MARCELO CARITA CORRERA[1]
(Coautor)
RESUMO: O presente artigo, produzido pelo método lógico-dedutivo e com fundamento em revisão bibliográfica de autores nacionais e estrangeiros, tem como objetivo, mediante pesquisa qualitativa, estabelecer uma teoria do delito que permita acomodar a pessoa jurídica. O objeto de pesquisa decorre da constatação de que as teorias do delito, até o finalismo, têm como premissa uma conduta humana, ou seja, são construídas diante de uma premissa antropocêntrica, onde o ser humano é sujeito ativo de crime. A pesquisa revelou que as teorias do delito produzidas até o finalismo não são instrumentos adequados para análise da interação da pessoa jurídica na sociedade. A conclusão do trabalho demonstra que a teoria dos sistemas possibilita a criação de uma teoria do delito capaz de acolher a pessoa jurídica como ente passível de praticar delitos. A proposta obtida ao final do artigo envolve deslocar o eixo da teoria do crime da conduta humana para uma relação comunicativa no interior de um sistema autopoiético. A comunicação é o elemento que permite a imputação de uma sanção.
Palavras-chave: Teoria dos Sistemas. Conduta. Comunicação. Responsabilidade Penal. Pessoa Jurídica.
ABSTRACT: This article, produced by the logical-deductive method and based on a bibliographic review of national and foreign authors, aims, through qualitative research, to establish a crime theory that allows the legal entity to be subject to criminal penalty. The theory of crime, until the “finalismo” has the human conduct as a premise; it is constructed through an anthropocentric premise, where the human being is the author of crimes. The research revealed that the theories of the crime produced until the “finalismo” are not adequate instruments for analyzing the interaction of the legal entity in society. The conclusion demonstrates that the system theory enables the creation of a crime theory capable of welcoming the legal entity as a legal person that can commit crimes. The proposal obtained at the end of the article involves shifting the axis of the crime theory of human conduct to a communicative relationship. Communication is the element that allows the imputation of a criminal penalty. The basis of the theory of crime should be based on a communication relationship and not a human conduct.
Keywords: Systems Theory. Conduct. Communication. Criminal Liability. Legal Entity
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto de pesquisa a responsabilidade penal da pessoa jurídica, mais especificamente, a possibilidade de o ente coletivo praticar condutas para fins penais. Busca-se, por meio do método lógico-dedutivo e mediante a revisão bibliográfica de autores nacionais e estrangeiros, realizar pesquisa qualitativa, de forma a determinar a compatibilidade da teoria do delito, até o finalismo, com a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Isso porque as teorias do delito, até o finalismo, foram construídas com bases antropológicas, isto é, tendo como premissa uma conduta humana (comissiva ou omissiva).
O tema é relevante, na medida em que as bases da sociedade atual tomam a pessoa jurídica como protagonista dos rumos da coletividade. Questões sensíveis como ambiente, liberdade de expressão, privacidade e outros direitos passaram a ter a pessoa jurídica como principal personagem.
A primeira parte do trabalho é dedicada ao estudo da legislação pátria e do modelo de heterorresponsabilidade, ou responsabilidade por ‘ricochete’. A implantação da sanção penal em face da pessoa jurídica demandou, no Brasil, o acolhimento do modelo de heterorresponsabilidade, em detrimento de um modelo de autorresponsabilidade.
A sistemática acolhida transfere a responsabilidade penal da pessoa física para o ente coletivo, utilizando de elementos de conexão (pessoa física relacionada ao ente coletivo, ato ilícito no uso de suas atribuições e em benefício da pessoa jurídica). Contudo, é preciso questionar se essa técnica legislativa não encontraria óbice na Constituição Federal, que veda a transferência de sanção penal para pessoa distinta do agente. Em outras palavras, se a metodologia legal não encontraria obstáculo no princípio da intransmissibilidade da sanção penal.
Determinada a sistemática legal no Brasil, realizamos um breve estudo do sistema do common-law dos Estados Unidos, demonstrando a sistemática legal de um país que desconhece a teoria do delito e qual a solução apresentada para esse regime jurídico para a imposição de sanção penal ao ente coletivo, o que pode servir de inspiração para mudanças na legislação pátria, desde que respeitadas as premissas do regime jurídico pátrio.
Na segunda parte do trabalho, haverá a abordagem de uma nova proposta da responsabilidade penal, tomando como premissa a teoria dos sistemas e afastando-se da visão antropocêntrica amplamente acolhida pela teoria do delito até o finalismo.
Analisa-se a possibilidade de, mediante a readequação das premissas do direito penal, permitir o acolhimento da autorresponsabilidade do ente coletivo. A comunicação realizada no seio de um sistema autopoiético seria a nova base do sistema penal, o que permitiria reconhecer a prática de crimes por entes coletivos.
O artigo apresenta, ainda, uma proposta de alteração legislativa baseada no common-law da Austrália que, em nosso entender, é um regime legal que equaciona com mais precisão os elementos de conexão entre pessoa física representante e pessoa jurídica, permitindo uma aproximação com o modelo de autorresponsabilidade, bem como pode constituir um regime de transição importante para a adoção, no futuro, de uma teoria do delito nos moldes propostos nesse artigo.
Por fim, caso a proposta principal e a alternativa de transição não sejam acolhidas pelos operadores do direito, a incompatibilidade do modelo de heterorresponsabilidade com a Constituição do Brasil implica a necessidade de revogação da legislação ordinária atual, substituindo-a por novas normas, baseadas no modelo da Itália que, apesar das divergências, não recorre ao direito penal como forma de sancionar a pessoa jurídica.
1.RESPONSABILIDADE PENAL DO ENTE COLETIVO NA LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA
Luis Luisi (2011, p. 36) indica que a posição doutrinária é majoritária pela impossibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Contudo, é possível admitir que, no Brasil, referido instituto tem fundamento na Constituição, tendo a opção constitucional acolhido a doutrina tida como minoritária.
A constatação, por si só, não permite afirmar que a pessoa jurídica pratica crimes, mas sim que a Constituição autoriza, pelo legislador ordinário, a criação de tipos penais compatíveis com a pessoa jurídica. É necessário analisar se a teoria do delito possui instrumental capaz de permitir o reconhecimento de um agir do ente coletivo capaz de gerar a imputação da sanção penal (modelo da autorresponsabilidade).
A Lei nº 9.605/98 (BRASIL, 1998), que criou a responsabilidade penal da penal da pessoa jurídica na esfera ambiental, estabeleceu:
Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.
Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.
Há notícias de que o legislador ordinário, apesar de pretender alterar o Código Penal e leis especiais, busca manter a responsabilidade penal do ente coletivo nos termos já existentes, conforme se verifica do artigo 39 do Projeto de Lei nº 236 de 2012 do Senado Federal (BRASIL, 2012).
Fernando Galvão (2020, p. 88), ao tratar do mencionado projeto, pondera que “é possível afirmar que acolhe o modelo de heterorresponsabilidade [...]. A proposta não contém um dispositivo que expressamente relacione a responsabilidade penal da pessoa jurídica a um defeito de organização ou à ausência de um programa efetivo de integridade”.
A responsabilidade penal da pessoa jurídica fixada pela legislação ordinária pátria segue, portanto, o modelo de ‘ricochete’. Há necessidade de elementos de conexão que são: (i) a prática de infração por pessoa física ligada ao ente coletivo (ainda que por meio de órgão colegiado) e (ii) que essa infração seja praticada no interesse ou em benefício do ente coletivo.
A opção do legislador evita a discussão sobre a possibilidade de conduta pelo ente coletivo, que é um requisito essencial para a autorresponsabilidade. Busca-se viabilizar a sanção penal da pessoa jurídica por meio da conduta da pessoa física a ela ligada, ou seja, um modelo de transferência de responsabilidade penal da pessoa física para a pessoa jurídica.
Nieto Martín (2008, p. 89) estabelece uma divisão da heterorresponsabilidade em dois submodelos: identification theory e o vicarious liability. A teoria da identificação (identification theory) afirma que alguns indivíduos se confundem com a própria corporação. Logo, suas ações são, em realidade, ações dos próprios entes coletivos. O agir humano, apesar de presente, é tido como mero instrumento da realização de vontade do ente coletivo (NIETO MÁRTIN, 2008, p. 89).
O modelo da heterorresponsabilidade subsidiária (vicarious liability) demanda a constatação simultânea de três elementos. O primeiro é a ocorrência de uma infração por parte de uma pessoa natural ligada à pessoa jurídica. O segundo é que a pessoa natural tenha agido no exercício das funções atribuídas pela empresa. O terceiro elemento é a necessidade de que o agir humano tenha a intenção de gerar algum benefício para o ente coletivo (NIETO MÁRTIN, 2008, p. 89). O modelo brasileiro, em nosso entender, coaduna-se com essa modalidade de heterorresponsabilidade, na medida em que estabelece elementos de conexão, mas não veicula nenhum dispositivo qualificando a vontade das pessoas físicas como vontade da pessoa jurídica.
Constata-se, em qualquer dos submodelos mencionados, que a conduta humana está presente como elemento essencial para reconhecimento do crime praticado pela pessoa jurídica. Independentemente da classificação exposta, a heterorresponsabilidade possui, como traço essencial, o agir de pessoa natural ligada à empresa. Note-se que, embora a teoria da identificação, por meio de uma ficção, pretenda afirmar a existência de vontade própria da pessoa jurídica, a identificação do agir da pessoa física é imprescindível, o que, a nosso ver, impede o reconhecimento de um verdadeiro modelo de autorresponsabilidade.
Ocorre que, não há, no texto magno, qualquer autorização para transferência de responsabilidade penal, seja a transferência entre pessoas físicas ou a transferência para pessoa jurídica. A Constituição Federal (BRASIL, 1988), ao tratar dos efeitos das sanções penais no artigo 5º, afirma:
XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
A redação do texto constitucional, ao estabelecer esse direito fundamental, usa o termo ‘pessoa’, o que somente pode ser compreendido como abarcando pessoa física ou jurídica, sob pena de interpretação restritiva em direito fundamental. Ademais, o dispositivo não se aplica somente para transferência de sanção penal aplicada após trânsito em julgado do processo penal, mas deve ser interpretado como garantia de não transferência da responsabilidade penal por conduta por terceiro, isto é, como a impossibilidade de direcionamento do jus puniendi para pessoa (física ou jurídica) distinta daquela que praticou a conduta ilícita.
Se o legislador pátrio pretende criar tipos penais que contemplem a sanção penal de ente coletivo, deve fazê-lo na forma de autorresponsabilidade, sendo inconstitucional recorrer à heterorresponsabilidade.
Walter Claudius Rothenburg (2011, p. 97) observa que muitas normas que estabelecem a responsabilidade penal da pessoa jurídica são de duvidosa constitucionalidade, pois determinam uma pretensa responsabilidade objetiva ou aludem a uma responsabilidade solidária da pessoa física e jurídica, o que é vedado em matéria penal.
O modelo de transferência de responsabilidade penal, mesmo com elementos de conexão, foi criticado por Ricardo Robles Planas (2008, p. 135) que pondera que “a infração de um dever de organização da pessoa coletiva não é título suficiente para atribuição de responsabilidade pelo crime correspondente”.
A crítica do autor é centrada na constatação de que, o modelo em questão, ao fim e ao cabo, implica responsabilizar criminalmente as pessoas jurídicas utilizando-se de regras não penais, isto é, tomam a violação de uma regra de compliance ou governança (falha na fiscalização e direção do funcionário) como fundamento responsabilidade penal por uma conduta delituosa praticada pela pessoa física. São por essas razões que um modelo de autorresponsabilidade penal da pessoa jurídica se faz necessário.
Anote-se, por fim, que a discussão em comento não se aplica quando a própria entidade coletiva é criada com a finalidade de praticar crimes. Isto é, quando é criada sem objeto lícito, mas como mero veículo para a prática de atos ilícitos.
Victor Augusto Estevam Valente (2015, p. 127/128) afirma que é preciso diferenciar a empresa que serve para ocultar uma atividade ilícita em seu bojo (organização criminosa e associação criminosa), que não pode ser considerada sujeito de crime, da empresa que, inicialmente, não pretende ocultar irregularidades, praticando infrações de forma ocasional.
Portanto, somente se pode falar de responsabilidade penal da pessoa jurídica diante de ente coletivo criado para fins lícitos, sendo indevida a aplicação da discussão aqui estabelecida quando o ente coletivo é apenas uma forma de dissimular a prática de atividades criminosas por pessoas físicas.
Essa afirmação poderia ser contraposta em função do artigo 24 da Lei nº 9.605/98 (BRASIL, 1998), que assim determina: “a pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada”. Seria possível afirmar que a própria lei de regência reconhece e determina a aplicação de sanção às pessoas jurídicas ilícitas, inclusive com a cominação da pena de suspensão de atividades ou dissolução.
O dispositivo legal acima reproduzido não fez referência às pessoas jurídicas ilícitas, mas sim aos entes coletivos legais que permitem, facilitam ou ocultam a prática de crime definido na Lei nº 9.605/98 (BRASIL, 1998).
2.SANÇÃO PENAL DO ENTE COLETIVO NO COMMON-LAW DOS ESTADOS UNIDOS
Vamos abordar, para fins de comparação com o sistema pátrio, como o common-law dos Estados Unidos acomodou a sanção penal da pessoa jurídica em seu ordenamento. O primeiro precedente tratando do tema em território dos Estados Unidos se deu no caso New York Central & Hudson River Railroad v. United States, 212 U.S. 481 (1909), onde restou determinado que “não é possível fechar os olhos para o fato de que a maioria das operações comerciais nos tempos modernos são realizadas por meio de tais entes e, particularmente, o comércio interestadual está praticamente todo em suas mãos” (tradução nossa).
O julgamento da Suprema Corte daquele país não enveredou pela análise de discussões dogmáticas e sobre possíveis interpretações de um texto legal. Foi pautado por ponderação de interesses, em um contexto de direito consuetudinário. Em outras palavras, pragmatismo ao invés de formalismo, sem debates sobre a adoção do sistema de heterorresponsabilidade ou autorresponsabilidade, bem como sobre a eventual incompatibilidade desses sistemas com um modelo de teoria do delito que, a rigor, não existe no direito costumeiro.
O que a Suprema Corte Americana fez no precedente citado foi reconhecer que determinar a ausência de responsabilidade penal da pessoa jurídica pelo simples fato de que ela não pratica conduta nos mesmo moldes de um ser humano seria uma inequidade e, sobretudo, implicaria negar a realidade social, onde se constata, sem maiores dificuldades, que as pessoas jurídicas são personagens comuns e atuantes na sociedade.
Essa orientação seguiu a premissa fixada em outro país de direito costumeiro (Reino Unido). Em 1842, no caso Quenn v. Birmingham & Gloucester Railway Co (1842) 3 QB 223, houve a condenação criminal de uma pessoa jurídica no Reino Unido pelo descumprimento da obrigação de retirar uma ponte que tinha sido construída sobre uma área rural.
Sobre as diferenças do direito costumeiro em face do sistema continental, Claudia Cristina Barrilari (2018, p. 112/115) esclarece que, enquanto no sistema de direito continental a lei é o principal fundamento, no sistema do direito costumeiro, esse papel é representado pela jurisprudência, daí a importância, para esse regime, dos precedentes judiciais e casos líderes. É, também, por essa diferença de regimes que, embora possamos recorrer ao common-law como inspiração para interpretação e mudanças legislativas, essa fonte deve ser usada com cautela, uma vez que o sistema legal pátrio traz a lei e a Constituição (e não o costume) como principais fontes do direito.
Carlos Henrique da Silva Ayres (2016, p. 44) afirma, ao tratar do common-law norte americano, que o ente coletivo pode ser responsabilizado por atos de terceiros, desde que esse terceiro esteja atuando em nome e dentro do escopo de atribuições fixadas pelo ente coletivo, bem como em benefício deste último. Ou seja, permite o que, no direito continental, seria considerado como heterorresponsabilidade.
O Código Penal Modelo dos Estados Unidos (ESTADOS UNIDOS, 1962) determina a responsabilidade criminal da pessoa jurídica no item §2.07, o que permite afirmar que a construção jurisprudencial da responsabilidade penal do ente coletivo no sistema do direito costumeiro está consolidada.
Importante ponderar que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos estabelece, no item 9.28.800 do Principles of Federal Prosecution of Business Organizations (ESTADOS UNIDOS, 2015), que a existência de um programa de compliance, por si só, não deve ser considerada causa de exclusão da responsabilidade penal da pessoa jurídica.
A excludente de culpabilidade (para o direito costumeiro, causas de exoneração de responsabilidade penal) surge quando é demonstrada a impossibilidade (ou extrema dificuldade) da pessoa jurídica evitar a prática do ilícito, sendo que a eficácia de um programa de compliance é elemento relevante para essa prova.
É possível constatar, portanto, que as premissas do sistema do direito consuetudinário são distintas do sistema continental. Enquanto o primeiro é pautado em um certo pragmatismo, o último tem fundamento em normas legais específicas para a pessoa jurídica.
3.AUTORRESPONSABILIDADE
A teoria do delito, até o finalismo, toma como necessária uma conduta que altera o mundo fático e autoriza a edição de norma jurídica para o processo de imputação da sanção. Cabe destacar que Fabio André Guaragni (2005, p. 97) afirma que o período neokantiano (ou neoclássico) foi marcado pela ausência de um conceito de conduta ligado ao mundo do ser, sendo predominantemente valorativo. Premissa que, segundo o referido autor (GUARAGNI, 2005, p. 97), seria retomada nas teorias pós-finalistas (teoria social da ação e funcionalismo).
Claus Roxin (1997, p. 193) afirma que “ação é um comportamento humano significativo no mundo exterior, dominado ou pelo menos dominável pela vontade. Portanto, os efeitos produzidos por forças naturais ou animais não são ações legais, mas também não o são atos de uma pessoa coletiva” (tradução nossa). No mesmo sentido é a posição de Dermeval Farias Gomes Filho (2019, p. 54).
Francesco Carrara (1956, p. 53) ressalta que “o sujeito ativo primário do delito não pode ser outro senão o homem, o único em toda a criação, que, por ser dotado de vontade racional, é ente dirigível”. No mesmo sentido é o posicionamento de Helena Regina Lobo da Costa (2015, p. 212) e das autoras Jéssica Pascoal Santos Almeida e Natália Macedo Sanzovo (2013, p. 293).
Luiz Regis Prado (2010, p. 127), ao tratar da conduta, afirma que a pessoa jurídica não tem consciência e vontade; logo, não possui capacidade de autodeterminação. Somente o homem pode ser qualificado como autor ou partícipe de um delito. No mesmo sentido são os ensinamentos de José Henrique Pierangeli (1992, p. 18) e Antonio Carlos da Ponte (2008, p. 157).
No que tange à impossibilidade da prática de conduta pela pessoa jurídica, houve prevalência desse entendimento durante as reformas que decorreram do término da Segunda Guerra, como afirma Percy Garvia Cavero (2010, p. 63/64). Walter Claudius Rothenburg (2011, p. 167) pondera que os conceitos de comportamento e ação foram pensados a partir do ser humano. Logo, o significado desses institutos somente pode ser extraído a partir da atividade humana e são incompatíveis com a natureza do ente coletivo.
Em termos de direito estrangeiro, Eugenio Raul Zaffaroni (1996, p. 58;60;62), ao analisar o ordenamento jurídico na Argentina, formula afirmação relevante o estudo aqui desenvolvido, na medida em que ambos os ordenamentos são de origem continental. O citado autor pondera que “basta revisar a lista do artigo 34 do CP, veremos que se refere claramente à ação humana, o que demonstra que em nosso código penal a fórmula societa delinquere non potest está totalmente em vigor” (tradução nossa). No mesmo sentido é a opinião de Ricardo Nuñez (1959, p. 216).
Juan María Rodríguez Estévez (2016, p. 86), também diante do ordenamento argentino, afirma que o artigo 18 da Constituição da República Federativa da Argentina (ARGENTINA, 1994) pode, em uma interpretação literal, levar à conclusão de que a prática do crime demanda conduta e, dessa forma, somente pode ser praticado por pessoa física. Logo, estaria vedado ao legislador imputar crime à pessoa jurídica.
Alamiro Velludo Salvador Netto (2018, p. 77) aponta as dificuldades de reconhecimento da responsabilidade penal do ente coletivo, na medida em que as saídas delineadas para o reconhecimento da prática de conduta pelo ente coletivo utilizam institutos intrínsecos aos seres humanos.
Heloisa Estellita (2019, p. 59-79) indica que a pessoa jurídica não tem corpo físico capaz de interagir no mundo e causar agressões aos bens jurídicos protegidos pelas normas penais. Assim, não é capaz de conduta e, consequentemente, não realiza infrações penais.
Rene Garraud (1903, p. 58), ao tratar do ordenamento jurídico francês, também de tradição continental, formula afirmação aplicável ao nosso estudo. Entende que, se as pessoas jurídicas são criadas por lei e agem por intermédio de seus agentes, não há vontade própria do ente coletivo. Assim, impossível admitir vontade da pessoa jurídica para a prática de ilegalidade passível de sanção penal.
Contudo, há pensamento divergente que, se acolhido, permite afirmar a existência de autorresponsabilidade da pessoa jurídica sem modificação legislativa. José Miguel Zulgadía Espinar (2008, p. 143) estabelece o sistema do fato de referência. Segundo o autor, as pessoas físicas ligadas ao ente coletivo praticam os elementos objetivos do tipo. Contudo, os fatos de referência (das pessoas físicas) são imputados à pessoa jurídica como fatos próprios, sem que isso implique uma pura e simples transferência de responsabilidade. Note-se a premissa comum dessa afirmação com a heterorresponsabilidade, na modalidade da teoria da identificação (NIETO MÁRTIN, 2008, p. 89).
Nos citados modelos, o agir das pessoas físicas é considerado como conduta praticada pela pessoa jurídica. A pessoa física seria, portanto, um instrumento de manifestação da conduta da pessoa jurídica. O ser humano apenas realiza o ato material em cumprimento de manifestação da pessoa jurídica.
David Baigún (2000, p. 28) estabelece o conceito de ação institucional, onde o agir de pessoas físicas relacionadas à pessoa jurídica seria interpretado não como soma de vontades individuais, mas como elementos que representam a vontade do ente coletivo. Ou seja, adota, como premissa, elementos ontológicos que são ligados normativamente à pessoa jurídica.
Günther Jakobs (2013, p. 183) afirma que “os atos dos órgãos da pessoa jurídica se convertem em ações próprias da pessoa jurídica, pois estas pertencem ao sistema pelo qual a sociedade tratou de se organizar, comprova-se então que esta ação deve ter uma relação funcional com a atividade da empresa” (tradução nossa).
Cláudio José Pereira (2006, p. 201-202), adotando como premissa a necessidade de estabelecer a responsabilidade penal da pessoa jurídica na sociedade de riscos, afirma que a sanção penal do ente coletivo não pode se dar mediante responsabilidade objetiva. O autor concorda com a posição de Günther Jakobs (2013, p. 183) ao afirmar que “acaba voltando-se para o reconhecimento da vontade da pessoa jurídica como uma representação da vontade pessoal de seus integrantes, representantes ou dirigentes onde, no caso de empresas”.
Juliana Nunes Targino Barbosa (2014, p. 133) afirma que houve mudança de posicionamento de Günther Jakobs (2003, passim) sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, que teria passado a negar a possibilidade de responsabilidade do ente coletivo, sobretudo pela ausência de identidade entre a pessoa que pratica a conduta e a pessoa que sofre a sanção, bem como diante da ausência de autoconsciência da pessoa jurídica para tomada de qualquer posição.
Manoel Carpena Amorim (2000, p. 27) afirma que a Teoria do Órgão reconhece que a pessoa jurídica possui capacidade e vontade. A pessoa física é um órgão e não um representante da pessoa jurídica. Logo, sua manifestação, na condição de órgão, é manifestação do ente coletivo e não da pessoa natural que, nessa condição, é apenas um instrumento do ente coletivo.
Tratando do tema perante o direito costumeiro, Joel Prentiss Bishop (2010, passim) estabelece que a empresa se manifesta por meio de seus empregados e representantes e, dessa forma, as consequências dos atos ilícitos por esses praticados são imputadas ao ente coletivo.
Ainda no sistema do direito costumeiro, o Reino Unido incorporou o entendimento de Joel Prentiss Bishop (2010, passim) no Corporate Manslaughter and Corporate Homicide Act 2007 (REINO UNIDO, 2007), ao determinar a responsabilidade penal do ente coletivo diante da falha da diretoria e de órgãos diretores no gerenciamento dos riscos.
Simon Daniel (2013, p. 10), ao comentar a legislação acima transcrita, afirma que a modificação teve o objetivo de abandonar a teoria da identificação como requisito para imputar o homicídio para o ente coletivo. Buscou-se, sem anular a importância do agir dos representantes, determinar se a decisão da diretoria foi capaz de observar o cuidado devido na supervisão do risco gerado pela atividade empresarial.
Há quem afirme que a solução deve se dar, simplesmente, pela aplicação análoga dos elementos cunhados para a responsabilidade penal da pessoa física (modelo de culpa análoga). Jorge de Figueiredo Dias (1998, p. 381) afirma que a pessoa jurídica é uma entidade análoga ao homem individual, na medida em depende dos seres humanos para existir e atuar por intermédio dos seus órgãos; logo, estaria justificada a premissa de aplicação análoga da teoria do delito com viés antropológico para a pessoa jurídica.
A aplicação análoga acima exposta é suportada por José Francisco de Faria Costa (1998, p. 510/511) mediante a criação do instituto da racionalidade material dos lugares inversos. O autor cria seu conceito mediante uma construção em sentido inverso àquela que fundamenta a inimputabilidade do ser humano em razão da idade.
Afirma (COSTA, 1998, p. 510/511) que, enquanto na imputabilidade o Direito Penal não reconhece as condutas do menor de idade como elementos do fato típico, o mesmo ramo do direito cria e expande as manifestações dos órgãos das pessoas jurídicas, reconhecendo-as como vontade própria do ente coletivo. Ou seja, o mesmo fundamento que justifica a inimputabilidade penal do menor de idade, que se dá independentemente de questionamento sobre a consciência e livre-arbítrio, justifica a criação de uma imputação do ente coletivo, tomando como elemento o agir de seus órgãos ou representantes.
Ernst-Joachim Lampe (1999, p. 86, 87, 90) procura equacionar as dificuldades no reconhecimento da prática de crime pela pessoa jurídica mediante a criação de um conceito para reunir pessoas físicas e jurídicas sob a mesma categoria. É o conceito de pessoa social.
Para o autor (LAMPE, 1999, p. 86, 87, 90), pessoa social é um instituto jurídico que deve ser entendido como um centro produtor de injustos. Há duas formas de a pessoa social produzir injusto. A primeira é aquela originada da capacidade de ação (pessoa natural) e a segunda ocorre com base em sua capacidade organizacional (pessoa jurídica).
No que tange à autorresponsabilidade, podemos afirmar que as teorias acima expostas, apesar de fornecerem um suporto dogmático para a responsabilidade penal da pessoa jurídica por ato próprio, possuem uma premissa que as tornam sujeitas às críticas. Afinal, nenhuma das teorias expostas é capaz de afastar a conduta humana como elemento do tipo penal do ente coletivo. A verdade é que reduzem, substancialmente, a importância do agir humano, mas não a afastam.
O que se busca no presente trabalho é demonstrar que, para a verdadeira autorresponsabilidade do ente coletivo, é preciso uma construção que não tome como elemento o agir humano, ainda que de forma atenuada, como fizeram as teorias aqui expostas que afirmam existir autorresponsabilidade no sistema jurídico atual. É essa proposta que será apresentada, tendo como marco teórico a teoria dos sistemas.
4. TEORIA DOS SISTEMAS APLICADA AO DIREITO PENAL
A teoria dos sistemas toma como base uma relação de comunicação em um sistema autopoiético. A conduta humana (elemento exterior ao sistema - ambiente) é substituída pela comunicação (elemento interno ao sistema), modificação que passa a contemplar a pessoa jurídica como entidade capaz de, ao realizar comunicação em um sistema autopoiético, sofrer a incidência do direito penal.
Celso Fernandes Campilongo (2012, p. 163) pondera que, para a teoria dos sistemas autopoiéticos, somente o direito produz o direito. O direito constrói seus próprios limites. Caroline Morais Kunzler (2004, p. 127-128) observa que há um único sistema social mundial, com diversos subsistemas (o direito é um subsistema social, por exemplo). A comunicação é produzida somente no âmbito do próprio sistema.
No caso do sistema jurídico, enquanto sistema autopoiético e fechado operacionalmente, mas aberto cognitivamente (sensível às irritações que emanam do ambiente externo), somente o direito produz o próprio direito em uma relação comunicativa interna ao sistema, ainda que sensível às perturbações externas.
Leonel Severo Rocha, Germano Schwartz e Jean Clam (2005, p. 28) afirmam que a interpretação na teoria dos sistemas parte do conceito de comunicação. A análise parte da premissa de que a sociedade apresenta características de um sistema autopoiético. Eugênio Raul Zaffaroni (2003, p. 623-625) pondera que toda a teoria dos sistemas é fundada na necessidade de controle do sistema pelo próprio sistema, o que gera a própria legitimação.
Esse é um ponto fulcral para entender a teoria dos sistemas na visão de Niklas Luhmann (2016, passim), qual seja, a comunicação como instrumento para criação do direito. Como afirma Günther Jakobs (2003, p. 44/45) “o Direito Penal não se desenvolve na consciência individual, mas na comunicação”. Normas são, portanto, tipos específicos de comunicação (funcionalmente diferenciadas) que se formam no sistema do direito. Niklas Luhmann (2016, P. 501) pondera:
O modo de operação, que o sistema da sociedade produz e reproduz, é a comunicação provida de sentido. Isso permite dizer que o sistema jurídico, à medida que é um sistema parte da sociedade, utilizado como modo de operação da comunicação, não pode fazer nada que não seja – como meio do sentido mediante a comunicação – compor formas. [...] Consequentemente, o sistema do direito opera na forma da comunicação mediante a proteção de limites erigidos pela sociedade.
Günther Teubner (2005, p. 424) ressalta que “lei é comunicação e nada mais que comunicação. [...] o direito como sistema social autopoiético não é composto por normas nem por legisladores, mas por comunicações jurídicas” (tradução nossa).
A teoria em estudo substitui o conceito de conduta humana pelo conceito de comunicação no interior do sistema social. Para o direito, enquanto subsistema do sistema social, interessa a linguagem comunicativa.
Carlos Gomez-Jara Díez (2009, p. 2323) afirma que o ser humano é um sistema que se reproduz a partir da consciência. Funcionalmente equivalente, a organização empresarial é um sistema organizacional que se reproduz com base nas decisões tomadas pela empresa e a lei é um sistema social funcional, cuja reprodução ocorre paralelamente às comunicações jurídicas realizadas por pessoas físicas ou jurídicas. Ou seja, a organização empresarial como sujeito ativo de crime somente é possível em um sistema de normas. O direito é parte do sistema social e, como tal, utiliza a comunicação como elemento para estabelecer relações no interior do sistema.
Jürgen Habermas (2012, p. 191/193), ao tratar do conceito de ação comunicativa, adota a mesma premissa fixada por Niklas Luhmann (2016, passim) sobre as interações ocorridas no interior de um sistema. É a transmissão da mensagem (comunicação) que importa para fins de reconhecimento das relações sociais.
Apesar da possibilidade de reconhecimento da premissa comum acima exposta, Jürgen Habermas (2012, p. 191/193) e Niklas Luhmann (2016, passim) apresentam divergências, especialmente sobre a legitimidade do direito e a relação entre norma e meio.
Niklas Luhmann (2009, p. 64) afirma que o esquema input/output se dirige à relação mais específica entre sistemas e sistemas-no-meio, pressupondo que desenvolva uma elevada indiferença em relação ao meio, de tal modo que é somente o sistema que pode decidir quais fatores determinantes propiciam o intercâmbio. Afinal, o sistema transforma uma configuração de inputs segundo as diretrizes de um modelo. Trata-se de um modelo formal, no qual inputs com funções iguais correspondem outputs iguais.
Jürgen Habermas (1997, p. 76), em crítica à premissa acima adotada, observa que o direito somente poderia reagir a problemas próprios (internos) e, quando muito, ser provocado indiretamente por problemas externos (ambiente). Essa característica torna o direito incapaz de elaborar problemas que oneram a sociedade como um todo. Trata-se de um mundo circundante sem conexão eficaz com o ambiente que pretende regular. Ademais, “não há um output que o sistema jurídico pudesse fornecer na forma de normatizações: são-lhe vedadas intervenções no mundo circundante. Nem há um input que o sistema jurídico receba na forma de legitimações” (HABERMAS, 1997, p. 76).
A estratégia de Jürgen Habermas (1997, P. 76) é mostrar que a legitimidade da lei é baseada em uma racionalidade imanente, apesar de dependente e aberta às dimensões que ultrapassam o meio legal. Enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos. É essa possibilidade de assentimento o ponto fulcral de legitimidade do direito para Habermas (1997, P. 76).
Niklas Luhmann (1980, P. 30), em divergência, entende que a legitimidade do direito decorre de uma disposição geral de aceitar decisões com conteúdo ainda não definido (não há prévia deliberação sobre o mérito das decisões). Legitima-se o direito pela aceitação e proteção da forma (ou método) utilizada para gerar as decisões (normas jurídicas gerais ou individuais). A legitimação do direito ‘nasce’ da prévia aceitação sobre o método de produção de normas jurídica e não pelo conteúdo dessas normas. O acordo sobre a forma de produção do direito em um sistema autopoiético é que dá sustentação ao direito e não um assentimento racional de todos os possíveis atingidos.
Silvina Bacigalupo (1998, P. 363), ao tratar da teoria dos sistemas no Direito Penal e da responsabilidade penal do ente coletivo, descreve o mecanismo de incidência da norma, ao afirmar que “a pessoa coletiva é um sistema constituído pelo seu estatuto e pelos seus órgãos, sendo que o referido sistema pode realizar comunicação falsa (não válida – ilegal) e que, face a tal comunicação falsa, o sistema jurídico reage impondo uma sanção” (tradução nossa).
A descrição de Silvina Bacigalupo (1998, P. 363) sobre a incidência penal na teoria dos sistemas é o principal pilar de sustentação da construção de uma autorresponsabilidade do ente coletivo. Somente com essa premissa é possível reconhecer a prática de crime pelo ente coletivo.
É preciso criar um sistema jurídico e uma teoria do delito que sejam capazes de acolher o mecanismo criado pela referida autora, sob pena de, a rigor, não ser possível estabelecer um efetivo sistema de autorresponsabilidade coletiva.
5. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA SEGUNDO A TEORIA DOS SISTEMAS
A teoria do delito, até o finalismo, adota o fundamento de que a incidência do direito demanda, necessariamente, uma conduta humana. Neste contexto, a conduta seria o início do processo de criação da norma jurídica individual e concreta para verter o fato em linguagem jurídica e permitir a imputação da sanção penal.
O modelo que aqui se propõe, baseado na teoria dos sistemas e nos ensinamentos de Silvina Bacigalupo (1998, passim), afasta a conduta da pessoa humana como ponto essencial do direito. antropocentrismo já não tem mais suporte na sociedade pós-moderna.
Assim, a proposta é substituir o conceito de conduta pelo conceito de comunicação. Vale dizer, ao direito interessa a linguagem comunicativa. Fabio André Guaragni (2005, p. 303), ao comentar o conceito de conduta no funcionalismo sistêmico, acolhe essa premissa.
A proposta não nega a ocorrência da conduta naturalística no seio da sociedade, o que ocorre é que a teoria aqui analisada vai se concentrar no aspecto comunicativo. Logo, para fins de direito, o que importa é a relação comunicativa, não a modificação no mundo fático.
O elemento necessário e essencial para configuração do fato típico criminal não é a conduta naturalística, mas sim a comunicação, a mensagem, criada no ambiente e capaz de gerar irritação no sistema jurídico.
A pessoa jurídica, apesar de sua incapacidade de praticar condutas, pode estabelecer comunicação. Por exemplo, quando a empresa decide explorar uma mina de carvão e solicita licenças, compra equipamentos, todos esses elementos não são condutas, mas são atos de comunicação.
Pela teoria dos sistemas, é essa comunicação produzida na sociedade que pode, em determinados casos, gerar irritação no sistema jurídico capaz de produzir norma jurídica para imputação de sanção penal. Assim, sendo a pessoa jurídica responsável pela comunicação, é de rigor a conclusão de que pode ser responsabilizada na esfera criminal.
Gonçalo N. C. Sopas de Melo Bandeira (2004, p. 371) pondera que, em um sistema funcional de delito (baseado na teoria dos sistemas), as pessoas jurídicas são autores de fatos penais, na medida em que o conceito de ação de cunho naturalístico não é eleito como figura compreensiva de todas as formas de prática de ilícitos penais.
No caso de um crime de destruição da flora, artigo 38 da Lei 9.608/98 (BRASIL, 1998), por exemplo, a teoria dos sistemas oferece instrumental suficiente para permitir a responsabilidade penal da pessoa jurídica por ato próprio, sem recorrer a um sistema de heterorresponsabilidade.
Quando a empresa, por meio de seus órgãos, toma decisões que geram a destruição da flora ou decisões que acarretam falha no dever de fiscalização da ação de seus funcionários, a pessoa jurídica, embora não pratique nenhuma conduta, introduz no sistema social uma comunicação relevante para o direito. Essa comunicação é relevante para o direito penal, o que implica a imposição de pena.
É por essa sistemática, distante do modelo naturalístico, que se pode admitir que a empresa vencedora de uma licitação, que contrata pessoas físicas e responde com seu patrimônio por suas obrigações, também pode ser responsabilizada na esfera criminal. Esta construção não utiliza um modelo de transferência de responsabilidade e não se socorre de um indevido alargamento do conceito de conduta.
Assim, diante das premissas expostas, sugere-se, como novo marco regulatório da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil, uma modificação legislativa para que o artigo 3ª da Lei 9.605/1998 (BRASIL, 1998) tenha a seguinte redação: as pessoas jurídicas serão responsabilizadas, com sanções de natureza penal, conforme tipos penais estabelecidos nessa lei, sempre que for verificada qualquer manifestação, por meio de seus órgão diretivos ou canais institucionais competentes, capaz de implicar violação aos bens jurídicos protegidos.
A redação acima exposta tem a virtude de retirar a relevância de conduta de pessoa física, concentrando a norma somente na comunicação decorrente da atividade da pessoa jurídica, sem a necessidade de recorrer às teorias acima expostas que, ao fim e ao cabo, criam uma autorresponsabilidade em função da interpretação da conduta humana.
Importante destacar que a proposta somente permite a imputação penal quando há lesão a bem jurídico protegido por norma penal, observando a garantia constitucional de reserva da legalidade, que também é aplicável às pessoas jurídicas.
A hipótese aqui formulada toma como premissa uma situação existente na sociedade. A teoria dos sistemas é uma abordagem da sociedade considerando uma vertente específica dos fenômenos sociais (a comunicação). Ou seja, a teoria, ao invés de se concentrar em observações dos fenômenos empíricos para recorte do direito, toma o fenômeno da comunicação. Uma abordagem distinta para um mesmo fenômeno.
A aplicação da teoria na forma aqui proposta também é capaz de enfrentar dilemas contemporâneos da sociedade. A responsabilidade penal por determinações decorrentes de algoritmos está acomodada, na medida em que a incidência do tipo penal não demanda a identificação da conduta de uma pessoa física, mas sim uma comunicação, o que é facilmente constatável quando um algoritmo de uma determinada pessoa jurídica executa uma ordem. Podemos pensar em um algoritmo que determina a abertura e fechamento de comportas com liberação de resíduos tóxicos em leitos de rios.
A regulamentação jurídica dos efeitos decorrentes da utilização de algoritmos por pessoas jurídicas para as mais diversas atividades é um desafio ainda não equacionado pelo regime jurídico atual (REIS, 2020, passim). A proposta aqui formulada permite acolher esse novo fenômeno sem a necessidade de busca da conduta de uma pessoa física responsável pela determinação do uso do algoritmo ou mesmo pela sua criação. Trata-se de uma construção coerente com um mundo que, a cada dia, está fundamentado na comunicação e menos no empírico.
6. UM MODELO DE TRANSIÇÃO - AUSTRÁLIA
É preciso reconhecer que a posição acima apontada constitui um rompimento com as tradições da legislação pátria. Em outras palavras, abandona um modelo ontológico, que tem a conduta humana como pilar, e acolhe um modelo abstrato, fundamentado na comunicação.
Julgamos que a transposição para o referido modelo demanda uma mudança de premissas e, para tanto, seria importante, primeiramente, a adoção de um modelo de transição que introduz um modelo aproximado ao de autorresponsabilidade aqui defendido.
A proposta é o transplante da legislação da Austrália para o ordenamento pátrio. O referido país, cujo ordenamento jurídico é de common-law, estabelece a responsabilidade penal da pessoa jurídica em seu Criminal Code Act 1995 (AUSTRÁLIA, 1995), seção 2.5, nos seguintes termos:
(1) Este Código se aplica a entidades corporativas da mesma maneira que se aplica a indivíduos. Isso se aplica às modificações estabelecidas nesta Parte e a outras modificações necessárias pelo fato de a responsabilidade criminal estar sendo imposta aos órgãos corporativos, e não aos indivíduos.
(2) Um órgão corporativo pode ser considerado culpado de qualquer ofensa, incluindo um punível com prisão. [...]
Se um elemento físico de uma ofensa for cometido por um funcionário, agente ou diretor de uma empresa que atue dentro do escopo real ou aparente de seu emprego, ou dentro de sua autoridade real ou aparente, o elemento físico também deverá ser atribuído para o corpo corporativo.
12.3 Elementos de falha que não sejam negligência.
(1) Se a intenção, o conhecimento ou a imprudência são um elemento de falha em relação a um elemento físico de uma ofensa, esse elemento de falha deve ser atribuído a uma organização que expressamente, tácita ou implicitamente autorizou ou permitiu a prática da ofensa (tradução nossa).
Há preocupação do legislador em determinar uma responsabilidade própria da pessoa jurídica, sem referência ao modelo de transferência de responsabilidade por conduta da pessoa física (heterorresponsabilidade).
É possível constatar que o legislador australiano busca criar um sistema de autorresponsabilidade com base na teoria da ação institucional (BAIGÚN, 2000, P. 28). A legislação não nega a existência de condutas de pessoas físicas relacionadas ao ente coletivo, mas esclarece que é preciso valorar todos esses acontecimentos, de forma que seja possível verificar uma ação ou uma omissão do ente coletivo enquanto ato próprio. Ou seja, é preciso, em cada caso concreto, demonstrar a atitude da pessoa jurídica enquanto manifestação de vontade por meio de seus órgãos de direção.
Note-se que somente é possível classificar a legislação australiana como um sistema de autorresponsabilidade se, nos termos da ação institucional (BAIGÚN, 2000, P. 28), admitirmos que a manifestação da pessoa física constitui uma manifestação de vontade da pessoa jurídica, como no caso de decisões tomadas pela diretoria e demais órgãos de direção. A partir de um agir humano, haveria uma valoração normativa, de forma a reconhecer conduta própria da pessoa jurídica e viabilizar a responsabilidade penal autônoma do ente coletivo.
Importante destacar que a norma legal em análise prevê expressamente que não haverá responsabilidade penal da pessoa jurídica se for provado que a corporação agiu com todas as cautelas possíveis.
O referido modelo poderia ser acolhido no Brasil, mediante modificação legislativa, como forma de transição para um sistema jurídico que não utilize o modelo de ‘ricochete’ para responsabilização da pessoa jurídica.
7.O MODELO DA ITÁLIA
Conforme demonstrado, o modelo de heterorresponsabilidade não suporta o teste de constitucionalidade. Logo, se a teoria aqui defendida e o modelo de transição não forem adotados, ainda sim é necessária a modificação da legislação, com revogação da normativa atual. Nossa sugestão, neste contexto, é o acolhimento da legislação italiana.
O artigo 27 da Constituição da República da Itália (ITÁLIA, 1947) determina:
Art. 27 A responsabilidade penal é pessoal. O imputado não é considerado réu até condenação definitiva. As penas não podem comportar tratamentos contrários ao senso de humanidade e devem visar à reeducação do condenado. Não é admitida a pena de morte.
Ao contrário do texto pátrio, a magna carta italiana torna constitucional uma visão antropocêntrica do crime, sem previsão de punição do ente coletivo. Estabelece, como pilar básico do poder punitivo do Estado, a existência de ato humano.
Marco Maria Scoletta (2014, p. 862), ao analisar o referido ordenamento jurídico, observa que a ação (atividade humana) consciente e com vontade é requisito essencial para imposição de sanção penal. Logo, sendo inviável reconhecer esses requisitos na atividade da pessoa jurídica, de rigor apontar a impossibilidade de sanção penal.
A premissa acima exposta, atrelada à impossibilidade de transferência de responsabilidade penal (o texto magno italiano determina que a responsabilidade é pessoal) permite afirmar que, em Itália, ao contrário do Brasil, não há suporte jurídico para responsabilidade criminal da pessoa jurídica.
O Decreto 231/01 da legislação italiana (ITÁLIA, 2001) criou um regime que não pode ser tido como de direito penal, na medida em que não criminaliza fatos do ente coletivo. Trata-se, consoante a Constituição, da criação de um sistema ‘semi-penal’ (ITÁLIA, SUPREMA CORTE DI CASSAZIONE, 2006). No mesmo sentido é a opinião de Nicola Selvaggi (2006, p. 55). O artigo 5º da norma estabelece a responsabilidade da pessoa jurídica nos seguintes termos:
1. A instituição responderá por infrações cometidas em seu interesse ou a seu favor:
a) Pessoas que atuam em cargos representativos, Administração ou gestão da instituição ou de uma de suas unidades organizacional com autonomia financeira e funcional, bem como pessoas que se exercitam, mesmo de fato, gestão e controle;
b Pessoas sob a direção ou supervisão de uma das pessoas referidas no ponto (a).
2. A instituição não será responsável se as pessoas referidas no nº 1 tiverem agiu no interesse exclusivo de si mesmo ou de terceiros. (tradução nossa)
Note-se que o artigo 6º do referido decreto traz extenso rol de causas de exclusão da responsabilidade da pessoa jurídica, o que, comparado com o regime pátrio, mostra a preocupação do legislador em evitar a aplicação de sanções quando a pessoa jurídica não poderia conduzir suas atividades de forma diversa.
Anna Salvina Valenzano (2018, p. 38) afirma que “a responsabilidade é atribuída à entidade coletiva quando há uma estreita conexão entre a infração cometida e seu defeito organizacional, sem o qual a sanção não pode ser atribuída à entidade” (tradução nossa).
Sobre a natureza da responsabilidade da pessoa jurídica, anote-se, apesar da decisão da Suprema Corte, a afirmação de Angelo Carmona (2002, p. 208) no sentido da natureza penal da referida legislação. Trata-se de opinião que não concordamos, diante não somente da manifestação judicial citada, mas também diante dos termos da própria legislação, que declara a natureza da sanção como administrativa.
A previsão legal de sanção de interdição e a necessidade de intervenção judicial para aplicação das penas, por si só, não são elementos suficientes para afirmar a natureza penal. Afinal, como afirma Fábio Medina Osório (2015, p. 97), em casos excepcionais determinados em lei, a sanção administrativa ser aplicada por autoridade judicial.
Leandro Sacerdo (2014, p. 177) pondera que o “legislador daquele país acabou por definir como administrativa a responsabilidade da pessoa jurídica por delitos, embora processável pelo juiz penal competente para conhecer dos crimes respectivos imputados às pessoas físicas”.
Assim, apesar da divergência apontada, podemos afirmar que a legislação em estudo afasta o sistema de punição penal, criando normas legais específicas para a pessoa jurídica, ciente de que os antigos paradigmas do Direito Civil e Administrativo não seriam capazes de fornecer respostas condizentes com a sociedade contemporânea.
Essa solução deve ser adotada pelo Brasil, caso as propostas aqui apontadas não sejam acolhidas. Isto é, sugere-se a criação de uma legislação ‘semi-penal’, com procedimento judicial, para aplicação de sanções em face da pessoa jurídica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho, produzido com fundamento no método lógico-dedutivo mediante revisão de bibliografia de autores nacionais e estrangeiros, teve como ponto de partida as inovações perpetradas no ordenamento jurídico pelo constituinte originário e pelo legislador ordinário, que determinaram a responsabilidade da pessoa jurídica na esfera criminal.
Foi possível concluir que a solução aplicada pelo legislador pátrio (heterorresponsabilidade), ao fim e ao cabo, criou um modelo de responsabilidade por ‘ricochete’, onde há transferência da responsabilidade penal da pessoa física para a pessoa jurídica.
A existência de elementos de conexão (a pessoa física deve ter ligação com a pessoa jurídica e praticar o ato ilícito visando o benefício desta) não são suficientes para afastar a inconstitucionalidade revelada durante a pesquisa, na medida em que o texto magno, mesmo em face de pessoas jurídicas, veda a transmissão da responsabilidade penal.
Em outras palavras, não se pode permitir, mesmo entre pessoas físicas e jurídicas, a viabilidade jurídica de determinar responsabilidade penal do ente coletivo por ato praticado por pessoa física. A conduta é praticada pela pessoa física; logo não há fundamento para direcionar a sanção para a pessoa jurídica. Anote-se que, apesar dessa conclusão, a pesquisa revelou teorias que viabilizam a responsabilidade penal da pessoa jurídica na forma de autorresponsabilidade, na medida que consideram o agir da pessoa física como agir da própria empresa.
Foi possível concluir, ainda, que o modelo de direito costumeiro, tomando os Estados Unidos como paradigma, solucionam a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica de forma pragmática, sem recursos à análise da teoria do delito, reconhecendo que, se os atos da pessoa jurídica são sentidos na sociedade, a decorrência lógica é que podem ser responsabilizadas por esses atos, inclusive na esfera penal.
A ausência de conduta da pessoa jurídica nos mesmos moldes da conduta praticada pela pessoa física, no regime de common-law, não é considerada um impeditivo para a responsabilidade penal do ente coletivo. O precedente que inaugura essa responsabilidade penal no direito dos Estados Unidos é claro ao afirmar que, em decorrência da ação, há a responsabilidade correlata, inclusive na seara penal.
A mesma solução não pode ser aplicada no direito continental onde, além da teoria do delito, a responsabilidade penal é matéria de reserva legal, com estritos limites, inclusive a intransmissibilidade da sanção penal.
A pesquisa permitiu propor uma solução ao direito brasileiro. Uma mudança de paradigmas, com inspiração na teoria dos sistemas. Comunicação no lugar de conduta ligada ao ser humano. Assim, em um sistema onde o relevante é a comunicação, é possível estabelecer a autorresponsabilidade da pessoa jurídica, sem recorrer, ainda que de forma indireta, à conduta humana.
O marco teórico dessa proposta se deu nas obras de Niklas Luhmann (2016, passim) e Silvina Bacigalupo (1998, passim). O estudo possibilitou também formular uma proposta de transição, baseada no modelo do common-law da Austrália que, apesar de não eliminar a conduta humana, seria capaz de trazer aprimoramento à legislação pátria e aproximação ao modelo de autorresponsabilidade aqui defendido.
Por fim, caso as duas propostas sejam rejeitadas pelos operadores do direito, vislumbramos que a solução que restaria seria a revogação da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil, uma vez que o modelo de heterorresponsabilidade não suporta o teste de constitucionalidade, e o estabelecimento de um regime ‘semi-penal’, baseado no modelo italiano.
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Mestranda em Direito Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TRIVINO, Aline Melsone Marcondes. A reformulação da responsabilidade penal da pessoa jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 out 2023, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63336/a-reformulao-da-responsabilidade-penal-da-pessoa-jurdica. Acesso em: 21 nov 2024.
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