RESUMO: O objeto do presente estudo é a análise do impacto à integridade do instituto inaugurado há pouco na prática forense, que é a audiência de custódia, através da virtualidade da videoconferência. Como a implementação do sistema de vídeo poderia ou não reduzir custos sem prejudicar as garantias constitucionais dos acusados? Inicialmente, faz-se necessário adentrar a temática da Audiência de Custódia, no que ela consiste e quais seus objetivos. Depois, necessário analisar-se como a audiência de custódia poderia ou não se compatibilizar com o uso da videoconferência, utilizando-se para tanto, dos argumentos favoráveis e das críticas a essa tecnologia. Por fim, será analisada a importância do corpo numa audiência, e os limites que a tecnologia pode impor a ele. A metodologia a ser adotada no estudo será a de revisão de literatura, por meio de pesquisa bibliográfica e documental sobre matérias relacionadas à audiência de custódia no Brasil, à videoconferência, à experiência internacional com questões semelhantes e aos direitos do acusado. O resultado esperado é o que a videoconferência pode sim afetar garantias inerentes à audiência de custódia, como o direito de presença.
PALAVRAS-CHAVE: Audiência; Tecnologia; Constitucionalidade.
ABSTRACT: The purpose of this study is to analyze the impact of videoconferencing on the recently inaugurated institute in forensic practice, which is the custody hearing. How would the implementation of the video system be able to reduce costs without undermining the constitutional guarantees of the accused? Initially, it is necessary to enter the theme of the custody hearing, what it consists and what its objectives are. Then, it is necessary to analyze how custody hearings could be compatible or not with the use of videoconferencing, using favorable arguments and criticisms of this technology. Finally, the importance of the body in an audience, and the limits that technology can impose on it, will be analyzed. The methodology to be adopted in the study is the literature review, through bibliographic and documentary research on matters related to the custody hearing in Brazil, to videoconference, to international experience with similar issues and to the rights of the accused. The expected result is that videoconferencing can indeed affect guarantees inherent to the custody hearing, such as the right of presence.
KEYWORDS: Hearing; Tecnology; Constitutionality.
1 - INTRODUÇÃO
Segundo René Ariel Dotti (p. 23, 1999), a tecnologia não pode substituir o cérebro pelo computador, fazendo-se necessário usar a reflexão como contraponto da massificação. Partindo desse ponto, mister analisar o possível impacto que a virtualidade da videoconferência poderia ter no recente instituto da audiência de custódia, visto que isso já se tornou prática comum na realidade forense.
Como a implementação do sistema de vídeo, a exemplo muitas reformas do sistema de justiça criminal, poderia ou não reduzir custos sem prejudicar os réus? Ou ainda, posto de outra forma, seria afetada a habilidade do juiz de averiguar questões inerentes à medida de conversão da prisão em flagrante em preventiva e quais são suas consequências diante do princípio da presunção de inocência? A utilização da videoconferência na audiência de custódia desnaturalizaria o instituto? Seria apenas mais um elemento de distanciamento ético para com o outro, e um retorno à sistemática anterior?
Como forma de aproximar-se ao tema, alguns elementos devem ser analisados. Primeiramente, com relação à natureza e aos objetivos da implementação da audiência de custódia em nosso ordenamento, tal procedimento surgiu com a proposta de racionalizar o juízo acerca da necessidade da prisão cautelar, dada a situação de calamidade dos presídios brasileiros. Portanto, significaria um controle de melhor qualidade pelo juiz da situação do acusado, tendo em vista seu caráter oral, acusatório e célere.
Em segundo lugar, sendo um dos principais fundamentos da audiência de custódia seu caráter humanitário, externalizado pela a oportunidade do contato pessoal do preso com o seu juiz, com a videoconferência, o poder comunicativo do corpo poderia ser diminuído, principalmente quando se observa que a medida alcança grupos vulneráveis pré-condenados, deixando clara sua condição biopolítica.
Discursos que fundamentam a defesa da utilização da videoconferência em audiência de custódia se orientam na maioria das vezes por uma lógica utilitarista que não se coaduna com a ordem constitucional atual, sendo certo que a qualidade da prestação jurisdicional não pode ser afastada com base em argumentos como baixo custo, celeridade e garantia de segurança pública.
Se existe algo sobre a presença física de um indivíduo que não pode ser reproduzido, nem mesmo com tecnologia moderna, então as audiências de custódia por videoconferência não podem evitar o sacrifício de informação que podem ameaçar sua qualidade, e ensejar a desumanização que encoraja uma resposta mais grave do que a que ocorreria se o juiz ficasse cara a cara com o indivíduo.
Por isso, demonstra-se necessária a realização de pesquisa sobre os reais custos e eficiências do uso da tecnologia de videoconferência na audiência de custódia, utilizando-se, para tanto, de contribuições acadêmicas sobre o assunto, tanto no plano nacional como no internacional.
2 – A IMPLEMENTAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
2.1 - Aspectos Gerais
A implementação do instituto da audiência de custódia é algo relativamente novo no ordenamento jurídico brasileiro, apesar de exigido desde 1992, ano da ratificação do Pacto de São José da Costa Rica pelo Brasil. Apenas no ano de 2015 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na resolução número 213, buscou efetivar o instituto, lançando as diretrizes nacionais para a realização da audiência, com a explicitação de seu conceito, objetivos e regras procedimentais. Além disso, o projeto trouxe a estruturação de centrais de alternativas penais, centrais de monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e câmaras de mediação penal, representando ao juiz opções a serem adotadas no lugar do encarceramento provisório.
Prevê o artigo 7.5 do Pacto de São Jose da Costa Rica, incorporado no sistema brasileiro como norma supralegal que
Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
Da mesma forma, o art. 9.3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos:
Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.
Diante disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu que
O juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para decidir se procede a liberação ou a manutenção da privação da liberdade, [...] o contrário equivaleria a despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no art. 7.5 da Convenção [Americana de Direitos Humanos], conforme explicitado no caso Bayarri vs. Argentina. (CIDH apud LOPES JR., 2014).
Diversos países deram então início a um processo sério de oralização das fases preliminares do processo penal, como forma de aprofundar a instalação da lógica do contraditório e de diminuir uso excessivo da prisão preventiva, de acordo com pesquisa realizada pelo CEJA, Centro de Estudios de Justicia de Las Américas (CEJA, 2011).
A título de exemplo, na Argentina o Código de Processo Penal federal exige que nos casos de prisão sem ordem judicial o detido seja levado a uma autoridade judicial competente dentro de seis horas. Já no Chile, quando um indivíduo é preso em flagrante, o mesmo deve ser levado dentro de 12 horas a um promotor, que deve liberá-lo ou levá-lo à presença de um juiz em até 24 horas a partir do momento da prisão. Na Colômbia, suspeitos presos em flagrante devem ser apresentados a um juiz em no máximo 36 horas. No México, esse período é de 48 horas.
No ordenamento brasileiro, o STF já decidiu, na ADI 5240 que
Ostentar o status jurídico supralegal que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm no ordenamento jurídico brasileiro, legitima a denominada ‘audiência de custódia” não havendo, pois, “qualquer inovação na ordem jurídica” concluindo o Ministro relator, ainda, que [as] audiências de custódia – que em sua opinião devem passar a ser chamadas de ‘audiências de apresentação’, têm se revelado extremamente eficiente como forma de dar efetividade a um direito básico do preso, impedindo prisões ilegais e desnecessárias, com reflexo positivo direto no problema da superpopulação carcerária. (STF, 2015, apud BALLESTEROS, 2016)
De tal modo, em 2011 deu-se início à tentativa legislativa para dar efetividade aos tratados internacionais de direito humanos acerca do tema. Não que esses tratados necessitassem de qualquer implemento normativo interno para adquirirem vigência, visto que a partir do momento que foram ratificados e promulgados, passaram, nessa época, a ter status supralegal. Todavia, destaca Lopes Jr. que “não se pode olvidar que a edição de lei exerce um papel fundamental na promoção do direito, principalmente no caso da audiência de custódia”. (LOPES JR., 2014).
De acordo com o texto do PLS 554/2011, de autoria do senador Antônio Carlos Valadares, o art. 306 do Código de Processo penal seria alterado para constar que
Art.306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente pela autoridade policial responsável pela lavratura do auto de prisão em flagrante ao juiz competente, ao Ministério Público, à Defensoria Pública, quando o autuado não indicar advogado, e à família do preso ou à pessoa por ele indicada.
§ 1o Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, a autoridade policial encaminhará o auto de prisão em flagrante ao juiz competente, ao Ministério Público e, caso o autuado não indique advogado, à Defensoria Pública.
§ 2o No mesmo prazo estabelecido no §1o, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, a respectiva capitulação jurídica e os nomes do condutor e das testemunhas.
§ 3o Caso haja alegação de violação aos direitos fundamentais do preso, a autoridade policial, imediatamente após a lavratura do auto de prisão em flagrante, determinará, em despacho fundamentado, a adoção das medidas cabíveis para preservar a integridade do preso, bem como a apuração das violações apontadas, instaurará de imediato inquérito policial para a apuração dos fatos e, se for o caso, requisitará a realização de perícias e exames complementares e determinará a busca do outras fontes de prova cabíveis.
§ 4o No prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas após a lavratura do auto de prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz e será por ele ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judiciária tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventuais violações.
§ 5o Antes da apresentação do preso ao juiz, será assegurado seu atendimento prévio por advogado ou defensor público, em local reservado para garantir a confidencialidade, devendo ser esclarecidos por funcionário credenciado os motivos e os fundamentos da prisão e os ritos aplicáveis à audiência de custódia.
§ 6o Na audiência de custódia de que trata o § 4o, o juiz ouvirá o Ministério Público – que poderá́ requerer, caso entenda necessária, a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão –, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos do art. 310.
§ 7o A oitiva a que se refere o § 6o será registrada em autos apartados, não poderá́ ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e a necessidade da prisão, a ocorrência de tortura ou de maus-tratos e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.
§ 8o A oitiva do preso em juízo sempre se dará́ na presença de seu advogado – ou, se o preso não tiver ou não indicar advogado, na de defensor público – e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no §7o, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310.
§ 9o É vedada a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação durante a audiência de custódia.
§ 10o O prazo previsto no § 4o para a apresentação do preso perante o juiz competente poderá́ ser estendido para, no máximo, 72 (setenta e duas) horas, mediante decisão fundamentada do juiz, em decorrência de dificuldades operacionais da autoridade policial.
§ 11o Excepcionalmente, por decisão fundamentada do juiz competente e ante a impossibilidade de apresentação pessoal do preso, a audiência de custódia poderá́ ser realizada por meio de sistema de videoconferência ou de outro recurso tecnológico de transmissão de som e imagem em tempo real, respeitado o prazo estipulado no § 10.
§ 12o Quando se tratar de organização criminosa, nos termos definidos pela Lei no 12.850, de 2 de agosto de 2013, a autoridade policial poderá́ deixar de cumprir os prazos estabelecidos nos §§ 4o e 10, desde que, dentro daqueles prazos, designe, em acordo com o juiz competente, data para a apresentação do preso em no máximo 5 (cinco) dias.
§ 13o Na impossibilidade, devidamente certificada e comprovada, de a autoridade judiciária realizar a inquirição do preso, quando de sua apresentação, no prazo estabelecido no § 4o, a autoridade custodiante ou a autoridade policial, por meio de seus agentes, tomará recibo do serventuário judiciário responsável, determinará sua juntada aos autos, retornará com o preso e comunicará o fato de imediato ao Ministério Público, à Defensoria Pública, se for o caso, e ao Conselho Nacional de Justiça.
§ 14o Na hipótese do § 13, a audiência de custódia deverá ser obrigatoriamente realizada no primeiro dia útil subsequente à data constante do recibo, devendo a autoridade custodiante ou a autoridade policial, sob pena de responsabilidade, reapresentá-lo na data indicada.
§ 15o Em caso de crime de competência da Polícia Federal, quando o Município do local de lavratura do flagrante delito não coincidir com sede da Justiça Federal, a autoridade custodiante ou a autoridade policial federal determinará a seus agentes que conduzam o preso ao juízo de direito do local de lavratura da peça flagrancial no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas, que serão encaminhados ao Ministério Público e, caso o autuado não indique advogado, à Defensoria Pública.”
Diante urgência do tema e demora legislativa em aprovar o projeto de lei, surgiu, em 2015, o Projeto Audiência de Custódia com a resolução número 213 do CNJ, que hoje é a fonte legislativa que regula as audiências de custódia no Brasil. Tal resolução trouxe as diretrizes para a realização das audiências, numa tentativa de melhorar a qualidade do juízo acerca da necessidade da prisão cautelar.
Ela prevê que o preso em flagrante deve ser apresentado e entrevistado pelo magistrado, a autoridade munida de competência para controlar a legalidade da prisão, até o prazo máximo de 24 horas, por meio de audiência, estando também presentes o Ministério Público e a Defensoria Pública, ou o advogado do preso, que aduzirão, cada qual, suas razões pelas quais constrição cautelar deve ou não ser mantida.
Assim, serão analisados o cabimento e a necessidade de manutenção da prisão ou a imposição de medidas alternativas ao cárcere, e eventuais ocorrências de maus-tratos ou torturas, além de outras irregularidades, como forma de prevenção e punição à prática de abusos físicos. Também será certificada a correta identidade da pessoa presa, dando-lhe ciência dos motivos que determinaram a eventual decretação de sua segregação cautelar, sendo colhidas informações sobre os fatos que determinaram essa medida extrema (CNJ, 2015).
Por fim, havendo requerimentos da acusação, o juiz irá decidir, fundamentadamente, sobre a aplicação das medidas cautelares diversas da prisão, e, só se averiguar que elas são insuficientes e inadequadas para o caso, irá decretar a prisão preventiva.
2.2 - Objetivos do Programa
O objetivo principal da Audiência de Custódia é o de dar efetividade aos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil e aos princípios constitucionais, garantindo a acusatoriedade do sistema processual penal, ao introduzir oralidade nas etapas preliminares ao processo propriamente dito, de forma que com a concretização do contraditório com a participação efetiva de acusação e defesa, seja dada legitimidade à decisão do juiz de manutenção ou não da prisão cautelar e da mitigação princípio da presunção da inocência.
Ao garantir um espaço qualificado para discussão e decisão referente à prisão em flagrante, a audiência de custódia também tem como objetivo principal avaliar com mais segurança a questão do status libertatis da pessoa presa. Durante a audiência o juiz deve assegurar-se da excepcional necessidade da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, de modo que a prisão cautelar não seja deturpada por uma eventual antecipação de pena, devendo ser utilizada somente quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 282, § 6o, CPP).
Na sistemática processual penal anterior, o Código de Processo Penal brasileiro previa que após a realização de uma prisão em flagrante apenas os documentos policiais a ela referentes fossem encaminhados ao juiz responsável, e não o preso em pessoa. Dessa forma, o magistrado apenas contaria com documentos escritos para fundamentar sua decisão sobre a legalidade da prisão e de conversão ou não em preventiva, e sobre a aplicação de outras medidas cautelares. O acusado só teria seu primeiro contato com o juiz em sua primeira audiência, muitas vezes realizada meses após sua prisão.
Como é possível observar,
Tal sistemática se traduz em um controle de menor qualidade pelo juiz da situação do acusado. A discussão escrita com relação a este assunto gera um debate de qualidade inferior, onde situações como a delegação de funções, as defesas meramente formais e a própria lógica do sistema inquisitorial, que pairava no sistema escrito, fazem com que o papel do juiz neste cenário seja quase nulo e que o acusado passe longos períodos na prisão sem julgamento. (CEJA, 2011, p. 59 - Tradução livre).
Conforme já foi explicado, as audiências de custódia permitem que os juízes tenham mais informações para decidir se alguém foi detido legalmente e se estão presentes os elementos para se determinar a prisão provisória. Nelas, os juízes devem decidir apenas sobre a aplicabilidade da prisão provisória, não sobre a suposta responsabilidade do suspeito pelo crime de que está sendo investigado.
Nesse sentido corrobora Toscano Jr.:
Na audiência de custódia não se aborda questão de mérito, senão a instrumentalidade da prisão e a incolumidade e a segurança pessoal do flagranteado, quando pairam indícios de maus-tratos ou riscos de vida sobre a pessoa presa. Não é o contato pessoal do juiz com o preso que o contamina. O distanciamento que é contamina de preconceitos, no sentido de conceitos prévios, sem maiores fundamentos. A presença do preso permite avaliar muito melhor o cabimento ou não da prisão. Traz a faticidade. (TOSCANO JR., 2015)
Dessa forma, viabiliza-se o respeito às garantias constitucionais, como o princípio constitucional do contraditório (Art. 5º, LV, CF), além de se consolidar o direito de acesso à justiça do acusado preso, com a ampla defesa garantida em momento crucial da persecução penal, sem, no entanto, implicar antecipação do interrogatório, já que o projeto prevê expressamente a impossibilidade de que este depoimento preliminar em juízo seja usado depois para condenar o réu.
Conclui-se, portanto, que a audiência de custódia é medida necessária para diminuir o número de presos provisórios e controlar a nefasta política de encarceramento em massa do Estado, que coloca, no mesmo lugar, indivíduos que são réus primários e sem antecedentes criminais junto dos presos que pertencem a facções criminosas.
O DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), buscando analisar os primeiros impactos da introdução da audiência de custódia na rotina processual brasileira publicou no início de 2017 pesquisa intitulada “A implementação das audiências de custódia no brasil: análise de experiências e recomendações de aprimoramento”, onde foi observado os pontos positivos e negativos dos dois anos iniciais de projeto e foram trazidas indicações do que ainda precisa melhorar.
Como primeiro ponto positivo, observou-se um maior cuidado na elaboração dos autos de prisão em flagrante feitos pela polícia, o que acabou por aumentar sua qualidade ao serem encaminhados ao judiciário. Além disso, delegados passaram a ser mais rigorosos na instrução dos procedimentos, o que levou ao estabelecimento de diretrizes gerais para a atuação das equipes da Polícia Civil em alguns estados, e até mesmo a um aumento do número de relaxamento das prisões em alguns outros (BALLESTEROS, p. 31, 2016).
Outra observação pertinente aos objetivos da audiência de custódia foi a que
Considerando que as prisões preventivas ainda não tem prazo máximo definido pela lei e que, ainda que amparados pelo ditame constitucional da duração razoável do processo, os homens presos provisoriamente chegavam a ficar, em média, 109 dias aguardando o primeiro contato com o juiz, e as mulheres, por sua vez, 135 dias sem nenhuma atenção judicial (RJC, 2013), a instituição da apresentação do preso a uma autoridade judicial no prazo máximo de 24 horas por si só já representa um avanço extremamente relevante no cenário da justiça criminal. (BALLESTEROS, p. 25, 2016).
Dentro desse contexto, o Manual de Gestão para Alternativas Penais: Medidas Cautelares Diversas da Prisão (2016) publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em parceria com o DEPEN explicita que com o projeto de audiência de custódia “busca-se a diminuição efetiva do encarceramento provisório, (...) permitindo a ampliação da concessão da liberdade e melhores condições para que se analise as particularidades de cada caso” (LEITE, p. 12, 2016), de forma que as audiências sejam vistas sob a ótica de um processo de intervenção penal mínima, desencarcerador e restaurativo.
De tal maneira, presentes no caso concreto os requisitos legais que autorizam a conversão em liberdade com aplicação de medida cautelar, e na análise individualizada e fundamentada da situação levada a juízo, deve-se
Articular a aplicação das medidas cautelares com a inclusão das pessoas que passam pelas audiências de custódia na rede de políticas assistenciais e programas de proteção social destinada a cidadãos em situação de vulnerabilidade como forma de garantir que, havendo real necessidade de uma intervenção da justiça criminal na intermediação dos conflitos sociais, ela se dê de forma residual, restaurativa e pautada pelo primado da liberdade” (BALLESTEROS, p.23, 2016)
Isso torna claro o papel fundamental das audiências de custódia nas atuais iniciativas político-criminais brasileiras, com vistas à “I- promoção do desencarceramento e da intervenção penal mínima; II- enfrentamento à cultura do encarceramento e desenvolvimento de ações de sensibilização da sociedade e do sistema de justiça criminal sobre a agenda de alternativas penais e o custo social do aprisionamento em massa; III- ampliação e qualificação da rede de serviços de acompanhamento das alternativas penais, com promoção do enfoque restaurativo das medidas”, tal qual explicitou a portaria número 495 do Ministério da Justiça, de abril de 2016, sobre a Política Nacional de Alternativas Penais.
Por fim, como último objetivo, a Audiência de Custódia inibe a execução de atos de tortura, tratamento cruel, desumano e degradante em interrogatórios policiais, que violam os direitos fundamentais do cidadão, e apesar das providências tomadas contra estes atos nos últimos anos no Brasil, ainda são recorrentes os casos em que a tortura é praticada durante interrogatórios policiais.
De acordo com a Human Rights Watch, a tortura ainda é um problema sério no Brasil. Em uma pesquisa sobre o tema, foram encontradas evidências contundentes, em 64 casos de supostos abusos, de que as forças de segurança ou autoridades penitenciárias torturaram pessoas sob sua custódia ou contra elas dispensaram tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Os abusos frequentemente ocorreram nas primeiras 24 horas sob custódia policial. A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos recebeu, por meio de um serviço telefônico, 2.374 denúncias de tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes ocorridos em prisões ou delegacias de polícia em 2014, um aumento de mais de 25 por cento em relação a 2013. (HRW, 2015).
Isso porque na sistemática anterior a única oportunidade que muitos presos possuíam de denunciar abusos sofridos para uma autoridade independente seria no seu interrogatório – meses após sua prisão, quando a comprovação da materialidade do delito tornava-se muito mais difícil. O estabelecimento de audiências de custódia em 24 horas da prisão é uma das principais recomendações no combate tortura.
Conforme a ONG Humans Right Watch observou no Maranhão:
As audiências de custódia também são cruciais para prevenir a tortura e os maus-tratos pela polícia – um sério problema no Brasil. O juiz Fernando Mendonça disse à Human Rights Watch ter identificado sinais de maus-tratos em três casos durante as audiências de custódia do programa piloto, os quais encaminhou ao Ministério Público. As evidências físicas dos maus-tratos provavelmente teriam desaparecido se os presos tivessem que esperar meses até serem conduzidos à presença de um juiz. (HRW, 2015)
3 - DISCURSOS FAVORÁVEIS À VIDEOCONFERÊNCIA EM AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E RESPECTIVAS CRÍTICAS
3.1 – Da Celeridade Processual
O que se observa nos casos em que magistrados optaram por utilizar a videoconferência nas audiências de custódia é que seus argumentos são muito próximos daqueles que defendem o uso da tecnologia no interrogatório do réu, regulado no parágrafo 2o do artigo 185 do Código de Processo Penal, onde lê-se:
Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:
I - prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento; (Incluído pela Lei no 11.900, de 2009) II - viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; (Incluído pela Lei no 11.900, de 2009)
III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código; (Incluído pela Lei no 11.900, de 2009) IV - responder à gravíssima questão de ordem pública. (Incluído pela Lei no 11.900, de 2009)
Como pode ser observado, a excepcionalidade é regra para se usar a videoconferência hoje.
Aqueles que defendem a constitucionalidade dos referidos dispositivos alegam que a videoconferência não viola os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, pois não subtrai do acusado nenhuma de suas garantias (direito ao silêncio, à autodefesa, à defesa técnica, à defesa efetiva, a acompanhar a produção das provas), nem cerceia qualquer liberdade, pois não limita ou veda a comunicação entre o acusado e o juiz.
Ao mesmo tempo, defendem que a tecnologia contribui para a celeridade processual, reduz os custos estatais com transporte e escolta de presos, melhora a segurança pública, pois nos deslocamentos de detentos sempre existe a possibilidade de fugas e de tentativas de resgate, liberando os policiais e os agentes penitenciários hoje responsáveis pelas escoltas para a realização das audiências para outras atividades relacionadas à segurança pública.
Como Garcia (2013) observa em seu estudo sobre interrogatório por videoconferência:
Na questão da videoconferência, a doutrina nacional majoritária pode ser observada neste fragmento de DAMÁSIO DE JESUS: “A lei federal que autoriza esse sistema (...) representou, a meu ver, notável avanço no sentido de modernizar e agilizar a prática da Justiça Criminal, evitando gastos e riscos desnecessários, com deslocamentos de presos de alta periculosidade” (JESUS, 2009, pp. 28, 29).
Fazendo um levantamento rápido é possível identificar as palavras que usualmente servem de fundamento ao argumento favorável à videoconferência são elas: modernização, agilidade ou celeridade, baixo curso, riscos com deslocamento, alta periculosidade etc. (GARCIA, p. 70, 2013)
Portanto, os discursos favoráveis à adoção da videoconferência na sistemática processual penal perpassam, em primeiro lugar, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Isso pois, “inúmeras audiências criminais deixam de ser realizadas todos os dias no país por problemas logísticos, principalmente em virtude da inexistência ou insuficiência de escolta para conduzir todos os acusados presos até o fórum e da falta de veículos que possam transportar os detidos com segurança” (PRADO, p. 163, 2015).
Frustrada a realização da audiência, deverá o magistrado redesigná-la, agendando outra data, intimando todos os que devam comparecer e requisitando novamente a apresentação dos acusados presos. Evidentemente, isso provoca atraso no processo e repetição de atos processuais. Além disso, ainda existe o risco de, na nova data designada, acontecer novo motivo que impeça o comparecimento do preso
Quando esse julgamento em prazo razoável não ocorre, um dos efeitos é a soltura dos acusados presos, que por excesso de prazo da prisão provisória passam a responder ao processo em liberdade. Isso pode provocar, muitas vezes, a liberação de pessoas extremamente perigosas, que vão colocar em risco a segurança pública. (PRADO, p.168, 2015).
Evidencia-se nesse argumento, como Garcia (2013) observou, a posição de que o principal elemento de morosidade no processo penal, e causa de impunidade, é a necessidade de deslocamento do preso à audiência. A videoconferência surgiria como alternativa de combate a essa morosidade e, logo, à impunidade.
Difícil negar o caráter meramente formal e punitivista presente no discurso, marcadamente inquisitorial. Fazendo uma relação evidente entre rapidez processual e punição, (...) fato é que a videoconferência se apresenta como instrumento de combate à impunidade, evidenciando sua aproximação com a acusação e não com a defesa. (GARCIA, p. 36, 2013).
Nesse sentido, há uma limitação argumentativa que preocupa-se mais com o “como” do que o “para quê” da prestação jurisdicional, ou seja, apesar de a videoconferência trazer sim rapidez, esta de nada garante qualidade da justiça, nem está alheia às consequências geradas.
O juiz no processo age, principalmente, como garante do Estado Democrático de Direito, devendo fiscalizar a legalidade de todos os atos processuais e o respeito aos direitos fundamentais. Por isso, faz-se necessária a apresentação física do réu em juízo, pois só assim poder-se-á verificar a legalidade da detenção e o modo como vem sendo exercida.
Conforme consignado por pesquisa empírica realizada nos EUA, país com grande histórico de uso de videoconferência no processo penal, Diamond, Bowman, Wong e Patton (2010), examinaram como a tecnologia impactou as Bail Hearings[1] no condado de Cook (cidade de Chicago), juntando informações sobre o período de oito anos e meio antes da implantação da videoconferência e de oito anos e meio depois, dos anos de 1991 a 2007.
O resultado achado mostrou que os presos foram consideravelmente prejudicados pelo uso da videoconferência nas audiências, tendo em vista que o valor de suas fianças para concessão de liberdade provisória após a implantação da medida teve aumento duradouro entre 54% e 90%, dependendo do crime (DIAMOND, BOWMAN, WONG e PATTON, p. 893, 2010).
Foi constatado que as audiências se tornaram extremamente breves: um grande montante de casos eram ouvidos e decididos rapidamente, em pouco tempo era impossível para o juiz dar qualquer consideração significativa e individualizada sobre a abundância de fatores que a lei julga relevante para concessão de liberdade provisória. Advogados criticaram a corte como sendo “uma grosseira e degradante ‘boiada’”. (DIAMOND, BOWMAN, WONG e PATTON, p. 893, 2010. Tradução livre).
Nesse contexto, foi inevitável uma preparação inadequada da defesa. Defensores públicos reclamaram que sua oportunidade de se reunirem com seus clientes antes das audiências era extremamente limitada. Num dia entre 100 e 150 casos eram ouvidos na corte, assistentes da defensoria encontravam cada preso por alguns segundos antes, anotavam seu caso e passavam ao defensor, que lia as informações enquanto a imagem do preso aparecia nos monitores. (DIAMOND, BOWMAN, WONG e PATTON, p. 893, 2010. Tradução livre).
Portanto, demonstra-se que o acusado pode sofrer uma perda significativa se o procedimento envolve mais do que uma atuação pro forma. A audiência de custódia se encaixa nessa categoria. Ela pode resultar numa decisão que priva o acusado de sua liberdade apesar da presunção de inocência, e pode interferir na sua defesa. Tornar célere tal procedimento sem respeitar suas garantias inerentes, como o direito de presença física, é desvirtuá-lo, retornando à sistemática inquisitorial. Como será explicitado no capítulo 3, o acusado possui muitas chances de ser prejudicado com a virtualidade da videoconferência, e isso não pode ser ignorado.
3.2 – Diminuição de Custos
Em segundo lugar, outro argumento favorável à videoconferência diz respeito à redução do ônus logístico e econômico do Estado no transporte dos acusados ao local de audiência. Nesse sentido, o tratamento a uma pessoa presa em flagrante “deve ser o menos oneroso e o mais rápido possível, legitimando a videoconferência como um instrumento útil” (GARCIA, p. 71, 2013).
Se existem diversas formas de realizar o mesmo ato, e se todas essas formas atendem à finalidade pretendida, é preciso descobrir quanto custa cada uma delas. Optar pelo meio menos oneroso pode reduzir significativamente os custos do Estado com a realização dos atos judiciais (PRADO, p. 28, 2015).
(...)
Uma das formas de descrever a racionalidade é dizer que as consequências de cada escolha proporcionam ao autor dessas escolhas uma determinada utilidade e que, por isso, antevendo as consequências, é possível ao indivíduo racional optar pela alternativa que lhe proporciona maior utilidade (PRADO, p. 29, 2015).
(...)
Se a melhor decisão para o indivíduo é a que lhe dá máxima vantagem, a melhor decisão para a sociedade é aquela que garante a máxima vantagem para o maior número de pessoas (PRADO, p. 31, 2015).
Nesse argumento percebe-se claramente a utilização de uma lógica utilitarista. Por essa lógica, o Estado tem o dever de buscar da felicidade para o maior número de pessoas, entendendo os interesses da comunidade como a soma dos interesses de seus membros. (BENTHAN, p. 260, 2002). Ou seja, exige-se que as utilidades de diferentes pessoas sejam somadas para avaliar o estado de coisas, porém sem levar em conta inerentes desigualdades de uma sociedade pluralista.
Dessa forma, a limitação de liberdades individuais por parte do Estado pode ser considerada como justificada na medida em que suas consequências são úteis, de forma que o Estado tenda a promover o maior bem-estar ou felicidade da coletividade a ele submetida.
O uso da videoconferência estaria justificado por trazer vantagens a um maior número de pessoas: ao juiz que gasta menos tempo realizando as audiências, ao Estado que gasta menos dinheiro na logística de sua realização e à sociedade em geral, que tem a impressão de uma justiça mais eficiente. A limitação, portanto, do direito do preso em flagrante de encontro com a jurisdição estaria justificada.
Nesse contexto, como Garcia observa, “não é difícil perceber que os interesses do réu, considerado como altamente perigoso tanto pelo Judiciário como pela opinião pública, será sempre o menor elemento dessa soma, em cima do qual a 'felicidade geral’ recairá com um peso diferente” (GARCIA, p. 71, 2013).
Justificar o uso da videoconferência numa audiência de custódia com base em critérios econômicos é limitar um direito arduamente conquistado, é insistir na arbitrariedade de um sistema criminal inquisitivo. Se a audiência de custódia veio para aproximar o preso e garantir sua presença num momento fundamental, de decretação ou não de sua prisão provisória, tal direito não deve ser sacrificado no cálculo dos interesses sociais.
Limitando-se à análise apenas das consequências do caso concreto, típica do consequencialismo, há um imediatismo que impede a visão do problema como algo estrutural. Portanto, tem-se claro que utilizar videoconferência gera menos custos, porém não se leva em consideração
A possibilidade de um Judiciário altamente virtualizado, em que não somente um ou outro réu estarão atrás das câmeras, mas também o próprio juiz e o advogado, sob o argumento do baixo custo com deslocamentos ou o risco dos encontros. Nem se essas medidas de virtualizar o Judiciário podem ou não corresponder à crescente insensibilização para com o outro, em um ambiente onde a presença física não é mais uma necessidade, mas um problema. (GARCIA, p.71, 2013)
Como crítica a essa lógica, Hannah Arendt em sua obra “A Condição Humana” assevera que quando uma utilidade se torna fonte de significação, gera-se ausência de significado, visto que “é em nome da serventia geral que o homo faber julga e faz tudo em termos de ‘para quê’” (ARENDT, 2007, p.167). Ou seja, reduzir a natureza e o mundo a simples meios priva-os de sua dignidade independente, acarreta a perda de seu valor intrínseco. O problema, portanto, está quando utilidade e serventia são estabelecidos como critérios últimos para a vida e para o mundo dos homens. Nessa ilimitada desvalorização de tudo o que é dado, posto que instrumentalizado, o ser humano também é reificado, perde sua significação e torna-se mero meio. (ARENDT, 2007, p.168 a 170).
3.3 – Melhoria da Segurança Pública
Há, em terceiro lugar, o argumento que a utilização da videoconferência evitaria uma série de ocorrências indesejáveis que comprometem a segurança pública e colocam em risco a população em geral, especialmente a fuga e a tentativa de resgate daqueles que deixam os presídios para serem transportados e escoltados até os fóruns, além do deslocamento de força policial para a escolta e transporte dos presos, provocando uma significativa redução no policiamento ostensivo ou na investigação policial (PRADO, p. 238, 2015).
Esse argumento justifica-se pela instrumentalização do Direito Penal na função de exercer controle social, ou seja, corrigir e moralizar de forma eficiente. Num cenário de criminalidade descontrolada e caos generalizado, corroborado pela criminologia midiática, tal qual Zaffaroni explicitou (2011, p. 365), impulsiona-se uma política criminal que neutraliza politicamente a população excluída ou marginalizada. Baseando-se numa “etiologia criminal simplista assentada em uma causalidade mágica”, no caso, que o transporte de acusados pode aumentar a criminalidade, constrói-se um mundo de pessoas decentes que devem ser protegidas e amparadas contra uma massa de criminosos, diferentes, perversos, que estão sempre na saga à espera de sua próxima vítima. Promovendo a criação do pânico moral, a criminologia midiática "sintetiza em seus estereótipos os piores preconceitos discriminatórios da sociedade e os manipula e os aprofunda para criar inimigos desta”. (ZAFFARONI, 2011, p. 265)
A cultura do medo alimenta a política de enrijecimento penal. Nesse contexto, a retórica das novas tecnologias contribui para a construção política de uma penalização reforçada e ostensiva, encarregada de conter desordens. (GARCIA, p. 72, 2013). Assim, o avanço tecnológico, por apresentar uma maior possibilidade de controle, vigilância, agilidade e baixo-custo, flerta com um processo penal fortemente influenciado pelas demandas sociais por uma Justiça Criminal “eficiente”. (GARCIA, p. 72, 2013)
Em síntese, pode-se dizer que, no Brasil, a utilização do medo como instrumento de gestão e controle social das classes populares pode ser analisada sob uma dupla perspectiva: primeiramente, o medo generalizado da violência gera um sentimento coletivo e cotidiano de insegurança, influenciando no processo de produção/alteração das normas penais, colimando, por um lado, a “tranqüilização” da sociedade frente aos perigos e, por outro, o restabelecimento na confiança no papel das instituições e na capacidade do Estado em combatê-los por meio do Direito Penal. Não se buscam medidas eficientes no controle da criminalidade, mas sim medidas que “pareçam” eficientes e que, por isso, tranquilizam (papel simbólico) não somente os grupos privilegiados, mas a sociedade como um todo. (WERMUTH, p. 7, 2010)
Nisso demonstra-se a lógica do eficientismo penal delineado por Baratta, onde a criminalidade violenta representa um mal ao qual o sistema deve reagir com rigor punitivo, visto que direcionado pelo medo (do crime) e insegurança (contra a criminalidade), resultando em um grande processo de expansão qualitativa (diversificação) e quantitativa (maximização) do controle penal formal e informal, e noutra via, minimização de garantias penais e processuais penais, levando ao encarceramento massivo.
Assim, tem-se uma resposta punitiva eficaz e célere, de forma simbólica, e, paralelamente, a flexibilização ou supressão de garantias penais estabelecidas pela Constituição ou tratados internacionais, sob o argumento de que isso é conveniente para que o sistema punitivo possa desempenhar mais fácil e eficazmente sua função de proteção social diante das novas formas assumidas pela criminalidade.
Nesse contexto, há a crença que o Estado seria incapaz de combater a criminalidade por meio de políticas criminais lato sensu, as políticas sociais, as quais teriam como foco os verdadeiros problemas criminógenos, e, desse modo, lança mão de políticas criminais estritas, se contentando com o punitivismo simbólico.
A melhor forma de atuação estatal não perpassa o direito penal do inimigo ou políticas como da lei e da ordem. Tais movimentos, nitidamente populistas, influenciados por argumentos como a de garantia da segurança pública visam afastar alguns direitos fundamentais dos desviantes. (RANGEL, 2013, p. 753)
4 – A IMPORTÂNCIA DA PRESENÇA CORPORAL NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Diante da adoção, pelo Brasil, de um processo penal constitucional, para além das vantagens que a videoconferência em audiência de custódia poderia propiciar, deve-se analisar, sobretudo, se direitos e garantias constitucionais podem ser limitados. Nem todo avanço tecnológico se encaixa dentro de restrições constitucionais ou das realidades dos processos criminais.
O Brasil é signatário do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direito Humanos, que garantem ao preso o direito de ser conduzido à presença do juiz (artigo 9o, número 3, Decreto n. 591/1992 e artigo 7o, número 5, Decreto n. 678/1992). Uma vez incorporados tratados internacionais que tratem de direitos e garantias do homem, não é possível limitar, nem mesmo por lei ordinária, tais direitos e garantias, sob pena de ofensa ao princípio de proibição do retrocesso (artigo 5o, §§ 2o e 4o, da CF/1988).
Portanto, a adoção de tecnologias para modernização dos atos processuais não pode ser utilizada para subtrair direitos constitucionais, dado que o processo penal é um instrumento que legitima o poder, e não uma forma de se retirar garantias mínimas do acusado. Entre essas garantias possivelmente ameaçadas pelo uso da videoconferência está a ampla defesa, principalmente na sua faceta de direito à presença do acusado diante do juiz natural ou o perigo de uma defesa técnica ineficaz (LOPEZ JUNIOR, 2005).
Como forma de perceber como essa limitação ocorreria, mister analisar novamente a contribuição de pesquisas internacionais sobre como a videoconferência influenciou os institutos análogos à audiência de custódia em outros países, respeitadas suas particularidades. Isso se faz necessário pois carecem pesquisas empíricas sobre o tema no Brasil, não havendo dados nacionais suficientes para serem analisados. Portanto, a experiência internacional pode ser uma grande aliada na compreensão do tema.
4.1 – Limitações Inerentes à Tecnologia
Diamond, Bowman, Wong e Patton (2010), em sua ampla pesquisa empírica sobre o impacto da videoconferência nas audiências de definição de fiança e encarceramento provisório, chegaram ao resultado que os presos foram consideravelmente prejudicados pelo uso da videoconferência. Isso pois há aspectos da presença ao vivo que afetam a credibilidade de um indivíduo. Se existe algo sobre a presença física que não pode ser replicado, nem mesmo com tecnologia moderna, então as audiências por videoconferência não podem evitar o sacrifício de informação que podem ameaçar a qualidade delas, e a desumanização que encoraja uma resposta mais grave do que a que ocorreria se o juiz ficasse cara a cara com um indivíduo vivo. (DIAMOND, BOWMAN, WONG e PATTON, p. 893, 2010. Tradução livre).
Foi observado que, em primeiro lugar, o preso passou a ser privado da oportunidade de encontro físico, de confronto com acusação e juiz. Em segundo lugar, diminuiu-se a habilidade do juiz em averiguar diversos fatores, como a credibilidade do preso, seu bem-estar físico e mental, a capacidade do réu de entender os procedimentos ao qual estava sendo submetido e as eventuais renúncias de direitos que poderia ser chamado a fazer. Além disso, o juízo perdeu a oportunidade de resposta imediata à presença humana do réu, o que diminuiu a perceção da gravidade do processo, sendo certo que sentenciar um preso por videoconferência criou risco de desconexão pela perda da proximidade imediata de uma pessoa viva. (DIAMOND, BOWMAN, WONG e PATTON, p. 879, 2010).
A tecnologia nunca é neutra. Além dos casos em que ela pode falhar ao longo de uma transmissão, a videoconferência não pode garantir que a mesma impressão passada por um réu fisicamente presente no tribunal poderá ser reproduzida em vídeo (POULIN, 2004, p. 1106). Isso pois a tecnologia pode distorcer e manipular imagens ou eliminar sinais não-verbais, dependendo do enquadramento ou foco utilizado pela câmera, uma visão completa da sala não estará disponível.
Isso se torna mais patente pela falta de diretrizes e parâmetros que regulem o uso da videoconferência, de forma que diferentes jurisdições podem empregar diferentes configurações de vídeo. Portanto, os participantes da audiência não poderão ver toda a ação ao mesmo tempo, a menos que várias câmeras sejam configuradas, o que não é provável (POULIN, 2004, p. 1108).
Uma das principais preocupações gira em torno da própria tecnologia. Para que a videoconferência funcione, deve haver um fluxo constante e ininterrupto de conversação entre as partes. Tal como acontece com qualquer implementação de tecnologia, no entanto, há casos em que a tecnologia falha durante uma audiência. Tais falhas incluem a incapacidade do advogado de defesa, acusado ou juiz de ouvirem e verem um ao outro, o que pode fazer com que uma das partes perca informações importantes, auditivas e visuais. Nessas circunstâncias, se a tecnologia falhar durante a conferência, ela falhará em sua finalidade e afetará negativamente o réu (POULIN, 2004, p. 1105).
Mesmo que opere perfeitamente, na videoconferência a interação entre acusado e juiz é severamente limitada, com a perda de informações como a expressão facial, olhar, postura e gestos. Tais sinais não verbais atendem a várias funções importantes. Eles transmitem atenção mútua, capacidade de resposta e comunicam atitudes interpessoais, representando uma parte importante do processo. Nisso inclui-se a transmissão ao juiz da capacidade de entendimento do procedimento pelo acusado, se este compreende os motivos que ensejaram sua prisão cautelar, o que é um dos objetivos fundamentais da audiência de custódia.
Quando um acusado aparece no tribunal por videoconferência, ele pode sofrer uma série de efeitos negativos, sejam eles tangíveis ou não. Uma comunicação baseada em tecnologia cria distância entre aqueles que interagem, privando-os da riqueza de informação de aspectos sociais e sensoriais que está disponível face a face.
Isso pois,
A criação de uma interação social na qual se pode perceber a identidade do outro é o que engendra sentimentos de engajamento ou conexão. As interações sociais são mais autênticas quando os indivíduos podem experimentar a identidade do outro de uma maneira que lhes faz lembrar sua própria humanidade ou quando podem formar uma conexão com outro (BENGTSSON, p. 3, 1999).
Impõe-se indagar, portanto, sobre como aqueles presentes no tribunal vão perceber o acusado, se este perderá credibilidade ou efetividade em sua autodefesa. Se a interação entre o juiz e o réu não se desenvolver corretamente ou estiver com alguma deficiência crítica, eles não poderão experimentar a humanidade de cada um. As interações face a face são cruciais pois permitem que os indivíduos adaptem sua fala e sua conduta de forma contínua para aumentar sua aparência de credibilidade, conforme estudo sobre o tema:
É plausível que os seres humanos tenham mais recursos comportamentais à sua disposição para alcançar um comportamento mais atraente e digno de confiança e que sejam mais capazes de adaptar sua conversa se houver indícios de que sua imagem está sendo danificada (BENGTSSON, p. 4, 1999).
Em vários estudos, descobriu-se que as interações em corpo físico são mais impactantes do que o fac-símile em vídeo, e que a capacidade do julgador de avaliar as características do arguido por meio de vídeo é prejudicada criticamente (DIAMOND, BOWMAN, WONG e PATTON, p. 869, 2010).
O contato olho a olho influencia a credibilidade e a confiabilidade do arguido, e é um dos gestos não-verbais mais importantes para favorecer sentimentos de empatia. A logística de uma interação de videoconferência torna o contato visual impossível, agravando ainda mais a capacidade do juiz de formar uma avaliação adequada do réu na outra extremidade da câmera (TREADWAY e WIGGINS, p. 268, 2006).
Perceber o outro em termos de uma humanidade compartilhada ativa reações emocionais empáticas, tanto pela similaridade percebida, como pelo senso de obrigação social (BANDURA, p. 200, 1999). Com a menor possibilidade de interação social entre juiz e acusado na audiência por videoconferência, a percepção do primeiro sobre o segundo como uma pessoa social completa é impedida. Assim, um juiz será menos propenso a considerar as circunstâncias de vida de um acusado ou o impacto que o encarceramento terá sobre ele, o que acaba por diminuir suas chances de liberação pré-julgamento (WALSH e WALSH, p. 269, 2008). O réu se torna um personagem em miniatura em uma tela em vez de um ser humano.
4.2 – Potencialidade Lesiva do Ambiente Penitenciário
A videoconferência também suscita preocupações quanto ao ambiente em qual os acusados se encontram. Uma sala em um centro de detenção é muito diferente de uma sala de audiências, tendo em vista que a atmosfera física e psicológica da prisão é intrinsecamente coerciva (RABURN-RENFRY, 1994, p. 833). Assim, o uso de videoconferência afetaria a credibilidade do próprio sistema de justiça criminal, ao também diminuir a formalidade inerente à presença no tribunal, o que pode levar o acusado a não levar o processo tão a sério quanto deveria.
Se o réu estiver no centro de detenção, que dificilmente é uma reprodução de uma sala de audiências, ele pode se sentir acuado para denunciar eventuais ilegalidades, como tortura e maus-tratos, no momento da prisão, o que é um dos objetivos fundamentais da audiência de custódia. Isso é resultado do próprio ambiente. Um centro de detenção, por sua natureza, é um ambiente onde falta a dignidade e a imparcialidade do tribunal (RABURN-RENFRY, 1994, p. 833).
Não faz sentido que a comunicação entre uma eventual vítima de prisão arbitrária e o juiz se dê justamente no local em que a ilegalidade está sendo perpetrada, sem que sejam asseguradas as garantias indispensáveis para que o preso possa levar ao conhecimento do magistrado fatos ofensivos à lei e requerer sua atuação.
No mais, quando a sala de audiências é estendida ao estabelecimento de segurança através da tecnologia de videoconferência, o juiz pode não tomar conhecimento de possíveis condutas hostis, humilhantes ou potencialmente inconstitucionais por parte dos agentes policiais que escoltam o acusado. Tais agentes são responsáveis por manter a ordem e não são encarregados do dever de proteger os direitos do incriminado, tal qual um juiz.
A Resolução CNJ n. 213/2015, em seus arts. 4o e 6o veda expressamente a presença de policiais seja durante o atendimento do preso pelo seu defensor, seja durante a realização da audiência de custódia. Porém, como Ballestros observou em sua pesquisa sobre a implementação das audiências de custódia no Brasil, “a polícia mantém uma proximidade bastante ostensiva que acaba interferindo tanto nas declarações do preso em relação à prisão quanto na narrativa de eventuais casos de tortura, mesmo quando o preso está conversando com seu defensor” (BALLESTEROS, p. 45, 2017). Esse panorama só tende a piorar em audiências por videoconferência.
4.3 – Prejuízos à Defesa
Outra preocupação séria é o papel que o advogado do acusado pode desempenhar na sua defesa, visto que ele ou estará presente no tribunal com juiz e promotoria, ou estará junto de seu cliente.
O arguido depende de seu advogado para argumentar o seu caso da forma mais eficaz possível. No primeiro caso, a comunicação e a privacidade intrínseca à relação cliente-advogado é prejudicada, pois se o acusado precisa falar em particular com sua defesa em alguns casos ele é forçado a fazê-lo na frente do tribunal por meio de vídeo (TOUTANT, 2005). Dessa forma, a dependência e a confiança criadas na relação é lesada pela tecnologia.
Além disso, mesmo que o arguido e o advogado possam comunicar-se em uma linha privada, o advogado sofrerá os mesmos problemas que um juiz pode encontrar quando a videoconferência é usada, ou seja, a incapacidade de detectar sinais não-verbais. Mais uma vez, há a chance de que, mesmo que comunicações privilegiadas possam ser fornecidas, o relacionamento e a conversa entre advogado e acusado podem ser negligenciados, o que limitará a capacidade de aconselhamento e comunicação e pesará injustamente contra o arguido (LEDERER, p. 1016, 1994).
Já no segundo caso, onde o advogado e acusado permanecem juntos, embora tal situação promova uma melhor comunicação entre a defesa, esta será impedida de uma interação plena com o tribunal (POULIN, 2004, p. 1131). Há ainda a possibilidade de se criar uma situação de "nós" contra "eles", onde o promotor está no tribunal com o juiz enquanto o arguido e o advogado de defesa estão conectados por uma tela de televisão (RABURN-RENFRY, 1994, p. 829). As mesmas limitações que a tecnologia impõe ao arguido - a diminuição da credibilidade e eficácia - agora são impostas ao advogado, o que pode impedir sua efetividade (POULIN, 2004, p. 1130), tornando a audiência de custódia menos imparcial e justa.
A questão central é a de que se o Estado deve ser permitido a interferir e a restringir o direito do acusado à assistência de advogado, corolário do princípio da ampla defesa. A videoconferência desloca o advogado e seu cliente do arranjo tradicional no tribunal onde os dois têm a oportunidade de conversar em particular, antes, durante e depois da audiência. A incapacidade do advogado de representar seu cliente efetivamente é consequência direta de falhas inerentes a um sistema que foi criado para a conveniência do governo.
O acusado é o centro da defesa, pois são suas experiências, suas memórias e sua vida que estão sendo discutidas. A audiência é um processo fluido onde a informação é transmitida rapidamente, e um advogado precisa de uma contribuição contínua de seu cliente. Sem isso, aumenta-se a crença que o acusado em nada pode contribuir para seu próprio julgamento.
Aqueles que são incriminados, especialmente os hipossuficientes, muitas vezes sentem que são "estrangeiros" em vez de participantes na adjudicação de justiça. O sistema de justiça criminal é naturalmente intimidatório, e nesse contexto a videoconferência serve como mais uma barreira para a compreensão completa dos procedimentos, reforçando a desconfiança e a alienação (THAXTON, p. 197, 1993).
4.4 – Da Falta de Critérios Objetivos na Utilização da Videoconferência
A falta de critérios objetivos que autorizam o uso da videoconferência acaba por permitir que juízes se utilizem da conveniência e discricionariedade para fundamentar a necessidade da medida, tornando-a não excepcional, mas sim um procedimento padrão.
Isso pois, na busca por fundamentação para o uso da medida, muitos juristas se valem de uma lógica racional utilitarista não preocupada com a ampliação de direitos ou com a qualidade da prestação jurisdicional, mas sim voltada à redução de custos e celeridade, e por terem a concepção de que a presença corpórea do réu frente a frente do juiz é desnecessária, visto que a presença em tela seria um contato direto, com as feições percebidas de forma igual.
O fato é que ainda vigora entre os magistrados uma mentalidade punitivista, reflexo dos anseios da sociedade em enxergar no sistema penal um instrumento de segurança pública. Se a audiência de custódia surge como forma de melhorar o controle judicial sobre as prisões cautelares, garantir o contato do preso com seu magistrado e sua aproximação a um processo penal já tão excludente e alienador, logo a lógica do eficientismo penal alimentada pelo discurso de defesa social exposto por Baratta (2002, p. 17) toma seu lugar e dá margem à introdução de medidas como a videoconferência. Como Garcia observa:
A videoconferência é a implementação da ideologia asséptica de um judiciário que nega o Outro enquanto um sujeito real. Sob os discursos que afastam a humanidade do réu, que já o coloca no sistema penitenciário longe das garantias legais, as medidas virtuais contribuem para efetivar e aumentar esse distanciamento com a Justiça.
(...)
Em síntese, a alienação frente aos possíveis problemas da aplicação das medidas virtuais corresponde à vitória de uma racionalidade burocrática e desumanizadora, representando a redução dos valores da dignidade humana e a reprodução do modelo inquisitorial (DUARTE, 2005). Muitas vezes o discurso refratário às medidas virtuais é visto como conservadorismo, mas, ao contrário, a crítica que se levanta é na intenção de que finalmente a Justiça efetive a prestação jurisdicional preocupada com os direitos fundamentais, e não como mero instrumento de persecução criminal.
Entende-se que a retaliação ao direito à presença corresponde à vitória do modelo inquisitorial, no qual a ampla defesa é apenas um requisito de formalidade, pois é na realização desse direito, a partir de sua corporeidade, que está a mais significativa defesa contra o poder biopolítico estatal. A videoconferência, na medida em que contribui para o desencontro com o preso, já submetido aos discursos objetificantes, é o caminho contrário que a Justiça deve seguir, o do encontro com o Outro enquanto um ser vivo. (GARCIA, p. 101-103, 2013)
Aqueles passíveis de serem segregados da sociedade ou da comunidade humana em si muitas vezes falam com uma voz muito fraca para ser ouvida acima da demanda da sociedade por punição. É o papel particular dos tribunais ouvir essas vozes, pois a Constituição declara que o coro majoritário não pode sozinho determinar as condições da vida social.
Os interesses estatais na substituição de audiências de custódia face a face por aquelas realizadas por videoconferência incluem promover a conveniência administrativa, economizar custos de transporte e de segurança e reduzir o perigo de danos associados ao processo de transporte do acusado. Por outro lado, o interesse da liberdade do réu é fundamental e não pode ser facilmente sobrepujado. O risco de privação errada de liberdade é alto quando o acusado não está presente em sua própria audiência.
Presumivelmente, o estado está interessado em promover a eficiência. Esta, em geral, é cumprida pela harmonização de quantidade e qualidade. No entanto, o Estado está empregando procedimentos que se concentram na quantidade, não na qualidade das audiências. Aqueles que defendem a videoconferência dizem que ela é o melhor caminho para se respeitar o prazo máximo de 24 horas de apresentação do preso cautelar ao juiz. No entanto, o raciocínio do Estado para a utilização dessa tecnologia não é fornecer uma apresentação rápida, mas sim conveniente e breve.
A qualidade de uma audiência não é produzida ao se melhorar a resolução de uma televisão, mas sim ao garantir uma defesa eficaz e o direito à presença. São fundamentais as salvaguardas que impeçam o judiciário de transformar uma audiência individualizada em uma linha de montagem desumanizadora. O devido processo e a ampla defesa exigem que os acusados estejam presentes, em corpo, nas audiências de custódia, pois seus interesses de liberdade superam o interesse do Estado em aliviar seus encargos administrativos.
5 - CONCLUSÃO
Feitas todas essas considerações, pretende-se mostrar que todas as novas tecnologias - incluindo a videoconferência - têm o potencial de abuso. As modificações empreendidas no âmbito do sistema de justiça criminal, como a introdução da audiência de custódia, são extremamente relevantes e demandam esforço e vigilância contínua para evitar seu retrocesso.
Deve-se atentar para que as audiências de custódia sejam operadas de forma a respeitar os objetivos para que forem criadas em primeiro lugar: garantir acusatoriedade, ajuste aos tratados internacionais e respeito aos direitos do acusado, que incluem sua dignidade e presunção de inocência, sendo a prisão cautelar ultima ratio.
Para tanto, a prática forense não pode se valer de argumentos economicistas como “menor custo, mais rapidez”, que são tão aclamados pelo brado comum, porém retiram por completo a função básica do processo penal como garantia do cidadão frente os interesses estatais por punição, e impõem no lugar um eficienticismo ilusório e um paradigma de inquisitorialismo sistêmico.
As atrações da tecnologia convidam a implementar medidas aparentemente econômicas, porém, a aceitação precoce da tecnologia pode trazer custos ainda maiores: aumentando a quantidade de audiências, e diminuindo a possibilidade dos presos de obterem a liberdade, podem ser impostos gastos adicionais ao judiciário ao aumentar o encarceramento cautelar de acusados que seriam soltos de outra forma. O judiciário deve confrontar sérias questões sobre o impacto da tecnologia nos direitos do acusado, com o desafio de não deixar se atrair tão facilmente por ela como uma solução para as ineficiências percebidas.
A presença física acrescenta integridade à audiência de custódia e é o fundamento sobre o qual os direitos constitucionais do acusado são baseados. O juiz deve levar em consideração que há potencialmente anos de encarceramento provisório em jogo para cada réu. Ao tomar decisões importantes que afetam tão profundamente a vida das pessoas, a humanidade do acusado é um fator crítico.
Pertinente a observação de Laurence Dumoulin e Christian Licoppe, em estudo próprio:
Um julgamento é um tipo de cenografia, um drama que reencena o conflito e opera de acordo com um processo de catarse (Garapon, 2001). As posições respectivas da vítima, do acusado e da testemunha refletem uma distribuição real de papéis no processo de julgamento. Distanciar um participante - seja uma testemunha ou o acusado e seus advogados - permitindo que contribua para a audiência de outro lugar, desestabiliza essa economia simbólica de justiça sem propor qualquer alternativa, colocando-a em algum lugar fora da organização espacial do julgamento (DUMOULIN e LICOPPE, p. 117, 2017. Tradução livre).
Ao excluir um acusado de sua própria audiência de custódia, sua humanidade e sua dignidade são esquecidas, pois ele está fora de vista e fora da mente. A alta quantidade de aprisionamentos cautelares reflete o desequilíbrio. Muitas jurisdições enfrentam alguma forma de justiça automatizada, que tende a desumanizar o acusado. A tendência em utilizar a videoconferência nos processos criminais levanta uma questão importante quanto ao equilíbrio adequado da eficiência judicial e dos direitos constitucionais de um réu criminal.
Assegurar maior velocidade, economia e conveniência na administração da lei colocando em risco princípios fundamentais da liberdade constitucional é um preço é muito alto. Avanços tecnológicos são esperados, mas eles devem funcionar para aumentar a eficiência sem sacrificar a justiça. A dignidade humana não pode ser negligenciada à medida que a tecnologia avança.
Quando o sistema legal é pressionado por uma grande quantidade de casos e recursos limitados, a promessa de soluções rápidas por novas tecnologias ameaça ao invés de promover a justiça. A tecnologia oferece grandes esperanças, mas o processo penal é a moeda de um sistema judicial justo e legítimo. A aproximação necessária ao tema é a de conduzir programas pilotos, de modo a avaliar a operação e o impacto das reformas propostas, no lugar de simplesmente impor mudanças amplas, dramáticas e potencialmente prejudiciais às garantias constitucionais.
6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Audiências preliminaries realizadas após a prisão cautelar do agente, onde o juiz decidirá se libertará o acusado sob fiança ou o manterá na prisão enquanto aguarda seu julgamento.
Pós-graduada em direito penal e direito processual penal. Advogada
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, Luciana de Sousa. O uso da videoconferência em audiências de custódia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 set 2023, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63031/o-uso-da-videoconferncia-em-audincias-de-custdia. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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