RESUMO: O presente artigo tem por escopo esclarecer se o Inquérito nº 4.781/DF ampara-se nos requisitos formais apontados pela lei processual para fins de sua regular aplicação, tecendo argumentos a respeito dos critérios argumentativos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal para conferir legalidade à sua instauração, não obstante caminhe a doutrina especializada em sentido diverso, ao apontar, em suma, que o tribunal criou uma espécie inédita de instrumento jurídico que viola não apenas as normas do ordenamento pátrio, mas também importantes princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal e em Tratados Internacionais, tais como a imparcialidade, o devido processo legal e o sistema acusatório.
PALAVRAS-CHAVE: Fake News. Inquérito nº 4.781/DF. ADPF de nº 572. Supremo Tribunal Federal. Imparcialidade. Devido Processo Legal. Sistema Acusatório.
1. Introdução
O presente artigo visa esclarecer aspectos pré-definidos com relação ao inquérito 4.781 do Distrito Federal, popularmente conhecido como “Inquérito das Fake News”, que tramita perante o Supremo Tribunal Federal (STF).
Trata-se de inquérito instaurado pela Portaria GP Nº 69, de 14 de março de 2019, com fundamento no art. 43 do Regimento Interno do STF, tendo como relator o Ministro Alexandre de Moraes, e adotando como justificativa para sua instauração a existência de notícias fraudulentas, conhecidas como “fakes news”, denunciações caluniosas, ameaças e infrações de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que supostamente atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, cometidos notoriamente em redes sociais e em demais sítios de circulação nacional e internacional.
Na visão do Tribunal, haveria uma rede orquestrada de propagação de notícias falsas, estruturalmente ordenadas por organizações criminosas, com o objetivo de difamar e caluniar os membros do Supremo Tribunal Federal e ofender a dignidade e credibilidade dos ministros e da própria instituição, sendo a rede social o meio utilizado para a prática criminosa.
No entanto, em que pese tal cenário, a instauração deste inquérito divide opiniões de operadores do direito, doutrinadores, de políticos e até mesmo da própria população, sendo que alguns consideram o procedimento necessário para repelir ataques pessoais envolvendo os membros do Supremo Tribunal Federal, um dos órgãos que representa o Estado Democrático de Direito, e outros consideram-no como uma atitude autoritária e imparcial, um “apagar das luzes do Direito”, em razão do órgão acusador e instaurador do inquérito se confundir com aquele que julgará os delitos em apuração.
Na linha desta última opinião, a jurista Cláudia R. De Morais Piovesan organizou um livro sobre este tema, intitulado como “Inquérito do Fim do Mundo – O apagar das Luzes do Direito”, publicado em agosto de 2020, com artigos de juristas como Rogério Greco, Marcelo Rocha Monteiro, Cleber Neto e Ludmila Lins Grilo, comprovando que há substancial insatisfação com os argumentos embasadores da instauração do inquérito, utilizados pelo STF em plenário.
Diante disto, o artigo em análise se presta a esclarecer se o inquérito nº 4.781/DF responde aos seguintes quesitos em relação ao inquérito: 1) está ele amparado pelo RISTF, art.43?; 2) o fato em apuração é crime?; 3) ele segue seguindo os ditames do Código de Processo Penal?; 4) a apuração e julgamento feito pelo mesmo órgão é fere o devido processo legal, a imparcialidade? 5) há críticas à duração do inquérito?
Trata-se, portanto, de texto focalizado nas questões de direito processual, sem indagações sobre a ocorrência ou não dos crimes e sua respectiva tipificação, voltando-se tão somente aos aspectos procedimentais com a doutrina constitucional.
2. Instauração do Inquérito e o Art. 43 do R.I.STF
Em 14 de março de 2019, o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli determinou a abertura do Inquérito 4781/DF para apurar a ocorrência de crimes de calúnia e ameaças contra a honra e segurança do STF, seus membros e famílias, através da portaria nº 69 de 2019, com fundamento no art. 43 de seu regimento interno que aduz:
“Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
§ 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.
§ 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal”.
A partir da interpretação do artigo acima colacionado, iniciou-se o questionamento a respeito da correta interpretação deste, afinal se o objeto do inquérito era a apuração de crimes em meios de comunicação social de massa, não estaria o conceito abrangido por “dependência do tribunal”. Neste sentido, o partido Rede Sustentabilidade questionou juridicamente, através de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental- ADPF de nº 572, a validade do inquérito, vide trecho de seus argumentos, alegando que "nenhum dos requisitos para a atuação do poder de polícia do STF estão presentes”. Complementou o partido que “não há indicação de ato praticado na sede ou dependência do STF, muito menos quem serão os investigados e se estão sujeitos à jurisdição do STF".
De fato, esta parece ser a posição mais acertada, pois um tribunal não pode estender injustificadamente a sua competência, exercendo uma interpretação demasiadamente elástica, sob pena de se configurar, em via transversa, verdadeiro tribunal de exceção, vedado pelo art. 5º, XXXVI da Constituição Federal.
Apesar disto, em sessão de julgamento da ADPF nº 572 proposta, o Supremo Tribunal Federal considerou que, como as infrações investigadas foram praticadas pela internet, em redes sociais ou demais aplicações, de fato o art. 43 poderia ser utilizado de fundamento para a instauração de inquérito, pois o tribunal ofendido exerce jurisdição em todo o território nacional e os crimes tinham repercussão também em todo o país.
4. O inquérito e os Ditames do CPP
Como se sabe, no âmbito processual penal, a expressão “inquérito” é utilizada para nomear qualquer procedimento (policial, militar, ou até mesmo instaurado pelo Poder Legislativo) destinado a apurar indícios de materialidade e autoria de infrações penais. Conforme dicção do parágrafo único do art. 4º do Código de Processo Penal, a competência para apuração de infrações não exclui a de outra autoridade a que a lei tenha atribuído idêntica função.
No tocante o inquérito instaurado para a apuração das Fake News, chama atenção a sua disciplina exclusivamente com base no Regimento Interno do STF (art. 43). Isso significa que as disposições relativas ao Inquérito Policial no âmbito do Código de Processo Penal não foram aplicadas ao referido instrumento de apuração.
O primeiro ditame correlato ao Inquérito Policial que deixou de ser observado na investigação das “Fake News” foi o art. 5º, §4º do CPP, que dispõe que o inquérito, nas ações penais públicas condicionadas à representação, não pode ser iniciado sem essa formalidade. Ora, se o delito contra a honra (injúria, calúnia ou difamação) é relativo a funcionário público no exercício de suas funções (art. 141, I), a ação penal depende de representação (art. 145, parágrafo único), cuja formalização não foi anexada aos autos por ocasião da abertura da investigação.
O Regimento Interno do Supremo não estabelece qual procedimento deveria ser observado quando da instauração de inquérito ‘ex officio’, razão pela qual se conclui pela aplicação do CPP. No entanto, tal legislação fora inobservada por diversas ocasiões no inquérito nº 4.781/DF, se tornando este quase que uma entidade autônoma e inédita no ordenamento jurídico brasileiro.
Outro comando inobservado é aquele previsto no art. 10 do Código de Processo Penal, eis que deduz que o inquérito deverá terminar no prazo de 30 dias, estando o investigado solto, podendo sofrer prorrogações. No tocante ao inquérito nº 4718/DF, não há prazo limite: a instauração se deu ao arrepio de qualquer regramento investigativo.
Verifica-se também a inobservância do CPP quando a então Procuradora Geral da República Raquel Dodge representando o órgão titular de eventual ação penal decorrente deste inquérito, se manifestou pelo arquivamento do mesmo e não teve sua manifestação acatada, o que causa grande estranheza, pois é posição pacífica no STF a de que quando o próprio Procurador-Geral de República promove o arquivamento do inquérito, não pode o órgão judicial deixar de acatar à promoção.
Além disto, a procuradora se manifestou de forma extremamente clara e convicta no sentido de atribuir ilegalidade ao inquérito e às eventuais provas ali produzidas, já que inobservado o regramento que rege o sistema acusatório. Afirmou que “nenhum elemento de convicção ou prova de natureza cautelar produzida será considerada pelo titular da ação penal ao formar sua opinio delicti” e complementou posteriormente que “também como consequência do arquivamento, todas as decisões proferidas estão automaticamente prejudicadas”.
No mais, é possível verificar que o ordenamento jurídico-penal brasileiro tende a afastar cada vez mais a atuação ‘ex officio’ do ente julgador da fase investigatória, a fim de evitar eventuais abusos e contaminação daquele que deve ser imparcial. Neste sentido, tem-se como exemplo o art. 282, §2º, do CPP que limita a atuação do magistrado ao condicionar a aplicação de medidas cautelares à representação da autoridade policial ou ao requerimento Ministério Público. Como outro exemplo, cite-se a instituição do juiz de garantias, excluindo a participação do juiz de instrução na fase investigativa, instituto recentemente declarado (parcialmente) constitucional pelo STF.
Assim, corroborando com esta ideia, o atual Procurador-Geral da República Augusto Aras se manifestou, quando do julgamento da ADPF 572, no sentido de que para a manutenção do procedimento investigatório, ante a gravidade dos fatos apurados, faz-se necessário que o STF confira interpretação conforme a Constituição ao art. 43 do RISTF, e consequentemente adote medidas de conformação desse inquérito ao sistema constitucional acusatório vigente, sendo respeitada a presença e participação do Ministério Público Federal como órgão acusador e titular de ação penal.
Pelo exposto, conclui-se que a conjugação do art. 43 com o Código de Processo Penal foi realizada de maneira equivocada, criando instituto anômalo no campo do estudo das investigações no ordenamento brasileiro.
5. O inquérito sob a ótica dos Princípios da Proporcionalidade e da Imparcialidade
Um outro ponto sempre presente quando se aborda questões constitucionais é a razoabilidade ou proporcionalidade da medida.
Sem delongar sobre o significado de proporcionalidade, incumbência destinada à Teoria Geral do Direito, pode-se dizer que proporcionalidade ou razoabilidade (apesar das divergências, aqui entendidas como expressões sinônimas) é um princípio (um dever de adotar comportamentos necessário à realização de um estado de coisas, expresso em cláusulas gerais) ou forma de resolução de conflito entre princípios que preleciona que toda norma só é válida se não restringir direitos fundamentais em mensuração superior àquela proteção conferida pela própria norma.
Ou seja, toda norma deve ser idônea a proteger o direito ou liberdade almejado (adequação ou utilidade), bem como ser a medida menos restritiva de direitos possível (necessidade ou exigibilidade), e as vantagens reais resultantes da norma devem ser superiores à restrição produzida (proporcionalidade em sentido estrito).
No tocante à instauração e prosseguimento do inquérito em comento, a razoabilidade escapa ao Supremo Tribunal Federal.
A uma, porque o meio utilizado sequer é capaz de atingir o fim colimado. Sabe-se que a atividade investigativa é uma atividade técnica, detalhada, exige capacitação e, muitas vezes, uma predisposição e nisso resulta dizer que uma investigação concebida por um membro do Poder Judiciário, incumbido a proferir decisões finais, jamais conduzirá com precisão à apuração da materialidade almejada, pois falta-lhe a capacidade técnica para tanto.
Ainda que os atos materiais sejam delegados a agentes de polícia, a atividade de supervisionar investigações, usualmente exercida por delegados de polícia, é igualmente técnica, daí porque é correto dizer que falta adequação ao instrumento de que o STF se utilizou para coibir os supostos crimes contra a ordem democrática.
Em idêntica linha de raciocínio, carece de necessidade: dentre tantos instrumentos disponíveis por entre as cerca de quatorze mil leis federais que vagueiam ou vaguearam pelo mundo jurídico desde 1946, foi escolhida uma maneira inusitada: um procedimento investigativo iniciado por membro do Judiciário para apurar condutas cometidas por indivíduos sequer indicados na portaria de instauração. Em outras palavras, a medida escolhida foi a mais restritiva possível, por violar garantias como a imparcialidade, devido processo legal, a do juiz natural e, acima de tudo, a garantia republicana da legalidade.
Por fim, ainda que, de fato, houvesse crimes que ameaçassem a incolumidade da democracia e o exercício da função jurisdicional, questiona-se severamente se essas condutas seriam capazes de afetar o conjunto de direitos defendidos pela Constituição Federal em ofensividade superior àquela resultante do inquérito nº 4781/DF. Em outros termos, pretendendo aparentemente defender um direito fundamental, o Supremo acabou por restringir outros em exponenciação.
Nesse ponto, vale a pena trazer à baila as lições de Lênio Luiz Streck, segundo quem a proporcionalidade é um postulado com o qual se deve ter cuidado na sua aplicação:
“Como venho referindo de há muito, o argumento da proporcionalidade só tem sentido, atualmente, se for para ‘fincar as bases’ da isonomia e da igualdade ou, melhor dizendo, com apoio em Dworkin, estabelecer a equaninimidade (fairness). Fora disso, o ‘princípio’ (?) da razoabilidade é tão ‘importante’ quanto o da felicidade, o da afetividade, o da ausência eventual do plenário, o da rotatividade...”
Em parecer exarado na ADPF nº 572/DF, o Procurador-Geral da República Augusto Aras defendeu que fosse suspensa a tramitação do inquérito, bem como fossem revistas as decisões de bloqueio de contas nas redes sociais de investigados justamente por não haver razoabilidade. Segundo Aras:
“Quanto à busca e apreensão, tendo em conta que os registros das postagens nas redes sociais não ficam armazenadas localmente, mas nos sistemas das empresas provedoras desses serviços, seria medida desproporcional, se não inócua, incorrendo-se ainda no risco de indesejável fishing expedition.”
No que concerne à imparcialidade do magistrado, igualmente surgem complicações.
Como se sabe, é garantia constitucional básica o princípio do juiz natural (art. 5º, LIII). Como consequências do direito a ser julgado pela “autoridade competente”, há a necessidade de se prefixar normas gerais com o objetivo de definir repartições de competências específicas para cada magistrado. Também decorre do “juiz natural” a imparcialidade do magistrado: ele não pode estar vinculado subjetivamente a qualquer fato ou pessoa que está envolvida, de qualquer maneira, no processo.
A garantia da imparcialidade está prevista no Pacto San José da Costa Rica de maneira expressa no art. 8º, I. No direito processual codificado, consagram-se os artigos 252 e 254 do Código de Processo Penal e, especificamente em relação à disciplina do processo, destaca-se o art. 252, I e IV, que preleciona:
Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:
I - tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito;
(...)
IV - ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito.
Nesse sentido, segundo o artigo em comentário, o juiz não poderá julgar uma causa em que ele for parte ou interessado (vítima, acusado, assistente de acusação, investigado, etc.). Também não poderá julgar causas em que ele mesmo houver funcionado como Delegado de Polícia.
No bojo do Inquérito nº 4781/DF, o Código de Processo Penal foi esquecido: a mesma autoridade que instaurou o inquérito (autoridade policial) é o ofendido e, da mesma maneira, julgará o feito.
Em reunião promovida no dia 29 de maio de 2020, o professor e doutrinador Renato Brasileiro de Lima questionou essa incongruência entre os papéis de vítima, investigador, acusador e julgador numa mesma figura. Segundo ele, é possível se falar em quebra de imparcialidade diante do fato da mesma pessoa desempenhar as referidas funções.
De fato, o próprio Supremo Tribunal Federal, na ADI nº 1570, acolhendo parecer da Procuradoria-Geral da República, suspendeu investigações relacionadas à Lava Jato por envolver juízes colhendo provas e julgando os feitos simultaneamente. No parecer da Procuradoria, que foi acolhido, “a imparcialidade do juiz é qualidade exigida de todo magistrado e, ao participar do procedimento da coleta de provas, ele estaria prejudicado nessa qualidade”.
Em suma, como afirmou o Dr. Felipe Martins Pinto representando o Colégio de Presidentes dos Instituto dos Advogados do Brasil no Plenário da ADPF nº 572, o Supremo Tribunal Federal “ultrapassou a fronteira dos erros escusáveis” ao violar inúmeras garantias constitucionais e internacionais, justificando reações acaloradas por parte da comunidade acadêmica.
Importante observar que, em maio de 2020, foram determinados a busca e apreensão de aparelhos telefônicos, tablets, dispositivos eletrônicos e bloqueios de contas em redes sociais de 16 investigados. Além disso, o investigado Edgard Gomes Corona, Luciano Hang e Reynaldo Bianchi Junior, bem como Winston Rodrigues Limas tiveram os sigilos bancário e fiscal afastados.
Ou seja, não de se trata de um inquérito meramente simbólico, contando com efetivas medidas restritivas; até a publicação deste artigo, o inquérito ainda não terminou e já conta com mais de cem perfis de redes sociais bloqueados, pertencentes a trinta pessoas diferentes.
6. O julgamento da ADPF nº 572.
No julgamento da ADPF nº 572, infelizmente decidiu-se que o inquérito é constitucional. Porém instituiu as seguintes condicionantes para que o inquérito seja válido: (a) seja acompanhado pelo Ministério Público (MP); (b) seja integralmente observado o Enunciado 14 da Súmula Vinculante; (c) limite o objeto do inquérito a manifestações que, denotando risco efetivo à independência do Poder Judiciário (CF, art. 2º), pela via da ameaça aos membros do STF e a seus familiares, atentem contra os Poderes instituídos, contra o Estado de Direito e contra a democracia; e (d) observe a proteção da liberdade de expressão e de imprensa nos termos da Constituição, excluindo do escopo do inquérito matérias jornalísticas e postagens, compartilhamentos ou outras manifestações (inclusive pessoais) na internet, feitas anonimamente ou não, desde que não integrem esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais.
Como se vê, embora tenha havido uma restrição ao objeto do inquérito, não houve nenhuma declaração de nulidade de atos praticados e nem a determinação de seu tratamento, de forma que o dispositivo da ADPF é, por assim dizer, “juridicamente erudito, mas de pouca utilidade prática”. Nesse sentido, declarou o Supremo que “no tocante aos atos já praticados no curso do inquérito, sua eficácia deve ser preservada até a data desse julgamento”.
Não entendeu o STF que haveria ofensa à imparcialidade no inquérito, mas que “esse exercício excepcional se submete a um elevado grau de justificação e a condições de possibilidade sem as quais não se sustenta”.
Em relação ao fato de que o inquérito só deveria abranger crimes em sua sede, afirmou o Supremo que o “caráter difuso dos crimes cometidos por meio da internet permite estender o conceito de ‘sede’, uma vez que o STF exerce jurisdição em todo o território nacional”. Ou seja, com os crimes foram cometidos em meio virtual, poderiam ser considerados como equivalentes aos praticados na sede ou dependências do STF.
Além disso, no tocante ao argumento de que o relator foi escolhido pelo presidente do tribunal, prevaleceu a interpretação literal, afirmando o STF que “o ministro competente para presidir o inquérito é o presidente da Corte, ou seu delegatário”.
Por fim, importante mencionar o voto vencido do Ex-Ministro Marco Aurélio, que julgava procedente o pedido para fulminar o inquérito, declarando que o sistema acusatório consagrado na Constituição não recepcionou o art. 43 do RISFT. Complementou que o relator “foi escolhido a dedo, sem observância do princípio democrático da distribuição”.
7. Conclusão
O Inquérito nº 4781/DF foi amplamente debatido pela comunidade acadêmica e majoritariamente criticado por sua contrariedade a diversos princípios fundamentais constitucionais e à legislação de regência, especialmente no tocante à necessidade de se observar a garantia do devido processo legal, do juiz natural e da separação entre as funções de julgar, defender e acusar, críticas essas que merecem ser consideradas.
Em reação à reprovação da comunidade jurídica, o Supremo Tribunal Federal explanou diversos argumentos no bojo da ADPF nº 572 pelos quais deveria se entender pela constitucionalidade da investigação, notadamente a interpretação ampliativa do conceito de sede e a existência de situação de excepcionalidade, a justificar uma reação do Poder Judiciário contra quem atenta contra a própria existência do Estado Democrático.
Desta forma, resta saber de que maneira, futuramente, tal procedimento inquisitivo caminhará, afinal se trata de figura absolutamente anômala na história do ordenamento brasileiro.
8. Referências bibliográficas
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>. Acesso em: 02 de novembro de 2020.
Íntegra de Decisão do Inquérito 4781/DF. disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/mandado27maio.pdf>. Último acesso em 29 de outubro de 2020;
NEVES, Marcio. Pedir ditadura ou para fechar STF são atos inadmissíveis, diz Fachin. Disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/pedir-ditadura-ou-para-fechar-stf-sao-atos-inadmissiveis-diz-fachin-10062020>. Acesso em: 02 de novembro de 2020.
STF: Ministro Fachin mantém inquérito das fake News. Disponível em: <https://migalhas.uol.com.br/quentes/328772/stf--ministro-fachin-mantem-inquerito-das-fake-news>. Último acesso em 29 de outubro de 2020;
BRASILEIRO, Renato. Inquérito Policial Instaurado de Ofício no STF - Renato Brasileiro e Pedro Lenza. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8ToUMtG-uGY>. Acesso em: 02 de novembro de 2020.
STRECK, Lênio Luiz. Ministros do STJ não devem se aborrecer com a lei. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2012-jun-07/senso-incomum-nao-aborreca-lei-ministra-nancy andrighi?pagina=2#:~:text=Como%20venho%20referindo%20de%20h%C3%A1,estabelecer%20a%20equaninimidade%20(fairness).> Acesso em: 02 de novembro de 2020.
Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Assessor de juiz. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, David Ferreira. O inquérito nº 4.781 do Distrito Federal (inquérito das fake news): legalidade e constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 out 2023, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63547/o-inqurito-n-4-781-do-distrito-federal-inqurito-das-fake-news-legalidade-e-constitucionalidade. Acesso em: 26 dez 2024.
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