RESUMO: A finalidade do presente trabalho é averiguar a congruência das qualificadoras previstas no art. 121, §2º, inciso I, Código Penal (traição, emboscada e dissimulação ou outro meio que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido) com o homicídio praticado com dolo eventual (dolo indireto), considerado que neste o agente não persegue o resultado objetivamente, mas assume o risco de sua produção, de forma que, a priori, há contrassenso imputar qualificadores que pressupõem surpresa a agente que unicamente assumi risco de produção do resultado morte.
Palavras-chave: homicídio – qualificadoras de meio traição, emboscada, dissimulação ou outro meio que dificulte ou impossibilite a defesa – dolo eventual.
ABSTRACT: The purpose of this work is to verify the congruence of the qualifiers provided for in art. 121, §2, item I, Penal Code (betrayal, ambush and dissimulation or other means that make it difficult or impossible for the victim to defend himself) with homicide committed with eventual intent (indirect intent), considering that in this case the agent does not pursue the result objectively, but assumes the risk of its production, so that, a priori, it makes no sense to impute qualifiers that presuppose surprise to the agent who only assumed the risk of producing the result of death.
Keywords: homicide - qualifiers of treachery, ambush, dissimulation or other means that make defense difficult or impossible - eventual deceit.
1. INTRODUÇÃO
O dolo eventual, espécie de dolo indireto, pressupõe a assunção do risco de produção do resultado, verdadeira indiferença com a sua ocorrência. Logo, o agente não persegue imediatamente a produção do resultado.
De acordo com a Fórmula de Frank, o dolo eventual é caracterizado pelo seguinte raciocínio: “seja assim ou de outra maneira, ocorra isso ou aquilo, de qualquer modo eu agirei”.
De outra banda, as qualificadoras em comento pressupõem elementos intelectivo e volitivo voltados a assim agir, ou seja, a princípio, seria impossível “assumir o risco” de matar mediante traição, emboscada, dissimulação ou outro meio que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.
Assim sendo, averiguar-se-á a viabilidade de imputação das referidas qualificadores daquele que age com dolo eventual.
2. COMPREENSÃO DO DOLO EVENTUAL
Primeiramente, importante trazer à baila a distinção entre dolo direto e indireto eventual.
No dolo direito, dolo por excelência, o agente busca praticar a conduta descrita no tipo, quer encher os elementos objetivos descritos no tipo penal. Já no dolo eventual, embora não queira objetivamente praticar a infração penal, não se abstém de agir, de modo que assume o risco de produzir o resultado objetivamente previsto e aceito (GRECO, 2022)[1].
No mesmo rumo (PRADO, 2014, p. 300-301)[2]:
a) Dolo direto: o agente quer o resultado como fim de sua ação e o considera unido a esta última, isto é, o resultado produz-se como consequência de sua ação (vontade de realização). A vontade se dirige ao perfazimento do fato típico principal (tipo objetivo) querido pelo autor. Engloba também, em certas hipóteses, as consequências secundárias necessariamente vinculadas à prática da ação (dolo mediato ou de consequências necessárias). A vontade reitora -finalidade - abrange, além do resultado diretamente visado como fim principal do agente, outras consequências derivadas de modo necessário da execução da conduta típica.
b) Dolo eventual (dolus eventualis): significa que o autor considera seriamente como possível a realização do tipo legal e se conforma com ela. O agente não quer diretamente a realização do tipo, mas a aceita como possível ou provável - "assume o risco da produção do resultado" (art. 18, I, in fine, CP). O agente conhece a probabilidade de que sua ação realize o tipo e ainda assim age. Vale dizer: o agente consente ou se conforma, se resigna ou simplesmente assume a realização do tipo penal. Diferentemente do dolo direto, no dolo eventual "não concorre a certeza de realização do tipo, nem este último constitui o fim perseguido pelo autor". 71 A vontade também se faz presente, ainda que de forma mais atenuada.
Interessante a problemática no aspecto prático quanto ao dolo eventual (Idem, 2022):
No entanto, embora, aparentemente, não se tenha problema em conceituar o dolo eventual, sua utilização prática nos conduz a uma série de dificuldades. Isto porque, ao contrário do dolo direto, não podemos identificar a vontade do agente como um de seus elementos integrantes, havendo, tão somente, a consciência, o que levou Bustos Ramírez e Hormazábal Malarée a concluir que, na verdade, o dolo eventual não passa de uma espécie de culpa com representação, punida mais severamente.
Assim sendo, parece ser incompatível aceitar que o agente, sem buscar imediatamente o resultado, assumiria o risco de causá-lo por meio de traição, emboscada e dissimulação, isso porque intrinsicamente exigiriam uma conduta preordenada no aspecto volitivo.
3. QUALIFICADORAS DE TRAIÇÃO, EMBOSCADA E DISSIMULAÇÃO OU OUTRO MEIO QUE DIFICULTE OU IMPOSSIBILITE A DEFESA
Consideradas como qualificadoras pelos “modos” de execução por dificultarem ou impossibilitarem a defesa da vítima, a traição está atrelada à deslealdade por meio de ataque de forma súbita, sorrateira e sem demonstrar a intenção hostil; a emboscada ao ocultamento, que veladamente aguarda a vítima para fins de surpreendê-la e facilitar a obtenção do resultado, o agente se oculta para surpreender a vítima e atingi-la mais facilmente; já na dissimulação, há o encobrimento da intenção delitiva, de modo que torna mais difícil a defesa da vítima (PRADO, 2014, p. 640).
Outro meio que dificulte ou impossibilite a defesa da vítima, em função de interpretação analógica admitida na seara penal, que não se confunde com o emprego de analogia, cuida-se de fórmula genérica após enunciações casuísticas, entende-se que para enquadramento indispensável a presença de “surpresa” no modo de agir (BITENCOURT, 2019):
A surpresa constitui um ataque inesperado, imprevisto e imprevisível; além do procedimento inesperado, é necessário que a vítima não tenha razão para esperar a agressão ou suspeitar dela. A surpresa assemelha-se muito à traição. Não basta que a agressão seja inesperada; é necessário que o agressor atue com dissimulação, procurando, com sua ação repentina, dificultar ou impossibilitar a defesa da vítima.
Para se configurar a surpresa, isto é, recurso que torna difícil ou impossível a defesa do ofendido, é necessário que, além do procedimento inesperado, não haja razão para a espera ou, pelo menos, suspeita da agressão, pois é exatamente a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de defesa da vítima que fundamenta a qualificadora.
Por vezes, a surpresa confunde-se com a traição. Por exemplo, matar a vítima dormindo ora pode caracterizar traição, ora pode caracterizar surpresa, dependendo das circunstâncias. Por exemplo, ao matar a vítima dormindo, violar a confiança e a lealdade que esta lhe depositava, como é o caso de quem convive sob o mesmo teto. No entanto, haverá surpresa se o sujeito ativo, ao procurar a vítima para matá-la, encontra-a adormecida, exterminando-lhe a vida.
Como exemplos elucidativos, menciona-se caso de tentativa de homicídio por meio da qualificadora de traição:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CRIMES CONTRA A VIDA. TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA. QUALIFICADORAS DA TRAIÇÃO MANTIDA. DEMAIS QUALIFICADORAS AFASTADAS. [...] 2. Quanto ao crime cometido à traição, deve ser mantida, sendo a situação mais genérica que descreve, em tese, o caso dos autos. Réus e vítima conviviam e coabitavam na mesma residência, tendo os acusados se aproveitado da circunstância para cometer o delito. A quebra de confiança revela-se em conduta desleal que se dirige contra vítima naturalmente descuidada, no recesso do lar, confiante e de boa-fé na normalidade das relações. Guarda baixa, desprevenida a vítima, propicia-se maior segurança para os agentes perpetrarem o desígnio criminoso. [...] 4. Por fim, tampouco há como submeter à apreciação dos jurados a questão atinente ao crime cometido mediante dissimulação. Veja-se que o fato de os réus simularem amizade e, com isso, ministrarem substância que fez com que a vítima adormecesse já foi considerado para a configuração do quadro de traição, não podendo ser novamente valorado, sob pena de indevido bis in idem. A traição foi descrita na denúncia como agir de forma infiel, aproveitando-se da relação de confiança, afeto dissimulado, evidentemente e coabitação que tinham com a vítima. Portanto, todas as condutas descritas confluem, em termos de qualificação, para um crime traiçoeiro, remanescendo uma única incidência do inciso IV do § 2º do artigo 121 do Código Penal. Os atos que, articulados, progressivamente aproveitaram a situação e possibilitaram o início da execução hão de ser considerados, se for o caso, em termos de maior censurabilidade, com reflexos na culpabilidade e, por conseguinte, na dosimetria da pena pela tentativa de homicídio qualificado, e não, por amor à clareza, por tentativa de homicídio triplamente qualificado. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-RS - RSE: 70075622951 RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Data de Julgamento: 13/12/2017, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: 16/02/2018)
Quanto à dissimulação:
EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL. JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO. DECOTE DA QUALIFICADORA. DISSIMULAÇÃO. ANULAÇÃO DO JULGAMENTO. NECESSIDADE. JULGAMENTO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIO À PROVA DOS AUTOS. DADO PROVIMENTO AO RECURSO. 1. Tendo havido discussão e luta corporal entre vítima e acusado momentos antes do réu retornar ao local dos fatos, desafiar a vítima e esta se dirigir a ele com intuito de contenda e sofrer facadas, tal dinâmica desnatura a qualificadora da dissimulação, razão pela qual o caso é de anulação da sentença condenatória, por considerar que a decisão foi manifestamente contrária à prova dos autos, devendo o acusado ser submetido a novo julgamento. 2. Recurso provido. Julgamento cassado. V.V. APELAÇÃO CRIMINAL - HOMICÍDIO QUALIFICADO - DISSIMULAÇÃO - TRIBUNAL DO JÚRI - DECISÃO AMPARADA NA PROVA DOS AUTOS - ACOLHIMENTO DA TESE MINISTERIAL PELO CONSELHO DE SENTENÇA - CONDENAÇÃO MANTIDA. - A qualificadora do crime de homicídio referente à dissimulação deve ser compreendida como a ocultação da intenção da prática delitiva, surpreendendo, então, a vítima. - Age em dissimulação o acusado que, após calorosa briga, vai à sua residência, arma-se com uma faca, escondendo-a em seu corpo, volta ao local do crime, chama a vítima para conversar, e, ao aproximarem-se, alveja-a com facadas. - O Conselho de Sentença é livre na escolha e valoração da prova, podendo optar pela tese (defensiva ou acusatória) que entender correta, sendo certo que somente quando a decisão for completamente equivocada, divorciada do contexto probatório produzido, será possível a cassação do veredicto popular. (TJ-MG - APR: 10175100000389002 Conceição do Mato Dentro, Relator: Marcílio Eustáquio Santos, Data de Julgamento: 11/09/2014, Câmaras Criminais / 7ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 19/09/2014)
No que tange à emboscada:
PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. TRIBUNAL DO JÚRI. TENTATIVA DE HOMICÍDIO ( CP, ART. 121, § 2º, IV, C/C ART. 14, II). AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. QUALIFICADORA PELA EMBOSCADA CORRETAMENTE RECONHECIDA. AFASTAMENTO DA TESE DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. POSSIBILIDADE DO CONSELHO DE SENTENÇA ACOLHER UMA DAS VERSÕES APRESENTADAS. NULIDADE AFASTADA. - Não cabe anulação do decreto condenatório quando os jurados optam por uma das correntes apresentadas - A emboscada é reconhecida quando há tocaia, tendo o sujeito ativo premedita o homicídio e aguardado ocultamente a passagem ou chegada da vítima, que se encontra desprevenida, para o fim de atacá-la - Parecer da PGJ pelo conhecimento e desprovimento do recurso - Recurso conhecido e desprovido. (TJ-SC - APR: 20090534151 Itaiópolis 2009.053415-1, Relator: Carlos Alberto Civinski, Data de Julgamento: 14/07/2011, Quarta Câmara Criminal)
Em relação a meio que dificulte ou impossibilite a defesa da vítima:
E M E N T A – RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – FEMINICÍDIO NA PRESENÇA DE DESCENTE DA VÍTIMA – RECURSO MINISTERIAL – PRENTENDIDA INCLUSÃO DE QUALIFICADORAS DO MEIO CRUEL, RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA E MOTIVO FÚTIL – IMPOSSIBILIDADE – MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA – RECURSO IMPROVIDO. A repetição de golpes de faca (nove golpes) contra vítima não é circunstância capaz de autorizar a imposição da qualificadora do meio cruel, que só ocorre quando haja prova do meio que aumenta o sofrimento da vítima, revelando a crueldade por parte do ânimo calmo do agente, na escolha dos meios capazes de infligir o maior padecimento desejado. A qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima deve assemelhar-se à traição, emboscada ou dissimulação, não bastando para sua configuração, que a vítima esteja em desvantagem de força ou de arma, sendo necessária a demonstração da surpresa. Desse modo, se a vítima percebeu que o reú estava armado com uma faca, logo após uma discussão, e teve oportunidade de entrar em luta corporal com seu algoz, chegando até mesmo a feri-lo, descaracterizada a surpresa na ação e via de consequência a respectiva qualificadora. Tratando-se de um só crime, não há como coexistir duas qualificadoras de natureza subjetiva, tais como a do motivo fútil e a do feminicídio, dada a manifesta incompatibilidade lógica delas. Afasta-se, portanto, a qualificadora do motivo fútil e mantém a do feminicído, por ser esta mais abrangente. Recurso improvido, contra o parecer. (TJ-MS - RSE: 00003336320168120039 MS 0000333-63.2016.8.12.0039, Relator: Des. Paschoal Carmello Leandro, Data de Julgamento: 05/09/2017, 1ª Câmara Criminal)
Assim sendo, no aspecto volitivo, não parece crível aceitar que alguém “assumiria o risco” de agir trair, emboscar, dissimular ou agir por outro meio que dificulte ou impossibilite a defesa da vítima, isto é, como conciliar modo de agir dotado de surpresa com um resultado não diretamente buscado.
4. POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Tradicionalmente, tanto decisões do Superior Tribunal de Justiça quanto do Supremo Tribunal Federal se revelam contrárias à admissão de dolo eventual nas referidas qualificadoras (CAVALCANTE, 2023):
O dolo eventual não se compatibiliza com a qualificadora do art. 121, § 2º, IV (traição, emboscada, dissimulação). Para que incida a qualificadora da surpresa é indispensável que fique provado que o agente teve a vontade de surpreender a vítima, impedindo ou dificultando que ela se defendesse. Ora, no caso do dolo eventual, o agente não tem essa intenção, considerando que não quer matar a vítima, mas apenas assume o risco de produzir esse resultado. Como o agente não deseja a produção do resultado, ele não direcionou sua vontade para causar surpresa à vítima. Logo, não pode responder por essa circunstância (surpresa). STF. 2ª Turma. HC 111442/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 28/8/2012 (Info 677).
A qualificadora de natureza objetiva prevista no inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal não se compatibiliza com a figura do dolo eventual, pois enquanto a qualificadora sugere a ideia de premeditação, em que se exige do agente um empenho pessoal, por meio da utilização de meio hábil, como forma de garantia do sucesso da execução, tem-se que o agente que age movido pelo dolo eventual não atua de forma direcionada à obtenção de ofensa ao bem jurídico tutelado, embora, com a sua conduta, assuma o risco de produzi-la. STJ. 6ª Turma. EDcl no REsp 1848841/MG, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 2/2/2021.
A discussão ganha mais contornos em delitos envolvendo morte resultante da direção de veículo automotor.
Nesse rumo, no Recurso Especial n. 1.829.601 – PR, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça se manifestou favoravelmente à concordância do dolo eventual com a qualificadora de meio cruel (art. 121, §1º, inc. III, CP):
RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PRONÚNCIA. DOLO EVENTUAL. QUALIFICADORA DO MEIO CRUEL. COMPATIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Consiste a sentença de pronúncia no reconhecimento de justa causa para a fase do júri, com a presença de prova da materialidade de crime doloso contra a vida e indícios de autoria, não representando juízo de procedência da culpa. 2. Inexiste incompatibilidade entre o dolo eventual e o reconhecimento do meio cruel para a consecução da ação, na medida em que o dolo do agente, direto ou indireto, não exclui a possibilidade de a prática delitiva envolver o emprego de meio mais reprovável, como veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel (AgRg no RHC 87.508/DF, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 23/10/2018, DJe 03/12/2018). 3. É admitida a incidência da qualificadora do meio cruel, relativamente ao fato de a vítima ter sido arrastada por cerca de 500 metros, presa às ferragens do veículo, ainda que já considerado ao reconhecimento do dolo eventual, na sentença de pronúncia. 4. Recurso especial provido para restabelecer a qualificadora do meio cruel reconhecida na sentença de pronúncia. (REsp n. 1.829.601/PR, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 4/2/2020, DJe de 12/2/2020)
Ocorre, no caso em comento, que se tratou de atropelamento de vítima arrastada por mais de quinhentos metros nas ferragens do veículo devido à tentativa de fuga do local do crime. Evidentemente não justificável ao aspecto jurídico, pressupõe-se que as características do caso concreto e a busca por maior rigorismo podem ter altamente influenciado o desfecho da decisão.
Recentemente, neste ano de 2023, a Sexta Turma indica ter guinado para o entendimento de compatibilidade do eventual com as qualificadoras previstas no inciso IV, §1º, art. 121, CP:
RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 483, II E § 4º, 564, III, K E PARÁGRAFO ÚNICO, AMBOS DO CPP. TESE DE NULIDADE NA INVERSÃO DA ORDEM DOS QUESITOS. DEFESA QUE NÃO SUSCITOU ILEGALIDADE NO MOMENTO OPORTUNO. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. JURADOS QUE TIVERAM A OPORTUNIDADE DE MANIFESTAR ACERCA DA TESE DEFENSIVA DA DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 18, I, 121, § 2°, IV, AMBOS DO CP E 593, III, D, DO CPP. TESE DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA ÀS PROVAS DOS AUTOS. PLEITO DE SUBMISSÃO A NOVO JÚRI. TRIBUNAL DE ORIGEM QUE RATIFICOU A CONDENAÇÃO, APRESENTANDO SUBSTRATO PROBATÓRIO MÍNIMO A JUSTIFICAR A ESCOLHA ADOTADA PELO JÚRI. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INVIABILIDADE. SÚMULA 7/STJ. PLEITO DE DECOTE DA QUALIFICADORA DO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. POSSIBILIDADE DE COMPATIBILIDADE COM O DOLO EVENTUAL ADMITIDA PELA JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE SUPERIOR. VIOLAÇÃO DO ART. 65, III, D, DO CP. CONFISSÃO ESPONTÂNEA. ATENUAÇÃO OBRIGATÓRIA, AINDA QUE NÃO CONSIDERADA COMO SUPORTE DA CONDENAÇÃO. RECENTE JURISPRUDÊNCIA DA QUINTA TURMA. RESP 1.972.098/SC, DJE 20/6/2022. REDIMENSIONAMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE QUE SE IMPÕE. VIOLAÇÃO DO ARTS. 14, II E PARÁGRAFO ÚNICO, DO CP E 492, I, C, DO CPP. PEDIDO DE AMPLIAÇÃO DA FRAÇÃO DE REDUÇÃO DE PENA. VERIFICAÇÃO DO ITER CRIMINIS. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INVIABILIDADE. SÚMULA 7/STJ.
[...]
12. Não obstante a existência de julgados desta Corte Superior a respeito da incompatibilidade entre o dolo eventual e a qualificadora objetiva referente ao recurso que dificultou a defesa da vítima, tem-se a recente orientação no sentido de que: "elege-se o posicionamento pela compatibilidade, em tese, do dolo eventual também com as qualificadoras objetivas (art. 121, § 2º, III e IV, do CP). Em resumo, as referidas qualificadoras serão devidas quando constatado que o autor delas se utilizou dolosamente como meio ou como modo específico mais reprovável para agir e alcançar outro resultado, mesmo sendo previsível e tendo admitido o resultado morte" (AgRg no AgRg no REsp 1.836.556/PR, Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Quinta Turma, DJe de 22/6/2021). [...] No caso, as instâncias de origem fundamentaram adequadamente a preservação da qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima, notadamente diante dos suficientes indicativos de que os golpes de instrumento cortante realizados pelo acusado teriam ocorrido de inopino, sem a vítima esperar ataque semelhante, sendo incabível, portanto, a sua exclusão no presente momento processual (AgRg no HC n. 678.195/SC, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 20/9/2021). [...] (REsp n. 1.903.295/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 28/2/2023, DJe de 6/3/2023.)
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça sinaliza na mesma direção:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO. PRONÚNCIA. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DOS ARTS. 315, § 2º, E 619 DO CPP. INÉPCIA DA DENÚNCIA. QUESTÃO PREJUDICADA. DOLO EVENTUAL. SÚMULA 7/STJ. TENTATIVA E QUALIFICADORAS DO PERIGO COMUM E DO MEIO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. COMPATIBILIDADE COM O ELEMENTO SUBJETIVO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Inexiste ofensa aos arts. 315, § 2º, e 619 do CPP, pois o Tribunal de origem se pronunciou sobre todos os aspectos relevantes para a definição da causa. Ressalte-se que o julgador não é obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos das partes, bastando que resolva a situação que lhe é apresentada sem se omitir sobre os fatores capazes de influir no resultado do julgamento. 2. Proferida a decisão de pronúncia, torna-se prejudicada a discussão quanto à inépcia da denúncia.
3. "O elemento psíquico do agente é extraído dos elementos e das circunstâncias do fato externo. Não há como afastar o decisum que reconheceu o dolo eventual em crime de homicídio na direção de veículo automotor, de forma fundamentada e com base nas provas dos autos, ao apontar sinais concretos do agir doloso, a saber, a ingestão de álcool, o excesso de velocidade e a indiferença do recorrente ante o resultado danoso. A investigação conclusiva sobre a alegada ausência do elemento subjetivo do tipo demandaria incursão vertical sobre o extenso material probatório produzido sob o crivo do contraditório, vedada pela Súmula n. 7 do STJ" (REsp n. 1.358.116/RN, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/9/2016, DJe de 10/10/2016.) 4. A tentativa e as qualificadoras do perigo comum e do meio que dificultou a defesa da vítima são compatíveis com o dolo eventual. Precedentes. 5. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp n. 2.001.594/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 22/8/2022.)
No que tange ao Supremo Tribunal Federal, considerando que a maioria esmagadora das decisões não se posicionam, mas apenas remetem à competência do tribunal do júri sob pena de supressão de instância, encontra-se decisão que expressamente afastou a convivência do dolo eventual com as qualificadoras em comento:
Habeas corpus. 2. Homicídio de trânsito. Embriaguez. Alta velocidade. Sinal vermelho. 3. Pronúncia. Homicídio simples. 4. Dolo eventual não se compatibiliza com a qualificadora do art. 121, § 2º, IV (traição, emboscada, dissimulação). 4. Ordem concedida para determinar o restabelecimento da sentença de pronúncia, com exclusão da qualificadora.
(HC 111442, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 28/08/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-182 DIVULG 14-09-2012 PUBLIC 17-09-2012 RJTJRS v. 47, n. 286, 2012, p. 29-33)
Quanto ao cerne da fundamentação empregada na decisão:
Pois bem. No dolo eventual, a despeito de o agente ter assumido o risco de produzir o resultado, por certo não o quis (frise-se, se o desejasse, o dolo seria direto e não eventual). Nesse sentido, se não deseja a produção do resultado, muito mais óbvio concluir que o agente não direciona sua vontade para impedir, dificultar ou impossibilitar a defesa do ofendido. É exatamente neste ponto que reputo residir a incompatibilidade entre o dolo eventual e a qualificadora da surpresa, prevista no art. 121, § 2º, IV, do CP.
O posicionamento do Supremo Tribunal Federa indica ser consonante à doutrina majoritária, bem como mais coeso à lógica jurídica empregada no dolo eventual, no qual o agente não busca diretamente a produção do resultado.
4. CONCLUSÃO
Assim sendo, o homicídio praticado com dolo eventual não pode servir como como instrumento ao direito penal simbólico, como forma de recrudescimento das consequências do fato para servir aos anseios de casos que causam comoção ou repercussão social. O dolo eventual, assunção de risco de produzir o resultado, no sentido jurídico, demonstra ser incompatível com o agir imbuído de “surpresa”, característica indispensável à traição, à emboscada, à dissimulação ou outro meio que dificulte ou impossibilite a defesa do ofendido. Na conjectura atual, as decisões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça têm aplicado o entendimento de compatibilidade do dolo eventual com as qualificadoras previstas no art. 121, §2º, inc. IV, CP nos casos de delitos de trânsito, mas sempre é prudente destacar que a interpretação elástica e nitidamente forçada não impede futuramente que seja adotada em outras hipóteses distintas, praticamente uma onda de enrijecimento do direito penal. De forma não técnica, referidas decisões muitas vezes servem a um falso anseio de busca por justiça, obviamente uma falsa justiça, tendo em vista que o homicídio na forma simples ou culposa possui pena muito aquém quando comparada à forma qualificada no homicídio doloso.
Procurador Legislativo Municipal. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Ananhaguera. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAMILLO, Pedro Cesar Vieira. Homicídio praticado com dolo eventual e compatibilidade com as qualificadoras de meio previstas no art. 121, §2º, IV, CP Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 set 2023, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63019/homicdio-praticado-com-dolo-eventual-e-compatibilidade-com-as-qualificadoras-de-meio-previstas-no-art-121-2-iv-cp. Acesso em: 23 nov 2024.
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