RESUMO: O presente trabalho visa compreender o instituto da colaboração premiada, fazendo críticas a este mediante uma análise de pontos negativos e positivos, adequações ao ordenamento vigente e mensurações de seus limites éticos/morais. Para tanto, perfaz, primeiramente, pelo estudo breve da Lei 12.850/2013, buscando entender o delito de organizações criminosas, o sistema probatório existente e os mecanismos investigativos usados. Delimitando que a colaboração premiada é um dos tais meios de colheita de provas emergentes, passa-se ao seu retido exame, demarcando suas características e aferindo suas limitações.
PALAVRAS-CHAVE: Organizações criminosas; Lei 12.850/2013; Sistema probatório; Colaboração premiada; Direitos Fundamentais do Colaborador; Ética.
ABSTRACT: This paper aims to understand the institute of State’s Evidence, making criticisms of it through an analysis of negative and positive points, adjustments to the existing legal system and measurements of its ethical/moral limits. For this purpose, it makes, first, by the brief study of Law 12.850/2013, seeking to understand the crime of criminal organizations, the existing evidential system and the investigative mechanisms used. Delimiting that the State’s Evidence is one such means of emerging evidence collection, it moves to its close examination, demarcating its characteristics and assessing its limitations.
KEYWORDS: Criminal organizations; Law 12.850/2013; Evidential system; Premeditated collaboration; Fundamental rights of the Contributor; Ethics.
1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
O sistema probatório penal é amplo e devidamente estruturado, nos moldes do Direito Processual Penal, contudo, destaca-se que isso se perfaz na esfera dos crimes clássicos, como aqueles lesivos ao patrimônio individual ou à integridade física das pessoas. No que tange ao universo dos delitos econômicos o cenário é deveras deficiente.
A vasta complexidade dos crimes penais econômicos (AMARAL, 2015, p. 23), lesivos, em apertada síntese, a ordem econômica latu sensu (PRADO, 2014, p. 53-54), dificulta a persecução probatória. Não raro, nessa prática delitiva elaboram-se esquemas e processos ilícitos intrincados, envolvendo transações monetárias múltiplas (transacionais ou não), vários agentes, diversas organizações, comunicações sigilosas e afins. Em tal avaliação fica óbvia a razão pela qual o meio investigativo criminal econômico não é tão amplo, com baixo contingente de formas de colheita de provas.
A legislação pátria, apesar disso, tenta apresentar um rol mínimo de processos de investigação, não deixando o cenário em completo abandono. O ordenamento trouxe as mais recentes maneiras de colheita probatória em delinquências desse caráter por meio da Lei nº 12.850/2013 (Lei de Organizações Criminosas). Ela visa combater as organizações criminosas - que em maioria das vezes praticam delitos econômicos, mas não necessariamente o fazem sempre (PRADO, 2014, p. 450-453) - e dispor sobre formas especiais de investigação criminal, extensíveis, sob certas exigências (constantes no art. 1º, § 2º, do referido diploma legal), ao sistema de combate e responsabilização de crimes à ordem econômica como um todo. Todavia, ainda se tem grande déficit em tal ambiente de provas, com uma insuficiência gritante.
Destarte, a presente obra, devido sua brevidade, não visa trabalhar com enfoque nessas deficiências mais amplas, concernentes a todo o sistema Penal Econômico (tal prática empreenderiam um estudo bem mais aprofundado). Na realidade, busca-se aqui somente analisar as formas de persecução de provas já existentes na legislação. Em grau mais objetivo, almeja trabalhar, concisamente, as espécies de investigações mais hodiernas, focadas nas organizações criminosas e dispostas na Lei nº 12.850/2013, partindo, em seguida, ao estudo da laia mais conhecida destas (tanto no âmbito jurídico quando no meio popular), a colaboração/delação premiada.
Tal objetivo foi posto devido à percepção de uma curiosa conjuntura. Esse meio de colheita probatória, por delação, é muito tratado e aplicado na dinâmica jurídica atual (é até mesmo aclamado na mídia), sendo visto como uma das poucas maneiras de eficientemente entender ou descobrir complexos delitos econômicos, ou seja, de obter provas de caráter tão diabólico (RIBEIRO JÚNIOR, 2010). Contudo, não se têm diversas avaliações críticas desse mecanismo, especialmente aquelas mais acessíveis ao povo; em dada medida, escassos são os levantamentos e estudos sobre os limites da colaboração premiada e sua adequação ética ao sistema constitucional posto.
Daí surge o ímpeto de trabalhar essa asserção, colaborando com o crescimento das apreciações desse instituto, que estão gradativamente aparecendo em maior monta. Tal empreitada será feita por meio de uma metodologia baseada na análise do geral para se chegar ao específico. Portanto, tem-se uma abordagem do tema que irá passar por: i) um sucinto exame do delito de organização criminosa; ii) avançar para o estudo geral do sistema investigativo peculiar usado nesse círculo (que, como já dito, também pode, extensivamente e adequadamente, ser aplicado a outros crimes à ordem econômica); e, por fim, iii) submergir na averiguação e crítica da colaboração premiada.
2 A ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E AS TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO DA LEI 12.850/2013
Sinteticamente o crime de organização criminosa, conforme o art. 1º, § 1, da Lei 12.850/2013, é: a associação de quatro ou mais indivíduos, de maneira ordenada, com hierarquia e divisão de tarefas (explicitamente ou não), com objetivo de obter (direta ou indiretamente) vantagem(ns) de qualquer natureza, devido à realização de infrações penais típicas, com penas máximas que sejam superiores a quatro anos, e/ou que tenham caráter transnacional (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1248). Muitas vezes, como dito antes, essas entidades delitivas praticam infrações penais de caráter econômico, como a lavagem de dinheiro (AMARAL, 2015, p. 93-94), mas não se pode dizer que o crime de organizações criminosas é só vinculado ao Direito Penal Econômico.
Tem-se que tal delito agrega como características (intrínsecas e acidentais): i) a pluralidade de agentes; ii) a associação estruturalmente ordenada; iii) a divisão de tarefas; iv) a finalidade de obter vantagens; v) a realização de infrações penais graves ou transnacionais; vi) a hierarquia; vii) o aspecto empresarial; viii) a disciplina; ix) a compartimentalização, com níveis distintos de atividades a cada membro; x) a conexão com o Estado, seja por corrupção ou por clientelismo; e xi) a flexibilidade de seus agentes (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1248-1259). Ademais, tem a tendência de envolver a violência, o controle territorial, o uso de mecanismos tecnológicos sofisticados e a implementação de técnicas de cartel ou monopólio em certas áreas de mercado (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1256-1259).
Em razão da estrutura bem elaborada e sigilosa de tais entidades, montadas em sistema similar a um negócio, o aparelho investigativo tradicional, pautado em exame de corpo e delito, prova testemunhal tradicional, interrogatório e demais suportes probatórios regulares do Código de Processo Penal (CPP) (BADARÓ, 2015, p. 434-520), é ineficiente. O agente delitivo é distinto do tradicional, então deduz-se ser necessário uma ótica investigativa díspar, mas que, por óbvio, respeite a ordem constitucional, o que não é adequadamente recorrente, especialmente em termos qualitativos. Entretanto, é deixado para mais adiante as devidas conjecturações críticas sobre esse assunto.
Neste diapasão que o legislativo brasileiro, fazendo uso de uma apreciação do direito comparado (SANCTIS, 2015, p. 181-191), instalou, também na Lei 12.850/2013, formas especiais de obtenção de provas, quais sejam: a Colaboração Premiada (art. 3º, I); a Ação Controlada (art. 3º, III); e a Infiltração de Agentes (art. 3º, VII). Destarte, o mencionado diploma legal também versou sobre alguns outros mecanismos de apuração/alcance de fatos, já presentes na discussão doutrinária e em outros textos legais, como o afastamento de sigilos financeiros, o acesso a registros e dados cadastrais, a gravação ambiental, a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas e o compartilhamento de informações (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1270-1302). Como dito alhures, esses engenhos probatórios podem ser extensíveis a outras formas de delito, em especial aqueles de caráter puramente econômico.
Ressalta-se que será dado enfoque, por razão metodológica, somente às três primeiras espécies acima mencionadas, que são as inovações probatórias mais destacáveis no ordenamento, e mais ao centro dos holofotes da discussão jurídica. Adverte-se também que a colaboração premiada será analisada por último, de forma mais detalhada.
2.1 AÇÃO CONTROLADA
Pode ser entendida como o procedimento de monitoramento de uma organização criminosa mediante o retardamento da ação policial, relativizando o dever de ação premente quando se está diante de um flagrante delito (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1297). Assim, é aparato probatório em que a autoridade policial, ao invés de atuar de maneira pronta à constatação de um delito de dada organização criminosa, deixa-o acontecer (dentro de certos limites, não claramente fixados em Lei), com o intuito de melhor vigiar e acompanhar a entidade, almejando tomar medidas interventivas em momento mais eficaz à formação e obtenção de provas.
Tal ato somente ocorre mediante autorização judicial (que também estabelecerá regras básicas da ação), exigindo-se simultaneamente a ciência do Ministério Público, acatando então as disposições do art. 301 do CPP. Ademais, sua distribuição processual é altamente sigilosa, somente por via física, repassada pessoalmente. Há restrição clara ao acesso de informações concernentes a essa medida, evitando vazamento de dados que possivelmente comprometam a operação (CABETTE, 2011).
Claros são os entraves e o foco das críticas a esse meio de investigação. Eles se pautam justamente no limite da relativização do dever policial de agir diante de um flagrante. Até onde podem se omitir para permitir a persecução de mais provas? Quais os danos causados nesse interim? A legislação vigente não constitui esses parâmetros; percebe-se então que o tratamento legal é incipiente. Por isso, tendo em mente que essa operação é, ainda assim, instrumento útil na investigação da macrocriminalidade, muitos doutrinadores não o abandonam, e dizem ser necessário seu complemento mediante a aplicação cuidadosa (por parte de seus agentes) da razoabilidade e do bom senso, para além de somente os regimentos processuais (CABETTE, 2011). Tal solução, todavia, é ampla, e não fornece muita segurança jurídica, por tal razão o tema é ainda calorosamente debatido.
2.2 INFILTRAÇÃO DE AGENTES
É a inserção de agentes policiais (e somente deles) em uma organização criminosa, com o intuito de se aproximar do círculo mais interno de tais “empresas”, obtendo informações específicas e privilegiadas, não arrecadáveis por outros meios. Notadamente, visa recolher provas de envolvimento dos mandantes do órgão ilegal, e só ocorre quando se tem indícios de infrações penais vinculadas a Lei 12.850/2013, ou a delitos correlatados por ela (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1293-1294).
Tal medida somente será feita com autorização do juízo, que irá fixar os limites e regras gerais da infiltração, conforme o caso concreto, indicando, no mínimo: o local desta, os nomes das pessoas investigadas e o alcance das tarefas dos agentes. Ademais, ela pode ser requisitada pela própria autoridade policial (desde que ouvido o Ministério Público), ou pelo Ministério Público em si (desde que se tenha parecer técnico do delegado, indicando a viabilidade da operação) (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1296).
A infiltração é sigilosa, altamente monitorada e ocorre dentro de certos prazos; de seis meses máximos, renováveis (também em até seis meses) ilimitadamente (art. 10, da Lei 12.850/2013). Destarte, o agente tem um rol especial de direitos e é abarcado por certas imunidades legais, evitando punições caso pratique atos delituosos para o bem da operação, tudo conforme os arts. 13 e 14 do mesmo texto legal.
Essa forma de colheita probatória é aceita, segundo maioria da doutrina, pelos moldes constitucionais, mesmo que a Constituição de 1988 não a preveja expressamente. Contanto que o instituto assegure os princípios da isonomia, da liberdade, da vida, da dignidade, da integralidade e similares, estará atendendo as vontades máximas do ordenamento e não se deparará com vedações e inconstitucionalidades. Ainda assim, isso não o exime de críticas. Não se aprofundará nelas aqui, pois isso daria assunto para vários artigos. Contudo, é necessário destacar que se estruturam muito acerca dos riscos em que o agente infiltrado é submetido, os limites das ações do policial (especialmente na prática de atos delitivos) e a conceituação de que as imunidades dadas seriam espécie de aval estatal para o cometimento de ilícitos (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1294-1296).
2.3 COLABORAÇÃO PREMIADA (DELAÇÃO PREMIADA)
É mecanismo investigativo inserido dentro do direito premial, ou seja, fornece benefícios (prêmios) mediante o atendimento de certas exigências (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1270). Apesar de versado mais eficientemente na Lei 12.850/2013, sendo estabelecido como uma inovação - advinda de influência norte-americana -, alguns rastrearam sua origem, dizendo ser essa mais remota, aparecendo até mesmo nas Ordenações Filipinas (SANCTIS, 2015, p. 182-183); mas cada coisa há seu tempo, o texto discorrerá um pouco melhor sobre essa origem mais adiante.
A delação pode ser conceituada como uma ação de denúncia ou revelação, feita por um agente infrator (geralmente membro ou envolvido em organização criminosa), sob a prerrogativa de receber benefícios, concedidos pelo poder público (SILVA, 2012, p. 2-3). Assim, em suma, é método probatório no qual as autoridades jurídicas apresentam propostas benéficas ao acusado, que serão concedidas caso revele e comprove informações úteis às investigações em curso; tudo ocorrendo por meio de uma clara negociação de interesses.
Esse mecanismo é muito aclamado nos dias atuais, devido sua capacidade de contornar, em dada proporção, os entraves da alta discrição envolvida em delitos econômicos ou de organizações criminosas (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1271). Atos delinquentes desse tipo muitas vezes envolvem acordos e disposições feitas sob segredo, oralmente, a quatro paredes; tem-se então uma nítida prova diabólica. Mas a colaboração premiada abre uma oportunidade nessa conjuntura; permite com que se obtenham dados estratégicos diretamente dos integrantes de tais sigilosos acordos.
Assim sendo, já tendo esse conciso conhecimento geral, ressalta-se que as peculiaridades específicas do instituto da colaboração premiada, por critério de organização, serão detidamente analisadas no tópico a seguir.
3 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO MECANISMO DE PROVA
O histórico da colheita probatória realizada pela intervenção penal estatal é, majoritariamente, um histórico de sanções negativas. Queimar os hereges, torturar os judeus, executar os negros, multar os infratores, prender os criminosos. Em regra, nessa esfera jurídica, a todo ato negativo, sendo ele típico, ilícito e culpável, aplica-se uma pena, no escopo de tornar inviolável a construção jurídica e normativa realizada pelo Direito, soberanamente ratificada pelo povo.
A dinâmica das transformações sociais, entretanto, afetou todas as esferas civis existentes, inclusive o âmbito criminal, motivo pelo qual as modalidades punitivas foram compelidas a desenvolverem novos mecanismos de obtenção probatória e pioneiras formas de sanções. A exclusiva solenidade estatal de coação fragilizou-se. Para além das penas, surgem os “prêmios”, e com eles a noção de sanções positivas, ou seja, recompensas de caráter promocional que passam a integrar a seara do Direito Penal e do Direito Processual Penal.
A Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) reflete essa dinâmica probatória, como anteriormente evidenciado, em especial na institucionalização da justiça negociada através do instituto da colaboração premiada, objeto da presente pesquisa.
Há décadas a atenuação da punibilidade motivada pela colaboração do agente culpável existe. Judas, Joaquim Silvério dos Reis e o ex-deputado Roberto Jefferson rememoram os fatos. O reconhecimento estatal da possibilidade de aplicação da colaboração premiada no ordenamento brasileiro não surgiu no século atual, vide a Lei 7.492/86, todavia, sua real utilização constitui aparato relativamente recente no Brasil, notadamente em determinadas modalidades de delitos (exemplo: crimes com a ordem econômica e financeira).
Citando Puleiro e Fonzo, José Paulo Baltazar Júnior reflete sobre o sujeito delator identificado nos delitos de organizações criminosas. Para o autor:
A figura do arrependido não é, portanto, uma fruta maldita da legislação de emergência, caída no abismo de uma lógica inquisitória que pressiona para utilizar métodos probatórios adulterados com o fim de combater o crime organizado. Na experiência do processo anglo-americano se acha o testemunho da compatibilidade fisiológica entre os chamados colaboradores da justiça e um rito garantista (BALTAZAR JÚNIOR, 2015, p. 1271).
Derivado do latim collaboro, o termo colaborar representa ato ou efeito de cooperar, coadjuvar, ajudar, participar, atuar com outrem para obter determinado resultado (COLABORAR, 2017). Daí infere-se o conceito destinado ao instituto da colaboração premiada na esfera da Lei de Organizações Criminosas (já brevemente descrito alhures), qual seja: a colaboração efetiva e voluntária com a investigação e com o processo criminal (art. 4º da Lei 12.850/2013).
Não raro o aludido instituto é intitulado como uma espécie de “delação”, haja vista que nele o agente criminoso (acusado/interessado) argui e revela denúncias e acusações em desfavor de seus antigos colegas infratores acerca de determinada ocorrência criminosa, no intuito de obter a redução, a conversão ou a extinção da punibilidade correspondente a crime cometido em conjunto com os demais agentes investigados, ou seja, o ordenamento institucionaliza verticalmente um mecanismo de clara troca de favores, vantagens e gratificações (informações X prêmio).
A incessante busca pela segurança e pela manutenção social fomenta, ainda que indiretamente, o estímulo à verdade processual, à delação, à entrega e à traição do outro, em uma espécie de troca de favores no qual o Estado atua como árbitro, enquanto agente responsável pela salvaguarda da ordem econômica, conforme estabelece o art. 174 da Constituição Federal de 1988.
Não obstante a discussão doutrinária quanto à natureza jurídica da colaboração premiada, entende-se que o fundamento do instituto não encontra identidade nas modalidades de confissão ou prova testemunhal, haja vista que decorre do bom senso. Aqui, “é permitido às partes entrarem em consenso a respeito do destino da situação jurídica do acusado que, por qualquer razão concorda com a imputação” (RAMOS; SOUZA, 2017, p. 190).
Nesse diapasão, o artigo 4º da Lei de Organizações Criminosas estabelece requisitos para a destinação da vantagem punitiva ao acusado, quais sejam: i) a colaboração efetiva e voluntária com a investigação e com o processo criminal (não é permitida a coação física ou moral da colaboração, mas sim a voluntariedade, sendo que o auxílio prestado deve ser real e efetivo, trazendo dados novos e úteis); ii) a personalidade do colaborador, natureza, circunstâncias, gravidade, repercussão do fato criminoso e eficácia da colaboração (análise do elemento subjetivo – a pessoa do colaborador – e do elemento objetivo – fato praticado, quando na quantificação valorativa da pena a ser aplicada); iii) identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas (exibição dos autores e partícipes, assim como dos delitos por eles cometidos); iv) revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; v) prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa (demonstração de futuras infrações do crime organizado); vi) recuperação total ou parcial do produto ou do proveito do(s) delito(s); e vii) localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada (NUCCI, 2015, p. 55-58).
Registre-se que a normativa em debate reflete o exercício de uma justiça negocial, em que há a formalização de um ajuste de vontades (art. 6º da Lei 12.850/2013), precedida do estabelecimento de um consenso entre a autoridade estatal e o agente criminoso. Tal negociação ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado/acusado e seu advogado, sem a intervenção do magistrado, vez que, por óbvio, não atua nas negociações, mas apenas na homologação da mesma, quando preenchidos os requisitos legais indispensáveis (art. 4º, § § 6o e 7º, da Lei 12.850/2013).
Como resposta aos clamores da política criminal, a colaboração premiada se efetiva como voluntária, legal, regular e útil ao procedimento instaurado, podendo acarretar, nos crimes de organização criminosa, a concessão do perdão judicial; a redução em até 2/3 (dois terços) da pena privativa de liberdade; ou a substituição de determinada pena privativa de liberdade para uma pena restritiva de direitos (art. 4º, da Lei 12.850/2013), sendo possível seu cometimento tanto em fase investigatória quanto no curso de ação penal (juízo).
Ademais, em ato de defesa da segurança e da integridade do delator, bem como do êxito da investigação, o período de negociação e as consequências dele decorrentes se submetem ao sigilo (art. 7º, da Lei 12.850/2013) até o momento do recebimento da denúncia, em que passam a vigorar as garantias e direitos destinados ao sujeito colaborador, especificados no art. 5º da Lei 12.850/2013.
O liame entre as vantagens e os riscos é muito tênue. Apesar da normatividade previamente determinada pela Lei de Organizações Criminosas, há insegurança para os dois sujeitos da relação. O Estado fatalmente pode ser induzido ao erro, desviando até mesmo sua persecução penal em razão de falsas motivações, e o delator sujeita-se aos riscos da decisão, ciente de que os demais membros componentes da organização podem persistir na seara do desvio punível, mas tal desvio, a partir de então, será eventualmente destinado ao delator.
Nesse mesmo vetor direcional, alerta Guilherme de Souza Nucci: “em verdade, ser delator é um fardo; traz benefícios penais, mas também muitas preocupações. O prêmio recebido deve ser muito bem ponderado para valer os sacrifícios que se seguirão após a colaboração prestada” (NUCCI, 2015, p. 76).
Assim sendo, acolhida a premissa de que os princípios e os valores constitucionais compõem o centro de validade de todo o ordenamento jurídico brasileiro, necessária a detida reflexão acerca da (i) legitimidade da colaboração premiada, enquanto mecanismo de prova no sistema penal constitucional, mediante suas causas e consequências. Isso é o que será feito logo a seguir.
4 A COLABORAÇÃO PREMIADA E O DILEMA DO DESVIO ÉTICO
Sob a justificativa de promover a segurança jurídica, frear as organizações criminosas e combater o outro, inimigo da sociedade, surge o instituto da colaboração premiada, a despeito, entretanto, das diversas contradições do mesmo com as premissas básicas e fundamentais de um modelo republicano democrático.
Dentre os penalistas críticos das corriqueiras arbitrariedades efetuadas pelo Estado no exercício da intervenção penal, é comum o entendimento de que a colaboração premiada materializa um desvio ético, uma transgressão moral institucionalizada, um incentivo à traição, que possui como principal moeda de troca a dosimetria da pena. Aqui, autoridades judiciais incentivam a prática de um comportamento negativo (a entrega do parceiro criminoso, a denúncia de segredos internos, a traição do cúmplice), a fim de aniquilar o bando e suas consequências delituosas no seio social. É tempo de exterminar o outro, a qualquer custo, ainda que a empreitada exija a disposição de valores probos.
Lançando olhos às teorias filosóficas contratualistas, evidencia-se o famigerado contrato social, haja vista que o estado de natureza já não oferecia os resultados esperados. O homem, então, dispõe de parte de sua liberdade, entregando-a a um representante estatal, em troca da segurança e de uma organização política e social concentrada. O Estado assume para si a tutela do povo e com ela a tutela penal. O Estado, portanto, é o responsável por processar, julgar e punir. O ônus é do Estado.
A colaboração premiada, todavia, representa a falência desse modelo. O Estado assume sua ineficiência e passa a conceder prêmios àqueles que concretizem sua precípua função: realizar a investigação criminal e obter informações que, ainda que indiretamente, contribuam para a manutenção social. O problema é que o sistema infla, e o Estado, sem respostas, ignora valores éticos em troca de anúncios e esclarecimentos. Há uma barganha de favores cuja legitimidade é no mínimo questionável.
Afinal, seria este um mecanismo de incentivo às bases de confiança, crédito, esperança e solidariedade entre os indivíduos? Seria um instituto capaz de ignorar a coesão e a harmonia social? Há uma valoração negativa de determinados imperativos categóricos? Estar-se-ia diante de um atentado contra os valores e objetivos constitucionais? Veja-se, então, algumas importantes reflexões. Citando Peyrefitte, Raphael Boldt esclarece que:
A sociedade de desconfiança é uma sociedade temerosa, ganha e perde: uma sociedade na qual a vida em comum é um jogo cujo resultado é nulo, ou até negativo (“se tu ganhas eu perco”); sociedade propícia à luta de classes, ao mal-viver nacional e internacional, à inveja social, ao fechamento, à agressividade da vigilância mútua. A sociedade de confiança é uma sociedade em expansão, ganha (“se tu ganhas, eu ganho”); a sociedade de solidariedade, de projeto comum, de abertura, de intercâmbio, de comunicação. Naturalmente, nenhuma sociedade é 100% de confiança ou de desconfiança. Do mesmo modo que uma mulher nunca é 100% feminina, nem um homem 100% masculino: este comporta sempre uma parte de feminilidade, aquela sempre um pouco de virilidade. O que dá o tom, é o elemento dominante (BOLDT, 2006, p. 3-4).
Para Zaffaroni e Pierangeli:
Se o imperativo categórico (dever moral) nos obriga a respeitar o outro como fim em si mesmo, a partir deste dever descobrimos o direito subjetivo a ser considerado, como fim em nós mesmos. Quando o dever moral de outro deixa de ser garantido pelo Estado, desaparecerá o direito subjetivo de exigir o respeito de fim em si mesmo que nos assiste (PIERANGELI; ZAFFARONI, 1999, p. 266).
Nesse diapasão, em conformidade com os argumentos supracitados, Moreira ressalta que:
Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último refúgio do seu povo, no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas, definindo os limites de sua atuação, é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitante à transgressão de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo (RAMOS; SOUZA, 2017, p. 194).
Assim sendo, ante o exposto, verifica-se que a positivação da colaboração premiada enquanto mecanismo de prova viola, de modo incontroverso, os habituais padrões éticos e representa uma verdadeira contradição interna no ordenamento jurídico brasileiro.
O mesmo legislador que determinou a qualificação dos homicídios cometidos à traição (art. 121, parágrafo 2º, IV, do Código Penal), e que igualmente entende a aludida valoração como circunstância agravante (art. 61, II, c, do Código Penal), reduz a termo geral e abstrato a seção I (Colaboração Premiada) da Lei 12.850/2013 (BOLDT, 2006, p. 6). Paradoxalmente o legislador fixa penas ou prêmios para a mesma subjetividade (traição) e o judiciário acompanha a incongruência, em um exercício de latente contradição.
A reflexão que se propõe nesta pesquisa, porém, não reside na interpretação do instituto da colaboração premiada enquanto um desvio ético, vez que este é um fato incontroverso. A problemática principal sustenta-se no seguinte questionamento: cabe ao Direito preocupar-se com a ética e moral? A seara criminal deve se preocupar com critérios subjetivos e ontológicos dentro de uma ciência que inevitável e notadamente remete sua técnica a condutas e fatos objetivos e não a valores? Aqui se acredita que não, mas essa é uma premissa deveras questionável.
5 REFLEXÕES GERAIS ACERCA DA COLABORAÇÃO PREMIADA
Conforme inicialmente apresentado na presente pesquisa, em razão de peculiaridades específicas, o combate ao crime organizado impõe a adoção de técnicas especiais de investigação e diferentes mecanismos de provas, o que, sem esforços, é percebido nas determinações previstas na Lei 12.850/2013, ao fixar padrões de uma possível justiça negociada.
Além do desacordo evidenciado por alguns autores no reconhecimento de que a colaboração premiada incentiva um desvio ético, outros contrassensos também existem.
Inicialmente verifica-se que por meio da prática da delação fere-se o princípio da proporcionalidade, na medida em que o agente delator que cometeu, em regra, o mesmo delito que seus cúmplices, receberá uma punibilidade menor porque contribuiu para a investigação e o sucesso da intervenção penal (NUCCI, 2015, p. 53). Assim, idênticos graus de culpa acarretam diferentes aplicações de pena. A falta de autonomia do Estado possibilita um prêmio ao agente criminoso delator, sem que haja qualquer preocupação com uma isonômica punibilidade.
Ademais, a pretexto de que os fins justificam os meios, a intervenção penal estatal, olvidando-se de toda uma construção epistemológica, consente com a institucionalização ilegítima de uma espécie de barganha junto aos agentes criminosos. Sem autonomia no exercício de suas funções, a legislação corrobora um instituto de troca de favores.
A aludida permuta de benefícios, entretanto, pode prejudicar a investigação criminosa, haja vista que os acusados podem ser estimulados na realização de falsas delações ou a incrementar vinganças pessoais, desviando a condução probatória para um caminho incerto e procrastinando a punição dos demais agentes envolvidos na organização criminosa (NUCCI, 2015, p. 53).
Registre-se, ainda, que apesar da determinação prevista no art. 5º da Lei 12.850/2013 quanto aos direitos do delator (usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica; ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes; participar das audiências sem contato visual com os outros acusados; não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito; e cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados) o aparato estatal de proteção é muito precário, de modo que o legislador tenta reafirmar um instituto com grande potencial de violar direitos fundamentais do colaborador, colocando em risco sua vida, ou seja, desprotegendo o principal bem jurídico da salvaguarda penal.
Noutro giro, esclarecido brevemente as possíveis problemáticas do mecanismo probatório em questão, faz-se necessário pontuar alguns de seus pontos positivos, quais sejam: i) a grande dificuldade de dilação probatória nos crimes que envolvem organizações criminosas, em razão da complexidade estrutural nelas fortalecidas; ii) o fato de que outras transações já são amplamente permitidas pelo Estado, como ocorre, por exemplo, na Lei 9.099/95; iii) o benefício legal para que o delinquente denuncie o esquema no qual está inserido, bem como os demais autores e partícipes, pode ser capaz de fomentar um arrependimento sincero, com tendência à regeneração interior, fundamento da própria aplicação das sanções penais. (NUCCI, 2015, p. 54).
Assim sendo, verifica-se que instituto da colaboração premiada desafia os paradigmas fixados no ordenamento jurídico brasileiro, concorrendo para sua ilegitimidade. Contudo, o monopólio estatal em investigações desta escala, por si só, não tem sido suficiente para promoção da segurança e da manutenção social. Pelos fundamentos expostos, as delações não podem tomar uma proporção desmedida, devendo ocorrer um sopesamento de princípios quanto a sua utilização.
6 CONCLUSÃO
Tendo perpassado por um estudo gradativo, conhecendo em primeira mão o crime de organizações criminosas e o lastro probatório a ele aplicado (com uma breve imersão em seus institutos investigativos), foi possível compreender melhor o mecanismo da colaboração premiada. Constatou-se então seu caráter negocial assim como sua natureza, principais características, requisitos, fatores e procedimentos.
Diante disso foi plausível enveredar na crítica ao mesmo, sem deixar de apreciar o sistema penal como um todo, averiguando seu limite ético, entendendo ser ele meio estimulante de uma prática negativa (o ato de delatar/entregar outrem), o que, portanto, o faz entrar em contradição com o ordenamento em seu sentido macro. Sem prejuízo à crítica, também se construiu apontamentos favoráveis a tal delação, entendendo ser ela um dos poucos meios de persecução probatória em ambiente com delitos tão complexos e cautelosos.
Destarte, ao compreender a origem teórica deste engenho probatório, pode-se perceber seus entraves e inconsistências, notando sua extensão de barganha, seu objetivo de obter provas sob holofotes morais contestáveis e sua intenção de eximir, em dada medida, o ônus probatório do Estado. Ficando, nessa monta, evidente a dinâmica da convencionalidade pouco racional e consistente da política criminal no Brasil.
Assim, delimitados restaram os pontos negativos e positivos da colaboração premiada, evidenciando seu caráter premial, avultando suas incongruências como meio de permuta processual, algo amplamente questionável que afeta, em certa medida, sua integridade e constitucionalidade. Não se buscou aqui, no entanto, incentivar o pronto desuso do instituto. Pode-se perceber sua utilidade prática, principalmente em um sistema penal repleto de falhas, punitivismo e abusividades de poder. É cristalino que ele é alternativa na obtenção de provas diabólicas no Direito Penal Econômico e em crimes de organização criminosa, não podendo ser simplesmente e subitamente abandonado na conjuntura atual.
O presente artigo, em realidade, almeja ressaltar que, apesar de muito aclamado pelo povo e pela mídia, a delação premiada não se exime de falhas, notadamente aquelas de aspecto teórico e ético. Portanto, tenta-se indicar que tal sistema investigativo não deve ser aposto desmedidamente, necessitando ponderação em seu uso, questionando-se sua utilidade e extensão. Ademais, essa colaboração, apesar de ter sua praticidade probatória no meio real, atém falhas teóricas que a levam a contradições e excessos, portanto, seu uso deve ser repensado e reestruturado em termos qualitativos, quantitativos e constitucionais.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORIYAMA, Igor Mitsuo Sousa. Prêmio ou pena: a (i)legitimidade da colaboração premiada como mecanismo de prova Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jul 2023, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/62164/prmio-ou-pena-a-i-legitimidade-da-colaborao-premiada-como-mecanismo-de-prova. Acesso em: 26 dez 2024.
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