1.INTRODUÇÃO
A medida de segurança é um instituto com previsão em dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal. As nuances do referido mecanismo jurídico representam ponto crucial do debate sobre a relação entre crime e loucura no ordenamento brasileiro. No entanto, tão nítida quanto a importância do tema é, também, a incipiente produção nos campos do direito sobre questões mais aprofundadas acerca das tais medidas.
A impressão não é exclusiva e nem original deste trabalho, queixa repetida dos autores que trabalham com o este assunto é, justamente, a lacuna de maiores reflexões sobre o referido instituto jurídico (CARVALHO, 2004, p.618).
O obstáculo é também incentivo. Sendo assim, vale o encaminhamento de algumas observações iniciais, para que seja possível, enfim, desaguar nessa espécie de sanção absolutamente peculiar.
Mas, afinal, por que a discussão sobre loucura resulta em tantos conflitos para o direito, em especial, para o direito brasileiro? De onde deve partir essa discussão agora que já feito um histórico sobre a construção e sobre o controle da loucura? Por que a medida de segurança representa uma contradição e, ao mesmo tempo, uma demonstração de força do direito penal?
A partir do século XIX, juristas discutiam as ideias de Lombroso sobre o delito e, mais importante, sobre o delinquente. Em 1871, o marco da criminologia, L’Uomo delinquente, de autoria deste italiano, é publicado.
No Brasil, nesse período, estava sendo realizada uma reflexão de ordem higiênica sobre as prisões. A atmosfera lombrosiana, por assim dizer, é importante para que se entenda que, no período histórico em comento, o indivíduo que cometia um crime era visto como ser atingido pela anormalidade (RAUTER, 2003, pp. 30-34).
Nota-se um avanço do discurso médico nos debates criminológicos a partir dos primeiros anos do século XX, graças a esse tipo de pensamento foram construídas ligações entre determinadas doenças ou alterações biológicas e o crime. Tentava-se fazer uma ponte que ligasse diretamente, uma anomalia biológica e a prática de uma conduta criminosa. Nos próximos tópicos, inclusive, serão feitos maiores apontamentos sobre esse tipo de reflexão.
Não é de se espantar, então, que mulheres acusadas de crimes e homossexuais tenham sido objetos de estudos determinados a comprovar a interferência hormonal, por exemplo, nos moldes do caráter do indivíduo (RAUTER, 2007, pp. 39-40).
Com a associação entre crime e doença, a prisão é, pois, também, um benefício concedido ao criminoso para que este seja tratado e, com sorte, curado. Vale a menção de que esse disfarce da punição ou do tratamento como um instrumento que, na verdade, seria revertido em uma vantagem para o indivíduo alvo do procedimento não é nenhuma novidade histórica.
O discurso de que a pena ou a cura são caminhos não só obrigatórios, como também, no fim das contas, bondosos, já são cartas marcadas no jogo que tem como objetivo excluir os sujeitos indesejáveis.
Para cumprir com o intento acima, parece inafastável a necessidade de traçar um rápido panorama acerca da responsabilidade penal[1] nas codificações brasileiras.
O Código do Império, de 1830, foi a primeira codificação penal brasileira. No art. 10, 2º, da referida legislação, ficou determinado que não seriam julgados como criminosos os “os loucos de todo o genero, salvo se tiverem lucidos intervallos, e nelles commetterem o crime”. Esse Código recebeu as influências liberais das codificações europeias da época, sendo assim, a responsabilidade estava intrinsecamente ligada ao poder de agir segundo o livre arbítrio (RAUTER, 2007, pp. 40-44).
O Código de 1830, conforme art. 12 da legislação, entendia que o louco que cometesse um crime seria enviado para um estabelecimento próprio para o caso ou para a respectiva família, o que ficaria a critério do juiz.
Mas a psiquiatria ganhava força e chamava para si a responsabilidade (e o poder) sob os cuidados reservados à loucura. Foi narrado no capítulo anterior que o primeiro hospício do Rio de Janeiro nascia em 1841, a medicina tomava fôlego em meio a debates sobre higienização e saúde pública fazendo uso, claro, do reconhecimento trazido pelo discurso científico.
Dessa forma, há a construção de um mecanismo capaz de alcançar, em terras brasileiras, o controle dos indivíduos reputados como loucos. A exclusão daqueles marcados pela loucura estava, essencialmente, ligada à exclusão da doença, mal a ser rejeitado assim como o crime. A justificativa legal para esse isolamento surge apenas em 1903, após, portanto, a implantação do Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, de 1890. A lei de 1903 conseguiu o intento narrado através da “lei dos alienados”
Tendo em mente o roteiro histórico já trazido para essa discussão, não é difícil entender que a psiquiatria, como manifestação do poder médico (técnico, portanto) de reconhecimento e de tratamento da loucura ofereceu ao Estado um artifício precioso para a exclusão desses indivíduos indesejáveis. A internação como uma necessidade, o hospício como local adequado, a punição como tratamento, novamente, posicionamentos assim são construídos de modo a naturalizar tais estruturas (RAUTER, 2007, pp. 44-45).
Enquanto o código penal de viés liberal afastava a responsabilidade da loucura, o aprofundamento dos estudos na área da psiquiatria trazia novos questionamentos, dentre eles, surgiu a reflexão sobre a possível existência de diferentes níveis de loucura[2]. Cada vez mais, ficava evidente que para determinar quais os limites mais apropriados entre a responsabilidade criminal e a loucura, era imprescindível um parecer médico.
A relação entre psiquiatria, direito e responsabilidade criminal desperta questionamentos mais complexos do que, talvez, possa ser esperado. Perguntas feitas com maior frequência a partir de críticas aos psiquiatras, deixam a interrogação sobre quão abusiva é a conduta de afastar a responsabilização do indivíduo, de um lado, taxando-o como doente, e direcionando a ele um tratamento, de outro lado (RAUTER, 2007, p. 45).
Retomar o cenário de conflito entre o mundo jurídico e o mundo psiquiátrico, as críticas à psiquiatria no século XIX, ajuda a entender o porquê de não ser possível ver, no Código Penal de 1890, as inovações psiquiátricas correspondentes à época.
O art. 27, §§ 3º, 4º, da codificação de 1890, diz que não seriam considerados criminosos, respectivamente, os que fossem atingidos por imbecilidade nativa, enfraquecimento senil, absolutamente incapazes; aqueles que estivessem em completa privação dos sentidos e da inteligência no momento do crime.
RAUTER (2007, p.45) diz que o referido Código recebeu as críticas tanto dos setores médicos quanto dos juristas que se posicionavam ao lado dos psiquiatras. Ora, os quadros relacionados a um transtorno psiquiátrico não são sinônimos de uma privação de inteligência, além do mais, o abalo psíquico pode ser temporário, dessa forma, a expressão usada pela legislação chegou ao ordenamento já acompanhada de fortes (e consistentes) ressalvas.
Poder-se-ia imaginar que a presença médica seria refletida como uma rota alternativa ao encarceramento promovido pelo judiciário. Acontece que, ao que parece, a psiquiatria, como diz RAUTER “buscou sempre se apresentar como aliada no fortalecimento da repressão e do controle social” (RAUTER, 2003, p.47). O contexto médico que circundava a aplicação do Código Penal de 1890 mostrava que o campo de domínio do direito penal e da medicina não eram exatamente opostos, não se tratava, pois, de uma exclusão imediata.
Como narrado anteriormente, nem sempre essa relação entre o jurídico e o médico ocorria de forma organizada ou alheia a conflitos. O manicômio judiciário, nesse contexto, apresenta-se como um resultado da miscelânea de conceitos envolvidos. O Decreto Lei nº 1.132 de 1903 mostrou-se como uma sinalização de que os cuidados dos alienados, nas palavras da legislação, poderiam ser concentrados no âmbito médico (RAUTER, 2007, p.49).
Mas a premissa não se sustentou quanto ao louco criminoso, o manicômio judiciário não poderia ser encarado nem apenas como prisão e, tampouco, como hospital, o estabelecimento não era nem uma coisa nem outra, e, ao mesmo tempo, era um pouco de cada. Uma instituição que não era inovadora, mas também não era uma cópia exata do cárcere e nem uma reprodução fiel do nosocômio.
Os vislumbres legais que surgiram em sequência continuaram com a ideia de que o psiquiatra não reinaria sozinho quanto ao controle do louco criminoso, a presença e o poder do juiz de direito permaneceriam presentes. É o caso de citar, nesse sentido, o Decreto nº 17.805 de 1927, mais especificamente, o respectivo art. 109, que trata dos manicômios judiciários.
O dispositivo em questão abarcava os indivíduos que, durante a pena, apresentassem alguma perturbação mental (ou afecção mental) ou que por igual motivo fossem isentos de responsabilidade penal, com destaque para a redação do inciso III, do artigo, que firma como critério o discernimento do juiz acerca dos perigos que aquele indivíduo oferece para a segurança pública.
As medidas de segurança, como instituto que teria como objetivo contornar limites da responsabilidade penal, encontram referência desde o direito romano, seja para lidar com o menores incapazes, seja para lidar com os indivíduos loucos.
A ferramenta em questão anunciava-se como uma forma de defender a sociedade de sujeitos vistos como perigosos e propagadores de maus exemplos. A tal defesa, não necessariamente, estaria relacionada ao cometimento de um crime, não ainda, pelo menos (MARCÃO, 2010, p.307).
No Brasil, depois dos questionamentos dos Códigos Penais de 1830 e de 1890, o Código Penal de 1940, e também o Código de Processo Penal, de 1941, chegaram à cena para tentar responder algumas dessas questões levantadas (DE TILIO, 2006, p.206).
A parte geral do Código Penal como se tem hoje, foi objeto de reforma em 1984. A exposição de motivos da codificação, chega a anunciar uma correspondência entre a legislação e as tendências da época, que tratavam da desinstitucionalização, conforme item 91 da referida exposição.
As intenções da codificação, em termos de política criminal, no entanto, não parecem tão confiantes na tal desinstitucionalização. Na mesma exposição de motivos, item 59, fica evidenciada a preocupação em libertar “determinadas categorias de agentes, dotados de acentuada periculosidade”.
2. MEDIDA DE SEGURANÇA COMO ESPÉCIE DO GÊNERO SANÇÃO PENAL – REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DO INSTITUTO
Questão fundamental quando se trata da medida de segurança é o reconhecimento da sua compatibilidade com o gênero sanção penal. Alguns autores posicionam-se no sentido de que o instituto que dá nome a este capítulo não compartilha a natureza de uma sanção. Para essas vozes, a medida de segurança funcionaria como uma espécie de tratamento, e por ser tratamento, lhe faltaria o caráter manifestamente punitivo da pena.
Seguindo esse raciocínio, diz FRAGOSO (1984, p.3):
A pena, em consequência, se funda na justiça, como justa retribuição, ao passo que a medida de segurança se funda na utilidade. A pena é sanção e se aplica por fato certo, o crime praticado, ao passo que a medida de segurança não é sanção e se aplica por fato provável, a repetição de novos crimes. A pena é medida aflitiva, ao passou que a medida de segurança é tratamento, tendo natureza assistencial, medicinal ou pedagógica.
O entendimento acima exposto aparenta não ser compartilhado por muitos dos autores que escrevem sobre direito penal e disciplinas correlacionadas. ZAFFARONI e PIERANGELI, na mesma linha de outros, classificam a medida de segurança e a pena como espécies do gênero sanção penal. Os mencionados autores fazem também um destaque crucial: chamar uma pena por outro nome é um eufemismo e, acima de tudo, um grave erro (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2015).
Ainda com base nos doutrinadores em comento, pode-se observar que esse disfarce da medida de segurança, numa só levada, fere de morte a segurança jurídica, viola um sem número de garantias do indivíduo que sucumbe à força estatal (como será melhor delineado nos próximos parágrafos) e oculta o caráter punitivo e, sendo assim, a feição retributiva do instituto jurídico estudado.
E, como se as intempéries jurídicas e sociais já não fossem suficientes, a medida de segurança entoa um discurso de tratamento do sujeito em questão. Um tratamento coercitivo e, como já exaustivamente discutido, sancionatório. Ao que tudo indica, há uma contradição – técnica e lógica - entre as concepções de punição e de tratamento.
Ademais, todas essas escolhas problemáticas que desenham a medida de segurança acabam, como anunciado previamente, por impedir que os indivíduos por ela alcançados tenham uma maior segurança em matéria de garantias individuais.
Afinal, em que pese o avanço proporcionado, ao menos teoricamente, pela Constituição de 1988 quanto à tutela penal, a medida de segurança não foi contemplada da mesma forma pelo texto constitucional, deixando, nesse aspecto, a marca da omissão (CARVALHO, 2013, p. 513).
Ou seja, apesar dos inúmeros dispositivos que fazem referência aos direitos dos presos, em matéria de medida de segurança a Carta de 88 não foi tão expressa. O raciocínio construído neste tópico serve, então, para exemplificar o prejuízo de não dar a classificação correta à medida de segurança.
Reconhecer que se trata de uma espécie de sanção penal é dizer também que o instituto precisa passar pelo filtro constitucional, é dizer que os indivíduos com transtornos psiquiátricos sob custódia do Estado, em razão de medida de segurança, fazem jus às garantias constitucionais e legais destinadas à pena.
Como destaca CARVALHO (2013, pp. 512-513), o art. 97, § 1º, do Código Penal, diz expressamente que a internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, até que seja verificada a cessação da periculosidade. O dispositivo, em sua parte final, faz referência a um prazo mínimo, mas não a um prazo máximo.
Ora, trata-se de verdadeira possibilidade de existência de uma sanção perpétua, capaz de ultrapassar, até mesmo, o tempo que o indivíduo alcançado pela medida de segurança passaria preso, se imputável fosse.
Enquanto isso, a Constituição Federal, em seu art. 5º, XLVII, b, preocupa-se em deixar claro que não haverá pena de caráter perpétuo. Exemplo prático do contraste anteriormente descrito. Reconhecendo o contrassenso, o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado pela limitação temporal de trinta anos para a medida de segurança. No mesmo embalo, está boa parte dos posicionamentos doutrinários, trazendo à tona, além dos dispositivos da Constituição Federal, a aplicação de dispositivos infraconstitucionais, como o art. 75, do Código Penal, às medidas de segurança.
Ainda assim, a indeterminação que paira sobre a medida de segurança é uma realidade concreta, inclusive, quanto ao critério de cessação de periculosidade. Os eufemismos que circundam este instituto jurídico são nocivos para a compreensão da realidade social, objeto da medida.
Os contornos do problema tornam-se mais drásticos se ocorrer a lembrança de que a esmagadora maioria das medidas de segurança são cumpridas na forma de internação, aquela espécie de medida que é ainda mais parecida com uma pena.
3. CONCLUSÃO
O direito penal da periculosidade, por assim dizer, apresenta-se como uma lesão ao equilíbrio do ordenamento jurídico, considerando o conjunto de normas e princípios que formam o direito brasileiro. Mais que isso, a ainda incipiente produção sobre o tema, a carência de dados e estudos a respeito, mostram que a discussão precisa ser trazida à baila com certa urgência.
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[1] O sentido de responsabilidade penal aqui utilizado faz referência a assunção das consequências criminais indicadas para determinadas condutas, ou, ainda, nas palavras de Luigi Ferrajoli (2010, p. 450), a responsabilidade seria a “sujeição jurídica à sanção como consequência de um delito”. A ressalva se faz válida por conta das indicações de algumas vozes no sentido de que a expressão já estaria ultrapassada. Dessa forma, pede-se que o significado da leitura seja direcionado ao didatismo literal da expressão.
[2] Quanto mais se desenvolviam os estudos na área da psiquiatria, mais questionamentos surgiam acerca dos transtornos psíquicos. Essas novas questões pareciam destacar a falta de recursos do tecnicismo jurídico para lidar com especificidades psiquiátricas.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (2017). Atividade exercida: advocacia
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACHADO, LIZ VIEIRA. As medidas de segurança no direito penal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 abr 2023, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61268/as-medidas-de-segurana-no-direito-penal-brasileiro. Acesso em: 24 nov 2024.
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