RESUMO: A possibilidade de revogar uma doação por causa de ingratidão por parte do donatário é um direito assegurado e regulado pelo Direito Civil Contratual, estando seus dispositivos presentes tanto no Código Civil Brasileiro, quanto no Código Civil Português. Desse modo, este estudo pretende abordar os aspectos da revogação de doação por ingratidão tratados nas legislações do Brasil e de Portugal. O objetivo deste artigo é realizar uma análise da legislação do Brasil e de Portugal sobre a revogação de doação por ingratidão, elencado nos códigos civis de ambos os países. Assim, a metodologia utilizada nesta pesquisa é a hipotético-dedutiva e a técnica de pesquisa bibliográfica, junto a pesquisa documental, com o viés de analisar, comparar e contextualizar diversos estudos de renomados autores, junto às legislações do Brasil e de Portugal e jurisprudências dos tribunais de ambos os países, relacionados ao direito contratual de revogar doação por ingratidão.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil. Direito Contratual. Direito Comparado. Doação. Revogação de doação.
ABSTRACT: The possibility of revoking a donation due to ingratitude on the part of the donee is a right guaranteed and regulated by Civil Contractual Law, and its provisions are present both in the Brazilian Civil Code and in the Portuguese Civil Code. In this way, this study intends to approach the aspects of the revocation of donation due to ingratitude dealt with in the legislation of Brazil and Portugal. The objective of this article is to carry out an analysis of the legislation of Brazil and Portugal on the revocation of donation due to ingratitude, listed in the civil codes of both countries. Thus, the methodology used in this research is the hypothetical-deductive and the bibliographic research technique, together with documentary research, with the bias of analyzing, comparing and contextualizing several studies by renowned authors, together with the legislation of Brazil and Portugal and jurisprudence of the courts of both countries, concerning/ as to the contractual right to revoke donation for ingratitude
KEYWORDS: Civil law. Contractual Law. Comparative law. Donation. Donation revocation.
1. INTRODUÇÃO
A priori, infere-se que esta investigação pretende abordar os principais aspectos acerca da revogação das doações por ingratidão, tratados nas legislações do Brasil e de Portugal. Com isso, tem-se que o objetivo deste trabalho é realizar uma análise em função da legislação do Brasil e de Portugal sobre a revogação de doação por ingratidão, elencado nos códigos civis de ambos os países.
A justificativa deste trabalho advém de um período de mobilidade acadêmica realizado pelo autor desta pesquisa, durante um semestre da graduação, na Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Direito, em Lisboa - Portugal, mediante bolsa de estudos concedida pelo programa de mobilidade acadêmica da Associação das Universidades de Língua Portuguesa - AULP. Aliado a isso, há a justificativa relacionada à demanda de pesquisa desenvolvida ao decorrer/desenvolvimento das aulas e debates da disciplina de “Direito Contratual e Responsabilidade Civil” ministradas na Universidade Federal do Rio Grande (FURG) no curso de Direito Bacharelado no ano de 2022.
Desse modo, observa-se que foi utilizada neste estudo a metodologia hipotético-dedutiva que, consoante Popper (1993), desenvolve-se a partir de uma problemática, dentro de uma conjuntura, que se submete a sucessivos testes de falseamento. Junto a ela, usar-se-á a técnica de pesquisa bibliográfica, somada a pesquisa documental, com o ideal de analisar, comparar e contextualizar diversos estudos de renomados autores, junto às legislações do Brasil e de Portugal e jurisprudências dos tribunais de ambos os países, relacionados ao direito contratual de revogar doação por ingratidão.
Por esse viés, tem-se que, principalmente, hoje em dia, na era digital da sociedade contemporânea, quaisquer atitudes ou gestos relacionados à gratidão são cada vez menos
praticados, o que influencia sistematicamente as relações entre pessoas no meio social. Nesse sentido, observa-se que no Direito Civil, mais precisamente no Direito Contratual, há um dispositivo contratual que relaciona-se à prática generosa, como é o caso do contrato de doação, ato pelo qual se realiza uma ação em favor de outra pessoa, sendo uma atitude de generosidade (porém, também há casos em que essa figura contratual é usada como meio de proteção patrimonial de devedores).
Assim, a figura da doação é uma modalidade contratual que está presente no Direito Civil brasileiro e português, tendo sua previsão exposta no Código Civil do Brasil e de Portugal. Desse modo, sabe-se que, nessa ação, ocorre a transferência patrimonial do doador em favor do donatário, geralmente, como um gesto de gratidão.
Todavia, há situações em que o donatário, após receber a doação, torna-se ingrato em relação ao doador, agindo de maneira ingrata perante o doador ou a seus familiares. Sendo assim, quando isso acontece, a doação pode ser revogada e, essa revogação de doações por ingratidão, está prevista no artigo 555 do Código Civil Brasileiro e no artigo 970 do Código Civil Português.
Com isso, verifica-se necessário analisar a legislação brasileira e portuguesa sobre a temática da revogação de doações por ingratidão regulada nos Códigos Civis de ambos os países. Nesse sentido, dividir-se-á o presente estudo em 2 partes, de maneira que, primeiro, será analisada a legislação brasileira e, após, será analisada a legislação portuguesa sobre o tema supramencionado.
2. A REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO POR INGRATIDÃO A PARTIR DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
A priori, observa-se que os aspectos do Direito Contratual relacionados às doações e hipóteses de revogação de doações estão disciplinados pelo Código Civil Brasileiro, no Capítulo IV, do artigo 538 ao artigo 564. Nesse ponto, cabe ressaltar que a doação é uma ação não onerosa em que um indivíduo (doador), seja físico, seja jurídico, por liberalidade, realiza a transferência de seu patrimônio ou de vantagens a outra pessoa (donatário), segundo o artigo 538 do Código Civil, artigo este que inaugura o capítulo.
Nesse âmbito, a doação acaba por ser uma ação de mera liberalidade, um contrato unilateral, benéfico e gratuito, de modo que apenas admite que seja interpretado restritivamente e nunca ocorra a interpretação declarativa ou extensiva, como exposto no
artigo 114 do CC. Consoante ao doutrinador Flávio Tartuce (2021) a revogação é a maneira de resilição de modo unilateral, de extinguir um contrato a partir do pedido feito por uma das partes contratantes por motivo da perda de confiança entre as partes do contrato.
Os aspectos que tratam sobre a revogação de doações estão regulados, mais especificamente, nos artigos 555 a 564 do Código Civil Brasileiro em vigor atualmente. A revogação é compreendida como um direito potestativo em prol da pessoa que realiza a doação (doador) (DINIZ, 2022) e, essa revogação, pode ocorrer em duas situações, seja por ingratidão por parte do donatário, seja por inexecução do encargo ou modo acordado, conforme exposto no artigo 555 do CC.
Segundo o artigo 556 do CC, é vedada a renúncia prévia acerca do direito de revogar a doação por motivo de ingratidão, no instante em que, caso haja cláusula sobre isso, tal cláusula será nula, e o restante do contrato será mantido, em função do princípio da conservação contratual, como expresso: “Art. 556. Não se pode renunciar antecipadamente o direito de revogar a liberalidade por ingratidão do donatário”. Todavia, nada impede que o doador deixe de exercer o seu direito potestativo durante o prazo disposto e assegurado em lei.
Ademais, verifica-se que o artigo 557 e o artigo 558 do CC elencam os motivos que podem fundamentar a revogação de doações por ingratidão (antes era entendido como um rol taxativo, mas, atualmente, passou a ser um rol exemplificativo, a partir do atual Código Civil). Sendo um rol exemplificativo, cabe ressaltar que qualquer forma de atentado à dignidade da parte doadora por parte que recebe a doação pode propiciar a revogação da doação por motivo de ingratidão, cabendo ser analisado caso a caso. In verbis:
Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:
I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele;
II - se cometeu contra ele ofensa física;
III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;
IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.
Art. 558. Pode ocorrer também a revogação quando o ofendido, nos casos do artigo anterior, for o cônjuge, ascendente, descendente, ainda que adotivo, ou irmão do doador.
Assim, sendo um rol exemplificativo, é preciso que a ação de ingratidão seja de especial gravidade, de maneira a motivar a revogação e a ineficácia da doação feita.
Consoante o Ministro Sidnei Beneti do Superior Tribunal de Justiça (STJ, REsp 1.350.464/SP), percebe-se que ações realizadas, no sentido pessoal e comum da parte, como caracterizadores de ingratidão, não devem ser compreendidos como aptos a se caracterizarem no âmbito jurídico como tais, tanto por não serem unilaterais frente à esfera de reciprocidade, quanto por não terem aspectos de especial gravidade injuriosa.
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE SEM PRODUÇÃO DE PROVA PERICIAL. REEXAME DE PROVAS. REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO. ATOS DE INGRATIDÃO. 1.- Em matéria marcada por forte substrato fático, como a da configuração ou não de ato de ingratidão de donatário, não é possível concluir se o julgamento antecipado da lide com dispensa da produção de provas, mas realizado com base em cerrada análise dos elementos probatórios, teria implicado cerceamento de defesa, sem revisar os fatos e provas que influenciaram a formação da convicção do julgador. Nessa seara, tem aplicação o princípio da livre convicção motivada, chocando-se contra a Súmula 07/STJ, o recurso especial interposto com o mencionado propósito, 2.- Para a revogação da doação por ingratidão, exige-se que os atos praticados, além de graves, revistam-se objetivamente dessa característica. Atos tidos, no sentido pessoal comum da parte, como caracterizadores de ingratidão, não se revelam aptos a qualificar-se juridicamente como tais, seja por não serem unilaterais ante a funda dissensão recíproca, seja por não serem dotados da característica de especial gravidade injuriosa, exigida pelos termos expressos do Código Civil, que pressupõem que a ingratidão seja exteriorizada por atos marcadamente graves, como os enumerados nos incisos dos arts.1183 do Código Civil de 1916 e 557 do Código Civil de 2002 (atentado contra a vida, crime de homicídio doloso, ofensa física, injúria grave ou calúnia, recusa de alimentos - sempre contra o doador - destacando-se, aliás, expressamente, quanto à exigência de que a injúria, seja grave, o que também se estende, por implícito à calúnia, inciso III dos dispositivos anotados). 3.- No caso dos autos, ambas as instâncias de origem entenderam, com fundamento na prova dos autos, que a conduta da Ré não poderia ser classificada como "ato de ingratidão" a que se refere a lei como requisito para a revogação da doação. A pretensão recursal voltada à revisão dessa conclusão choca-se frontalmente com a Súmula 07/STJ. 4.- Recurso Especial a que se nega provimento. (REsp n. 1.350.464/SP, relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 26/2/2013, DJe de 11/3/2013).
Além disso, observa-se que a revogação por ingratidão, na situação de homicídio doloso do doador, caberá aos seus herdeiros, salvo se o doador perdoar o donatário, de modo que esse perdão poderá ser concedido quando exposto em última vontade provada através de testemunhas idôneas. Como disciplinado no artigo 561 do CC: “Art. 561. No caso de homicídio doloso do doador, a ação caberá aos seus herdeiros, exceto se aquele houver perdoado”.
Cabe destacar que, em relação a terceiros, a revogação por ingratidão não irá prejudicar os direitos adquiridos, nem irá obrigar quem recebe a doação de restituir os frutos que foram percebidos antes da citação válida. Todavia, o donatário restará sujeito a pagar os frutos que forem posteriores e, além disso, quando o donatário não puder restituir em espécie as coisas recebidas na doação, deverá indenizar o doador pelo meio-termo de seu valor, conforme o artigo 563 do Código Civil. In verbis:
Art. 563. A revogação por ingratidão não prejudica os direitos adquiridos por terceiros, nem obriga o donatário a restituir os frutos percebidos antes da citação válida; mas sujeita-o a pagar os posteriores, e, quando não possa restituir em espécie as coisas doadas, a indenizá-la pelo meio termo do seu valor.
Na sequência, ressalta-se abaixo o artigo 564 do CC, o qual expõe os casos em que não é admitida da revogação de doações por motivo de ingratidão:
Art. 564. Não se revogam por ingratidão:
I - as doações puramente remuneratórias;
II - as oneradas com encargo já cumprido;
III - as que se fizerem em cumprimento de obrigação natural;
IV - as feitas para determinado casamento
Segundo o artigo 559 do CC, “a revogação por qualquer desses motivos deverá ser pleiteada dentro de um ano, a contar de quando chegue ao conhecimento do doador o fato que a autorizar, e de ter sido o donatário o seu autor”. Em função disso, entende-se que há o prazo decadencial de um ano para ser pleiteada a revogação da doação por ingratidão nos termos do artigo 559 do CC.
Analisando-se o artigo 560 do CC, entende-se que está disciplinado que a revogação da doação por ingratidão não é transmitida aos herdeiros da parte que realiza a doação, muito menos poderá prejudicar os herdeiros da parte que recebe a doação. Entretanto, os herdeiros do doador podem continuar com a ação já iniciada pelo doador, podendo continuar ela contra os herdeiros do donatário, caso este faleça após ajuizada a lide.
Art. 560. O direito de revogar a doação não se transmite aos herdeiros do doador, nem prejudica os do donatário. Mas aqueles podem prosseguir na ação iniciada pelo doador, continuando-a contra os herdeiros do donatário, se este falecer depois de ajuizada a lide.
Enfim, vê-se que o Código Civil Brasileiro regulamentou a revogação de doações por ingratidão em vários artigos disciplinados, especificamente, do artigo 555 até o artigo 564. Assim, tratou sobre algumas hipóteses em que cabe a revogação, prazo para ela ser pleiteada, alguns casos em que não cabe a revogação, acerca de como ela afeta terceiros na relação da doação e sobre a questão da renúncia antecipada do direito potestativo de revogação a doação por ingratidão.
3. A REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO POR INGRATIDÃO A PARTIR DO CÓDIGO CIVIL PORTUGUÊS
Relacionado à legislação portuguesa, em um primeiro ponto, convém ressaltar que a temática das doações está disciplinada no Código Civil Português, no Capítulo II, artigos 940 a 979. A partir disso, o capítulo em questão é inaugurado com o conceito de doação, em seu artigo 940, nº 1, sendo um contrato em que uma pessoa, de forma livre e a seu custo patrimonial, dispõe de maneira gratuita uma coisa ou um direito, ou assume determinada obrigação, de forma a beneficiar outro indivíduo. E, no mesmo artigo, nº 2, expõe que “não há doação na renúncia a direitos e no repúdio de herança ou legado, nem tão-pouco nos donativos conformes aos usos sociais”.
Assim, a doação nada mais é do que uma ação que atribui a outra pessoa uma dada vantagem patrimonial, mediante diminuição do patrimônio do próprio doador, sendo um real espírito de liberalidade, generosidade ou espontaneidade, a partir da ausência de qualquer pretensão ou intenção, somente importando sacrifícios econômicos/patrimoniais para o próprio doador. Ademais, expressa-se que, em relação à aceitação da doação, enquanto ela não for aceite, poderá a pessoa que estiver doando revogar livremente a sua declaração negocial, conforme o artigo 969 do CC, todavia, no momento em que ela for aceite irá se tornar irrevogável, salvo os casos em que for verificada a ingratidão por parte do donatário.
Com isso, infere-se que o diploma civil de Portugal trata especificamente sobre a revogação de doações por ingratidão nos artigos 969 até 979. Sendo assim, compreende-se
que em situações em que houver sido realizada uma doação e que, posteriormente, o donatário venha agir com ingratidão, segundo o artigo 970 do CC, a doação poderá ser revogada. Desse modo, o artigo 974 do Código Civil Português evidencia os casos em que pode ocorrer a revogação da doação por ingratidão, sendo: “Art. 974. A doação pode ser revogada por ingratidão, quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador, ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação”. Na sequência, o CC traz casos em que não se faz possível requerer a revogação da doação por ingratidão no artigo 975. In verbis:
Artigo 975.º
(Exclusão da revogação)
A doação não é revogável por ingratidão do donatário:
a) Sendo feita para casamento;
b) Sendo remuneratória;
c) Se o doador houver perdoado ao donatário.
Por esse viés, analisando as jurisprudências dos tribunais de Portugal, em destaque para o Acórdão da 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo nº 7215/04.0TCLRS.L1-7, pela Relatora Ministra Ana Resende, que trata acerca da revogação de doação por indignidade, tem-se os seguintes apontamentos:
Importa reter que quando se fala em ingratidão, ou mesmo indignidade, estão em causa conceitos jurídicos, legalmente preenchidos, que não possuem a extensão ou o significado usualmente considerado. Com efeito o sentido a atender encontra-se vertido noutros preceitos legais, reportado a uma situação que se configurada quanto a um herdeiro seria qualificada como justificativa de indignidade, nos termos do art.º 2034, ou de deserdação, art.º 2166. Em conformidade, a doação pode ser revogada, por ingratidão, verificadas as situações de indignidade enunciadas no art.º 2034, isto é, o donatário ter sido condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado contra o doador, o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, ter o donatário sido condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza, ter o donatário, por meio de dolo ou coacção, induzido o doador a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impedir, ter o doador dolosamente subtraído, ocultado, inutilizado, falsificado ou suprimido o testamento, antes ou depois da morte do doador, ou se ter aproveitado desse facto. Também poderá a doação ser revogada, por ingratidão, nos casos previstos no art.º 2166, a saber, ter o donatário sido condenado por algum crime doloso contra a pessoa, bens ou honra do doador, ou do seu cônjuge, ou de algum descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, desde que o crime corresponda a pena superior a seis meses de prisão, ter sido o donatário condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, ter o donatário, sem justa causa, recusado ao doador ou ao seu cônjuge os devidos alimentos, quer por ser uma das pessoas obrigadas a prestá-los, nos termos do art.º 2009, quer por se ter transmitido para o donatário tal obrigação, nos termos do n.º2, do art.º 2011. (TRL/LISBOA, Processo nº 7215/04.0TCLRS.L1-7, Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão da 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, Relatora Ministra Ana Resende, julgado em 16 de junho de 2009).
Abaixo cabe transcrever os artigos referidos no acórdão acerca dos casos estipulados do Código Civil em que se faz possível revogar uma doação por ingratidão:
Artigo 2034.º
(Incapacidade por indignidade)
Carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade:
a) O condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado;
b) O condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza;
c) O que por meio de dolo ou coacção induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu;
d) O que dolosamente subtraiu, ocultou, inutilizou, falsificou ou suprimiu o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de algum desses factos.
Artigo 2166.º
(Deserdação)
1. O autor da sucessão pode em testamento, com expressa declaração da causa, deserdar o herdeiro legitimário, privando-o da legítima, quando se verifique alguma das seguintes ocorrências:
a) Ter sido o sucessível condenado por algum crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão, ou do seu cônjuge, ou de algum descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, desde que ao crime corresponda pena superior a seis meses de prisão;
b) Ter sido o sucessível condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas;
c) Ter o sucessível, sem justa causa, recusado ao autor da sucessão ou ao seu cônjuge os devidos alimentos.
2. O deserdado é equiparado ao indigno para todos os efeitos legais.
Artigo 2011.º
(Doações)
1. Se o alimentando tiver disposto de bens por doação, as pessoas designadas nos artigos anteriores não são obrigadas à prestação de alimentos, na medida em que os bens doados pudessem assegurar ao doador meios de subsistência.
2. Neste caso, a obrigação alimentar recai, no todo ou em parte, sobre o donatário ou donatários, segundo a proporção do valor dos bens doados; esta obrigação transmite-se aos herdeiros do donatário.
Nessa perspectiva, retrata-se que a revogação de doação por ingratidão não pode ter a sua ação proposta após a morte do donatário, muito menos pelos herdeiros do doador, com ressalva para o nº 3 do artigo 976 do CC, “se o donatário tiver cometido contra o doador o crime de homicídio, ou por qualquer causa o tiver impedido de revogar a doação, a acção pode ser proposta pelos herdeiros do doador dentro de um ano a contar da morte deste”. Além disso, expõe-se que o direito de ação de revogação por ingratidão caduca no prazo de um ano, o qual tem o início da sua contagem desde o momento em que lhe deu causa ou do momento em que a parte doadora teve noção do fato, consoante o artigo 976 do CC.
Convém retratar que, como previsto no artigo 976, nº 2, caso o doador ou o donatário tenha falecido, a ação é transmissível aos herdeiros, quando estiver pendente. Já o artigo 977 prevê que não poderá haver renúncia antecipada do direito de revogar a doação por motivo de ingratidão do donatário, por parte do doador. E, ficou disciplinado no artigo 979 a relação da revogação em função de terceiros na doação, de modo que a revogação não afeta terceiros que houverem já adquirido direitos reais sobre os bens doados (antes da demanda), ficando o donatário incumbido de indenizar o doador.
Ademais, o artigo 978 do CC estabelece os efeitos que podem advir da revogação de doação por ingratidão, in verbis:
Artigo 978.º
(Efeitos da revogação)
1. Os efeitos da revogação da doação retrotraem-se à data da proposição da acção.
2. Revogada a liberalidade, são os bens doados restituídos ao doador, ou aos seus herdeiros, no estado em que se encontrarem.
3. Se os bens tiverem sido alienados ou não puderem ser restituídos em espécie por outra causa imputável ao donatário, entregará este, ou entregarão os seus herdeiros, o valor que eles tinham ao tempo em que foram alienados ou se verificou a impossibilidade de restituição, acrescido dos juros legais a contar da proposição da acção.
Por fim, verifica-se que o Código Civil Português regulamentou a revogação de doações por ingratidão em vários artigos disciplinados, especificamente, do artigo 969 até o artigo 979. Dessa maneira, disciplinou acerca de algumas hipóteses em que cabe a revogação, prazo para ela ser pleiteada, alguns casos em que não cabe a revogação, acerca de como ela afeta terceiros na relação da doação, sobre a questão dos herdeiros com ação pendente e sobre a questão da renúncia antecipada do direito potestativo de revogação a doação por ingratidão.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Destarte, então, que a doação é uma ação de transferência patrimonial do doador em favor do donatário, como sendo um gesto de gratidão, na maioria dos casos. Entretanto, existem casos em que o donatário, depois de receber a doação, torna-se ingrato em relação ao doador, realizando ações de modo ingrato perante o doador ou a seus familiares. E, quando isso acontece, a doação pode ser revogada.
Nesse sentido, percebeu-se que a modalidade contratual da doação está prevista no Direito Civil Brasileiro e no Direito Civil Português, tendo sua previsão exposta no Código Civil do Brasil e no Código Civil de Portugal. Restou perceptível que os aspectos do Direito Contratual relacionados às doações e hipóteses de revogação de doações estão disciplinados pelo Código Civil Brasileiro, no Capítulo IV, do artigo 538 ao artigo 564. Já em relação à legislação portuguesa, compreendeu-se que a temática das doações está disciplinada no Código Civil Português, no Capítulo II, artigos 940 a 979.
Ao realizar a análise dos Códigos Civis de ambos os países, observou-se uma grande semelhança/similaridade entre os dois diplomas relacionados ao tema da revogação de doações por ingratidão, sendo que os dois documentos expressaram praticamente a mesma quantidade de artigos disciplinando o tema em debate. De modo que, tanto o Código Civil Brasileiro, quanto o Código Civil Português, regulamentaram a revogação de doações por ingratidão em vários artigos. Disciplinando acerca de algumas hipóteses em que cabe a revogação, sobre o prazo para ela ser pleiteada, alguns casos em que não se faz possível a revogação, acerca de como ela pode afetar terceiros na relação da doação, trataram sobre a questão dos herdeiros com ação pendente e sobre a questão da renúncia antecipada do direito potestativo de revogação a doação por ingratidão.
5. REFERÊNCIAS
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DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. ed. 36. Saraiva Jur, v. 6, 2022.
POPPER, Karl Raimund. A Lógica da Pesquisa Científica. Ed. Cultrix. São Paulo. 1993. Disponível em: <https://ocondedemontecristo.files.wordpress.com/2011/05/popper-karl-a-logica-da-pesquisa cientifica.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2022.
PORTUGAL. Decreto Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966. Código Civil. Lisboa. 1966. Disponível em: <https://www.ministeriopublico.pt/iframe/codigo-civil>. Acesso em: 12 nov. 2022.
STJ/SP. REsp n. 1.350.464/SP. Superior Tribunal de Justiça. Relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma. Julgado em 26/2/2013, DJe de 11/3/2013. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201201626666&dt_p ublicacao=11/03/2013>. Acesso em: 11 nov. 2022.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2021.
TRL/LISBOA. Processo nº 7215/04.0TCLRS.L1-7. Tribunal da Relação de Lisboa. Acórdão da 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa. Relatora Ministra Ana Resende. Julgado em 16 de junho de 2009. Disponível em: <http://www.dgsi.pt/Jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/2f29db9189b34823802575f 90049a15d>. Acesso em 13 nov. 2022.
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Bolsista de mobilidade acadêmica na Universidade Nova de Lisboa pelo programa da Associação das Universidades de Língua Portuguesa - AULP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARIBOTI, Diuster de Franceschi. Donatários ingratos e a revogação da doação: uma análise acerca da revogação das doações por ingratidão no Código Civil do Brasil e de Portugal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 set 2023, 04:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63220/donatrios-ingratos-e-a-revogao-da-doao-uma-anlise-acerca-da-revogao-das-doaes-por-ingratido-no-cdigo-civil-do-brasil-e-de-portugal. Acesso em: 21 nov 2024.
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