RESUMO: A Teoria da Coculpabilidade foi desenvolvida e apresentada no Brasil através dos estudos de Eugenio Raúl Zaffaroni com a proposta de revelar que a responsabilidade por determinado delito, além de recair sobre o autor do fato, deve também ser compartilhada com o Estado e a sociedade, na medida em que estes deixaram de proporcionar melhores condições de vida a uma certa parcela da população brasileira considerada mais vulnerável. O presente artigo visa realizar uma análise da aplicação da teoria da coculpabilidade pelo Tribunal de Justiça do Amazonas, através da proposta da atenuante inominada prevista no art. 66 do Código Penal, fazendo um estudo dos fundamentos utilizados pelos desembargadores, assim será utilizado a metodologia bibliográfica e empírica. O problema desta pesquisa é descobrir se a justiça estadual amazonense reconhece a aplicação da Teoria como atenuante inominada do art. 66 do CP. As hipóteses se manifestam pelo não reconhecimento da teoria, pois seria uma forma de "premiação" ao autor do delito no entendimento dos desembargadores, ou o reconhecimento da aplicação da teoria desde que comprovado que houve omissão estatal. Verifica-se a importância da pesquisa a partir da ausência de uma perspectiva regional relacionada ao estado do Amazonas.
Palavras-chave: Coculpabilidade. Responsabilidade. Atenuante. Vulnerável. Inominada.
1 INTRODUÇÃO
Desde o início do século XXI, o direito penal tem evoluído com a finalidade de aprimorar e estruturar a aplicação da norma penal de forma humanitária e respeitando as bases e noções do Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, surge a Teoria da Coculpabilidade sendo ligada intrinsecamente à falha do Estado em cumprir as ideias do contrato social firmado com a sociedade, a qual abdica de sua liberdade, submetendo-se aos ditames, regras e determinações estatais e o Estado, leviatã, garante que defenderá o homem e dará condições para que este se desenvolva. Entretanto, quando o pacto é quebrado, temos uma falha sistemática do Estado, o que motiva o surgimento da teoria da coculpabilidade.
O estudo sobre a aplicação da Teoria da Coculpabilidade se mostra de suma importância visto que faz parte da argumentação defensiva de várias pessoas que se encontram sob o poder punitivo do Estado. Dessa forma, a coculpabilidade surge para denunciar circunstâncias que o próprio Estado deixou de oferecer de forma igualitária e proporcional a todas as pessoas, como o gozo de direitos sociais e econômicos, os quais se encontram expressamente previstos na Constituição Federal de 1988.
A aludida teoria exige que o poder público assuma responsabilidade indireta perante a própria inadimplência e negligência em conceder condições materiais para reduzir desigualdades sociais entre os cidadãos. Ela é principalmente defendida tendo em vista o evidente sistema seletivo do poder punitivo do Estado, nos quais os principais ofendidos tendem a ser aqueles pertencente aos grupos vulneráveis do ponto de vista social e econômico, como: pobres, pretos, pessoas com deficiência, homossexuais, travestis e transgêneros.
Desse modo, essa teoria exigiria do Estado um freio na aplicação da norma, o que ocasiona uma reduzida culpabilidade do ato ilícito praticado pelo agente marginalizado socialmente. Ocorre que, o ordenamento jurídico brasileiro não possui expressa previsão legal para corroborar a aplicação dos conceitos desenvolvidos pela Teoria da Coculpabilidade, o que é fruto de um direito penal com viés punitivista, que ignora a onda de ressignificação, bases e princípios trazidos pelos direitos humanos no período pós-2ª guerra, os quais ao serem ignorados atingem notadamente camadas mais vulneráveis da sociedade.
Diante disso, parte da doutrina brasileira tem se inclinado pela recepção dessa teoria na forma da atenuante genérica inominada do art. 66 do Código Penal, o que considerando situações fáticas anteriores de desigualdade material e social que envolvem o acusado de determinado delito, podem levar à atenuação do preceito secundário na segunda fase da dosimetria da pena.
Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é realizar, primeiramente, uma análise histórica acerca do conceito de coculpabilidade, apresentando sua origem e evolução histórica, sua relação com os princípios e direitos dispostos na Constituição Federal de 1988 e averiguar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça quanto à sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Em segundo momento, e objetivo central desse artigo, analisar-se-á a posição do Tribunal de Justiça do Amazonas sobre a aplicação da coculpabilidade como atenuante inominada prevista no art. 66 do CP, a fim de realizar um estudo num parâmetro mais regional. Para tanto, serão analisados 18 (dezoito) acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Amazonas entre os anos de 2014 a 2022.
Busca-se, portanto, entender o posicionamento do Tribunal de Justiça do Amazonas e os argumentos legais e juri-filósofos utilizados pelos desembargadores para justificar a aplicação ou a não da Teoria da Coculpabilidade, na forma defendida pelo jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni.
2 EVOLUÇÃO TEÓRICA DO ELEMENTO CULPABILIDADE SOB A PERSPECTIVA DAS TEORIAS JURÍDICAS
Para uma melhor compreensão acerca do tema da Teoria da Coculpabilidade, seu conceito e aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, é necessário, antes de tudo, entender o elemento da culpabilidade.
A culpabilidade, de acordo com a teoria tripartite do crime, junto com o fato típico e a antijuricidade, integram os elementos que definem o crime à luz de um conceito analítico. Assim, conforme a posição adotada pela doutrina majoritária, tem-se configurado o delito quando o agente pratica uma conduta típica, ilícita e culpável.
No entanto, há um outro conceito analítico de crime, o qual já foi adotado inclusive por Damásio de Jesus, no sentido de que a culpabilidade é meramente um pressuposto de aplicação da pena, não se integrando aos demais elementos que definem o crime, ou seja, o crime seria bipartido, com apenas integrando os seus elementos a conduta típica e antijurídica. Rogério Greco, por outro lado, afasta esse conceito, pois compreende que, assim como a culpabilidade, o fato típico e a antijuridicidade também são pressupostos para aplicação da pena, mas que não deixam de caracterizar o crime (GRECO, 2022).
Nesse mesmo sentido, expõe Cezar Roberto Bitencourt:
[...] podemos afirmar que a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são predicados de um substantivo, que é a conduta humana definida como crime. Não nos convence o entendimento que foi dominante na doutrina brasileira, no último quarto do século passado, segundo o qual a culpabilidade, a partir do finalismo welzeliano, deveria ser tratada como mero pressuposto da pena, e não mais como integrante da teoria do delito. (BITENCOURT, 2022, p. 1091).
Há ainda doutrinadores como Basileu Garcia e Muñoz Conde que acrescentam aos elementos constituintes do crime, a partir de uma concepção analítica, a punibilidade (TAVARES, 2020, p. 123). Contudo, conforme entende Juarez Tavares, a punibilidade é tão somente a consequência do crime, não elemento definidor deste:
A punibilidade é matéria relativa à imposição da pena e aos seus efeitos. Assim, pode haver delito sem que haja imposição de pena, de modo que baste para o processo criminalizador um juízo de culpabilidade, pelo qual se reconheça o fato, seu autor e a responsabilidade por seu cometimento (TAVARES, 2020, p. 123).
Para conceituar a culpabilidade, no entanto, é necessário realizar um estudo acerca da evolução histórica deste elemento da teoria do crime, a partir de um exame das teorias da culpabilidade: teoria psicológica, teoria psicológico-normativo, teoria normativa pura e, por fim, novas concepções funcionalistas da culpabilidade.
Von Liszt e Beling foram os principais desenvolvedores da teoria psicológica da culpabilidade durante a segunda metade do século XIX, logo após o advento do sistema clássico. Sua contribuição para o estudo da dogmática jurídico-penal foi fundamental, pois estabeleceu um marco histórico ao separar a antijuridicidade da culpabilidade. Assim, através da teoria psicológica, a culpabilidade passa a ser apenas um vínculo psicológico que liga o autor do fato ao ato ilícito, de forma que o dolo e a culpa são vistos como espécies de culpabilidade (BITTENCOURT, 2022, p. 1097).
Considerando a insuficiência da teoria psicológica em abranger todos os fenômenos da culpabilidade, como o caso da culpa inconsciente, Reinhard Frank (1907) desenvolveu a teoria psicológico-normativo a fim de levar a concepção de reprovabilidade ao conceito de culpabilidade, de forma que a culpabilidade, além de significar um vínculo psicológico também seria um juízo de reprovação (BITTENCOURT, 2022, p. 1104). André Estefam (2022, p. 760) explica que para analisar a incidência da culpabilidade deve-se atentar para alguns aspectos, como a imputabilidade do agente, se a sua prática constituiu uma conduta dolosa ou culposa e se, dependendo do caso concreto, é possível exigir conduta distinta.
A teoria normativa pura surge a partir do sistema finalista, com ênfase nas lições de Hans Welzel, que se afastam do conceito psicológico da culpabilidade. Em vez disso, a teoria normativa pura relaciona a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa como elementos fundamentais da culpabilidade (ESTEFAM, 2022, p.760). É a partir do sistema finalista que o dolo e a culpa deixam de ser considerados elementos da culpabilidade, passando a ser entendidos como elementos do tipo, sendo o tipo doloso como elemento subjetivo e tipo culposo como elemento normativo, assim, se não é possível auferir dolo ou culpa, o fato é atípico (JESUS; ESTEFAM, 2020, p. 593).
Além das teorias anteriormente mencionadas, a partir do funcionalismo, foram constituídos outros conceitos de culpabilidade que os relacionam com a ideia de responsabilidade e o fim social da pena, sendo Claus Roxin seu principal expoente, na defesa de uma aplicação de pena que vislumbra uma preocupação com a realidade social do país. Nesses termos, temos nas palavras de André Estefam (2022):
[...] Roxin constrói um conceito material de culpabilidade, não se contentando com a simples constatação de que o agente “podia agir de outro modo” ou, em outras palavras, de que praticou um comportamento reprovável. Além disso, com vistas à imposição de um limite ao poder punitivo do Estado, defende que devem ser constatadas necessidades públicas de prevenção. Sem estas, muito embora (formalmente) reprovável, o fato não merecerá punição estatal (ESTEFAM, 2022, p. 761).
Günther Jakobs desenvolve o chamado “conceito funcional de culpabilidade” (ESTEFAM, 2022, p. 761), o qual vai de encontro com todos os demais conceitos mais garantistas de aplicação da pena, ao afirmar que a pena é necessária para que os cidadãos não percam a confiança no Direito e na norma violada, mesmo que o agente seja inimputável ou semi imputável. Nesse sentido, esclarece Cezar Roberto Bitencourt:
Esse esvaziamento do conceito material de culpabilidade, com a retirada de referentes valorativos tangíveis e estáveis, apresenta como principal aspecto negativo a excessiva formalização do conceito de culpabilidade, através do qual é possível reabrir as portas do Direito Penal, escancaradamente, à instrumentalização do indivíduo em função das expectativas sociais que são, certamente, difíceis de controlar e limitar a partir de critérios racionais (BITENCOURT, 2022, p. 1166).
A partir da análise desse parâmetro de evolução do conceito da culpabilidade, é possível conceituá-la como o juízo de reprovação que se faz sobre o agente que pratica determinado fato típico e ilícito, no qual é possível exigir-lhe comportamento diferente, tendo como pressupostos a imputabilidade, o potencial conhecimento da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa (QUEIROZ, 2015, p. 361). Entre os fundamentos do estudo da culpabilidade, tem-se que ela é importante para estabelecer uma pena justa, atuando como um limite da imposição da pena, e, também, é importante pois atua na prevenção de novos crimes (BITENCOURT, 2022, p. 1086).
Desse modo, a Teoria da Coculpabilidade desenvolve-se como um novo estudo para analisar a culpabilidade como elemento integrante da teoria do delito, tendo em vista que a teoria normativa pura desconsidera várias situações relevantes socialmente. Nesse aspecto, explica Milleny Lee Cabral Marins (2022):
A insuficiência da culpabilidade normativa para definir elementos objetivos para aferição correta do terceiro elemento do ilícito fez com que a doutrina reelabora-se o conceito de coculpabilidade, com a finalidade de diminuir o caráter seletivo do sistema punitivo. (MARIS, 2022).
É possível inferir, conforme os elementos já exarados a complexidade do elemento culpabilidade nas teorias penais no decorrer dos séculos, com a coculpabilidade surgindo como uma alternativa às arbitrariedades perpetradas pelo Estado-Juiz na aplicação da norma penal. Assim, é fundamental o não desprezo por essa alternativa em face de uma construção penal mais severa, mormente quando o destinatário da norma não detém as mesmas condições isonômicas que os indivíduos com consideráveis construtos financeiros e econômicos, e que se encontram com maior poder aquisitivo na sociedade econômica brasileira.
3 A TEORIA DA COCULPABILIDADE SOB A ÓTICA DA VULNERABILIDADE SOCIAL
3.1 Origem histórica da teoria da coculpabilidade
Eugenio Raúl Zaffaroni, responsável por desenvolver a teoria da coculpabilidade na América Latina, remete a origem desse instituto a um dos líderes da Revolução Francesa, Jean-Paul Marat, ao afirmar que a referida teoria faz parte da ordem jurídica do Estado Social de Direito (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 525).
Além disso, conforme exposto por Zaffaroni e Pierangeli (2006, p. 234), Jean-Paul Marat entendia que o indivíduo não estava obrigado a cumprir as leis da sociedade se esta não retribuísse com a garantia de direitos, visto que quando o Estado descumpriu a sua atribuição, houve o rompimento do contrato social, voltando ao seu estado natural (MARAT, 2008, p. 75):
Numa terra em que tudo é possessão de outro e na qual não se pode apropiar-se de nada, resta apenas morrer de fome. Então, não conhecendo a sociedade a não ser por suas desvantagens, estarão obrigados a respeitar a lei? Não, sem dúvida. Se a sociedade os abandona, voltam ao estado natural e quando reclamam à força direitos dos quais não podem prescindir senão para proporcionar-lhes melhorias, toda autoridade que se oponha é tirânica e o juiz que os condena à morte não é mais que um vil assassino. (MARAT, 2008, p. 75).
Outrossim, acrescenta o autor que “a natureza estabeleceu grandes diferenças entre os homens e a fortuna” (MARAT, 2008), e é dever da justiça considerar essas circunstâncias que podem agravar ou atenuar a condição do autor diante do Estado-Juiz.
Dessa forma, é inegável a influência do Iluminismo, movimento ocorrido nos séculos XVII e XVIII, e da Revolução Francesa, em 1789, para o surgimento de um novo Estado, pautado nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, baseado, também, na igualdade dos direitos dos cidadãos e na consolidação do liberalismo político, as quais constituem a origem histórica do princípio da corresponsabilidade estatal (MARÇAL; FILHO, 2011).
Nesse sentido, Grégore Moura (2015, p. 68) defende que a coculpabilidade teve força durante o iluminismo, devido a um individualismo exacerbado, que gerou aprofundamento das desigualdades sociais e o uso do Direito como forma de controlar as classes sociais ditas inferiores. Complementa, ainda, que, segundo Zaffaroni, quanto menor for o estado de vulnerabilidade, maior será o esforço empreendido pelo sujeito, mas quanto maior for a condição social de vulnerável, menor será a sua atuação para se colocar em vulnerabilidade (2015, p. 135).
Ainda, em relação à proporcionalidade da pena, a pena mais justa seria a de Talião, desde que a sociedade fosse justa, já que a aplicação igualitária da mesma pena a todos os infratores apenas seria justa em uma sociedade em que todos vivessem as mesmas condições, o que não ocorre (GUILHERME, 2019, p. 114).
Assim, percebe-se o construto que a visão reducionista trazida ao ordenamento jurídico pátrio, que a criminalidade é ligada exclusivamente a fatores sociais, posto que, no resultado do crime, outros aspectos incidem. Nestes termos:
A observação mostra que todo crime resulta do concurso de dois grupos de condições- de um lado, a natureza individual do delinquente, e, de outro, as relações exteriores, sociais e especialmente as relações econômicas que o cercam (VON LIZST, 1899, p.122).
Considerando estes aspectos, é possível perceber que a construção de normas punitivistas no decorrer dos séculos contribuiu para uma construção de estado social falha com indivíduos consideravelmente vulneráveis socialmente. Tais construções refletem como necessária a teoria da coculpabilidade nesse cenário, considerando a falha do estado em proporcionar melhores oportunidades a esses cidadãos.
3.2 A noção da teoria da coculpabilidade e seus reflexos mais a construção de uma sociedade isonômica
A Teoria da Coculpabilidade foi desenvolvida pelos estudos do jurista e magistrado argentino Eugenio Raúl Zaffaroni com a finalidade de trazer uma nova perspectiva acerca do conceito de culpabilidade como elemento do crime, a partir do conceito analítico da teoria do delito.
A Coculpabilidade, de acordo com o jurista em questão, trata-se de compartilhar a responsabilidade do autor de determinado delito com o Estado e a sociedade, tendo em vista que estes deixaram de cumprir com a sua missão constitucional de promover políticas públicas que alcancem a todos de modo proporcional, principalmente aqueles mais vulneráveis do ponto de vista econômico e social.
A teoria deve ser invocada, desta maneira, em certos casos em que o autor do crime teve a sua “autodeterminação” limitada pelo fato de não ter sido comtemplado, durante a sua vida, com o gozo de diversos direitos sociais que garantem as mínimas condições a uma vida digna, como o direito à educação, saúde, moradia, trabalho, alimentação, saúde, entre outros. Nessa acepção, Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli defendem que:
Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarrega-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se fizer que há, aqui, uma “co-culpabilidade”, com a qual a própria sociedade deve arcar. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 525).
Percebe-se que a Teoria da Coculpabilidade está relacionada com várias problemáticas sociais que abrangem o país e que se perpetuam com o tempo, fazendo com que uma parcela da população viva à margem da sociedade, encontrando-se sem acesso aos serviços públicos de qualidade que deveriam ser garantidos a todos pelo Estado e sendo, por isso, as pessoas mais suscetíveis a sofrer o poder punitivo do Estado. Dessa forma, expõe Rogério Greco:
A teoria da coculpabilidade ingressa no mundo do Direito Penal para apontar e evidenciar a parcela de responsabilidade que deve ser atribuída à sociedade quando da prática de determinadas infrações penais pelos seus “supostos cidadãos.” Contamos com uma legião de miseráveis que não possuem um teto para se abrigar, morando embaixo de viadutos ou dormindo em praças ou calçadas, que não conseguem emprego, pois o Estado não os preparou ou os qualificou para que pudessem trabalhar, que vivem a mendigar por um prato de comida, que fazem uso de bebida alcoólica para fugir à realidade que lhes é impingida. Quando tais pessoas praticam crimes, devemos apurar e dividir essa responsabilidade com a sociedade. (GRECO, 2022, p. 1027).
Para conceituar o instituto da coculpabilidade, André Estefam esclarece que a responsabilidade do crime é compartilhada com o Estado, tendo em vista sua omissão em conceder oportunidades isonômicas na vida do agente delitivo vulnerável:
Por coculpabilidade entende-se o juízo de reprovação feito ao Estado, que seria corresponsável pelo delito, nos casos em que se apurasse não ter fornecido ao agente condições de igualdade e oportunidade mínimas para o pleno desenvolvimento de sua personalidade. (ESTEFAM, 2022, p. 1150).
O termo coculpabilidade é sinônimo de culpabilidade por vulnerabilidade, posto que o Estado divide a responsabilidade de forma indireta, isso é identificável devido ao prefixo “co”. O sufixo “culpabilidade’ traz a noção que o Estado, em razão da sua ausência em cumprir direitos básicos à população, deve analisar com menor grau de reprovabilidade àqueles que estão em situação vulnerável, desde que tal fragilidade social os tenha levado a perpetrar o fato criminoso (MOURA, 2019, p. 63). Ainda, complementa que tal circunstância não pode inverter ou desprezar o fato criminoso em jogo, busca-se apenas reduzir o grau de sua culpabilidade. Logo, o agente não deixa de ser um criminoso, apenas a análise da sua culpabilidade é realizada com maior parcimônia e cuidado.
Rogério Greco (2011, p. 422), de forma exemplificativa, menciona um caso de possível incidência dessa teoria, sendo a circunstância em que dois indivíduos, que são moradores de rua, realizam relações sexuais embaixo de um viaduto, mas acabam sendo autuados pela polícia pelo art. 233 do Código Penal, crime de ato obsceno. Diante desse fato, o magistrado ao analisar o caso responsabilizaria os dois de maneira atenuada, com base na teoria da coculpabilidade, visto que por serem hipossuficientes e não possuírem condições de ter o seu direito constitucional à moradia plenamente garantido, não seria razoável considerá-lo, de forma isonômica a outros indivíduos que pratiquem o mesmo fato, mas possuem o seu direito constitucional à moradia garantido, ao contrário desses dois indivíduos.
Zaffaroni (2010, p. 259-260) ainda afirma que a culpabilidade vive uma crise de esvaziamento, pois não seria cabível a verificação da culpabilidade sem considerar a seletividade arbitrária que vive o direito penal. É possível notar que essa teoria busca debater a necessidade de um olhar crítico da aplicação do direito penal excludente, bem como a necessidade de incentivar a discussão de uma justiça penal efetiva, que leve em conta o grau de esforço perpetrado pelo autor do fato para, com isso, analisar o grau de punição e o impacto que a vulnerabilidade contribui para a ocorrência do fato (ZAFFARONI, 2010, p. 276).
Ademais, complementa que o risco da ocorrência de um fato criminoso entre pessoas com maior poder aquisitivo é reduzido e isso é inversamente proporcional a aqueles indivíduos que não detém um aparato social que lhe proteja. Outrossim, o referido autor menciona que há dois tipos de fatores para a vulnerabilidade: estado de vulnerabilidade e o esforço pessoal para a vulnerabilidade.
O estado ou posição de vulnerabilidade se refere à posição ocupada pelo indivíduo na sociedade, bem como os estereótipos eventualmente a ele atribuídos. Por sua vez, a culpabilidade pelo esforço resulta do juízo de reprovação autodeterminado pelo agente interligado ao quão próximo da vulnerabilidade aquele agente se encontra (ZAFFARONI, 2010, p. 275).
Por fim, imprescindível ressaltar que a coculpabilidade não legitima a prática de crimes por pessoas hipossuficientes. Na verdade, o que se busca é o reconhecimento de que tal vulnerabilidade extrema contribui, em algum grau, para a ausência de autodeterminação do agente delitivo (GUILHERME, 2019, p. 130).
Apesar de não ser um princípio explicitamente previsto pela Constituição Federal de 1988, os elementos que caracterizam a coculpabilidade têm seus resquícios defendidos pela Carta Magna em diversos artigos.
De acordo com o art. 3º da CRFB/88, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e promover o bem de todos, sem preconceitos (BRASIL, 1988). Nota-se, contudo, que o poder punitivo do Estado é altamente seletivo, de modo que as pessoas que se encontram em maior grau de vulnerabilidade, em razão de sua cor, raça, etnia, identidade de gênero, orientação sexual e/ou questões econômicas, são as mais propícias a receber toda a força punitivista do Estado. E, é dessa forma, que surge o conceito de coculpabilidade, uma vez que o Estado não desempenha as suas atribuições constitucionais e se omite em proporcionar condições mínimas de vida a uma grande parcela da população.
Além disso, o constituinte originário estabeleceu diversos direitos sociais que devem ser proporcionados pelo Estado, a fim de garantir uma justiça social efetiva, e que todos tenham acesso a serviços públicos de qualidade. Essas prestações positivas, estão, em boa parte, previstas no art. 6º da CRFB/88: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” (BRASIL, 1988). A Constituição Federal prevê, dessa forma, certos compromissos para que o Estado realize a concretização de políticas públicas, de forma a atender a toda a população, sem realizar qualquer distinção, e garantir a todos o alcance de seus direitos.
Nesse mesmo sentido, entende o autor Grégore Moura que a coculpabilidade é um princípio constitucional implícito, na forma do art. 5º, §2º da CRFB/88:
Aceitar a coculpabilidade como princípio constitucional implícito ‘obriga’ o legislador a modificar o nosso Estatuto Repressivo principalmente porque, só assim, o indivíduo atingirá a plenitude da cidadania, com o respeito ao devido processo legal e ao direito de justiça, que é elemento essencial para aplicação de todos os demais direitos.
(...)
O reconhecimento do princípio da coculpabilidade é importante instrumento na identificação da inadimplência do Estado no cumprimento de sua obrigação de promover o bem comum, além de reconhecer, no plano concreto um direito fundamental do cidadão, mediante sua concretização no Direito Penal e no Processo Penal, tendo como fundamento o art. 5º, § 2º, da Constituição Federal. (MOURA, 2019, p. 113).
O Art. 5ª da Constituição Federal, preleciona que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (BRASIL, 1988). Esse artigo prevê, além da igualdade formal, a igualdade material, noção desenvolvida pelo viés aristotélico em 325 a.c., que visa dar tratamento diferenciado aos que se encontram em posições distintas no estrato social. Rui Barbosa (1997, p. 26) considera que a verdadeira lei da igualdade está nessa perspectiva, ao tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Outrossim, temos o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, no art. 1ª, inciso III, da CRFB/88. A interpretação deste axioma exara que o dever estatal prisma em dar o mínimo existencial a um indivíduo de modo que tenha condições materiais a viver dignamente. Nesse sentido, podemos inferir que, ao ignorar o básico aos cidadãos, o estado pode influenciar na capacidade de autodeterminação do agente perpetrador de uma conduta criminosa (GUILHERME, 2019, p. 139-140).
Logo, é possível afirmar que a teoria da coculpabilidade está diretamente ligada aos princípios e direitos fundamentais defendidos pela Constituição, uma vez que evidencia a disparidade de tratamento do poder punitivo estatal, em relação as pessoas que se encontram à margem da sociedade. Dessa forma, a teoria visa reafirmar o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da isonomia, conforme:
A coculpabilidade visa à aplicação do princípio da isonomia em seu sentido material, visto que o tratamento penal não pode ser o mesmo para aqueles (maioria) que não são brindados pela sociedade com as mesmas oportunidades que são conferidas à minoria. (GUILHERME, 2019, p. 21)
Desse modo, uma alternativa para amenizar essas vulnerabilidades latentes seria o uso da teoria da coculpabilidade na proteção dos hipossuficientes e vulneráveis, reconhecendo a incapacidade do Estado em dirimir as exclusões sociais decorrentes da ausência de oportunidades e de não ter realizado a sua inclusão social (MOURA, 2019, p. 92).
3.3 A aplicação da Teoria da Coculpabilidade como atenuante inominada do art. 66 do Código Penal
Há autores que defendem a incidência da referida teoria como circunstância judicial aplicável na primeira fase da aplicação da pena. No entanto, embora prevista no anteprojeto da reforma do Código Penal, é inócua a sua aplicação nesses moldes, considerando que se a pena base for fixada acima do mínimo legal, as circunstâncias judiciais não poderão trazer a pena aquém do mínimo (MOURA, 2019, p. 12). Tal perspectiva, também viola entendimento sumulado do STJ:
Súmula 231: A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal (BRASIL, 1999).
Por sua vez, Zaffaroni e Pierangeli (2006, p. 525) sustentam que a coculpabilidade pode ser aplicada no ordenamento jurídico brasileiro durante a dosimetria da pena como circunstância atenuante genérica de pena, na forma do art. 66 do Código Penal: “A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei” (BRASIL, 1984).
Antes de tudo, o Código Penal estabelece no art. 65 um rol exemplificativo de circunstâncias genéricas que atenuam a pena no momento da dosimetria, mas logo depois, através do art. 66, expõe que outros motivos relevantes podem atenuar a pena. É que, conforme explica André Estefam (2022, p. 1150), é decisão discricionária do magistrado adotar qualquer ato relevante, anterior ou não ao fato criminoso, para atenuar a pena, desde que não se assemelhe ao rol disposto no art. 65 do Código Penal.
Rogério Greco ainda defende que, dependendo da situação fática, além de ser aplicada como atenuante inominada, a teoria da coculpabilidade também poderá levar à absolvição do agente, em razão da exclusão de culpabilidade (GRECO, 2022).
Diante disso, nada impede que o legislador insira mais uma alínea no art. 65, III, do Código Penal, de modo a positivar a aplicação do princípio da coculpabilidade como atenuante genérica. No entanto, tal obrigatoriedade acabaria limitando a liberdade de interpretação do magistrado, posto que o Estado-Juiz detém tal liberdade do analisar o caso concreto (MOURA, 2019, p. 128), embora privilegie o legislador.
Contudo, a posição mais aceita pela doutrina brasileira, e defendida neste trabalho, é de que a coculpabilidade pode ser aplicada como atenuante inominada prevista no art. 66 do CP, conforme foi proposto por Zaffaroni e Pierangeli (2006, p. 525).
Há ainda autores como Guilherme de Souza Nucci e André Estefam que, apesar de reconhecerem que o Estado pode ser muitas vezes omisso em proporcionar condições mínimas de vida a determinadas indivíduos, entendem não ser cabível a aplicação da teoria da coculpabilidade no ordenamento jurídico brasileiro como atenuante inominada, pois acreditam que seria uma forma de justificar o cometimento de delitos:
Essa visão não nos parece a melhor, pois, embora se possa concluir que o Estado deixa de prestar a devida assistência à sociedade, em muitos sentidos, não é por isso que nasce qualquer justificativa ou amparo para o cometimento de delitos, implicando em fator de atenuação necessária da pena. Aliás, fosse assim, existiriam muitos outros “coculpáveis” na rota do criminoso, como os pais que não cuidaram bem do filho ou o colega na escola que humilhou o companheiro de sala, tudo a fundamentar a aplicação da atenuante do art. 66 do Código Penal, vulgarizando-a. Esses exemplos narrados podem ser considerados como fatores de impulso ao agente para a prática de uma infração penal qualquer, mas, na realidade, em última análise, prevalece a sua própria vontade, não se podendo contemplar tais circunstâncias como suficientemente relevantes para aplicar a atenuante. (NUCCI, 2014, p. 261).
Diante das análises expostas, esse trabalho defende a aplicação da teoria da coculpabilidade como atenuante genérica, considerando que as circunstâncias fáticas e o contexto socioeconômico, influenciam de forma notória para que um agente pratique um delito, devendo ser considerada sua menor culpabilidade durante a dosimetria da pena, considerando seu baixo poder de autodeterminação.
4 A TEORIA COCULPABILIDADE E A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acerca da aplicação da Teoria da Coculpabilidade como atenuante inominada do art. 66 do CP, há divergência entre as posições adotadas pelas Turmas do Superior Tribunal de Justiça.
A 6ª Turma entende não ser possível aplicar a teoria, pois seria uma justificativa para a prática de crimes. Ainda, argumenta ser uma tese que não foi aceita pela jurisprudência e que não há provas suficientes, que demonstrem serem as condições sociais do agente capazes de o motivarem a perpetração de fatos criminosos, conforme o HC nº 63.251/ES:
PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL, ORDINÁRIO OU DE REVISÃO CRIMINAL. NÃO CABIMENTO. PENA-BASE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO ADEQUADA. REDIMENSIONAMENTO DA PENA.1. Ressalvada pessoal compreensão diversa, uniformizou o Superior Tribunal de Justiça ser inadequado o writ em substituição a recursos especial e ordinário, ou de revisão criminal, admitindo-se, de ofício, a concessão da ordem ante a constatação de ilegalidade flagrante, abuso de poder ou teratologia.2. Carece de fundamento a negativação da conduta social, motivos, circunstâncias e consequências do crime, quando lastreada em afirmações genéricas, vagas e descontextualizadas, ou quando fundadas em fatos já constitutivos do tipo penal incriminado.3. Não procede a pretendida valoração favorável ao condenado por omissão estatal na adequada persecução criminal do tráfico, pois co-culpabilidade não é admitida na jurisprudência e porque pretensão de aproveitamento da torpeza própria.4. A impressão pessoal do julgador, por ocasião do interrogatório do acusado, não serve como fundamento para admitir personalidade desviada, tendente ao crime.5. Feitos criminais sem condenação não podem motivar o trato negativo da vetorial pertinente aos antecedentes do acusado.6. Habeas corpus não conhecido, mas concedida a ordem de ofício para reduzir as penas impostas (Grifo nosso).
Por outro lado, a 5ª Turma, no HC nº 411.243/PE, tem admitido a aplicação da Teoria da Coculpabilidade na dosimetria da pena através da valoração da atenuante genérica do art. 66 do CP:
ATENUANTE GENÉRICA. ART. 66 DO CÓDIGO PENAL. COCULPABILIDADE. NECESSIDADE DE REEXAME DE FATOS E PROVAS. WRIT NÃO CONHECIDO.1. A atenuante genérica prevista no art. 66 do Código Penal pode se valer da teoria da coculpabilidade como embasamento, pois trata-se de previsão genérica, que permite ao magistrado considerar qualquer fato relevante - anterior ou posterior à prática da conduta delitiva - mesmo que não expressamente previsto em lei, para reduzir a sanção imposta ao réu;2. No caso destes autos não há elementos pré-constituídos que permitam afirmar que a conduta criminosa decorreu, ao menos em parte, de negligência estatal, de modo que a aplicação do benefício pleiteado depende de aprofundado exame dos fatos e provas coligidos ao longo da instrução para que se modifique o entendimento da Corte de origem acerca da inaplicabilidade da atenuante. Tal providência, porém, não se coaduna com os estreitos limites do habeas corpus .3. Habeas corpus não conhecido. (HC nº 411.243/PE, Quinta Turma,Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 19/12/2017, grifo nosso)
Analisando os julgados acima, é possível identificar que uma das razões usadas como justificativa para denegar a coculpabilidade, é no sentido de que ela não pode ser usada como um escudo por indivíduos que usam da criminalidade como um meio de vida. Outro argumento é que se utilizar da teoria seria uma forma de influenciar a prática de delitos pelos mais vulneráveis.
Por outro lado, diante do que foi averiguado, observa-se que o STJ, embora tenha julgados diversos acerca da temática, reconhece implicitamente a possibilidade de aplicar a teoria caso se comprove que as condições sociais do agente o tenham levado a praticar o fato delituoso. Do mesmo, o tribunal também compreende cabível a aplicação da teoria como circunstância atenuante inominada do art. 66 do Código Penal.
5 ANÁLISE DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA COCULPABILIDADE PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO AMAZONAS
5.1 Análise Quantitativa
A fim de compreender a posição do Tribunal de Justiça do Amazonas quanto à aplicação (ou não) da Teoria da Coculpabilidade e os argumentos defendidos pelos desembargadores, foram analisados 18 (dezoito) acórdãos proferidos entre os anos de 2014 a 2022.
Para a pesquisa, foram utilizadas as expressões “coculpabilidade” e “co-culpabilidade” em consulta à jurisprudência no website do TJAM (https://consultasaj.tjam.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do).
Dentre os 18 (dezoito) acórdãos analisados, 16 (dezesseis) foram em sede de apelação criminal, enquanto os outros 02 (dois) ocorreram em processos de habeas corpus e embargos de declaração.
Sobre o órgão julgador, a Primeira Câmara Criminal foi a responsável por proferir 13 (treze) acórdãos relacionados ao tema da coculpabilidade e a Segunda Câmara Criminal responsável pelos demais 05 (cinco) acórdãos.
Acerca do número de decisões proferidas em relação aos desembargadores relatores, em ordem decrescente, tem-se: Sabino da Silva Marques (5); Jomar Ricardo Saunders Fernandes (4); José Hamilton Saraiva dos Santos (3); João Mauro Bessa (2); Jorge Manoel Lopes Lins (2); Carla Maria Santos dos Reis (1); Djalma Martins da Costa (1).
No que diz respeito às Comarcas de origem dos processos, Manaus foi a comarca com maior número de acórdãos sobre o tema, somando 12 (doze) decisões; posteriormente, tem-se Benjamin Constant com 02 (duas) decisões; e por fim, as comarcas de Itacoatiara, Humaitá, Parintins e Iranduba apresentaram somente 01 (uma) decisão.
Dos acórdãos analisados, sobre os casos concretos, a teoria da coculpabilidade foi utilizada na defesa de condenados pelos crimes de tráfico de drogas (4), furto e furto qualificado (4) e roubo e roubo majorado (10).
Com o intuito de ilustrar o número de acórdãos, o ano em que foram julgados, a comarca de origem dos processos e os crimes os quais foram relacionados, apresenta-se a tabela abaixo:
Processo nº |
Ano de Julgamento |
Comarca de Origem |
Delito |
0635256-95.2022.8.04.0001 |
2022 |
Manaus |
Furto Qualificado |
0000611-08.2015.8.04.4700 |
2022 |
Itacoatiara |
Tráfico de Drogas |
0000198-51.2017.8.04.4400 |
2022 |
Humaitá |
Tráfico de Drogas |
0242084-61.2011.8.04.0001 |
2020 |
Manaus |
Roubo |
4006416-64.2019.8.04.0000 |
2020 |
Manaus |
Tráfico de Drogas |
0660800-27.2018.8.04.0001 |
2020 |
Manaus |
Tráfico de Drogas |
0253364-24.2014.8.04.0001 |
2019 |
Manaus |
Roubo |
0604025-26.2017.8.04.0001 |
2018 |
Manaus |
Roubo |
0642204-63.2016.8.04.0001 |
2018 |
Manaus |
Roubo |
0004747-15.2017.8.04.0000 |
2017 |
Parintins |
Roubo Majorado |
0005818-52.2017.8.04.0000 |
2017 |
Manaus |
Furto Qualificado |
0231323-29.2015.8.04.0001 |
2017 |
Manaus |
Roubo |
0212151-67.2016.8.04.0001 |
2017 |
Manaus |
Roubo |
0211220-64.2016.8.04.0001 |
2016 |
Manaus |
Roubo Majorado |
0002716-56.2016.8.04.0000 |
2016 |
Iranduba |
Roubo |
0001000-91.2016.8.04.0000 |
2016 |
Benjamin Constant |
Furto Qualificado |
0001001-76.2016.8.04.0000 |
2016 |
Benjamin Constant |
Roubo |
0220759-93.2012.8.04.0001 |
2014 |
Manaus |
Furto |
Fonte: Tabela elaborada pela autora.
5.2 Análise Qualitativa
A Teoria da Coculpabilidade, dentre os acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Amazonas e analisados nesta pesquisa, apesar de variados os motivos, não foi aplicada como circunstância atenuante inominada do art. 66 do CP por nenhuma decisão do órgão julgador, seja da Primeira ou Segunda Câmara Criminal.
Há acórdãos que, embora o Relator não considere ser inaplicável a Teoria da Coculpabilidade como atenuante genérica inominada, na forma prevista no art. 66 do CP, deixa de reconhecer a sua aplicação em virtude de, no caso concreto, não estar comprovada a situação de efetiva vulnerabilidade social do acusado e, mesmo que venha a reconhecer esse estado, a vulnerabilidade não foi determinante para a prática do delito, principalmente nas situações em que o condenado possui maus antecedentes ou é reincidente, ou não estiver comprovado que o Estado deixou de oferecer as mínimas condições para que o acusado tivesse uma vida digna.
Em contrapartida, há acórdãos em que o órgão colegiado desconhece, desde logo, a aplicação da Teoria da Coculpabilidade, em conformidade com entendimento dos Tribunais Superiores, posto que entende ser uma forma de “premiação” ao agente delitivo que escolheu seguir o caminho da criminalidade, bem como considera ser uma forma de estímulo para que o acusado cometa novos crimes.
Há ainda decisões em que se aplica a Súmula nº 231 do STJ, no sentido de que não deve ser admitida a aplicação da Teoria da Coculpabilidade como atenuante inominada na segunda fase da dosimetria da pena, tendo em vista que a pena-base já foi fixada no mínimo legal.
Depreende-se que, mesmo nas decisões em que não há a rejeição completa da aplicação da Teoria da Coculpabilidade como atenuante inominada do art. 66 do CP, deve-se já estar comprovado nos autos o grau de vulnerabilidade social que se encontra o acusado e que foi conferido a ele desde o seu nascimento, deve-se também demonstrar que a vulnerabilidade social foi condicionante para o cometimento do delito, bem como que o Estado não proporcionou os direitos sociais mínimos ao acusado.
Dessa forma, nota-se a dificuldade de ser reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro, em especial, pela justiça estadual amazonense, a Teoria da Coculpabilidade, mesmo que evidente a omissão estatal em promover inclusão social de uma grande parcela da população brasileira.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Teoria da Coculpabilidade funda-se na ideia de que o Estado e a sociedade têm uma certa parcela de culpa pelo injusto penal cometido pelo autor que, durante a sua vivência, não foi prestigiado com o alcance de certos direitos sociais mínimos que deveriam ser a ele oportunizados pelo Estado, sendo este o responsável por garantir a efetivação de direitos fundamentais, conforme a Constituição Federal de 1988.
A doutrina se divide quanto à aplicação da Teoria da Coculpabilidade no ordenamento pátrio brasileiro. Alguns doutrinadores acreditam que reconhecer a aplicação da Teoria seria uma forma de evidenciar a falha do sistema penal brasileiro, no que diz respeito à ampla seletividade do poder punitivo estatal que escolhe os mais desamparados para cumprir a pena em contraste com os demais que obtiveram do Estado várias oportunidades para usufruir de uma vida digna. Há, no entanto, outro entendimento por diversos doutrinadores no sentido de que reconhecer a aplicação da Teoria da Coculpabilidade, mesmo como atenuante genérica inominada na aplicação da pena, seria uma forma de bonificar o autor do ilícito penal, além de estimular o cometimento de mais crimes.
Nesse mesmo sentido, vem sendo adotada pelo Tribunal de Justiça do Amazonas, os seguintes posicionamentos: por um lado, há o entendimento de que a Teoria da Coculpabilidade pode ser, de fato, aplicada no ordenamento jurídico brasileiro como circunstância atenuante inominada, nos termos do art. 66 do Código Penal, desde que haja comprovação do grau de vulnerabilidade social vivenciado pelo acusado e de que isso o levou ao cometimento do delito. No entanto, e de forma majoritária, tem-se a posição de que a coculpabilidade não é uma teoria adotada pela justiça brasileira, nem mesmo como atenuante inominada, visto que significaria uma forma de o acusado utilizar dessa premissa como um “escudo” para justificar o cometimento de novos crimes.
Assim, é incontestável que o Poder Judiciário Amazonense não sabe lidar com o problema de desigualdade social que assola o Estado, ao utilizar-se de uma perspectiva punitivista e revanchista para punir os perpetrados de um fato típico e ilícito, sem considerar todas as questões sociais que envolvem a prática do injusto penal.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1997. Edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/3/67EAFA6D4D04FB_Oracao-aos-Mocos.pdf Acesso em: 20 abri. 2023.
BITENCOURT, C. R. Tratado de direito penal. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de janeiro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 3 jan. 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 10 mar. 2023.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 10 mar. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n° 231. A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [1999]. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_17_capSumula231.pdf. Acesso em: Acesso em: 10 mar. 2023.
COELHO, Ícaro Gomes; SOARES FILHO, Sidney. A aplicação da teoria da coculpabilidade como atenuante genérica do art. 66 do Código Penal à luz da jurisprudência dos tribunais de justiça brasileiros. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 11, n. 3, p. 1029-1056, 2016.
ESTEFAM, A. Direito penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book.
GASPAR, Marcela Goulart; BAYER, Diego. Coculpabilidade e a responsabilização do Estado. In: Temiminós Revista Científica, v. 4, n. 2, p. 109-122, 2014.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume 1: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 6. ed. Niterói: Impetus, 2011.
GUILHERME, Lázaro Samuel Gonçalves. Coculpabilidade Penal: Uma Questão Social. Belo Horizonte: D'Plácido, 2019.
JESUS, Damásio de; ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral. 37. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2020.
MARAT, Jean Paul. Plano de Legislação Criminal. São Paulo: Quartier Latim, 2008.
MARÇAL, Fernanda Lira; FILHO, Sidney Soares. O princípio da co-culpabilidade e sua aplicação no Direito Penal Brasileiro. PublicaDireito, 2011. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3cc578f087ea520a. Acesso em: 14 mar. 2023.
MARINS, Milenny Lee Cabral. A Teoria da Coculpabilidade na Justiça Estadual Mineira: um Estudo Empírico-quantitativo. Revista Avant, Florianópolis, v. 6, n.1, p. 147-174, junho, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/235762. Acesso em: 14 mar. 2023.
MOURA, Grégore Moreira de. Do Princípio da Co-Culpabilidade no Direito Penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.
NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. 6. ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito. 2. ed. São Paulo: Tirant, 2020. E-book.
VON LISZT, Fran. Tratado de Direito Penal Allemão. Tomo I. Trad. de José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro. F. Briguiet e Cia, 1899.
ZAFFARONI, E. R. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro V.1. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANNA CAROLINE SERRA DE ÁVILA, . A aplicação da teoria da coculpabilidade como atenuante inominada do art. 66 do cp: uma análise dos acórdãos do Tribunal de Justiça do Amazonas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jun 2023, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61554/a-aplicao-da-teoria-da-coculpabilidade-como-atenuante-inominada-do-art-66-do-cp-uma-anlise-dos-acrdos-do-tribunal-de-justia-do-amazonas. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: LEONARDO DE SOUZA MARTINS
Por: Willian Douglas de Faria
Por: BRUNA RAPOSO JORGE
Por: IGOR DANIEL BORDINI MARTINENA
Por: PAULO BARBOSA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO
Precisa estar logado para fazer comentários.