RESUMO: O artigo propõe-se a descrever e analisar o surgimento, implementação, funcionamento e objetivos do criminal compliance no âmbito das empresas e sob a égide do ordenamento jurídico brasileiro. Será abordada também a responsabilidade penal do compliance officer à luz da teoria da cegueira deliberada, do princípio da confiança como limitador do dever de cuidado e de acordo com os contornos teóricos da figura do garantidor em face dos crimes omissivos. Sabendo-se que o criminal compliance teve seu nascedouro e desenvolvimento nos Estados Unidos, mormente como forma de repressão à lavagem de dinheiro no âmbito das instituições financeiras em decorrência do tráfico de bebidas e de drogas e, posteriormente, como forma de financiar atividades terroristas, este trabalho se preocupará em expor, ainda que de forma um tanto perfunctória, como se deu a inserção do criminal compliance no sistema jurídico brasileiro e como ocorre sua operacionalização, sobretudo diante da vigência da Lei Anticorrupção e da Lei de Lavagem de Capitais. Por conseguinte, ficará demonstrada a grande relevância que o programa ou política de criminal compliance representa para a solidez dos sistemas empresarial, econômico e político de todos os países que estão inseridos no mercado de capital na atual conjuntura globalizada e altamente tecnológica. No que tange à responsabilização do compliance officer, especificamente no âmbito interno, restará como cristalina a correta adoção da aplicação do princípio da confiança e das nuances que envolvem o reconhecimento deste profissional como garantidor diante do cometimento de algum crime omissivo no âmbito das empresas.
Palavras-chave: Criminal Compliance. Compliance Officer. Autorregulação regulada.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, com todos os desdobramentos da famigerada Operação Lava Jato, em que se revelaram intricados esquemas de corrupção e de lavagem de capitais nas mais variadas empresas e grupos empresariais, entre os quais empresas de domínio público, constatou-se que as leis correlatas não estavam sendo efetivas e que um aparato de fiscalização eficiente seria necessário para coibir tais práticas criminosas, contexto em que veio à tona com mais força as nuances atinentes ao criminal compliance.
Compliance indica concordância, obediência e conformidade ao que foi imposto. Consiste no dever de cumprir ou de fazer cumprir leis, diretrizes e regulamentos internos e externos, com o fito de minimizar riscos à reputação e o risco regulatório. O compliance está atrelado a questões estratégicas e se aplica a todos os tipos de organização, tendo em vista que o mercado vem exigindo cada vez mais condutas legais e éticas para a consolidação de um novo comportamento por parte das empresas, que devem aliar a lucratividade como decorrência do desenvolvimento econômico e o desenvolvimento socioambiental de modo sustentável.
Nessa perspectiva, face à atual conjuntura de enfrentamento à corrupção e a todos os atos ilícitos que figuram como seus consectários, os contornos teóricos e práticos do criminal compliance vêm sendo implementados, sobretudo no âmbito empresarial privado, com vistas a prevenir a atuação de corruptores, atos corruptos, outras infrações, bem como salvaguardar a estabilidade do mercado, permitindo, assim, um cenário de transparência, eticidade e confiança.
Nesta toada, o presente trabalho irá fazer uma abordagem acerca da aplicabilidade do criminal compliance diante da normativa pátria concernente à reprimenda dos atos de corrupção perpetrados nas empresas, e sobre os aspectos atinentes à responsabilização penal do profissional responsável pelo gerenciamento do programa de compliance nas empresas, o compliance officer.
Assim sendo, primeiramente será feita uma exposição do contexto histórico em que foi desenvolvida a ideia de que uma sistemática de prevenção e de fiscalização deveria ser implantada nas empresas. Adiante-se que foi nos Estados Unidos que surgiu a necessidade de um aparato de resistência ao sistema antilavagem de dinheiro, em decorrência das atividades do tráfico de drogas e do terrorismo.
No segundo momento, será apresentada a conceituação de compliance e suas principais características no âmbito empresarial, levando em consideração os diplomas nacionais vigentes que estipulam regras concernentes ao compliance e que respaldam a implementação dos princípios e objetivos do criminal compliance no Brasil, quais sejam, a Lei Anticorrupção e a Lei de Lavagem de Capitais.
E, por último, será feita uma abordagem sobre a teoria da cegueira deliberada, sobre o princípio da confiança e acerca do dever de garantidor nos crimes omissivos, noções necessárias para se definir qual o melhor embasamento para se responsabilizar penalmente o compliance officer.
2 CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO CRIMINAL COMPLIANCE
No final dos anos setenta ganhou destaque nos Estados Unidos da América o movimento antilavagem de dinheiro, como forma de reação ao crime organizado e com o objetivo de estancar, principalmente, as transações do tráfico de drogas. Movimento este que cresceu ainda mais após o ataque terrorista à torres gêmeas do World Trade Center em onze de setembro de 2001.
Todavia, a origem do movimento de combate ao crime organizado, cujo principal instrumento indubitavelmente é a lavagem de dinheiro, remonta-se a 1919, quando foi implementada pelos estados americanos a chamada Lei Seca – Volstead Act (Nacional Prohibition Enforcement Act). Nessa época, o contrabando de bebidas já acarretava forte impacto social e econômico, semelhantemente àquele que seria provocado nos anos setenta pelo tráfico de drogas.
Com efeito, a proibição da produção, da venda e do transporte de bebidas alcoólicas pelo governo americano não foi suficiente para eliminar o hábito de beber, sobretudo nas grandes cidades, frequentadas por um grande número de estrangeiros habituados ao consumo de álcool. Na realidade, facilitou-se a criação de um enorme espaço lucrativo para o comércio clandestino. As quadrilhas que traficavam bebidas, até então de modo independente, de imediato se organizaram e se articularam, uma vez que a nova atividade criminosa necessitava de uma forte organização empresarial capaz de produzir clandestinamente, ou contrabandear, e distribuir a bebida vendida ilegalmente. Dessa forma, as transações clandestinas de bebidas tornou-se um lucrativo negócio, e as altas montas de dinheiro daí oriundas passou a ser empregadas na corrupção de agentes públicos, o que possibilitava o sucesso do comércio ilícito, como também na exploração de novos empreendimentos, haja vista que as lavanderias, comumente utilizadas como empresas de fachada para a limpeza do dinheiro de origem ilícita, já não bastavam ao volume de recursos. (CARDOSO, 2013, p. 15)
Com a legalização do álcool em 1933, porém, não houve mais razões para se proceder com o contrabando de bebidas. Embora, o crescente uso de drogas proibidas tenha permitido ao crime organizado se rearticular para se beneficiar de outra forma de lucratividade.
As transações financeiras com dinheiro em espécie realizadas pelas organizações criminosas, no entanto, mostrava-se o ponto mais vulnerável na repressão ao crime, fato que motivou a publicação no ano de 1970 da Lei de Sigilo Bancário. Assim, a movimentação bancária anônima tornou-se proibida, e as instituições financeiras como forma de possibilitar o rastreamento das operações de lavagem de dinheiro passaram a ter o dever de informar o governo federal todas as transações superiores a dez mil dólares americanos realizadas em moedas, títulos, cheques, valores mobiliários e instrumentos negociáveis, dentro ou fora do país, feitas em uma única ou em múltiplas transações. (CARDOSO, 2013, p. 16)
A efetividade dessa norma sofreu resistência, pois as instituições financeiras acreditavam que a nova lei violava o direito à privacidade de seus clientes. Entretanto, o comportamento de repulsa às novas regras de combate à lavagem de dinheiro foi se transmudando para a cooperação no combate ao crime organizado, quando foram levadas a efeito prisões de pessoas do mais alto escalão de renomadas instituições financeiras em decorrência de sucessivos escândalos. Esse espírito de colaboração se intensificou popularmente no que pode ser chamado de Guerra contras as Drogas durante o governo presidencial de Ronald Reagan (1981-1989).
Baseado em dados históricos constata-se que durante o intervalo de tempo compreendido entre o final da década de setenta até o início da década de noventa, os Estados Unidos da América custearam operações militares destinadas a erradicar as plantações de coca, sobretudo na Colômbia, na Bolívia e no Peru. O objetivo da invasiva ação americana era reduzir a demanda doméstica da droga em face da alta dos preços que o produto alcançaria com a intervenção direta na produção, todavia, tal raciocínio, na realidade, frustrou as expectativas. A incisiva estratégia militar não obteve êxito, e as drogas continuaram a ser oferecidas em demasia no solo americano. A motivação para essa constância consiste no fato de que a produção de cocaína e de outras substâncias entorpecentes têm um processo de produção de custo muito baixo, permitindo que as perdas com o negócio sejam insignificantes diante dos grandes lucros que proporcionam. (CARDOSO, 2013, p. 17)
O combate ao uso de drogas como forma de salvaguardar a saúde pública não foi a única mola propulsora para desencadear a implantação dessa severa política antilavagem de dinheiro no território norteamericano. Interesses financeiros e reputacionais quanto à proteção da economia também a reforçaram, uma vez que a prática de lavagem de dinheiro passou a ser uma poderosa ferramenta apta a fazer entrar na economia formal o dinheiro ilícito, e com isso acarretar desagradáveis impactos econômicos e sociais.
Nessa perspectiva, de acordo com um estudo realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, divulgado pelo Grupo de Trabalho em Lavagem de Dinheiro do Ministério Público Federal, denuncia que a prática da lavagem de dinheiro gera distorções econômicas, risco à integridade e à reputação dos sistema financeiro, diminuição dos recursos governamentais e repercussões socioeconômicas. (CARDOSO, 2013, p. 18-19)
Dessa forma, as políticas de repressão ao tráfico de drogas desde os anos oitenta já se mostravam imprescindíveis ao combate ao crime organizado, uma vez que há muito já era visível que o narcotráfico havia se internacionalizado, e as máfias começavam a se associar e constituir verdadeiras empresas, funcionando de maneira ágil e profissional.
A globalização observada por seus efeitos econômicos, com a abolição das fronteiras nacionais para os fluxos de capitais, e o acentuado desenvolvimento de tecnologias de informática capazes de deslocar online vultosas somas em dinheiro, proporcionou a agilidade necessária para a movimentação financeira produto de crime. Como consequência, as organizações criminosas tornaram-se grupos econômicos e políticos consideravelmente poderosos, e assim surgiram os indicativos seguros de que a lavagem de dinheiro deveria ser considerada uma ameaça à ordem econômica mundial.
Neste passo, a estratégia inicial antilavagem criada pelos americanos ganhou interesse mundial, e no ano de 1988, a Convenção de Viena contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas estabeleceu a primeira definição mundialmente aceita do crime de lavagem de dinheiro, e impôs aos Estados aderentes a obrigação de adotar providências de natureza penal contra aqueles que praticassem mencionadas condutas. (CARDOSO, 2013, p. 22)
O Brasil sujeitou-se à Convenção contra o Tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, assinada em Viena no ano de 1988, incorporando-a ao direito interno pela promulgação do Decreto 154/91, e com isso assumiu o compromisso jurídico internacional de criminalizar a lavagem de dinheiro, levado a efeito dez anos mais tarde com a edição da Lei 9.613/98, recentemente alterada pela Lei 12.683/2012 com o objetivo de tornar mais eficiente a persecução penal.
Por decorrência, as obrigações de compliance previstas no art. 10 da Lei de Lavagem tornaram-se requisitos regulatórios das instituições financeiras, e deste modo, além da imposição de sanções administrativas no caso de descumprimento, a responsabilidade criminal do garantidor do cumprimento das normas tornaram-se uma realidade.
Concomitantemente à resoluções adotadas pela Convenção de Viena conferiu-se ao Comitê da Basileia, ainda no ano de 1988, a tarefa de editar um acordo, que introduzisse princípios básicos para os bancos privados mundiais em relação à prevenção a lavagem de valores. Dentre as orientações desse acordo conhecido como Basileia I, apontou-se para a necessidade de as instituições financeiras implantarem medidas de proteção e precaução para que o dinheiro proveniente de atos ilícitos não se misturasse ao dinheiro oriundo de fontes legais. Com isso, as medidas de compliance ganharam força e importância até então inexistente, e como resultado, todos aqueles que atuam no mercado financeiro passaram a ser treinados para conhecer melhor seu cliente e identificar as operações financeiras suspeitas de lavagem de dinheiro, e ainda para cooperarem com as autoridades competentes na investigação da prática de crimes. (CARDOSO, 2013, p. 23)
O Brasil, por sua vez, em 2013, implantou através do Banco Central do Brasil as recomendações conhecidas por Basileia III, que faz parte do esforço contínuo feito pelo Comitê da Basileia para melhorar a gestão de risco e fortalecer a transparência das instituições financeiras, não tendo sido acrescentada quanto ao compliance nenhuma recomendação digna de nota.
3 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DO CRIMINAL COMPLIANCE
A palavra compliance é originária do verbo inglês to comply, que significa cumprir ou satisfazer aquilo que foi imposto, de acordo com Coimbra e Manzi (2010, p.2). Compliance, em outras palavras, significa o dever de cumprimento, de estar em conformidade com as leis, diretrizes e regulamentos internos e externos, com o intuito de diminuir o risco ligado à reputação e o risco regulatório.
O criminal compliance, em específico, consiste na sistemática voltada a mitigar riscos à empresa relativos a crimes, como, por exemplo, a lavagem de dinheiro e a corrupção.
Diante da efervescência das transações econômicas e comerciais potencializadas pela globalização na sociedade atual, da qual emergem com frequência novos riscos tecnológicos, econômicos e sociais e, com a expansão do Direito Penal, surge a necessidade de regular esses riscos por meio de uma política de gestão eficiente, que seria o instituto do criminal compliance.
O capitalismo como uma economia de mercado orientada em função do lucro, do aumento e da acumulação do capital, acentuasse nesse contexto globalizado. Nesse ponto, caracteriza-se o que Ferguson denomina de “a grande degeneração”, em que prevalecem os interesses corporativos e individuais em detrimento de interesses coletivos, do sistema e, principalmente, das leis e instituições. [...] Isso propicia, em paralelo, o surgimento de uma economia criminosa globalizada em que, tal qual as relações comerciais legítimas, o crime passa a estar interligado em rede, afetando as atividades econômicas e políticas no mundo inteiro. Portanto, ao lado da criminalidade tradicional, há uma delinquência econômica que aumentou exponencialmente em virtude da abertura das economias, da redução das distâncias, das comunicações instantâneas, das facilidades e liberdades de trânsito de pessoas e capitais, bem como dos avanços tecnológicos colocados a serviço da moderna criminalidade. (FORIGO, 2017, p. 20)
Nessa perspectiva, torna-se imprescindível a implementação da proposta do compliance nas empresas, para que essa nova criminalidade econômica não encontre terreno fértil para se difundir ainda mais e afetar drasticamente a economia global.
No entanto, é válido destacar que não se pode confundir o compliance com o mero cumprimento de regras formais e informais, sendo o seu alcance bem mais amplo, ou seja, “é um conjunto de regras, padrões, procedimentos éticos e legais, que, uma vez definido e implantado, será a linha mestra que orientará o comportamento da instituição no mercado em que atua, bem como a atitude dos seus funcionários” (CANDELORO; RIZZO; PINHO, 2012, p. 30).
O Compliance envolve questão estratégica e se aplica a todos os tipos de organização, visto que o mercado tende a exigir cada vez mais condutas legais e éticas, para a consolidação de um novo comportamento por parte das empresas, que devem buscar lucratividade de forma sustentável, focando no desenvolvimento econômico e socioambiental na condução dos seus negócios. (RIBEIRO; DINIZ, 2015, p. 88)
Os objetivos da implantação de uma política de compliance são inúmeros; mas, entre os principais, estão: cumprir com a legislação nacional e internacional, além das regulações do mercado e das normas internas da empresa; prevenir demandas judiciais; obter transparência na condução dos negócios; salvaguardar a confidencialidade da informação outorgada à instituição por seus clientes; evitar o conflito de interesse entre os diversos atores da instituição; evitar ganhos pessoais indevidos por meio da criação de condições artificiais de mercado, ou da manipulação e uso da informação privilegiada; evitar o ilícito da lavagem de dinheiro; e, por fim, disseminar na cultura organizacional, por meio de treinamento e educação, os valores de compliance (CANDELORO; RIZZO, 2012, p. 37-38).
Frise-se que para a implementação de uma política de compliance, a empresa deverá inicialmente elaborar um programa com base na sua realidade, cultura, atividade, campo de atuação e local de operação. E uma vez implantada tal política e funcionando efetivamente, a empresa tende a obter mais confiabilidade dos investidores e maior credibilidade no mercado. Dessa forma, indubitavelmente, alcançará altos níveis de cooperação interna e externa à medida em que aufere maiores lucros, mas sempre de modo sustentável, direcionando benefícios à organização, a seus empregados e à sociedade.
Diante disso, é inquestionável que a empresa deve está preparada financeiramente para a implantação de um programa de compliance, uma vez que será necessário contratar especialistas da área, delimitar o campo específico em que atuará na empresa, investir em treinamento permanente para os seus empregados em todas as unidades, elaborar um Código de Ética que estabeleça procedimentos e as devidas punições, aperfeiçoar os seus mecanismos de controle internos e externos para aprimorar o gerenciamento dos riscos, investir em tecnologia da informação, entre outros diversos investimentos, que podem variar, a depender do formato e do objetivo de cada empresa.
Um dos maiores riscos externos que o compliance pretende minorar é a quebra da reputação, pois a sua perda provoca publicidade depreciativa, perda do rendimento, litígios dispendiosos, redução de clientela e, nos casos mais extremos, até a falência.
Doutra banda, urge salientar que a cooperação e a confiança devem está ínsitos ao desenvolvimento de um programa de compliance em determinada empresa. A cooperação, tanto no âmbito interno quanto externo, é essencial para o desenvolvimento das empresas. Internamente, gera empregados mais satisfeitos, que tendem a aumentar a produtividade e lealdade; externamente, enseja o estabelecimento de relações mais estáveis, que, em razão da reputação da empresa, criam condições que facilitam as negociações, tornando-as mais seguras e produzindo o potencial aumento dos lucros.
Com o objetivo de obter a cooperação no âmbito interno, algumas medidas são necessárias: agir de forma a diminuir os conflitos e aumentar a importância do futuro, valorizando os empregados; ter um plano de cargos e salários objetivo e automático, que possibilite visualizar a carreira no futuro; tratar de forma uniforme todos os empregados; escolher lideranças já reconhecidas pelos demais; exigir que a alta administração dê o exemplo. No âmbito externo, pode-se obter a cooperação realizando-se contratos a longo prazo; facilitando-se a negociação, quando houver uma relação de confiança entre as partes; mantendo-se interação constante com os demais atores envolvidos; investindo-se na credibilidade da marca. (RIBEIRO; DINIZ, 2015, p. 96-97)
Por outro lado, a implementação efetiva de um programa de compliance é determinante na consolidação da confiança em âmbito nacional e internacional, valor inestimável para uma empresa, uma vez que motiva a reciprocidade e suplanta métricas monetárias, deixando de ser apenas um ônus e revelando-se como a mais hábil tática competitiva de negócio.
Não obstante a necessidade de se valorizar os contornos internos e externos, é salutar que se entenda que para que haja cooperação e confiança externas é imprescindível que no âmbito interno seja operacionalizada uma efetiva mudança de pensamento, uma verdadeira alteração e aquisição de cultura por parte dos atores, o que somente ocorre no tempo próprio de cada empresa, não sendo eficiente a imposição, pois “o compliance é um estado de espírito” (CANDELORO; RIZZO, 2012, p. 36).
De mais a mais, é relevante considerar que a existência da política de compliance nas empresas possibilita que elas deixem a tradicional postura passiva diante do sistema normativo – de apenas obedecer a comandos jurídicos predeterminados e suportar as sanções em caso de descumprimento – para assumirem o papel de protagonistas, desenvolvendo programas internos destinados a promover o adequado cumprimento das normas por parte de seus órgãos e empregados, investigando irregularidades praticadas, adotando medidas corretivas, e, se for o caso, reportando os resultados às autoridades competentes.
Embora seja inquestionável que o Estado deve regular o âmbito empresarial, com a implantação e necessidade de desenvolvimento da política de compliance nas empresas surge uma nova estratégia de regular a atividade empresarial por meio da autorregulação, em que o poder público delega parte de sua função regulatória às próprias empresas e se utiliza delas para intervir de forma mais rigorosa e eficaz.
Através da delegação de parte de sua função regulatória para as próprias empresas, o poder público não cede à titularidade dessa função, pois o ente privado age de forma subordinada aos interesses predeterminados pelo Estado. Porém, o fato de que as empresas conhecem melhor as particularidades das técnicas e as especificidades da economia moderna, potencializa as devidas regulações jurídico-penais necessárias e torna esse sistema mais eficaz que a intervenção estatal. (FORIGO, 2017, p. 32)
A autorregulação é composta por quatro elementos. O primeiro elemento da autorregulação é a necessidade de que as empresas definam normas de comportamento, denominadas de códigos de conduta, boa governança, boas práticas etc. O segundo elemento diz respeito ao aperfeiçoamento dos sistemas de informação, documentação, evitando-se a compartimentalização da informação. A terceira característica consiste na designação de pessoas e órgãos pela pessoa jurídica que sejam responsáveis pelo cuidado na efetividade da organização empresarial, tais como os órgãos de criminal compliance e cumprimento dos comitês de auditoria. Por fim, o quarto elemento corresponde à exigência de um controle externo que certifique, avalie ou audite a idoneidade do sistema de autorregulação. (FORIGO, 2017, p. 34)
Nessa perspectiva, mais do que evitar a criminalidade empresarial, o compliance corresponde aos esforços adotados pela iniciativa privada para não só cumprir as exigências impostas por lei e os regulamentos relativos à atividade desenvolvida como também instituir a observância da ética e da integridade corporativa.
Depreende-se, portanto, que o objetivo fundamental do compliance é a mudança de cultura no ambiente corporativo, por meio de uma gestão empresarial baseada em valores éticos e comportamentais, em um ciclo virtuoso em direção à não tolerância ao crime.
Nesse contexto, o criminal compliance revela-se um instituto de prevenção criminal, e de controle social que atua de forma ex ante ao delito, ou seja, antes da incidência da norma penal (e, na realidade, com o objetivo de evitar a incidência dessa norma), diferentemente do direito penal tradicional que atua ex post.
Por conseguinte, no campo do criminal compliance, o direito penal adquire uma nova perspectiva. Face á grande necessidade de prevenir e reprimir a criminalidade empresarial, o poder público atribui aos agentes privados a responsabilidade de evitar, investigar e informar eventuais ilícitos praticados, através da imposição de sanções penais ou de incentivos legais. E não obstante pareça ter sido “excluído” do âmbito empresarial, o Estado continua a atuar de forma ativa na consecução da política criminal, adaptando-se ao cenário econômico-financeiro globalizado.
3.1 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA NORTEADORA DO CRIMINAL COMPLIANCE
3.1.1 LEI ANTICORRUPÇÃO Nº 12.846/2013
Essa Lei representa um marco importante no combate à corrupção no país e visa cumprir com os compromissos pactuados internacionalmente – por meio da ratificação da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, da OCDE; da Convenção Interamericana contra a Corrupção; e da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção – de responsabilizar as pessoas jurídicas por atos de corrupção pública inclusive de servidores públicos estrangeiros.
A Lei nº 12846, de 1º de agosto de 2013, foi regulamentada pelo Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015, e alterada pela Medida Provisória nº 703, de 18 de dezembro de 2015.
O diploma legal tem como objetivo impor de forma rigorosa penalidades de natureza civil e administrativa a pessoas jurídicas que estejam relacionadas à corrupção de agentes públicos e de fraudes a licitações, além de buscar fortalecer os órgãos de fiscalização para engendrar a cultura anticorrupção no mundo empresarial.
A relevância desse instrumento legal, mais do que definir a responsabilidade objetiva administrativa e civil das pessoas jurídicas pela prática de atos que atentem contra a administração pública, nacional ou estrangeira, descritos no artigo 5º da Lei, consiste no incentivo expresso e tratamento diferenciado para empresas que possuírem programas de compliance efetivos, também denominados de programas de integridade ou de conformidade.
Conforme preconiza o art. 7º, VIII, da referida Lei, serão levados em consideração na aplicação das sanções, a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica. Portanto, a existência do programa de compliance tem o condão de diminuir a pena imposta se estiverem dentro dos parâmetros estipulados pelo artigo 42 do Decreto nº 8.420/2015.
Ao estipular essa regra, o objetivo foi desenvolver efetivamente uma cultura empresarial no Brasil de autofiscalização e autocontrole para diminuir a praxe, muitas vezes institucionalizada, de que a corrupção é parte do negócio.
Esse programa de integridade previsto na Lei Anticorrupção, de acordo com Carvalhosa, segue os padrões do que foi estabelecido pela Convenção das Nações Unidas de Combate à Corrupção que determina aos Estados membros o dever de implantar medidas de prevenção à corrupção por meio de transparência contábil e auditoria interna, transparência nas relações comerciais e através de códigos de governança corporativa para a prevenção de conflitos de interesses. Esse regime de conformidade deve estabelecer um regime de auditoria interna para verificar as contas e apurar a legitimidade dos negócios jurídicos que as originaram, além de manter um sistema de análise de risco relativamente às atividades e negócios próprios da pessoa jurídica nas relações firmadas. É essencial também que essa auditoria interna mantenha um serviço de recebimento de denúncias e consequente apuração. (FORIGO, 2017, 29)
É de se ressaltar, ademais, que o decreto estabelece um tratamento diferenciado para avaliação do efetivo programa de integridade às microempresas e de pequeno porte, conforme artigo 42, § 3º do Decreto.
Observe-se que, para o programa de compliance ser considerado efetivo, ele deve se adequar à ação institucional da empresa, no seu contexto negocial, ou seja, o programa deve ser elaborado de acordo com as suas peculiaridades, assim considerado na sua dimensão, riscos e desafios.
E, vale dizer que a Lei não impõe esses comportamentos, mas os estimula com vistas à prevenção e apuração de condutas irregulares.
3.1.2 LEI DE LAVAGEM DE CAPITAIS Nº 9.613/1998
A Lei de lavagem de capitais ou a Lei de lavagem de dinheiro, Lei Federal nº 9.613/1998, com as alterações introduzidas pela Lei nº 12.683/2012, estabeleceu regras de cooperação privada, instituindo obrigações às pessoas e instituições que atuem em setores considerados sensíveis ao crime. Todas as pessoas físicas e jurídicas que exerçam, em caráter permanente ou eventual, uma das atividades elencadas no artigo 9º da Lei deverão cumprir com as obrigações relacionadas nos artigos 10 e 11.
As entidades referidas no art. 9º, nos termos do art. 10, devem armazenar informações e registros sobre seus clientes, bem como criar e manter cadastros e registros das transações que ultrapassem os limites fixados pela autoridade competente, impondo-se a elas o dever de comunicar as autoridades das atividades suspeitas de lavagem.
Assim sendo, o art. 10, ao disciplinar a adoção de políticas, procedimentos e controles internos compatíveis com seu tamanho e quantidade de operações, impõe o dever de compliance às entidades e pessoas obrigadas.
O art. 11, de seu turno, impõe a obrigação de comunicação ao COAF das movimentações que ultrapassem os limites fixados e as transações efetuadas ou propostas que constituam sérios indícios de lavagem de dinheiro.
Essas comunicações objetivam a sistematização de informações, a produção de análise de risco e a tomada de providências cabíveis por parte dos órgãos de controle e fiscalização.
O desrespeito a essas determinações legais pode implicar em responsabilização administrativa das pessoas elencadas no art. 9º e dos administradores das pessoas jurídicas, nos termos do que estabelece o art. 12 da mencionada Lei. As sanções consistem em advertência, multa pecuniária variável, inabilitação temporária para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas indicadas pela Lei cassação ou suspensão da autorização para o exercício de atividade, operação ou financiamento. Tais penalidades poderão ser aplicadas de forma cumulativa ou não, conforme o caso.
4 RESPONSABILIDADE PENAL DO COMPLIANCE OFFICER
Inicialmente, cumpre definir a figura do compliance officer, bem como suas atribuições e responsabilidades. Assim, toda empresa que vislumbre dá efetividade à sistemática do compliance em seu âmbito interno, deve ter em seu quadro funcional um profissional habilitado para atuar na disseminação e na fiscalização da prática dos comandos regulatórios tanto internos quanto externos. Trata-se o compliance officer do profissional incumbido de operacionalizar o programa de compliance de determinada empresa, em outras palavras, fazer com que a atividade empresarial esteja em conformidade com o ordenamento jurídico e com as normas que regulam os variados ramos microeconômicos.
Além da primordial atividade de garantir o cumprimento das leis, regulamentos e normas, o que evidentemente demanda uma rotina de acompanhamento periódico da legislação aplicável às instituições financeiras, deverá o compliance officer zelar pela existência de procedimentos de controles internos que compreendam programas de treinamento e autoinstrução de funcionários, assim como normas e procedimentos para as áreas operacionais e de sistemas informatizados. (CARDOSO, 2013, p. 57)
Nessa perspectiva, é imprescindível que o compliance officer detenha razoável independência e autonomia dentro da estrutura organizacional e hierárquica de uma empresa. O profissional deve possuir significativa margem de liberdade e determinadas prerrogativas para que possa exercer seu encargo com eficiência no sentido de acautelar ou resguardar a atividade empresarial da ocorrência de delitos e infrações de qualquer ordem.
É de se destacar que o compliance officer, no exercício de suas importantes funções, deve apenas se reportar ou responder apenas aos administradores, diretores, ou sócios-gerentes da empresa da qual faça parte, isto é, a esse profissional deve ser atribuída uma margem de isenção tão acentuada, que ele apenas deve se preocupar em atender às determinações e anseios da alta administração.
Geralmente, o setor de compliance, dirigido por um compliance officer, deve está situado no mesmo nível hierárquico, ou atuando em conjunto com o departamento de controle interno, ou com o departamento jurídico e de auditoria.
Como decorrência disso, é de suma importância que o compliance officer tenha acesso irrestrito a dados, informações e documentos relevantes da empresa.
É de igual modo essencial que ele tenha acesso imediato aos membros da gestão responsáveis por todos os departamentos da empresa. Isso porque, se violações legais forem encontradas, deverão ser investigadas, os fatos a ela relacionados deverão ser documentados, e o erro deverá ser corrigido, como parte da estratégia para prevenção de fraudes e crimes. (CARDOSO, 2013, p. 63)
Vale ressaltar, ademais, que as incumbências do compliance officer vão muito além do que comunicar aos órgãos externos competentes os fatos que puderem constituir-se em fundados indícios de crime. Para que a sua atuação se esgote com lisura é necessário que ele, nos termos do que determina o renovado art. 11 da Lei 9.613/98, por exemplo, dispense especial atenção às tais operações e as comunique imediatamente às autoridades competentes. “Imediatamente” implica prestar a informação ao órgão competente tão logo sejam reunidos os elementos indiciários da prática de crime, sendo prescindível aguardar a conclusão final das investigações internas.
No que tange à atuação do compliance officer na órbita das instituições financeiras, na prevenção à lavagem de dinheiro, o art. 10 da Lei de Lavagem de Dinheiro elencam algumas tarefas desse profissional, quais sejam, registrar informações relativas à identificação dos clientes, a criação e manutenção de cadastros e registros dos mesmos e das transações que ultrapassem os limites fixados, bem como, o repasse dos dados e documentos requeridos pelas autoridades. O art. 11 da aludida Lei preconiza que o dever de vigilância não é o único alvo, os bancos, especificamente, devem comunicar às autoridades competentes as movimentações financeiras que ultrapassem os limites previamente fixados, como também aquelas que indiquem sérios indícios de lavagem de dinheiro.
Nesse diapasão, vem se constatando que a presença de um compliance officer no direcionamento de um programa de compliance nas empresas da atualidade é uma imposição da economia globalizada. Sabendo-se que a criminalidade que tem o condão de influenciar na higidez das relações econômicas e na própria economia é a que se desenvolve no seio dos grandes grupos econômicos globalizados e nas grandes empresas multinacionais, objetivando desenfreadamente a detenção de poder, o sistema de criminal compliance, representado por um compliance officer, é crucial para que essa criminalidade de poder não possa encontrar terreno fértil e seja rechaçada das empresas que fazem parte da moderna conjuntura econômica globalizada.
Uma das causas para que o sistema de compliance se torne imprescindível atualmente é a valorização de uma boa reputação corporativa, que se configura como um dos principais ativos que uma empresa pode ter. “O caráter intangível de alguns fatores que compõe o valor de uma empresa, como a marca, o capital intelectual e a imagem são diretamente responsáveis por seus resultados financeiros” (CARDOSO, 2013, p. 63) e, por isso, quanto maior for a represália contra a criminalidade de poder, através do sistema de compliance, maior será a garantia de que os bens intangíveis das empresas, os quais envolvem sua reputação, serão bem tutelados.
Saliente-se, ainda, que a política de compliance tem o condão de possibilitar que os interesses da empresa cedam espaço aos interesses de terceiros, sejam esses pessoas de direito público ou privado, autoridades públicas, clientes ou acionistas. Dessa forma, tem-se que o compliance officer ao proteger os interesses da empresa em que atua, evitando, por exemplo, a ocorrência de fraudes ou danos à sua reputação, possui como foco principal de seu trabalho a proteção de riscos que possam afetar a terceiros, vítimas direta ou indiretamente de crimes. Assim sendo, ao assumir essa posição, gera para si a obrigação legal de evitar riscos que possam afetar a terceiros, e se coloca na posição de garantidor nos termos da lei penal.
Portanto, é de grande relevância a análise da responsabilidade penal do compliance officer quando um contexto criminoso resta configurado no âmbito da empresa em que exerce suas funções. São inquietos os posicionamentos a respeito, principalmente no que concerne à delimitação de como pode figurar enquanto sujeito ativo de eventuais crimes, e do elemento subjetivo de sua conduta com seus consectários.
Valendo alertar que aqui a análise não se limita apenas à sua posição como garantidor, merecendo aqui o delineamento de outras nuances teóricas que enriquecerão a abordagem e elucidarão, ao final, qual o embasamento teórico mais recomendável a adotar.
4.1 (IN)APLICABILIDADE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA
A teoria da cegueira deliberada teve seu nascedouro na Inglaterra, no julgamento do caso Regina v. Sleep, de 1861 (VALENTE, 2017), sendo acolhida e amadurecida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, tendo recebido a designação de Willful Blindness Doctrine, sendo também conhecida por Teoria das Instruções do Avestruz, Evitação da Consciência ou Ato da Ignorância Consciente.
De acordo com essa teoria, o agente, de forma deliberada, se coloca em situação de ignorância de modo consciente e voluntário, criando obstáculos para alcançar um maior grau de certeza atinente à potencial ilicitude de sua conduta. Em outras palavras, o infrator provoca o seu desconhecimento acerca do ilícito, de modo que sua ignorância deliberada passa a equivaler-se ao dolo eventual ou, até mesmo, à culpa consciente.
Os primeiros casos de sua aplicação foram nos crimes de tráfico de drogas e de contrabando, comumente praticados em território norte-americano em épocas passadas. Por exemplo, seguia-se o entendimento de que se “A” paga a “B” para levar uma mala, e “B”, intencionalmente, ignora o conteúdo desta, não importando se nela está guardado um bem ilícito, a exemplo de uma droga, deverá “B” responder criminalmente como se soubesse do conteúdo delituoso. (VALENTE, 2017)
Essa teoria encontrou forte guarida nos países do sistema common law, e pelo seu caráter flexível passou a atender satisfatoriamente às necessidades criminológicas do sistema consuetudinário.
Paulatinamente, ela foi sendo importada e aplicada pelos países do sistema romano-germânico, especialmente os latino-americanos e o espanhol. No Brasil, a jurisprudência passou a adotá-la, considerando a ignorância deliberada equivalente ao dolo eventual, de acordo com o que preconiza a teoria do assentimento (artigo 18, inc. I, parte final, do Código Penal).
Nessa perspectiva, essa teoria fundamenta a punição de quem atua de forma indiferente em relação à ilicitude do fato, assumindo o risco de produzir o resultado mediante “desconhecimento provocado”, pois chega a ignorar fatores e elementos determinantes do ilícito.
No Brasil, a primeira vez que um tribunal tratou da Teoria da Cegueira Deliberada de maneira explícita foi no julgamento da Apelação Criminal ACR nº 5520/CE pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Trata-se de acórdão que julgou recurso de gerentes de uma concessionária que teriam vendido onze automóveis aos agentes responsáveis pelo furto ao Banco Central na cidade de Fortaleza, sendo a transação feita em dinheiro em espécie.
Ao aceitar o pagamento, o juiz de primeira instância entendeu que os gerentes intencionalmente se colocado em situação de “cegueira”, ou seja, deveriam presumir que aqueles valores poderiam ter origem ilícita e se esquivado de levar a efeito a transação comercial e informado as circunstâncias suspeitas às autoridades. No entanto, segundo o juiz, eles preferiram se beneficiar daquela situação mantendo-se ignorantes acerca das circunstâncias que eram penalmente relevantes. Com isso, os gerentes foram condenados pelo crime de lavagem de dinheiro.
Em recurso, a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região reformou a decisão do magistrado, entendendo que:
“[...] a imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da doutrina americana da cegueira deliberada (willful blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente, a responsabilidade penal objetiva”. (BRASIL, 2008)
Mais recentemente a teoria da cegueira deliberada vem sendo ventilada nos processos no âmbito da Operação Lava Jato, especialmente no Juízo da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, outrora titularizada pelo juiz Sérgio Moro.
É válido trazer à baila um caso em específico de utilização da Willful Blindness Doctrine atinente ao crime de lavagem de capitais objeto de julgamento da Ação Penal nº 5023135-31.2015.4.04.7000. In casu, em breves palavras, Ivan Vernon (assessor de confiança de Pedro Correa – político) foi condenado por tal crime pelo recebimento, em conta de sua titularidade, dos repasses de propina feitos por Alberto Youssef em benefício de Pedro Correa, ou seja, este se utilizava da conta de um terceiro para se locupletar dos valores de origem ilícita depositados pelo doleiro Alberto Youssef.
Nos termos da sentença, Ivan Vernon
agiu dolosamente ao ceder sua conta para que Pedro Correa pudesse receber valores decorrentes do esquema criminoso da Petrobras. Era um assessor de confiança de Pedro Correa. É possível que não tivesse conhecimento de detalhes do esquema criminoso da Petrobras. Entretanto, o recebimento em sua conta de depósitos, em seu conjunto vultuoso, sem origem identificada e estruturados, era suficiente para alertá-lo da origem criminosa dos recursos recebidos. Isso especialmente quando tornado notório a partir de 2006 que Pedro Correa, com a cassação de seu mandato parlamentar, estava envolvido em atividades criminais. (BRASIL, 2015)
Nesse diapasão, sob os auspícios da teoria da cegueira deliberada tem-se que analisar a responsabilidade penal do compliance officer. Sabendo-se que este profissional atua no direcionamento do programa de compliance das empresas, fazendo com que elas estejam em conformidade com as leis e com as regras e regulamentos internos, é inerente às atribuições do compliance officer um caráter fiscalizador e de repressão à prática criminosa, limitando-se em determinados casos a informar às autoridades competentes a ocorrência da infração ou simplesmente os indícios da prática criminosa.
Deve-se levar em consideração também que muitas vezes os planos de conformidade elaborados pelo compliance officer vão de encontro com as estratégias e projetos dos diretores, administradores ou sócios-gerentes das empresas que envolvem riscos empresariais e econômicos, e muitos deles são colocados em prática ao arrepio da sistemática normativa, por vezes quase indetectáveis, mas que têm o condão de operar efeitos não abraçados pelo ordenamento jurídico e de influenciar negativamente na higidez da economia.
Dessa forma, por uma variedade de consideráveis motivos, ao se colocar deliberadamente numa situação de ignorância quanto à atividade empreendedora de uma empresa, por exemplo, que não esteja dentro dos padrões normativos internos e externos, relegando a segundo plano seus deveres fiscalizatórios e repressivos, poder-se-ia considerar que o compliance officer estaria agindo com dolo eventual, incidindo, assim, a teoria da cegueira deliberada.
Para a teoria do dolo, o dolo eventual é subespécie do dolo indireto. O dolo eventual é a modalidade em que o agente não quer o resultado por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo. A sua existência se deve à previsão do art. 18, I, parte final, do Código Penal, que consubstancia a teoria do assentimento, conforme dito alhures.
Segundo Cleber Masson (2019, p. 236),
Deve-se ao alemão Reinhart Frank a formulação de um princípio, rotulado de teoria positiva do conhecimento, que é útil como critério prático para identificar o dolo eventual. Para esse postulado, há dolo eventual quando o agente diz a si mesmo: “seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei”, revelando a sua indiferença em relação ao resultado.
Por conseguinte, abstendo-se de adotar uma postura diligente e consentânea com a função com a qual se responsabilizou, colocando-se deliberadamente num estado de “cegueira” frente a uma conjuntura aparentemente ilícita, o compliance officer poderá, de acordo com a teoria em comento, ser responsabilizado a título de dolo eventual pelo mesmo crime praticado mediante dolo direto pelo empregado ou administrador, por exemplo, que deveria atuar em observância à lei e ao regramento da empresa.
Todavia, há algumas problemáticas em torno da viabilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada.
Cumpre esclarecer que no Direito Brasileiro, pela definição do Código Penal, o crime é considerado doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Essa previsão legal equipara o dolo direto ao dolo eventual.
Como já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça:
A doutrina penal brasileira instrui que o dolo, conquanto constitua elemento subjetivo do tipo, deve ser compreendido sob dois aspectos: o cognitivo, que traduz o conhecimento dos elementos objetivos do tipo, e o volitivo, configurado pela vontade de realizar a conduta típica. O elemento cognitivo consiste no efetivo conhecimento de que o resultado poderá ocorrer, isto é, o efetivo conhecimento dos elementos integrantes do tipo penal objetivo. A mera possibilidade de conhecimento, o chamado “conhecimento potencial”, não basta para caracterizar o elemento cognitivo do dolo. No elemento volitivo, por seu turno, o agente quer a produção do resultado de forma direta - dolo direto - ou admite a possibilidade de que o resultado sobrevenha - dolo eventual. (BRASIL, 2008)
Segundo Cleber Masson, tais elementos se relacionam em três momentos distintos e sucessivos.
Em primeiro lugar, opera-se a consciência da conduta e do resultado. Depois, o sujeito manifesta sua consciência sobre o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado que em decorrência dela será produzido. Por fim, o agente exterioriza a vontade de realizar a conduta e produzir o resultado. Basta, para a verificação do dolo, que o resultado se produza em conformidade com a vontade esboçada pelo agente no momento da conduta. (MASSON, 2019, p. 234)
Admite-se, porém, que, ao se tratar de dolo eventual, há evidente arrefecimento da configuração dos elementos cognitivo e volitivo quando comparado com o dolo direto de primeiro grau. Assim, sabendo-se que o conhecimento das circunstâncias do fato típico é indispensável para a imputação a título de dolo — seja direto ou eventual —, questiona-se seu emprego na teoria da cegueira deliberada nos casos em que não se tem o conhecimento efetivo das circunstâncias do fato típico, ainda que esse desconhecimento seja provocado pelo agente.
Assim, esse entendimento faz configurar os contornos de uma responsabilidade penal objetiva, a qual é rechaçada pelo Direito Penal pátrio.
Demais disso, a teoria da cegueira deliberada esbarra nos consectários do princípio da legalidade, quais sejam, proibição de analogia e de intepretação extensiva in malam partem.
Isso porque a construção jurisprudencial da teoria da cegueira deliberada nada mais é que uma interpretação extensiva do conceito de dolo, pois, uma vez que o dolo é conceituado na parte geral do Código Penal como conhecer querer, não pode o intérprete da lei considerar um eventual não conhecimento de determinado pressuposto fático, por qualquer razão que seja, como conhecimento para fundamentar um decreto condenatório.
Sabe-se, portanto, que a proibição da interpretação extensiva, assim como ocorre na proibição analógica, é uma forma de evitar a criação de preceitos que ampliem de alguma maneira a punibilidade do agente, como os conceitos de tentativa (art. 14, II, CP), participação (art. 29 do CP) e dolo (art. 18, I, CP), por isso, a aplicabilidade da teoria da cegueira deliberada restaria prejudicada.
Vale ressaltar, ainda, que a aludida teoria representa incompatibilidade com o erro de tipo previsto no art. 20 do Código Penal. O conceito de dolo, definido como conhecer e querer as circunstâncias de fato do tipo legal, está ligado à relação de exclusão lógica entre conhecimento e erro: se o dolo exige conhecimento das circunstâncias de fato do tipo legal, então o erro sobre tais circunstâncias exclui necessariamente o dolo. Em qualquer caso, erro de tipo significa defeito de conhecimento do tipo legal e, assim, exclui o dolo, porque uma representação ausente ou incompleta não pode informar o dolo de tipo.
A única diferenciação existente no artigo 20 do CP diz respeito à evitabilidade ou não do erro, uma vez que, quando evitável, ou seja, quando o erro ocorre por falta de prudência do autor que não tomou as cautelas necessárias para ter a plena representatividade de um fato juridicamente relevante, o agente deverá responder a título de culpa, caso haja previsão legal para tanto.
Acontece que, como já dito, o artigo não traz condicionantes para a aplicação do erro de tipo em determinadas causas de desconhecimento, mesmo quando este desconhecimento se deva única e exclusivamente ao próprio agente – situação de cegueira deliberada.
Sem embargo, é evidente que a relativização da norma, afastando-a com o intuito de fundamentar uma punição a título de dolo – ainda que eventual – ao agente que age dessa maneira, geraria uma nítida violação aos princípios basilares do Direito, como o da legalidade, consistente na realização de uma interpretação extensiva ou na analogia in mallam partem, conforme já explanado anteriormente.
Constata-se, por conseguinte, o cenário nebuloso no qual desponta a teoria da cegueira deliberada no ordenamento jurídico pátrio, devendo-se ter muita cautela para que não se abra espaço para a responsabilidade objetiva, que é manifestamente combatida pelo Direito Penal no Brasil e em diversos outros países. Além disso, existe uma linha tênue entre o dolo eventual e a culpa consciente, o que faz com que a aplicação da teoria da cegueira deliberada se torne temerária, reclamando um discernimento mais aguçado do operador do Direito.
Todavia, destaca-se que não se sustenta a impossibilidade de aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no ordenamento jurídico, apenas reforça-se a necessidade de uma legislação que autorize a sua aplicação, não podendo essa incumbência ficar a cargo do Judiciário.
4.2 PRINCÍPIO DA CONFIANÇA COMO LIMITADOR DO DEVER DE CUIDADO DO COMPLIANCE OFFICER
Em que pese a teoria da cegueira deliberada atribuir a prática de um crime a título de dolo eventual mediante a autocolocação em uma situação de ignorância, o princípio da confiança impõe limite à reponsabilidade penal ao permitir a minoração do dever de cuidado.
Considera-se que, à luz do ordenamento jurídico, a confiança afigura-se como um norteador da ação humana, pois, com o caráter de um princípio geral de direito, ingressa pelas lacunas axiológicas do ordenamento e, com sustentáculo na obrigatoriedade das leis (art. 3.º da LINDB), passa a irradiar como um princípio (da confiança; da não desconfiança) – malgrado haja dissensão sobre sua força principiológica –, preponderantemente sobre dois ramos jurídicos: (i) no direito civil, como cláusula geral, consubstanciada no princípio da boa-fé, destinando-se à interpretação dos negócios jurídicos; e (ii) no direito penal, como princípio de imputação em delitos negligentes, incidindo, no caso concreto, com uma função interpretativa e delimitadora do dever de cuidado, em especial da previsibilidade.
De acordo com esse princípio, todo aquele que se comporta dentro dos limites do cuidado objetivamente exigido ou do risco permitido, pode confiar que os outros que se encontram nas mesmas circunstâncias ou no mesmo contexto também atuarão cuidadosamente, seguindo as regras de experiência, de sorte que sua aplicação exclui a responsabilidade dos agentes quanto aos fatos que se situam fora do dever concreto que lhes é exigido no momento da ação, à luz da doutrina finalista. (VALENTE, 2016)
No que tange à concepção funcionalista e à imputação objetiva na teoria do delito, o princípio da confiança incide como manifestação do risco permitido ou de exclusão do risco proibido. Nessa perspectiva, é válido colacionar as precisas palavras de Cleber Masson (2019, p. 215):
Dentro do conceito de risco permitido se insere o princípio da confiança. De acordo com esse princípio, não pratica conduta típica quem, agindo de acordo com as regras legais, envolve-se em situação em que terceiro, descumprindo com o seu dever de cuidado, permite a produção do resultado. [...] Destarte, há confiança de que a conduta de terceiros, realizada na sequência, bem como a conduta anterior, será conforme ao Direito, de forma que, se essa expectativa não se realizar, será atípica a conduta daquele que age corretamente.
Salienta-se que, no cenário penal nacional, apresenta a confiança as mais variadas nuanças: (i) como princípio geral de direito; (ii) como um dos fundamentos da intervenção penal, lastreada em valores éticos e na solidariedade, viabilizando contatos sociais de caráter anônimo e estimulando prestações de alto valor que seriam impossíveis de ser firmadas de outra maneira, sobretudo no direito penal de trânsito, no direito penal médico e direito penal econômico e empresarial – no qual é possível a imputação a partir de programas corporativos e do “criminal compliance”; e (iii) é imbricada aos princípios constitucionais da intranscendência penal e da individualização da pena. (VALENTE, 2016)
Por conseguinte, sabendo-se que o criminal compliance destina-se a estabelecer, desenvolver e manter um programa de integridade em uma empresa, e como consequência criar padrões éticos e estimular condutas condizentes com a sistemática legal e com os regramentos internos, devendo todos os profissionais ou terceiros envolvidos seguirem tais diretrizes, é de se presumir e de se confiar que, após o implemento dessa “política”, todos os que são ligados direta ou indiretamente ao programa de compliance ajam em conformidade com o arquétipo normativo estabelecido.
Essa confiança, obviamente, deve advir de operadores de criminal compliance comprometidos, seguros e conscientes de que suas atribuições estão sendo exercidas adequadamente e de acordo com o que deles se espera.
Sendo assim, no que tange à órbita de atuação do compliance officer, o princípio da confiança pode ser aplicado à medida em que mesmo tendo colocado em prática toda a orientação, divulgação, capacitação e estímulo ao cumprimento de regras e padrões, o compliance officer é surpreendido por desvios de conduta, atos ilícitos, práticas corruptas etc. Assim, ele não pode ser responsabilizado por condutas desvirtuadas de suas orientações acreditando que não aconteceriam após a operacionalização de um trabalho sério.
Dessa forma, reclama o princípio da confiança que o compliance officer seja isento de responsabilização ao limitar o dever de cuidado que é exigido de toda conduta, não permitindo que a ele seja imputado sequer o crime na modalidade culposa. Tal princípio também se manifesta excluindo o risco proibido ou abonando o risco permitindo, de acordo com a teoria da imputação objetiva.
Nessa perspectiva, é muito pertinente colacionar um julgado do Supremo Tribunal Federal de um caso emblemático em que foi reconhecido e aplicado princípio da confiança:
Homicídio culposo. Acidente em parque de diversões. Imputação desse evento delituoso ao Presidente e Administrador do Complexo Hopi Hari. Inviabilidade de instaurar-se persecução penal contra alguém pelo fato de ostentar a condição formal de “Chief Executive Officer” (CEO). Precedentes. Doutrina. Necessidade de demonstração, na peça acusatória, de nexo causal que estabeleça relação de causa e efeito entre a conduta atribuída ao agente e o resultado dela decorrente (CP, art. 13, “caput”). Magistério doutrinário e jurisprudencial. Inexistência, no sistema jurídico brasileiro, da responsabilidade penal objetiva. Prevalência, em sede criminal, como princípio dominante do modelo normativo vigente em nosso País, do dogma da responsabilidade com culpa. “Nullum crimen sine culpa”. Não se revela constitucionalmente possível impor condenação criminal por exclusão, mera suspeita ou simples presunção. O princípio da confiança, tratando-se de atividade em que haja divisão de encargos ou de atribuições, atua como fator de limitação do dever concreto de cuidado nos crimes culposos. Entendimento doutrinário. Inaplicabilidade da teoria do domínio do fato aos crimes culposos. Doutrina. “Habeas corpus” deferido. (BRASIL, 2017) (grifo nosso)
4.3 COMPLIANCE OFFICER COMO GARANTIDOR FACE AOS CRIMES OMISSIVOS
Inicialmente, é importante que se exponha o que é omissão penalmente relevante, que está estampada no art. 13, §2º, do Código Penal, nos seguintes termos: “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”.
Conforme elucida Cleber Masson (2019, p. 208),
o dispositivo é aplicável somente aos crimes omissivos impróprios, espúrios ou comissivos por omissão, isto é, aqueles em que o tipo penal descreve uma ação, mas a inércia do agente, que podia e devia agir para impedir o resultado naturalístico, conduz à sua produção. [...] Esse é o significado da expressão “penalmente relevante”: a omissão que não é típica, por não estar descrita pelo tipo penal, somente se torna penalmente relevante quando presente o dever de agir.
O art. 13, §2º, do Código Penal elenca em suas alíneas hipóteses de dever de agir, quais sejam, aquele que tenha por lei obrigação de cuidado, proteção e vigilância; de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; e com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
Para este trabalho só interessam as primeiras duas hipóteses. A primeira delas trata-se do dever legal, relativo às pessoas que, por lei (em sentido amplo), têm a obrigação de impedir o resultado. Por outro lado, no que tange à segunda hipótese, a expressão “de outra forma” significa qualquer obrigação de impedir o resultado que não seja decorrente da lei. É o que se convencionou chamar de “garante”, ou “dever de garantidor da não produção do resultado naturalístico”.
De acordo com Francisco Assis Toledo (2007, p. 118),
A posição de garante surge para todo aquele que, por ato voluntário, promessas, veiculação publicitária contratualmente, capta a confiança dos possíveis afetados por resultados perigosos, assumindo, com estes a título oneroso ou não, a responsabilidade de intervir, quando necessário, para impedir o resultado lesivo.
Com base nessas premissas, o compliance officer pode ser responsabilizado por um crime omissivo quando tenha por lei obrigação de cuidado, proteção e vigilância, a exemplo da lei anticorrupção e da lei de lavagem de dinheiro – que estipulam como necessário programa de compliance nas empresas, bem como a obrigação de comunicar ao COAF movimentações e transações bancárias que ultrapassem os limites fixados, ou quando de outra forma assume a responsabilidade de impedir o resultado, na hipótese, por exemplo, de contratos baseados em regulamentos internos.
Por outro lado, afora a previsão legal, valendo-se de outras formas de vinculação, pode-se considerar o compliance officer como garante ou profissional que tem o dever de garantidor da não produção do resultado naturalístico.
Por questões óbvias a omissão penalmente relevante somente poderá ser punida a título de dolo ou culpa, não sendo exigível do omitente-garantidor que efetivamente evite o resultado, mas que aja visando evita-lo. Isto é, qualquer outro processo de imputação que não siga esse modelo representará uma indesejável e excessiva punição. (CARDOSO, 2013, 160)
Vale ressaltar que essa posição de garantidor decorre da estreita ligação preexistente entre o omitente e o bem jurídico tutelado. Dessa forma, é preciso que o autor não apenas possua a posição de garante, mas que também tenha capacidade de ação, isto é, é necessário que detenha condições materiais de evitar o resultado.
Além disso, é de se destacar que a existência de uma relação contratual não tem o condão de sustentar unicamente o dever de garante. Aliado a isso deve existir uma peculiar circunstância de confiança de que a intervenção do garante será tempestiva e pertinente. O compliance officer enquanto garantidor faz configurar a convicção nos demais profissionais a ele vinculados de que crimes ou outros atos ilícitos não serão cometidos na órbita da empresa. Em outras palavras, teria ele uma relação tão próxima com a fonte de perigos, que essa função de confiança é enxergada inevitavelmente, ínsita ao conteúdo material que fundamente o dever jurídico de garantidor.
No que diz respeito à teoria material-formal, que explica o dever jurídico das posições de garante, os deveres de guarda ou assistência em face de uma fonte de perigos desdobram-se em: I) “ingerência” – que consiste no dever de impedir a ocorrência do resultado em decorrência de uma ação anterior perigosa; II) o dever de fiscalização de fontes de perigo no âmbito de domínio próprio; III) o dever de garante frente à atuação de terceiros. (CARDOSO, 2013, p. 166).
De mais a mais, é inerente ao compliance officer o perfil descisório, pois é deste profissional a incumbência em avaliar a natureza do risco na omissão dos deveres de compliance, assim como a decisão sobre o que levar ao conhecimento da alta direção da empresa. Além disso, o compliance officer deve contar com experiência em procedimentos de investigação. Esses atributos devem está presentes nestes profissionais e têm como escopo possibilitá-los ampla possibilidade de ação diante das situações de suspeita de crimes ou outros atos ilícitos.
Nesse diapasão, para que se tenha a responsabilização do compliance officer por crime omissivo, há que se levar em consideração as nuances da imputação objetiva, mais especificamente, qual o nível de contribuição do compliance officer na criação do risco proibido ao não atuar conforme o esperado.
Deve-se ter um grau de certeza significativo quanto à comprovação de que, se a conduta esperada por parte do compliance officer tivesse sido praticada, o resultado não teria sido produzido. Se tal comprovação não obtiver êxito e a dúvida persistir, ela deverá ser interpretada a favor do compliance officer, a quem não será possível atribuir a responsabilidade por meio da imputação objetiva.
Nessa esteira, se o compliance officer, em razão do papel de garantidor, não age com liame subjetivo com o agente criminoso, mas ainda assim contribui para a prática criminosa no âmbito da empresa – por meio de sua conduta omissiva – não minorando o risco de verificação do resultado típico, será responsabilizado como autor do crime.
No que tange às condutas punidas pela Lei nº 9.613/98, haverá a possibilidade de imputação pela conduta omissiva dolosa, mas quanto à omissão culposa, o compliance officer será isento de responsabilização penal face à atipicidade da conduta culposa relativa à lavagem de dinheiro.
5 CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, depreende-se que a política de compliance é de extrema importância para a nova conjuntura empresarial, econômica, e financeira da atualidade. A sistemática do compliance preserva a higidez da economia e tenta resgatar ou inaugurar um novo cenário em que a ética, a transparência, a cooperação e a confiança sejam a tônica nesse emaranhado de relações intercontinentais marcadas pelos mais diversos interesses e pelos surpreendentes avanços tecnológicos.
O compliance, que surgiu e se desenvolveu como represália à prática de lavagem de dinheiro – que fortalecia o tráfico de drogas e o terrorismo, passa a ser hoje de crucial importância para que se previna quaisquer tipos de atos ilícitos no âmbito da maioria das empresas, que praticados em cadeia podem colapsar todo um sistema comercial, econômico e político, como se observa no Brasil com o desenrolar da Operação Lava Jato.
Como paradigmas de imposição e de estímulo à prática do criminal compliance pelas empresas, estão a Lei de lavagem de dinheiro e a Lei anticorrupção, que em poucos dispositivos dispõe de obrigações para aqueles que exercem as funções do compliance officer e estabelecem normas de estímulo para a adoção comprometida da política de compliance.
Nessa perspectiva, como fora abordado, desponta como de muita relevância a existência do compliance officer, o qual deve está incumbido de operacionalizar o programa ou a política de compliance, exercendo atribuições de significativa envergadura, mormente no que diz respeito à prevenção contra a prática de crimes que envolvam direta ou indiretamente a empresa.
Assim sendo, no que tange à sua responsabilização penal face a desvios de sua própria conduta, levando-se em consideração o que já fora abordado, é salutar a aplicação do coerente e instigante princípio da confiança, o qual limita o dever de cuidado do compliance officer, quando este eventualmente venha a cometer uma conduta culposa relativa a seus deveres e obrigações concernentes a um programa de integridade.
Devendo ser aplicadas também, por outro lado, para fins de responsabilização penal do compliance officer, as consequências da prática omissiva de crimes face ao dever de garantidor deste profissional.
E em razão das várias problemáticas que se alojam em torno da teoria da cegueira deliberada, não é prudente sua aplicação em todo e qualquer caso, necessitando, ainda, de seu amadurecimento pela dogmática penal pátria.
REFERÊNCIAS
BRASIL. 13ª Vara Federal da Comarca de Curitiba. AP n. 5023135-31.2015.4.04.7000. 2015. Disponível em: <https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtValor=50231353120154047000&selOrigem=PR&chkMostrarBaixados=&todasfases=&selForma=NU&todaspartes=S&hdnRefId=&txtPalavraGerada=&txtChave=&numPagina=1>. Acesso em: 08 dez. 2019.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm> Acesso em: 08 dez. 2019.
BRASIL. Lei nº 9.613/1998, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 3 mar. 1998. Disponível em:<http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L9613.htm>. Acesso em 08 dez. 2019.
BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1 ago. 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 08 dez. 2019.
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Graduado em Direito pelo Centro Universitário Facol - UNIFACOL. Advogado entre junho de 2018 e setembro de 2019. Assessor de Magistrado do TJPE. Pós-graduado em nível de especialização: Direito Penal e Processual Penal - UNIFACOL
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, JORGE HENRIQUE DA SILVA. Criminal compliance, responsabilidade penal do compliance officer e o ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 mar 2023, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61225/criminal-compliance-responsabilidade-penal-do-compliance-officer-e-o-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 nov 2024.
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