RESUMO: No Brasil, país multirracial, permanecem altos os índices de desigualdade em função da cor, credo e origem dos indivíduos, assim como a prática de racismo e injúria racial. Nesta linha, o presente artigo analisa a eficácia das normas antirracismo presentes no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente a Lei nº 7.716/89 e o artigo 140, §3º do Código Penal, de modo a verificar se são suficientes para coibir a prática de racismo no Brasil. Ocorre que surgem dúvidas sobre a força coercitiva da legislação uma vez que se nota certa dificuldade de se aplicar no caso concreto os preceitos estabelecidos pela Lei nº 7.716/89 ou outras legislações tardias. Há por parte dos Tribunais, a tendência de flexibilizar ou relativizar as regras, sendo limitados os casos de condenação de um indivíduo por discriminação racial, justamente por não se considerar configurado o elemento subjetivo consistente na finalidade de discriminar o ofendido em razão de sua raça, cor, etnia ou origem. Dessa maneira, a avaliação das disposições legais assim como sua aplicação por parte do Poder Judiciário poderia levar a crer que no Brasil, inexistem infrações de cunho racial tendo em vista que, da grande maioria das denúncias efetuadas, poucas se convertem em processos criminais, sendo consideravelmente baixo o número de pessoas que são condenadas pelo delito. Ao lado dessa análise relativa ao Poder Judiciário, o presente trabalho também aborda os recentes avanços jurisprudenciais e o enquadramento de texto normativos como a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
Palavras-chave: Eficácia penal; jurisprudência internacional; princípios; lei de crimes raciais; processo penal.
THE PERFORMANCE OF THE BRAZILIAN JUDICIAL POWER AGAINST RACIAL DISCRIMINATION IN ACCORDANCE WITH PREMISES OF THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS
ABSTRACT: In Brazil, a multiracial country, the rates of inequality due to the color, creed and origin of individuals remain high, as well as practices of racism or racial injury. In this line, this article intends to verify the effectiveness of the anti-racism rules present in the Brazilian legal system, especially Law No 7,716/89 and Article 140, §3 of the Penal Code, in order to assess whether they are sufficient to curb racism practices in Brazil. It occurs that doubts arise about the coercive force of the legislation, since there is some difficulty in applying in the specific case the precepts established by Law No. 7,716/89 or other late legislation, because the courts tend to relax or relativize the rules, and the cases of conviction of an individual for racial discrimination are limited, precisely because the subjective element consistent in the purpose of discriminating the offended due to their race, color, ethnicity or origin is not configured. Thus, the evaluation of legal provisions as well as their application by the Judiciary could lead to believe that in Brazil, there are no racial practices considering that a large majority of complaints made for committing the crime, few become criminal cases, being considerably low the number of people who are convicted of the crime. In addition, this paper seeks to analyze recent jurisprudential advances and the framework of normative text with the Inter-American Convention Against Racism, Racial Discrimination and Related Forms of Intolerance.
Keywords: Criminal effectiveness. International Jurisprudence. Principles. Racial Crimes Act. Criminal Proceedings.
SUMÁRIO: Introdução. 1 Contexto Histórico da Legislação Brasileira. 2 Injúria Racial e Racismo. 3 Conclusão. 4 Referências
INTRODUÇÃO
O racismo poder se conceituado como um conjunto de ideias de caráter depreciativo, por meio do qual se menospreza ou inferioriza determinada raça, cultura ou costume. O indivíduo racista é incapaz de aceitar ou conviver com as diferenças, tendo em vista o seu tipo de pensamento. O crime de racismo é considerado, pela Constituição Federal, como crime inafiançável e imprescritível e é tipificado na Lei nº 7.716/89, conhecida como Lei de Racismo, Em razão disso o tema em questão será desenvolvido sob a ótica do Direito Penal.
Sob essa perspectiva, uma difícil e indispensável tarefa ocupa os estudiosos e aplicadores do Direito no sentido de redirecionar o ordenamento jurídico brasileiro conforme a alta relevância das questões raciais, objetos dos compromissos assumidos da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmada na Guatemala, para a reformulação de importantes institutos relacionados ao tema, entre eles os de Direito Penal. É essencial, pois, a adoção de postura interpretativa que considere a raça como fator elementar para o entendimento e a concretização das normas jurídicas que buscam reestruturar as instituições e suas práticas para o combate ao racismo, à discriminação racial e às formas correlatas de intolerância.
A interação entre a legislação internacional e o Direito local, conforme as exigências naquela contidas, não apenas contribui para um acréscimo ao texto normativo como também traduz desafio quanto à reformulação do âmbito social, pois o fato de o Brasil ter se tornado signatário de compromissos internacionais que buscam a proteção dos direitos humanos contra violações causadas pelas diversas formas de manifestação do racismo, da discriminação racial e outras formas de intolerância, redefine o pano de fundo da realidade e de seu sentido para o processo de concretização da norma.
1 CONTEXTO HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
O estudo histórico aqui realizado é de suma importância para o entendimento inicial do problema da pesquisa, já que mostrou como os instrumentos legais têm auxiliado no combate às práticas de discriminação motivadas pela raça e pela cor e será essencial na compreensão da importância da condição de inafiançabilidade do crime de racismo para se resguardar a dignidade da pessoa humana, um dos bens jurídicos tutelados pela Lei nº 7.716/89.
Em 1888, com a abolição da escravatura, permaneceu a carga de discriminação e preconceito por parte da sociedade contra os escravos libertos. Mesmo após a aprovação dos Códigos Penais de 1890 e 1940, não houve qualquer dispositivo que mencionasse o combate à discriminação racial. Apenas em 1951, com a chamada Lei Afonso Arinos, se iniciou, no Brasil o combate legal à prática de discriminação, mediante a previsão de que a discriminação de raça e cor eram vistas como contravenções penais. A lei não teve o resultado esperado, tendo sido pouco aplicada pelo Judiciário. Em 1985 a Lei Afonso Arinos foi alterada pela Lei nº 7.437 somando-se às infrações a discriminação de natureza sexual ou de estado civil. Em 1969 o Brasil assinou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que não promoveu qualquer alteração no ordenamento jurídico brasileiro para incrementar o combate à discriminação racial[1].
Mesmo com a abolição da escravatura, manteve-se inalterada a carga de discriminação. Segundo trouxe COIMBRA (2012, p. 2), à época, não havia, no ordenamento jurídico brasileiro, qualquer vedação às práticas discriminatórias. Conclui o doutrinador que foi apenas em 1985, com a aprovação da Lei nº 1.390, de 03 de julho de 1951, popularmente conhecida como Lei Afonso Arinos, que se iniciou o combate à discriminação de raça e cor, sendo as condutas consideradas contravenções penais. Assim, até a promulgação da Constituição Federal de 1988, o racismo era considerado apenas uma contravenção penal, uma infração de menor potencial ofensivo, sujeita a pena de prisão simples ou multa. Foi, portanto, em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, que foi dada à prática de racismo a devida importância, com a previsão, no artigo 5º, inc. XLII, de ser o racismo um crime inafiançável, imprescritível e sujeito a pena de reclusão. Reconhecida pelo legislador constituinte a importância de lidar com as práticas discriminatórias e diante de altos índices de violências motivadas por questões de raça, é que se concedeu tratamento diferenciado para esse tipo penal, classificando-o como imprescritível e inafiançável, além de sujeito a pena de reclusão.
Durante a criação da norma o Constituinte, Carlos Alberto Caó apresentou a presente justificativa a Emenda Aditiva que originou o artigo 5º, inc. XLII da Carta Maior:
passados praticamente cem anos da data da abolição, ainda não se comprovou a revolução política deflagrada e iniciada em 1888. Pois imperam no País diferentes formas de discriminação racial.
O dispositivo constitucional se restou a repreender e penalizar, na mesma medida da afronta, o agente que motivado por questões raciais, cometesse quaisquer atos de discriminação. Posteriormente à promulgação da Constituição Federal de 1988, na tentativa de abolir as práticas discriminatórias no Brasil, foi aprovada a Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que elenca os crimes resultantes de preconceito, relacionando dois gêneros de conduta, a discriminação e o preconceito, objetos sobre os quais recaem essas condutas, sendo eles, raça, cor, etnia, religião e procedência nacional[2]. Aduz ainda o doutrinador:
A Lei 7.716, de 05.01.1989, pune condutas discriminatórias dirigidas a um determinado grupo ou coletividade, tais como: negar ou obstar emprego em empresa privada, recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador e impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido[3].
A Lei de Racismo pune as condutas discriminatórias direcionadas a determinados grupos, apresentando uma série de práticas consideradas preconceituosas, como a negativa de proposta de emprego em empresa privada, a recusa do acesso a determinado estabelecimento comercial, a negativa de atendimento por questões raciais, o impedimento ao acesso e uso de transportes públicos ou qualquer outro meio de transporte.
Em síntese, ao longo dos anos surgiu uma série de instrumentos legais objetivando a abolição da discriminação e das práticas de racismo, e que, sem dúvidas tiveram a sua considerável importância na formação de um Estado Jurídico de Direitos, mas as mais eficazes até o momento foram: a Constituição Federal de 1988, que criminalizou a prática de racismo, e lhe impôs as características de inafiançabilidade e imprescritibilidade e, como instrumento infraconstitucional, a Lei do Racismo, que elenca uma série de práticas tidas como discriminatórias, acompanhando o disposto no texto constitucional.
Em 19 de fevereiro de 2021 foi publicado no Diário Oficial do Senado Federal o Decreto Legislativo nº 1/2021, que aprovou o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo. O conteúdo normativo da convenção foi aprovado nos termos do §3º do artigo 5º da Constituição Federal, conferindo uma inovação normativa ao Brasil. Diferentemente da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, aprovada pela Organização das Nações Unidades (ONU) em 1967 e ratificada pelo Brasil em 1969, esse documento mais recente é mais abrangente, reprimindo práticas discriminatórias nos ambientes privados.
Nesta linha, em 28 de outubro de 2021, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento (Habeas Corpus 154.248) que o crime de injúria racial é espécie do gênero “racismo”, portanto, é imprescritível, conforme o artigo 5º, XLII, da Constituição Federal. Em decisão por 8 votos a 1, restou vencido o ministro Nunes Marques. Naquele caso, uma idosa de aproximadamente 80 anos foi condenada por injúria racial a 1 ano de reclusão e 10 dias-multa, pela 1ª Vara Criminal de Brasília por ter chamado uma frentista de um posto de combustíveis de "negrinha nojenta, ignorante e atrevida". A defesa pediu a extinção da punibilidade pelo transcurso de metade do prazo prescricional, pois a ré tem mais de 70 anos, porém, o Superior Tribunal de Justiça negou o pedido, considerando o delito imprescritível. A defesa então impetrou Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal.
O relator do caso, Ministro Edson Fachin, votou a favor da equiparação da injúria racial (artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal) ao crime de racismo (previsto na Lei no 7.716/89) entendendo que não há como reconhecer a extinção da punibilidade a acusados por injúria racial, afinal, o artigo 5º, XLII, da Constituição estabelece que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei".
Em seu voto, o Ministro Alexandre de Moraes seguiu o relator apontando que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (artigo 3º, IV, da Constituição). Além disso, o país deve basear suas relações internacionais pelo "repúdio ao terrorismo e ao racismo" (artigo 4º, VIII, da Constituição). Complementando com o artigo 5º, XLII, da Carta Magna, que determina que o racismo é crime inafiançável e imprescritível.
Referir-se a alguém como expressões preconceituosas, como 'negrinha nojenta, ignorante e atrevida', foi uma manifestação ilícita e preconceituosa em razão da condição de negra da vítima. Então houve um ato de racismo.
Dessa forma, a decisão do Supremo Tribunal Federal reafirma a posição do Superior Tribunal de Justiça que firmou o entendimento de que a injúria racial é uma modalidade do crime de racismo e, portanto, não pode estar sujeito aos prazos decadenciais que incidem sobre os crimes contra a honra. A decisão é acertada, sobretudo porque em muitos casos se presenciava a desclassificação do delito de racismo para injúria racial e, nesses casos, era reconhecido o decurso de prazo decadencial, o que ocasionava a impunidade do agressor, que ficava, portanto, sem condenação.
3 INJÚRIA RACIAL E RACISMO
Em linhas gerais, para a Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP[4] (BRASIL, 2016), o racismo atinge a dignidade humana das pessoas que o sofrem, impedindo seu acesso a determinado local, ao trabalho, aos serviços de saúde e outros, tratando-se de crime inafiançável e imprescritível. A injúria racial, por sua vez, alcança a honra subjetiva do agente, afetando seus valores morais e sua honra. Trata-se de crime suscetível de fiança.
Tal como analisado por aquela entidade, o crime de racismo se dirige a um grupo de indivíduos e atinge a dignidade humana das pessoas que o sofrem, dificultando ou impedindo seu acesso a determinados locais que, para as de outras raças, são de acesso livre. A injúria racial, por seu turno, se dirige a um indivíduo levando em consideração características particulares deste, atingindo sua honra subjetiva. O crime de injúria racial decorre da ofensa à dignidade ou ao decoro de um indivíduo, consistindo na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, sendo previsto para o crime no artigo 140, §3º do Código Penal pena de reclusão de um a três anos e multa. E, ainda, analisa a mencionada comissão, o crime de injúria racial se consuma com a ofensa à dignidade ou ao decoro de um indivíduo por razões de raça, cor, religião ou origem, Nesse caso, o ofendido é uma pessoa específica.
JESUS (2008, p. 2-3) aduz que[5]:
O art. 2º da Lei n. 9.459, de 13 de maio de 1997, acrescentou um tipo qualificado ao delito de injúria, impondo penas de reclusão, de um a três anos, e multa, se cometida mediante ‘utilização de elementos referentes a raça, cor, religião ou origem’. A alteração legislativa foi motivada pelo fato de que réus acusados da prática de crimes descritos na Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (preconceito de raça ou de cor), geralmente alegavam ter praticado somente injúria, de menor gravidade, sendo beneficiados pela desclassificação. Por isso o legislador resolveu criar uma forma típica qualificada envolvendo valores concernentes a raça, cor etc., agravando a pena. Andou mal mais uma vez. De acordo com a intenção da lei nova, chamar alguém de ‘negro’, ‘preto’, ‘pretão’, ‘negrão’, ‘turco’, ‘africano’, ‘judeu’, ‘baiano’, ‘japa’ etc., desde que com vontade de lhe ofender a honra subjetiva relacionada com cor, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a uma pena mínima de um ano de reclusão, além de multa.
De acordo com o autor, em 13 de maio de 1997, foi aprovada a Lei n° 9.459, que acrescentou um tipo qualificado ao crime de injúria, impondo ao agente infrator as penas de reclusão de 1 a 3 anos e multa, se o crime for realizado em função de elementos referentes à raça, à cor, à religião, ou à origem da vítima. Explica que até a alteração legislativa, réus aos quais eram imputados os delitos prescritos pela Lei n° 7.716/89 se valiam do argumento de que teriam atingido a dignidade e o decoro de uma pessoa específica e por isso havia a desclassificação do crime de racismo para o crime de injúria disposto no artigo 140, caput, do Código Penal, ao qual é imposto pena de detenção de 1 a 6 meses ou multa.
Percebe-se que há uma notória dificuldade em se aplicar no caso concreto os preceitos estabelecidos pela Lei nº 7.716/89. Isso porque parece existir, por parte dos Tribunais, uma certa tendência a ser condescendente com práticas discriminatórias, sendo limitados os casos em que houve a condenação de uma pessoa branca por discriminação racial. Segundo dados obtidos do Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul[6], entre janeiro de 2005 e dezembro de 2018 foram movidas 6.667 ações envolvendo os dois crimes citados, onde se obteve um índice de condenações de 6,8%, ou seja, 349 casos. Nesta linha, importante ressaltar algumas decisões com argumentos discriminatórios, em que os desembargadores alegam que a prova colhida não se apresentou como prova basilar a ponto de ocasionar a condenação com base nos artigos da legislação existente. Nesse sentido, importante citar a apelação crime nº 70015082118, proferida no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
Pode-se afirmar que é possível que os réus tenham praticado o crime de racismo, nos termos da denúncia. O fato é que não há certeza quanto a isto. (grifos do original)
Nesta decisão, os desembargadores culparam a conduta da vítima, pois, segundo eles, era possível que a esta, pelo fato de ter sido barrada ao entrar no estabelecimento ao qual se destinara, estivesse “irritada” com o fato e, a partir disso, pode ter compreendido tal atitude como uma prática de discriminação fundamentada na cor de sua pele. Justamente nesse sentido que algumas fundamentações merecem questionamento. Mesmo havendo decisões alinhadas legalmente e em um discurso construído pelo campo jurídico, isso, por si só, não é sinal de que algumas práticas não aconteçam justamente para ocultar outras como, por exemplo, ocultar a permanência das discriminações raciais, por meio dessas fundamentações permanentes.
Para fundamentar essas desclassificações, alguns conceitos precisos foram criados para confortar as decisões. Nesta linha, os desembargadores, em seus acórdãos, sustentaram suas decisões enfatizando que para que o crime de racismo previsto na lei fosse caracterizado, seria necessária a ofensa à “honra objetiva”, isto é, não a do indivíduo propriamente dito, mas da comunidade negra como um todo. No sentido diverso, a injúria racial é entendida pela ofensa a “honra subjetiva”, isto é, a honra individual. Em uma das decisões em que houve condenação pelo crime de racismo, os julgadores se basearam na seguinte fala:
Tu não poderia morar aqui, porque tu é negra, e aqui só mora gente branca; Sua negra suja, tu nem devia estar aqui, porque aqui é lugar de branco, alemão, e tu é negra; Sua negra puta, suja, vagabunda bem como dizerem ao marido da vítima, Atir Backes: Que nós que somos alemães, temos de nos entender, e ela é negra, praticaram discriminação de cor.[7]
Nessa decisão, apontam a caracterização do crime previsto no artigo 20, da Lei no 7.716/89, pois a ofensa não se dirigiria somente a vítima, mas a qualquer negro que ali estivesse presente.
Em outro lado, no crime de injúria, onde defendem os magistrados que o que é atingido é a honra subjetiva, isto e, a vítima tão somente, valeram-se das seguintes falas:
(...) Chamar o ofendido de “negro baderneiro, negro bandido, e negro quadrilheiro” não constitui crime de racismo, mas sim de injúria qualificada (...)[8]”
Ou, ainda
“(...) Chamar o ofendido de “negro sujo, vagabundo e sem vergonha” não constitui crime de racismo, mas sim de delito contra a honra (injúria qualificada), que é de ação penal privada (...)[9].
É perceptível a omissão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em sustentar a não punição pelo crime de racismo. Vê-se que, mesmo existindo o artigo 140, §3º, do Código Penal, que tem como escopo combater e criminalizar as condutas discriminatórias, os demais mecanismos como a prescrição e decadência atingem este dispositivo, pois estão regulados como injúria e que para tal esses prazos são passíveis de aplicação, diferente do que ocorre no crime de racismo, já que a Constituição Federal em vigência assegura em seu no artigo 5º, XLII[10], a imprescritibilidade e a inafiançabilidade dos crimes que tenham como plano de fundo tal prática.
Diante do baixo número de decisões proferidas pelo crime de racismo, configura-se a influência no imaginário popular quanto à inexistência desse crime e a permanência da “democracia racial” e, consequentemente, altos índices de impunidade.[11]
Além disso, torna-se visível a ineficácia de alguns dispositivos legais, pois, em que pese a existência da criminalização dos atos ilícitos, isso não é o suficiente para que haja conscientização quanto à necessidade de repúdio a essas práticas, tampouco que o órgão responsável pela efetiva aplicação dos dispositivos se posicionem aplicando o disposto em lei.
Vê-se, portanto, que os diferentes jogos de poder que se perpetuam para a construção de determinado posicionamento permeiam as fundamentações dos tribunais no que se refere ao crime de racismo. Essa afirmação se faz pertinente porque a não efetivação do disposto na lei, a qual dispõe precisamente sobre o crime de racismo, é uma forma de ocultar tal prática, na contemporaneidade, sustentando uma ideia de suposta “democracia racial”.
Dessa maneira, a avaliação do crime por parte do Poder Judiciário poderia levar a crer que no Brasil, inexistem práticas de racismo. Argui o autor que da grande maioria das denúncias efetuadas pelo cometimento do crime, poucas se convertem em processos criminais, sendo ínfimo o número de pessoas que são condenadas pelo delito.
Completa que o baixo índice de condenações decorre da falta de investigação diligente, imparcial e efetiva e pela discricionariedade do promotor responsável pela denúncia e tipificação do crime, levando à denegação de justiça e à impunidade dos infratores.
No mesmo sentido, exploram SILVA et al (2010), com o argumento de que a aplicação da legislação pelos tribunais decorre de uma interpretação equivocada dos supostos avanços da legislação. Assim, questiona se a legislação antirracista seria pouco eficaz ou se ela não está tendo a aplicação esperada. Quanto ao Judiciário, menciona-se frequentemente que juízes, que são brancos em sua maioria, seriam incapazes de compreender o problema racial enfrentados pela sociedade brasileira ou se poderiam estar adotando uma postura racista.
Consideram os autores que a aplicação equivocada da legislação antirracista decorre da falsa impressão de avanços na legislação. Sabendo disso, levantam-se duas hipóteses: ou a legislação antirracista não é eficaz como se espera ou não fora aplicada da forma adequada. Explicam, ainda, que essa má compreensão da lei pode estar vinculada à incapacidade dos juízes, que em sua maioria são brancos, de entender o problema racial vivenciado na sociedade brasileira.
Em 29 de julho de 2021, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apresentou, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), o caso de Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira referente ao Brasil (Relatório 84/06 – Petição 1068/03)[12]. O caso diz respeito à discriminação racial no âmbito do trabalho, sofrida por Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira em 1998 e a situação de impunidade por esses atos.
Após um anúncio sobre vaga de emprego publicado no jornal Folha de São Paulo sobre uma vaga na empresa Nipomed, as vítimas, ambas afrodescendentes, tiveram interesse nessas vagas e foram até a empresa ré. A pessoa encarregada, de pronto, as informou de que todas as vagas estavam já preenchidas, sem solicitar informações ou dar explicações às candidatas. Algumas horas depois, uma mulher branca esteve na referida empresa também manifestando interesse na vaga anunciada e foi recebida pela mesma pessoa, que a contratou no exato momento.
Após tomar conhecimento sobre o fato de que havia mais vagas na empresa, a vítima Gisele Ana Ferreira visitou a empresa novamente e foi recebida por outro recrutador, que lhe pediu para preencher o formulário de seleção agindo de uma maneira diferente da primeira abordagem, porém, ela nunca foi contatada.
No dia 27 de março de 1998, as vítimas apresentaram uma denúncia por discriminação e 5 meses depois, o Ministério Público, em seus argumentos finais, corroborou a acusação. No entanto, uma semana depois, o juiz julgou improcedente a ação penal e absolveu o acusado. O recurso apresentado demorou quase 4 anos para ser encaminhado ao tribunal de apelação. No dia 11 de agosto de 2004, o tribunal entendeu por manter a ação penal e condenou o réu a dois anos de prisão em regime semiaberto pelo crime de discriminação racial ou de cor, mas declarou a extinção da punibilidade por prescrição. No dia 5 de outubro de 2004, o Ministério Público apresentou um recurso alegando que o crime de racismo é imprescritível de acordo com a Constituição Federal Brasileira, o qual foi aceito. No dia 26 de outubro de 2006, foi emitido um mandado de prisão e, em 6 de junho de 2007, foi concedido um recurso para que o condenado cumprisse a sentença em regime aberto. No dia 7 de novembro de 2007 o condenado interpôs recurso de apelação, que estava ainda pendente, de acordo com a informação disponível no momento da adoção do Relatório de Mérito. Por outro lado, no dia 25 de outubro de 2006, Neusa dos Santos Nascimento iniciou uma ação civil para reparação de danos, que foi rejeitada no dia 5 de dezembro de 2007.
Note-se que o tribunal local tem um entendimento extremamente controverso e despreparado sobre o tema, o que acabou por gerar uma citação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no seu Relatório de Mérito. A Comissão registrou o contexto geral de discriminação e falta de acesso à justiça da população afrodescendente no Brasil, especialmente das mulheres afrodescendentes, e destacou que os fatos denunciados naquele caso coincidiam com a informação já conhecida pela Comissão a respeito do referido contexto. Além disso, analisou que no momento de adoção do Relatório de Mérito, apesar da existência de uma condenação penal pelo delito de discriminação, não haveria uma decisão judicial definitiva, não se teria implementado nenhuma medida de restituição dos direitos violados, nem se teria buscado uma reparação integral das vítimas. A Comissão considerou que os mais de 20 anos transcorridos desde que a denúncia foi apresentada constituem uma demora excessiva que não foi adequadamente justificada.
Diante do que foi exposto, a Comissão Interamericana entendeu que embora o ato de discriminação racial tenha ocorrido numa relação havida entre particulares, o Estado brasileiro tinha duas obrigações internacionais inafastáveis. A primeira era a de “velar para que nessa relação fossem respeitados os direitos humanos das partes a fim de prevenir a ocorrência de uma violação”; e, a segunda, de, “na eventualidade de haver a violação, buscar, diligentemente, investigar, processar e sancionar o autor da violação, nos termos requeridos pela Convenção Americana”. A Comissão concluiu que o Estado é, portanto, responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial reconhecidos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos direitos à igualdade perante a lei e ao trabalho consagrados nos artigos 24 e 26, e as obrigações estabelecidas no artigo 1.1, em detrimento das vítimas.
Assim, se o Estado se omite e com isso acaba permitindo que a discriminação racial, como violação de direitos humanos, permaneça impune, descumpre o artigo 24 da Convenção Americana[13] combinado com o artigo 1.1 do mesmo tratado[14], por ofensa ao princípio da igualdade e do correlato direito à igual proteção perante a lei.
A referida omissão das autoridades brasileiras em dar curso à persecução penal de forma “diligente e adequada” eleva o risco de reproduzir o racismo institucional, em que o Poder Judiciário é visto pela comunidade afrodescendente como um poder racista, além do impacto que tem sobre a sociedade na medida em que a impunidade estimula a prática do racismo. Tal quadro não deve continuar, o que é citado na decisão da CIDH, a conscientização institucional do Poder Judiciário para “tornar efetivo o combate à discriminação racial e ao racismo”.
3 CONCLUSÃO
Neste estudo foi possível observar que o direito é uma ciência produtora de premissas e verdades e, com essa característica, permite inserir no imaginário social a reprodução de diferentes entendimentos como verdadeiros pois, ao ser produtor de saber, detêm a força.
Nessa linha, por ser ligado por diversos dispostos legais com autonomia entre si, nota-se no ordenamento jurídico a presença de dispositivos específicos que acabam por se anularem, tendo em vista a incompatibilidade entre as regras gerais e específicas. Como produtoras de decisões, as discussões realizadas na jurisprudência possibilitam o pronunciamento de discursos e consequente produção de verdade.
Ao analisar especificamente as condenações proferidas no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é possível notar a divergência existente quanto à aplicação entre o disposto no artigo 20, da Lei no 7.716/89 e o disposto no artigo 140, §3º, do Código Penal. A partir da análise de casos, foi possível apontar a inefetividade da primeira lei tendo em vista a recorrente desclassificação do crime de racismo para o de injúria qualificada pelo preconceito de cor, mesmo com a recente decisão proferida pelo Superior Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 154.48/DF.
Além disso, é notável que grande parte dos julgados alcançados pela palavra racismo tramitavam na seara cível e em sua maioria com um alto índice de condenações em danos morais, evidenciando a pequena monta de processos criminais tratando sobre o preconceito de cor.
A existência de dispositivos internacionais de combate a todas as formas de discriminação racial, por si só, significam um grande avanço ao enfrentamento da questão e a Convenção reflete o entendimento da comunidade internacional sobre a importância e urgência em combater o racismo sempre analisando a diversidade cultural dos povos que convivem em determinado lugar.
Por meio da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial se busca proteger os valores da igualdade e tolerância, baseados no respeito às diferenças. No Direito Brasileiro se percebe um constante aperfeiçoamento legislativo sobre a matéria, porém, em contrapartida, é notória a resistência do próprio Poder Judiciário em implementar a legislação sobre o tema, ignorando a aplicação do texto normativo sob a justificativa do mito da democracia racial brasileira.
Diante dos dados colhidos e das fundamentações apresentadas nos julgados, é possível concluir que a lei de crimes raciais, por si, só não detém poder coercitivo capaz de influenciar pessoas a mudarem determinado comportamento. Justamente pelo fato de não presenciarem uma jurisprudência de combate a tais práticas, preferem se acomodar sob suas premissas negativas e flexíveis do problema tendo apenas receio da opinião pública e da repercussão social negativa que estes casos podem causas em suas vidas.
4 REFERÊNCIAS
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COSTA, Clarice. Breves reflexões sobre a imprescritibilidade dos crimes de racismo. 2007.
GUIMARÃES, Antônio José Alfredo. Preconceito e Discriminação. Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo. Editora 34, 2004.
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JESUS, Damásio Evangelista de. Prescrição Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
SILVA, René Marc da Costa. A Constituição de 1988 e a discriminação racial e de gênero no mercado de trabalho no Brasil. Revista de informação legislativa, v. 50, n. 200, p. 229-248, out./dez. 2013. 2013. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/502945.
[1] COIMBRA, Valdinei Cordeiro. Crimes de preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional – Lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Monografia). 2012, p. 52, Disponível em: https://monog rafias.brasilescola.uol.com.br/direito/da-in-eficacia-das-normas-antirracismo-no-brasil.htm. Acesso em: 20 out. 2022.
[2] COSTA, Clarice. Breves reflexões sobre a imprescritibilidade dos crimes de racismo. Revista Eletrônica do Curso de Direito, Universidade Federal de Santa Maria, no 2, v. 5, 2010.
[3] SILVA, 2014, p. 1153.
[4] Comissão de Igualdade Racial OAB-SP. Injúria Racial e Racismo Não! 2016.
[5] JESUS, Damásio Evangelista de. Prescrição Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 2-3.
[6] CZH - Jornal Digital. 26/04/2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2019/04/rs -condenou-68 -dos-reus-por-racismo-e-injuria-racial-cjux6puqg014k01p7j0sqz4pt.html. Acesso em: 20 out. 2022.
[7] TJ-RS, Apelação crime 70025336546, Rel. João Batista Marques Tovo, j. 27/12/2008.
[8] TJ-RS, Apelação crime nº 70026731083, Rel. Osnilda Pisa, j. 29/01/2013.
[9] TJ-RS, Apelação crime nº 70009621897, Rel. Marlene Landvoigt, j. 12/09/2017.
[11] CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Coletânea Consciência em Debate. Selo Negro Edições, 2011. p. 320.
[12] Disponível em: http://www.cidh.org/annualrep/2006port/brasil.1068.03port.htm. Acesso em: 09 out. 2022.
[13] “Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei”
[14] “Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”
Advogado com formação na Universidade Pontífica Universidade Católica de Campinas/São Paulo/SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, FLAVIO MANOEL. A atuação do Poder Judiciário brasileiro no combate à discriminação racial em conformidade com as premissas da Corte Interamericana de Direitos Humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2023, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61591/a-atuao-do-poder-judicirio-brasileiro-no-combate-discriminao-racial-em-conformidade-com-as-premissas-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos. Acesso em: 22 nov 2024.
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