intencional (ou silêncio eloquente) do legislador, que assim o deixou para que seja complementada por quem detenha o conhecimento técnico inerente e seja aplicada ao setor de maneira acertada. Não se pode afirmar invasão de espaço reservado à lei exatamente pela sua tecnicidade inerente e permissão do legislador.
Assim, é de se considerar que não há deslegalização quando das atribuições normativas das agências reguladoras, por entendimento do STF, quando do julgamento da ADI de nº. 1668/DF. O poder normativo da agência reguladora sob análise da ADI, a ANATEL, é de natureza estritamente regulamentar, devendo observância aos parâmetros constitucionais e legais.
Nesse sentido é que Rafael Oliveira fala em respeito ao princípio da juridicidade. Esse seria mais amplo que o da legalidade, na medida em que impõe o respeito a todo o ordenamento jurídico, o que inclui todo o arcabouço de princípios aplicáveis à Administração, bem como as leis e a própria Constituição.
Urge destacar que o exercício dessa competência normativa das agências pode ganhar ainda mais legitimidade quando há a participação dos cidadãos na elaboração das normas, pelas consultas e audiências públicas hoje em dia previstas.
Considerações Finais
As agências executivas chegaram ao nosso ordenamento jurídico por uma maior necessidade de êxito do mercado sem haver intenso intervencionismo estatal. Tal é que, em uma época em que o Estado tenta ser mais liberal, essas entidades surgem em nosso ordenamento jurídico.
Verdadeiras autarquias sob regime especial, sua função se mostra pela necessidade de regulamentação de duas atividades: as dos particulares que exercem serviços públicos, e a dos que exercem atividades econômicas em sentido estrito.
Em regime especial porque detentoras de diversos graus de autonomia: financeira, administrativa e para edição de atos normativos. Essa última foi objeto de análise do STF, e objeto de estudo do presente artigo.
Em apartada síntese, é de se concluir que tais entidades detém prerrogativas para conferir maior autonomia e lhes permitir atuação livre de pressões políticas e, portanto, de acordo com o que for melhor tecnicamente ao setor regulado. A autonomia conferida é um meio para um fim: a atuação acertada da Administração, quando necessária a regulamentação de atividades privadas.
Assim, a autonomia para expedir atos normativos é limitada pelo ordenamento jurídico: deverão observar todos os limites constitucionais, legais e principiológicos.
Além disso, sua atuação se faz em aspectos em que o legislador o quis: há uma lacuna intencional da lei, que deixa à cargo da agência executiva a sua regulamentação, daí porque não se trata de delegação legislativa, mas atuação conjunta do Legislativo e do Executivo, pela atuação dessas agências que são parte da Administração Indireta.
Isso inclusive legitima a atuação das entidades eis que não há inovação legislativa sem lei. Há uma lei definidora de limites para que a agência possa atuar dentro daquilo que a lei deixou ao seu cargo: não há qualquer inovação ilegítima. Haverá inovação apenas do que permitido expressamente por lei, sendo isso previsível ao particular regulado, e não havendo um rebaixamento da matéria, tal como o acontece com a deslegalização.
A decisão recente da Suprema Corte foi imperiosa para findar uma discussão que antes assolava a doutrina, afirmando taxativamente pela legitimidade da atuação das agências, pela constitucionalidade de seu regime e, mais importante, que essa atuação não se dá na sistemática da delegação legislativa.
Referências
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[1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 9ª edição. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021. p. 89.
[2] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 9ª edição. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021. p. 91.
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21ª Edição. São Paulo: Malheiros: 2006. p. 168.
[4] BRASIL. Advocacia Geral da União. Parecer AGU Nº AC-51, de 05 de junho de 2006. Disponível em: <https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:advocacia.geral.uniao:parecer:2006-06-05;ac-51>. Acesso em 27/01/2023.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2ª Turma. AgRg no AREsp 825776/SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 05/04/2016
[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 34ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 597.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. ADI 4874/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 1º/2/2018 (Info 889).
[8] CASTRO, Renério. Manual de Direito Administrativo. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022. p. 95.
[9] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 9ª edição. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021. p. 93.
[10] MOREIRA, Egon Bockmann. Qual é o Futuro do Direito da Regulação no Brasil? In: SUNDFELD, Carlos Ari e ROSILHO, André (Orgs.) Direito da Regulação e Políticas Públicas. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 107-139, p. 130)
[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. ADI 1668/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 27/2/2021 (Info 1007).
[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. ADI 4874/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 1º/2/2018 (Info 889).
Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Advogado. Pós-graduado em Direito Tributário e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREIRE, Pedro Borges Coelho de Miranda. Agências reguladoras e deslegalização: uma análise à luz do julgamento da ADI 1668 pelo Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 fev 2023, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60977/agncias-reguladoras-e-deslegalizao-uma-anlise-luz-do-julgamento-da-adi-1668-pelo-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 21 nov 2024.
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