RESUMO: O presente trabalho tem por escopo apresentar uma visão crítica acerca do princípio da ampla defesa, pós Constituição de 1988, usando como parâmetros o livro “O Estrangeiro” de Albert Camus (trata de um indivíduo acusado de assassinato que não consegue compreender a “mecânica” do processo penal a que é submetido), e o filme-documentário “Justiça” de Maria Augusta Ramos (aborda o dia a dia verídico dos que são submetidos ao processo penal no Brasil, tendo como local de filmagem a capital carioca). Comparando, ainda, o referido instituto com o retrato cotidiano de conversas, inclusive em ambiente acadêmico, jornais de grande porte, além de autores estudiosos do tema, busca-se uma aproximação/adaptação efetiva à realidade hodierna brasileira.
Palavras-chave: Ampla Defesa, Autodefesa, Contraditório, Defesa Técnica, Devido Processo Legal.
ABSTRACT: This work has the purpose to present a critical view on the principle of legal defense, after the 1988 Constitution, using as parameters the book "The Stranger" by Albert Camus (comes to an accused murderer individual who can not understand the "mechanics" the criminal proceedings in which it is submitted), and the documentary film "Justice" of Maria Ramos (addresses on the true day of which are subject to criminal proceedings in Brazil, having as a filming location Rio's capital). Comparing also said institute with the portrait of everyday conversations, including academia, major newspapers, and scholars authors of the theme, we seek an approximation / effective adaptation to the Brazilian today's reality.
Keywords: wide Defense, self-defense, contradictory, Technical defense, Due Process of Law.
1. INTRODUÇÃO
Fala-se muito em ampla defesa e contraditório como mecanismos básicos para assegurar ao réu o direito de defender-se. Isso posto, percebe-se que o senso comum ainda não mensura a devida importância desses institutos.
Nesse sentido, ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
"O princípio do contraditório, que é inerente ao direito de defesa, é decorrente da bilateralidade do processo: quando uma das partes alega alguma coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-se-lhe oportunidade de resposta. Ele supõe o conhecimento dos atos processuais pelo acusado e o seu direito de resposta ou de reação. Exige: 1- notificação dos atos processuais à parte interessada; 2- possibilidade de exame das provas constantes do processo; 3- direito de assistir à inquirição de testemunhas; 4- direito de apresentar defesa escrita" (DI PIETRO, 2007, p. 367).
Nesse jaez, também leciona Paulo Rangel:
“A instrução contraditória é inerente ao próprio direito de defesa, pois não se concebe um processo legal, buscando a verdade processual dos fatos, sem se dê ao acusado a oportunidade de desdizer as afirmações feitas pelo Ministério Público (ou seu substituto processual) em sua peça exordial.’ .[...]”(Rangel, 2013, p.17).
[...]“Ressalta-se que o contraditório é inerente ao sistema acusatório, onde as partes possuem plena igualdade de condições, sofrendo o ônus de sua inércia no curso do processo.”(Rangel, 2013 p.18).
Ainda nessa senda, o professor e membro do Ministério Público da União, Renato Brasileiro de Lima ensina:
“Também deriva do contraditório o direito à participação, aí compreendido como a possibilidade de a parte oferecer reação, manifestação ou contrariedade à pretensão da parte contrária. Enfim, há de se assegurar uma real e igualitária participação dos sujeitos processuais ao longo de todo o processo, assegurando a efetividade e plenitude do contraditório. É o que se denomina contraditório efetivo e equilibrado.”(LIMA, 2011, p.19)
Encontra-se no art. 5º, LV, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB): “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (BRASIL, 1988). O que seria essa ampla defesa?
Vicente Greco Filho, acerca do princípio da ampla defesa, presta o seguinte ensinamento:
Para o desenvolvimento e estrutura do processo penal, a garantia mais importante e ao redor da qual todo o processo gravita é a da ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, sobre a qual convém insistir e ampliar. Consiste a ampla defesa na oportunidade de o réu contraditar a acusação, através da previsão legal de termos processuais que possibilitem a eficiência da defesa (...) Ampla defesa, porém, não significa oportunidades ou prazos ilimitados. Dentro do que a prática processual ensina, a lei estabelece os termos, os prazos e os recursos suficientes, de forma que a eficácia, ou não, da defesa dependa da atividade do réu, e não das limitações legais. O réu é também obrigado a cumprir os prazos da lei, nada podendo arguir se os deixou transcorrer sem justo motivo. (GRECO FILHO, 1994, p. 56).
Diante desse cenário e ciente do que se pretende, a obrigatoriedade de serem acessíveis e cristalinas as informações para ambas as partes, percebe-se a necessária e indissociável vinculação entre os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
Dessa forma, colacionamos a seguinte definição de devido processo legal, segundo Fernando Capez:
Consiste em assegurar à pessoa o direito de não ser privada de sua liberdade e de seus bens, sem a garantia de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei (due processo of law – CF, art. 5º, LIV). No âmbito processual garante ao acusado a plenitude de sua defesa, compreendendo o direito de ser ouvido, de ser informado pessoalmente de todos os atos processuais, de ter acesso à defesa técnica, de ter a oportunidade de se manifestar sempre depois da acusação e em todas as oportunidades, à publicidade e motivação das decisões, ressalvadas as exceções legais, de ser julgado perante o juízo competente, ao duplo grau de jurisdição, à revisão criminal e à imutabilidade das decisões favoráveis transitadas em julgado. (CAPEZ, 2008, p. 32-33).
No artigo quinto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, são definidos princípios fundamentais de proteção e efetividade dos direitos inerentes aos cidadãos, como garantias de um Estado Democrático de Direito, em que o bem-estar das pessoas é elevado à categoria primária de proteção integral, consubstanciada essa última no direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, previstos nos incisos LIV e LV do artigo supramencionado, e que deverão ser assegurados aos litigantes, sem qualquer tipo de distinção, em processo judicial ou administrativo. Esse conjunto de garantias constitucionais assegura às partes o exercício de suas peculiaridades e poderes processuais, bem como é indispensável ao correto exercício da jurisdição.
Oportunamente, cabe ressaltar que, no âmbito da processualística civil moderna, são assegurados prazos diferenciados para a fazenda pública contestar ou recorrer. No entanto, isso não significa dizer que existe uma afronta aos princípios retromencionados, porquanto o que se busca é a efetivação dum outro princípio, qual seja, a isonomia, notadamente em sua faceta material, uma vez que o que se objetiva é garantir a efetivação de uma “paridade de armas”, porquanto há consciência das peculiares dificuldades do serviço público como um todo.
Conforme lembra Eugênio Pacelli de Oliveira,
O contraditório, portanto, junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental de todo o processo e, particularmente, do processo penal. E assim é porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e eqüitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal (OLIVEIRA, 2008, p. 28).
Nesse sentido, deve ser assegurada a possibilidade de ampla de defesa, fazendo-se uso dos meios e recursos disponíveis e a ela inerentes, sendo, ainda, obrigação do Estado “prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, conforme o art. 5º, no inciso LXXIV, da CRFB (BRASIL, 1988).
1.1. METODOLOGIA
O método aqui utilizado é o indutivo, uma forma de generalização, isto é, parte-se de algo particular para uma questão mais geral, mais ampla. Nesse mesmo sentido, também, a generalização é oriunda de observações da concreta realidade. Desse modo, as particulares constatações conduzem à elaboração de generalizações. Lakatos e Marconi assim lecionam, acerca do método indutivo:
Indução é um processo mental por intermédio do qual, partindo de dados particulares, suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou universal, não contida nas partes examinadas. Portanto, o objetivo dos argumentos indutivos é levar a conclusões cujo conteúdo é muito mais amplo do que o das premissas nas quais se basearam. (LAKATOS; MARCONI, 2007, p. 86).
Neste trabalho, portanto, de modo muito particular, parte-se de uma análise comparativa entre o livro “O Estrangeiro”, de Albert Camus (trata de um indivíduo acusado de assassinato que não consegue compreender a “mecânica” do processo penal a que é submetido), e o documentário-filme “Justiça”, de Maria Augusta Ramos (aborda o dia a dia verídico dos que são submetidos ao processo penal no Brasil, tendo como local de filmagem a capital carioca), buscando características comuns a ambos e que, de alguma forma, reflitam a realidade atual brasileira, de forma a incentivar a reflexão crítica acerca do assunto, mormente em ambiente acadêmico.
2. DESEVOLVIMENTO
Muito se apercebe nas conversas de roda, inclusive nos campi de Direito, a idéia, a noção cada vez mais presente de que “bandido bom é bandido morto”. Essa máxima popular, porém, vai de encontro aos princípios e garantias do devido processo legal e, principalmente, à ampla defesa e ao contraditório.
Tanto no livro de Albert Camus como no filme-documentário de Maria Augusta Ramos, objetos tomados como base de nossos estudos, vê-se essa máxima popular de um Estado vingativo, carregado de ódio, contaminar o processo penal devido. Aliás, Presenciamos um Estado-juiz parcial, pré-convencido, firme em suas convicções peculiares e particularmente enraizadas, contaminado por uma vontade de vingar, detentor de uma capacidade de “presumir” a verdade, ainda que sem provas técnicas de um determinado fato.
No livro “O Estrangeiro”, de Albert Camus, na tentativa de maximizar a punição, de tentar a todo e a qualquer custo garantir o sofrimento do acusado e dar à sociedade civilmente organizada alguma forma de satisfação, de resposta, a desqualificação das testemunhas de defesa, notadamente fragilizadas pela situação que viviam, a cooptação de testemunhas de acusação, cúmplices desse movimento já previamente determinado a agir, e a imputação de uma personalidade não coerente com a do acusado são exemplos que estão presentes como obra verossímil do cotidiano, provados justamente no filme-documentário de Maria Augusta Ramos.
Isso, certamente, não é obra do acaso, uma vez que existe uma espécie de “sistema” invisível que tende a manter as coisas no estado em que encontram, que busca manter a dominação por parte dos mais fortes e, por conseguinte, aqueles que estão a seu serviço tem de tentar, ao máximo possível, garantir a satisfação desse tal “sistema”, ou melhor, daqueles que o compõem, que lhe garantem legitimidade e , de alguma forma, são os principais beneficiados dessa confusão social que beira ao caos da sociedade contemporânea.
Igualmente, o que se pensa ser possível ficção do “absurdo” no livro de Albert Camus, mostra-se presente e muito verdadeiro no filme. Percebe-se a presença de um Estado-juiz aparentemente superior e que emite posicionamentos temerários, pré-concebidos, como em: “parecia que o juiz já não se interessava por mim e que, de algum modo, classificara já o meu caso” (CAMUS, 1979, p.236).
Durante o julgamento do personagem principal do livro, seu advogado de defesa exclama a seguinte frase: “Tudo é verdade e nada é verdade” (CAMUS, 1979, p. 261). Nota-se, então, um julgamento baseado em “achismos”, em concepções prévias acerca do que, pretensamente, se quer classificar, distinguir, delimitar e, por fim, julgar.
Percebe-se, outrossim, situação semelhante no filme em análise (RAMOS, 2004, 59’20’’), em que o acusado pergunta à defensora pública se ele poderá ser absolvido, e esta lhe responde que, pela falta de provas de defesa e pela falta de provas de acusação, o réu terminará por ser condenado pela meritíssima juíza por presunções, por suposições. Aliás, muito especialmente, soa estranha a admissão da própria defensora em aceitar a condenação por presunção, por suposição, sobretudo por ser ela que é paga pelos cofres públicos para garantir a efetivação da defesa, tecnicamente falando, dos (as) acusados (as) em geral. Situação semelhante, ainda, é a descrita no livro em análise, quando o personagem é sentenciado à pena de morte por ataques à sua personalidade, ao seu jeito de ser, à sua forma de se portar publicamente, ao seu modo de vestir-se, e não pelo fato efetivamente ocorrido.
Nesse sentido, é questionado, também, no julgamento desse personagem, do livro de Albert Camus, o fato de ele não ter chorado no enterro da mãe, de ter demonstrado ser ateu, de ter namorado, enquanto deveria estar de luto:
(...) O procurador levantou-se, então, muito sério e, com uma voz que me pareceu autenticamente emocionada, apontou o dedo para mim e articulou lentamente: - Meus senhores, um dia depois da morte da sua mãe, este homem tomava banhos de mar, iniciava relações com uma amante e ia rir às gargalhadas, num filme cômico. Não tenho nada a acrescentar (CAMUS, 1979, p.264-265).
Qual seria a importância desses elementos para o desenrolar do processo?! Legalmente, a subjetividade do indivíduo deveria ser respeitada (devendo ser levada em consideração somente no momento da fixação da pena, conforme artigo 59 e seguintes do atual Código Penal Brasileiro), mas, ao revés, vale como peso para a decisão judicial, demonstrada também no filme de Maria Augusta Ramos. Dessa forma, as ideias retratadas nas obras culturais citadas vão ao encontro na máxima popular do “linchamento do bandido”. Isso porque a sociedade toma para si o papel punitivo, coercitivo, que é competência única do Estado. Julgam-se diariamente pessoas pela livre presunção de qualquer acusação de desafetos, que tomadas como provas cabais, levam populares a sentenciar de morte e expor suas vítimas em filmagens nas redes sociais, mormente, como se donas fossem do jus puniendi do Estado.
Fica claro, dessa forma, tanto no livro como no filme, que os acusados, no mais das vezes, desconhecem o teor das acusações que lhes são imputadas, bem como não compreendem bem os rituais dos julgamentos aos quais são submetidos, ficando, às vezes, largados ao alvedrio de agentes estatais perversos e ímprobos, que lhes “escondem” direitos seus.
Quanto ao desconhecimento da “mecânica” processual, exemplificamos:
(...) Foi talvez por isso, e também porque não conhecia os hábitos dos tribunais, que não compreendi lá muito bem o que depois se passou, o sorteio dos jurados, as perguntas feitas pelo presidente ao advogado, ao procurador e ao júri (de cada vez, as caras dos membros do júri voltavam-se ao mesmo tempo para a tribuna dos juízes), uma rápida leitura do auto de acusação, onde reconheci nomes de lugares e de pessoas e novas perguntas, feitas ao meu advogado (CAMUS, 1979, p. 254-255).
Quanto à subjetividade e soberba com que, não raramente, os agentes do Estado tratam alguns de seus “pacientes”, tem-se o seguinte:
(...) Depois o presidente perguntou ao advogado de acusação se não tinha mais nenhuma pergunta a fazer á testemunha e o procurador respondeu: - ‘Ah, não, isto já chega!’ – com uma tal veemência e um tal olhar de triunfo na minha direção, que, pela primeira vez havia já muitos anos, tive uma vontade estúpida de chorar, porque senti até que ponto toda esta gente me detestava (CAMUS, 1979, p.259).
Portanto, Percebe-se, em ambas as obras culturais, a presença de um juiz inquisidor, à semelhança da inquisição outrora praticada pela Igreja. Em vez de uma presunção de inocência, existe uma presunção de culpa no interrogatório do juiz. Aqui, em especial, nos vem à mente o caso do jovem Eduardo, personagem do filme-documentário em apreço, que, mesmo não havendo nada de concreto que comprovasse sua culpa, teve sua liberdade privada por “águas passadas”, por fatos ocorridos anteriormente e pelos quais ele já fora devidamente punido. Assim, fica claro o desrespeito ao devido processo legal, impossibilitando o efetivo exercício da ampla defesa.
Em sua vertente material, Edilson Mougenot Bonfim explica o devido processo da seguinte forma:
(...) Refere-se ao direito material de garantias fundamentais do cidadão, representando, portanto, uma garantia na medida em que protege a particular contra qualquer atividade estatal que, sendo arbitrária, desproporcional ou não razoável, constitua violação a qualquer direito fundamental. (BONFIM, 2009, p. 39-40)
Outro ponto interessante é a capacidade do réu de se defender, o que é obstado a todo instante pelos que compõem o processo, de um modo bem peculiar, nessa senda, o processo penal. A mecânica processual, técnica, rebuscada, geralmente se mostra como idioma indecifrável ao réu. Como pode o réu se defender em língua que não consegue se expressar?! Essa defesa pessoal deficiente é amplamente exposta tanto no livro de Albert Camus como no filme-documentário de Maria Augusta Ramos. Nos dois casos, o processo aparece ao réu como uma espécie de “peça de teatro”, em que não é possível dirigir o seu próprio papel. Está ele ali como um mero coadjuvante da situação.
Segundo Guilherme de Souza Nucci,
Ao réu é concedido o direito de se valer de amplos e extensos métodos para se defender da imputação feita pela acusação. Encontra fundamento constitucional no art. 5.º, LV. Considerado, no processo, parte hipossuficiente por natureza, uma vez que o Estado é sempre mais forte, agindo por órgãos constituídos e preparados, valendo-se de informações e dados de todas as fontes às quais tem acesso, merece o réu um tratamento diferenciado e justo, razão pela qual a ampla possibilidade de defesa se lhe afigura a compensação devida pela força estatal (NUCCI, 2008, p. 39)
Nesse mesmo sentido, adverte também Fernando da Costa Tourinho Filho:
Aliás, em todo processo de tipo acusatório, como o nosso, vigora esse princípio, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa em relação à qual se propõe a ação penal, goza de direito “primário e absoluto” da defesa. O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la, evitando, assim, possa ser condenado sem ser ouvido (TOURINHO FILHO, 2007, p. 23)
No âmbito da Processualística Penal, objeto de análise deste trabalho, a ampla defesa possui duas regras básicas: a possibilidade de se defender e a de recorrer (como garantia natural de se buscar resolver possíveis “injustiças” cometidas num primeiro momento).
Ademais, a ampla defesa abrange a autodefesa, a defesa técnica e a defesa efetiva (como face substantiva do princípio em tela, significando a possibilidade real de influenciar a convicção de quem decide a lide).
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrine Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, consagrados autores do direito na seara processual, arrematam o conteúdo da ampla defesa em sede de processo penal, afirmando que “no processo penal, entendem-se indispensáveis quer a defesa técnica, exercida por advogado, quer a autodefesa, com possibilidade dada ao acusado de ser interrogado e de presenciar todos os atos instrutórios” (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 1991, p. 56).
Corroborando essa idéia, trazemos à baila os valiosos ensinamentos de Gustavo Henrique Badaró:
“O direito de defesa apresenta-se bipartido em: (1) direito á autodefesa; e (2) direito à defesa técnica. O direito à autodefesa é exercido pessoalmente pelo acusado, que poderá diretamente influenciar o convencimento do juiz. Por sua vez, o direito à defesa técnica é exercido por profissional habilitado, com capacidade postulatória, e conhecimentos técnicos, assegurando assim a paridade de armas entre a acusação e a defesa.” (BADARÓ, 2008, p.13).
Outrossim, Aury Lopes Júnior preleciona desta forma:
A denominada justiça efetiva deve estar sempre compatibilizada com um processo penal constitucional, ou seja, que respeite as normas do garantismo, a fim de que se preserve tudo que emana de nossa Carta Magna, contando inclusive como defesa a possibilidade de o réu não produzir provas contra si próprio (LOPES JR., 2012, p. 241).
Existe, ainda, entendimento doutrinário a respeito da temática em tela, no sentido de que é também possível subdividir a ampla defesa em dois aspectos, um negativo, que consiste na não produção de elementos probatórios de potencialidade danosa ou de elevado risco à defesa do réu, e um outro positivo, que se realiza na efetiva utilização dos instrumentos e dos meios de produção, segundo entendimento esposado por Renato Brasileiro de Lima:
“Quando a Constituição Federal assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral a ampla defesa, entende-se que a proteção deve abranger o direito à defesa técnica e à autodefesa, havendo entre elas relação de complementariedade. Há entendimento doutrinário no sentido de que também é possível subdividir a ampla defesa sob dois aspectos: a) positivo: realiza-se na efetiva utilização dos instrumentos, dos meios e modos de produção, certificação, esclarecimento ou confrontação de elementos de prova que digam com a materialidade da infração criminal e corri a autoria; b) negativo: consiste na não produção de elementos probatórios de elevado risco ou potencialidade danosa à defesa do réu.” (LIMA, 2011, p.21).
O acusado pode participar de qualquer ato feito no curso do processo, colhendo, junto do advogado, ou mesmo por conta própria, a depender do caso, informações e analisando os fatos para fortalecer a defesa. Também lhe é garantido o direito de postular para si, como nos pedidos relativos à execução da pena, sendo tal manifestação da autodefesa, quando não permitida, causa de nulidade, por manifesto prejuízo. Uma das principais manifestações desse direito de autodefesa é o direito de permanecer em silêncio e de não auto-incriminação, no sentido da lição de Aury Lopes Júnior: “A chamada defesa pessoal ou autodefesa manifesta-se de várias formas, mas encontra no interrogatório policial e judicial seu momento de maior relevância”. (LOPES JR., 2012, p. 232).
Corroborando esse entendimento, apregoa o professor e membro do Ministério Público da União, Renato Brasileiro de Lima:
“Também deriva do contraditório o direito à participação, aí compreendido como a possibilidade de a parte oferecer reação, manifestação ou contrariedade à pretensão da parte contrária. Enfim, há de se assegurar uma real e igualitária participação dos sujeitos processuais ao longo de todo o processo, assegurando a efetividade e plenitude do contraditório. É o que se denomina contraditório efetivo e equilibrado.” (LIMA, 2011, p. 21).
Nesse mesmo sentido, vem a valiosa colaboração de Gustavo Henrique Badaró:
"O princípio do contraditório exige, em relação ás questões de direito que possam fundar uma decisão relevante, que as partes sejam previamente consultadas. Há o dever do juiz de provocar o prévio contraditório entre as partes, sobre qualquer questão que apresente relevância decisória, seja ela processual ou de mérito, de fato ou de direito, prejudicial ou preliminar. O desrespeito ao contraditório sobre as questões de direito expõe as partes ao perigo de uma sentença de surpresa. Por outro lado, o juiz instar as partes a se manifestarem, antes da decisão, sobre uma determinada questão de direito, não pode ser considerado uma perda de imparcialidade, por estar prejulgando a causa. Ao contrário, é mais uma oportunidade que se dá ás partes e, principalmente, àquela parte que seria prejudicada pela decisão, de apresentar suas alegações e influenciar o convencimento do juiz.”(BADARÓ, 2008, p.11).
Ademais, efetividade no princípio da ampla defesa significa que a defesa deve ser, no mínimo, proba e diligente, buscando garantir à parte uma defesa séria, responsável e capaz de gerar no julgador um sentimento de que a atuação defensiva não é meramente formal e desencadeada em ritmo burocrático.
Nesse mesmo trilhar são os ensinamentos de Renato Brasileiro de Lima:
“Para que seja preservada a ampla defesa a que se refere a Constituição Federal, a defesa técnica, além de necessária e indeclinável, deve ser plena e efetiva.Ou seja, não basta assegurar a presença formal de defensor técnico. No curso do processo, é necessário que se perceba efetiva atividade defensiva do advogado no sentido de assistir seu cliente.” (...) “Para que essa defesa seja ampla e efetiva, deve-se deferir ao acusado e a seu defensor tempo hábil para sua preparação e exercício. Entre as várias garantias que o devido processo legal assegura está o direito de dispor de tempo e facilidades necessárias para preparar a defesa. Há de se assegurar ao acusado e a seu defensor o tempo e os meios adequados para a preparação da defesa.” (LIMA, 2011, p.30/31).
Ainda buscando expor os conhecimentos acerca da efetividade no princípio da ampla defesa, parte da doutrina faz a divisão do direito à autodefesa da seguinte forma: direito de presença, que é exercido com o comparecimento em audiência do acusado; direito de audiência, que é exercido na audiência de interrogatório; e, por fim, direito de postular pessoalmente, que não é mais que a possibilidade que o acusado tem de recorrer.
Para ratificar o que foi dito imediatamente acima, trazemos as lições de Gustavo Henrique Badaró:
“O direito à autodefesa se divide em: (1) direito de presença; (2) direito de audiência; (3) direito de postular pessoalmente.” (...) “O direito de presença é exercido com o comparecimento em audiências pelo acusado. A sua presença permitirá uma integração entre a autodefesa e a defesa técnica na produção de prova. Muitos fatos e pormenores mencionados por testemunhas são do conhecimento pessoal do acusado, que, por estar diretamente ligado aos fatos, poderá auxiliar o defensor na formulação de perguntas e na demonstração de incongruências ou incompatibilidades do depoimento. Assim, a restrição da participação do acusado na audiência de oitiva de testemunhas pode implicar séria violação do direito de defesa como um todo.” (...) “O direito de audiência, isto é, o direito de ser ouvido pela autoridade judiciária é exercido, por excelência, na audiência de interrogatório. Trata-se, porém, de mera faculdade do acusado que, se desejar, poderá renunciar a tal direito, permanecendo calado (CRFB,art. 5°, inciso LXIII).” (...) “O direito de postular está presente na possibilidade de recorrer pessoalmente (CPP, art. 557, caput), de interpor habeas corpus ou revisão criminal (CPP, art. 623), de arrolar testemunhas (CPP, art. 395).” (BADARÓ, 2008, p.12/13).
Por fim, como exemplo de busca pelo aspecto efetivo da ampla defesa, colacionamos o seguinte julgado:
TAMG. Defesa. Ampla defesa. Estado democrático de direito. Direitos e garantias fundamentais. Princípio da ampla defesa. Princípio do contraditório. Defesa técnica deficiente. Alegações finais em que a defesa apenas pede a pena mínima. Ausência de defesa. Devido processo legal. Nulidade declarada. Considerações sobre o tema com citação de julgado do STF. CF/88, art. 5º, LIV e LV. A CF/88 constitui clara e inarredável opção pelo Estado Democrático de Direito, no qual os direitos e garantias fundamentais devem sempre prevalecer, dentre estes, alinhavados, os princípios da ampla defesa e do contraditório, erigidos à categoria de dogmas e pressupostos para a validade da prestação jurisdicional. Sob tal ótica, repugna aos anseios da sociedade a atuação defensiva meramente formal e desencadeada em ritmo burocrático, sem o postulado da defesa efetiva, traduzida na indispensável condução dialética do processo, em diligente contradição aos fatos e alegações suscitados na acusação. A defesa assim claudicante vulnera os interesses da sociedade democrática e impõe, de ofício e sem maiores indagações relativas à existência de prejuízos concretos, a decretação de nulidade processual, desde o momento em que se apresentar falho o patrocínio técnico do acusado no juízo penal. (TAMG - Rev. Crim. 315.547 - Diamantina - Rel.: Juiz Alexandre Victor de Carvalho - J. em 11/12/2001 - DJ 08/10/2002 - Boletim Informativo da Juruá 336/029378)
3. CONCLUSÃO
Infelizmente, os anseios sociais de justiça são muito facilmente confundidos por alguns com vingança. A justiça, tendo a tutela por parte do Estado-juiz deve ser precisa para utilizar o seu poder-dever; não se pode deixar influenciar por paixões e emoções que distorçam a finalidade da sanção punitiva.
Nesse sentido, o título do livro de Albert Camus pode ser uma menção à situação do personagem principal do livro. Estrangeiro, pois, por ser diferente não é aceito, estrangeiro por não entender como se passa seu próprio julgamento, estrangeiro por não falar a língua da justiça.
Da mesma forma, veem-se “estrangeiros” no filme-documentário. Frutos de uma sociedade extremista e desigualitária; consumista, que passa a confundir o homem também como objeto a ser consumido. Dia a dia, com a ausência de políticas de intervenção do Estado, além de outros fatores ambientais, ouve-se falar do aumento da violência, tendo como solução única, por parte de alguns, a resposta violenta.
O livro, o filme-documentário, o dia a dia social confundem-se, mesclam-se as obras de ficção e não-ficção. A ampla defesa deve permitir ao acusado a possibilidade de não ser culpabilizado pelo que não fez e, se fez, permitir que se defenda para ser punido devidamente, não excessivamente, muito menos injustamente.
A ampla defesa serve ou, ao menos, deve servir como garantia constitucional para que a “justiça com as próprias mãos” não ganhe as ruas como aquilo que há de mais eficiente em punição. A “cegueira” que afeta muitos não deve ser transmitida a outros, o Estado Democrático de Direito deve avançar em garantias, não retroagir nelas.
Diante de tudo quanto aqui foi exposto, percebe-se que o princípio da ampla defesa não consegue, de fato, concretizar-se nos dias atuais. Isso só pode acontecer num Estado arcaico, ineficiente, incapaz de garantir aos seus cidadãos o acesso a informações basilares e a direitos elementares, aptos a concretizar aquilo a que se propõe na atual Carta Magna nacional, sobretudo no bojo de seu artigo quinto.
Derradeiramente, espera-se que este breve texto sirva de reflexão para futuros diálogos acadêmicos e/ou produções científicas. O assunto tratado nesta produção é cada vez mais frequente e, como alhures mencionado, apresenta-se inclusive no meio acadêmico. Os posicionamentos devem ser livres, mas como máxima do pensamento científico devem ser falseáveis. O pensamento em absoluto como verdade do “bandido bom é bandido morto” deve ser falseado, pelo bem da sociedade.
REFERÊNCIAS:
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CAMUS, Albert. O Estrangeiro. tradução de Maria Jacintha e Antônio Quadros. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 15 ed.; São Paulo: Saraiva, 2008.
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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 9ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2007.
Servidor público, bacharel em direito, pós-graduado em investigação criminal e legislação penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FARIAS, Pedro Henrique Nunes. Uma análise crítica acerca do princípio da ampla defesa, pós Constituição de 1988, usando como parâmetros o livro “O Estrangeiro”, de Albert Camus, e o filme-documentário “Justiça”, de Maria Augusta Ramos, além de análise de doutrinadores da questão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 abr 2023, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61332/uma-anlise-crtica-acerca-do-princpio-da-ampla-defesa-ps-constituio-de-1988-usando-como-parmetros-o-livro-o-estrangeiro-de-albert-camus-e-o-filme-documentrio-justia-de-maria-augusta-ramos-alm-de-anlise-de-doutrinadores-da-questo. Acesso em: 24 nov 2024.
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