RESUMO: O presente artigo tem como objetivo a apresentação de uma visão crítica da forma como vem sendo conduzida a fase de instrução do processo civil, sobretudo, no que tange à produção de provas. Partindo-se de uma concepção de processo civil constitucional, pautado nos valores do Estado Democrático de Direito, propõe-se uma revisão do papel do juiz, seu redimensionamento como sujeito do processo, empenhado na missão que lhe é atribuída pelo ordenamento jurídico de contribuir para a construção dialética e coparticipativa de uma solução jurídica justa. A abordagem procura alertar para os riscos do ativismo judicial na fase probatória e para a necessidade de reconsiderar certos entendimentos sobre a destinação da prova no processo e a atuação do juiz em busca da “verdade real”.
Palavras-chave: Processo civil constitucional; Atividade probatória; Sujeitos do processo; Ativismo judicial.
1.Introdução
É comum nos depararmos com decisões judiciais (saneadores, sentenças, decisões monocráticas, acórdãos) nas quais o provimento jurisdicional é construído a partir da premissa de que o destinatário da prova é o juiz.
Essa afirmação vem sendo feita ao longo de décadas e cegamente reproduzida em juízos e tribunais de todo o país, o que parece não acompanhar a evolução epistemológica acerca do direito probatório no processo civil.
O neoconstitucionalismo, enquanto corrente teórica que teve como marco jusfilosófico o pós-positivismo, no exercício da pretensão a que se propôs, de estabelecer uma nova teoria geral do direito, trouxe uma grande contribuição à matéria cujo estudo aqui se propõe (o direito probatório processual civil) e ao Direito em geral. Trata-se da ideia, que vem sendo aos poucos assimilada, da eficácia normativa e dos efeitos irradiantes das normas constitucionais. Esse propósito a partir dessa compreensão acabou culminando no fenômeno conhecido como a constitucionalização do Direito.
A influência do neoconstitucionalismo, como um movimento teórico, e do contexto histórico vivido no momento em que foi elaborada a CRFB, culminou na inserção de normas de diferentes áreas do Direito e não apenas da matéria constitucional em seu texto. Esse efeito traduz uma das facetas da constitucionalização do direito, que também se caracteriza pela influência do texto constitucional sobre todo o ordenamento jurídico brasileiro (SARLET, 2012).
Em outras palavres, a constitucionalização do direito atingiu o âmbito processual com a inserção de princípios processuais no texto constitucional e também pela influência e reprodução de normas constitucionais no sistema legal infraconstitucional. Percebe-se, assim, uma relação profunda entre a Constituição e o processo. Por um lado, no sentido Constituição-processo, a partir da repercussão que o Direito Processual sofre em seus princípios pela constituição; e, por outro, no sentido processo-Constituição, pela compreensão de que pelo Direito Processual o Estado dá efetividade ao ordenamento jurídico, inclusive às normas constitucionais (DINAMARCO, 2003).
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, visando a atender aos anseios populacionais, em seu art. 1º estabelece a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito. Portanto, todos os institutos estatais do País estariam permeados de valores democráticos (SILVA, 2005), inclusive o próprio Judiciário.
Esse trabalho tem como objetivo a apresentação de uma visão crítica da forma como vem sendo conduzida a fase de instrução do processo civil, sobretudo, no que tange à produção de provas. O propósito é chamar atenção para a possibilidade e, mais que isso, a necessidade de assimilação dos ideais democráticos inscritos na CRFB na perspectiva do direito processual civil, visando, em última análise, elaboração do provimento jurisdicional a partir da cooperação dialógica entre sujeitos do processo.
2. A ideia de um processo civil democrático a partir das garantias constitucionais do devido processo legal e do contraditório
Fredie Didier Jr. ensina que o reconhecimento da força normativa da Constituição ocasionou a mudança de um modelo de Estado fundado na lei (Estado Legislativo) para um modelo de Estado fundado na Constituição (Estado Constitucional):
A constitucionalização do Direito Processual é uma das características do Direito contemporâneo, fenômeno que pode ser percebido em duas dimensões: (i) incorporação aos textos constitucionais de normas processuais, inclusive como direito fundamental, sendo o principal exemplo o direito fundamental ao devido processo legal e todos os seus corolários (contraditório, juiz natural, proibição de prova ilícita, etc.); (ii) o exame das normas infraconstitucionais como concretizadoras das disposições constitucionais, com intensificação do diálogo entre processualistas e constitucionalistas.[1]
O Código de Processo Civil (CPC) de 2015, já em seu art. 1º, de forma pedagógica, encampa expressamente essa concepção constitucionalista do Direito:
Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil , observando-se as disposições deste Código.
O devido processo legal é uma garantia contra o exercício abusivo do poder. Trata-se de uma garantia constitucional e direito fundamental de conteúdo complexo, que, ao longo da história, foi incorporando corolários de aplicação (contraditório, ampla defesa, juiz natural, publicidade, duração razoável). Sua construção é obra eternamente em progresso (Didier, 2015).
A evolução do estudo desse metaprincípio, também concebido como cláusula geral, aponta para a necessidade de compreensão da sua dupla dimensão: o devido processo legal formal ou procedimental e o devido processo legal substancial.
Aqui, interessa mais esse segundo aspecto. A análise do devido processo legal sob o prisma dessa dimensão substancial se ramifica em variadas acepções. Em um primeiro momento, tem-se que “a experiência jurídica brasileira assimilou a dimensão substancial do devido processo legal de um modo bem peculiar, considerando-lhe o fundamento constitucional das máximas da proporcionalidade (postulado, princípio ou regra da proporcionalidade, conforme seja o pensamento a se adotar) e da razoabilidade”.[2]
Essa noção, apesar de contribuir para a compreensão da temática que aqui se pretende explorar, sobretudo, a luz do pensamento de Humberto Ávila, segundo o qual “são os próprios deveres de proporcionalidade e de razoabilidade que irão definir, ao lado de outros critérios, o que é um processo adequado ou justo”[3], não é a que mais interessa no momento.
Para o estudo a que aqui se propõe desenvolver, o que mais importa é a compreensão do devido processo legal, a partir de um dos seus principais corolários, a garantia fundamental do contraditório.
O princípio do contraditório está atrelado à própria noção de processo, inconcebível se não estruturado democraticamente. O contraditório deve ser visto como exigência para o exercício democrático de um poder (MARINONI, 1999).
É possível afirmar que as garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LIV e LV, CRFB/88), vêm passando por uma transformação gradual, se afastando da concepção meramente formal, de observância, das regras infraconstitucionais, para assumir um sentido substancial.
A ampla defesa não mais é atendida com a mera possibilidade de produção probatória pelas partes, exigindo-se cooperação entre os atores processuais, por meio de uma sistemática dialógica, para que se alcance, em tempo razoável, solução justa.
O contraditório não mais se satisfaz com a simples abertura de vista às partes no processo, devendo lhes ser assegurada a efetiva possibilidade de influir na construção da solução jurídica a ser adotada.
O atual CPC, que passou a vigorar a partir de 18 de março de 2016, proporciona relevante contribuição para a assimilação dessa nova concepção de um processo civil constitucional.
Para além da compreensão primária do contraditório, como simples direito de participação ou de ser ouvido (dimensão formal), o contraditório incorpora a ideia de “poder de influência”, ou seja, a efetiva possibilidade conferida à parte de interferir ativamente na decisão que será tomada pelo órgão jurisdicional.
A regra da “não surpresa”, integrada ao ordenamento jurídico pelo atual CPC, em seus artigos 9º e 10º, busca dar efetividade a essa ideia de “poder de influência”.
Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica:
I - à tutela provisória de urgência;
II - às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III ;
III - à decisão prevista no art. 701 .
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
Essa nova concepção de um direito processual civil constitucional e as ideias a ela inerentes devem ser incorporadas à fase de instrução do processo, sobretudo, na orientação da atividade probatória, que deve ser direcionada à construção democrática de uma solução justa ao conflito.
3. A atividade probatória, o ativismo judicial e os equívocos que comprometem o desenvolvimento democrático da instrução processual
A doutrina oscila ao conceituar prova, entre aqueles que a concebem como os meios ou elemento que contribuem para a formação da convicção do juiz a respeito da existência de determinado fato; e os que a conceituam como um conjunto de atividades de verificação e demonstração, que tem como objetivo chegar à verdade relativa às alegações de fato relevantes para o julgamento.
O primeiro conceito contribuiu para a lógica – que aqui se pretende desconstruir – de que o juiz seria o destinatário da prova. A responsabilidade pela fomentação dessa compreensão, no entanto, não deve ser atribuída aos doutrinadores que o criaram, mas sim à interpretação imprecisa de suas lições.
Não se questiona que um dos objetivos da atividade probatória no âmbito de um processo judicial, talvez o principal deles, seja contribuir para a formação do convencimento do magistrado, a quem compete, ao fim e ao cabo, decidir o conflito.
Esse reconhecimento, todavia, não induz à ratificação da premissa de que o juiz é o (único) destinatário da prova.
O direito à postulação probatória constitui manifestação das garantias constitucionais do acesso à justiça, da ampla defesa e do contraditório.
Conforme lições de Daniel Amorim Assumpção Neves, extraídas de seu Manual de Direito Processual Civil, “encontra-se na doutrina uma forte tendência na defesa da natureza constitucional do direito à prova, que, embora não esteja expressamente previsto no Texto Maior, seria decorrência da moderna visão do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, previsto no art. 5º, XXXV, da CF (‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito’), atualmente analisado à luz do acesso à ordem jurídica justa (...)”. [4]
O Código de Processo Civil assegura às partes em um processo judicial o direito de empregar todos os meios legais e moralmente legítimos para provar os fatos alegados em juízo. Confira-se:
Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.
A partir da compreensão dessa norma, é possível concluir que o juiz é apenas um dos destinatários da prova, em cujo rol se incluem, ainda, todos aqueles que dela poderão fazer uso.
Antes que sobreviessem as relevantes alterações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015, os estudiosos do tema já propunham uma revisão da lógica relacionada à destinação da prova no processo civil.
Em 2013 foi aprovado o Enunciado nº 50 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, com a seguinte redação:
Os destinatários da prova são aqueles que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz.[5]
Cirilo Vargas, em seu artigo intitulado A conexão entre os princípios do contraditório e da fundamentação das decisões jurisdicionais apresenta uma crítica essencial à atuação que tradicionalmente vem sendo desempenhada pelo juiz. O Autor apresenta a ideia segundo a qual, com a estruturação do Estado Democrático de Direito não mais se admite a transferência para o Judiciário do papel de garantidor da “justiça universal” e da “vontade da lei”, tarefa que tem justificado a construção unilateral de decisões judiciais. Ainda conforme pensamento elaborado no referido artigo, o desenvolvimento da democracia constitucional conduz à superação do decidir sustentado pela atuação de um “decisor-descobridor” que “escuta a voz de Deus emanante de regras éticas de validade universal”.[6]
Vargas, fazendo menção a julgado do Tribunal Constitucional de Portugal, anota que “somente o procedimento dialeticamente organizado (processo) cujos participantes atuam em posição simétrica, é capaz de legitimar o exercício da atividade jurisdicional (posicionando o juiz não como partícipe da relação jurídica, mas como destinatário e viabilizador do contraditório)”.[7]
Muito se discute, atualmente, sobre o ativismo do juiz na fase probatória, mais especificamente quanto à possibilidade de o magistrado tomar a iniciativa determinando as provas que devem ser produzidas no processo. O tema divide opiniões. Como abordado por Ana Isis Teran Silva e Isabela Dias Neves, entre aqueles que compreendem tal postura judicial ativista inconstitucional e os que a reputam essencial na efetivação do Processo Civil Democrático.[8]
Partindo-se da garantia fundamental ao devido processo legal, constitucionalmente assegurada como um direito fundamental (art. 5º, LIV, CRFB/88), é possível compreender a fase instrutória do processo como aquela em que os sujeitos envolvidos se dedicam à atividade probatória, e sob a supervisão do magistrado buscarão a construção dialógica da solução jurídica a ser adotada em cada caso concreto.
Do ordenamento jurídico é possível extrair diversas regras que se destinam à regulamentação dessa atividade, a maior parte delas se concentra no CPC.
A partir do art. 369 do CPC, no Capítulo XII, “Das Provas”, é possível perceber um sistema coeso, em que o papel dos sujeitos do processo, em especial do magistrado, é bem delimitado. A interpretação sistemática dessas normas nos conduz à conclusão de que a Lei reservou ao juiz uma tarefa bem definida na fase instrutória, cabendo a ele zelar pela atuação das partes em prol da construção de uma solução justa e democrática, orientando-se pelos princípios da efetividade, do devido processo legal e da boa-fé objetiva. Esta última, em especial, a partir dos deveres laterais que lhe são inerentes, de se comportar de acordo com a expectativa legitimamente depositada e de cooperação entre os sujeitos.
A figura do magistrado preserva sua importância nessa fase essencial do processo, a ele cabendo o papel de supervisão e orientação em busca da efetividade. Cabe citar a regra do art. 370 do CPC:
Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
A normativa processual disciplinou com maior dinamicidade a atividade probatória, permitindo ao magistrado a distribuição do ônus da prova entre as partes, de acordo com as peculiaridades do caso concreto, levando em conta a reais condições apresentadas por cada uma delas para produzi-las. A obrigação de produzir determinada prova será imputada àquele que estiver em melhores condições de fazê-lo. É o que se convencionou chamar de “carga dinâmica do ônus da prova” e sua base normativa encontra-se positivada no art. 373, § 1º, do Diploma Processual. Confira-se:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
§ 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:
I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
Como se observa do § 3º, do dispositivo legal acima transcrito, é possível que o ônus da prova seja definido mediante convenção entre as partes, o que também se insere no âmbito dessa “carga dinâmica da distribuição”.
Essa nova disciplina elástica da carga probatória tem como vetor da sua materialização no ordenamento o instituto da inversão do ônus da prova. Trata-se de uma medida processual que se ramifica em duas espécies: a inversão ope legis (predefinida por lei) e ope iudicis (que se submetem à avaliação do magistrado).
Como exemplo da primeira, é possível citar a regra do art. 429 do CPC, in verbis:
Art. 429. Incumbe o ônus da prova quando:
I - se tratar de falsidade de documento ou de preenchimento abusivo, à parte que a arguir;
II - se tratar de impugnação da autenticidade, à parte que produziu o documento.
Outros exemplos de inversão do ônus da prova pré-estabelecidos em lei, ou seja, que independem de decisão judicial, são encontrados no Código de Defesa do Consumidor (CDC), quando trata de “fato do produto” e da publicidade, em seus artigos 14, § 3º e 38, respectivamente:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. (grifos nossos)
Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina.
Por sua vez, como exemplos de hipóteses de inversão ope iudicis do ônus da prova podem ser mencionados, o próprio § 1º, do art. 373 do CPC – anteriormente citado – e o art. 6º, VIII, do CDC:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
Os legais dispositivos acima citados foram estrategicamente coletados do ordenamento jurídico, para ilustrar e reforçar que o sistema processual, especificamente no que tange à organização da fase instrutória do processo, bem definiu o papel do magistrado. Pode-se dizer assim, que ao invés da ultrapassada concepção do juiz como destinatário das provas, a função exercida pelo magistrado melhor se alinha com a posição de “destinatário do contraditório” (VARGAS, 2012).
É de se indagar, assim, porque é que a discussão sobre a atuação do magistrado no direito probatório ocupa tanto espaço entre processualistas e operadores do direito em geral ao longo do tempo, se, claramente, a sistemática não oferece margem ao ativismo judicial.
Importante deixar claro que o que se está a questionar aqui não é aquele ativismo judicial, publicamente defendido pelo Ministro Roberto Barroso, que está mais relacionado à solução jurídica a ser dada a um acaso concreto. Essa concepção da qual o Ministro é entusiasta, diz respeito a uma atuação do magistrado mais proativa na busca pela concretização de valores constitucionais e que inclui em seu espectro posturas como: aplicação direta das normas constitucionais, independentemente de manifestação do legislador ordinário; a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas (BARROSO, 2014).
Não é desse ativismo judicial que estamos a tratar neste momento, mas sim daquele que se revela no âmbito da atividade probatória, que parte de uma interpretação (equivocada) da norma do art. 370 do CPC, a ponto de o magistrado sentir-se autorizado a suprir a inércia ou a ineficiência probatória das partes ou de alguma delas e atuar proativamente na produção das provas, sob o pretexto de se buscar uma “verdade real”.
5. O mito da “verdade real”
Essa justificativa, comumente apresentada pelos juízes, como motivação da sua intervenção ativa na atividade probatória: “a busca da verdade real”, é problemática em vários aspectos. Primeiramente, é de se questionar se a verdade seria algo efetivamente alcançável. De se indagar, ainda, se a verdade, como percepção subjetiva de um indivíduo, a partir de determinada posição e em certo contexto, poderia ser qualificada como real.
Cesar Candiotto, em artigo intitulado Verdade e diferença no pensamento de Michel Foucault, escreveu que “aquilo qualificado de verdadeiro não habita num já-aí; antes é produzido como acontecimento num espaço e num tempo específicos. No espaço, na medida em que não pode ser válido em qualquer lugar; no tempo, porque algo é verdadeiro num tempo propício, num kairós”.[9]
A temática, especificamente no âmbito do direito probatório, foi abordada por Fredie Didier Jr, m seu Curso de direito processual civil:
É comum dizer que a verdade absoluta é algo inatingível, que é utópico imaginar que se possa, com o processo, atingir a verdade real sobre determinado acontecimento. Realmente, não se pode dizer, de um fato, que ele é verdadeiro ou falso; a rigor, ou o fato existiu, ou não. O que se pode adjetivar de verdadeiro ou falso é o que se diz sobre esse fato, a proposição que se faz sobre ele. O algo pretérito está no campo do ôntico, do ser: existiu, ou não. A verdade, por seu turno, está no campo o axiológico, da valoração: as afirmações e que podem ser verdadeiras ou falsas.
(...)
A prova, portanto, dificilmente servirá para reconstruir um evento pretérito; não se pode voltar no tempo. Com base nessas premissas é que se costuma dizer que o processo não se presta à busca da verdade, sobretudo porque a verdade real é inatingível, que está além da justiça, bem como porque há outros valores que orientam o processo, como a segurança e a efetividade: o processo precisa acabar. Calcar a teoria processual sobre a ideia de que se atinge, pelo processo, a verdade material, seria mera utopia. (...) [10]
A compreensão da verdade é questão que intriga e causa inquietude na humanidade desde a sua existência no planeta. Estudiosos se dedicam a esse tema desde Sócrates e Platão a Marilena Chaui.
Ciente da complexidade e da profundidade dos debates que permeiam as reflexões sobre a verdade, não parece aceitável que decisões judiciais continuem sendo, de maneira simplista, fundamentadas na busca por uma (inatingível) “verdade real”.
Essa discussão remonta à figura do juiz Hércules, metodologicamente criada por Dworkin, para encontrar as respostas corretas nos casos judiciais. Uma alusão ao Deus grego, para ilustrar o juiz ideal, dono de um conhecimento perfeito para a resolução dos conflitos apontados.
A técnica de Hércules encoraja um juiz a emitir seus próprios juízos sobre os direitos institucionais. Poder-se-ia pensar que o argumento extraído da falibilidade judicial sugere duas alternativas. A primeira argumenta que, por desventura e com frequência, os juízes os juízes tomarão decisões injustas, eles não devem esforçar-se para chegar a decisões justas. A segunda alternativa sustenta que, por serem falíveis, os juízes não devem fazer esforço algum para determinar os direitos institucionais das partes diante deles, mas que somente devem decidir os casos difíceis com base em razões políticas ou, simplesmente, não decidi-los. Mas isso é perverso. A primeira alternativa argumenta que, por desventura e com frequência, os juízes devem submeter a outros as questões de direito institucional colocadas pelos casos difíceis. [11]
A ideia do “juiz Hércules” é aqui invocada, pedagogicamente, para desconstruir a imagem do magistrado como uma ser infalível, situado em um plano superior no processo em relação aos demais sujeitos. O juiz deve atuar na fase de instrução, em posição equidistante, conduzindo e orientando a atividade probatória de maneira imparcial, sem tomar para si o protagonismo que, nesse momento, é das partes diretamente envolvidas no conflito, a quem compete, conforme estabelecido pela sistemática processual, a produção das provas de acordo com a distribuição do respectivo ônus, previamente definida.
No atual estágio de evolução do direito processual, enquanto ramo de conhecimento científico, a invocação da falaciosa “verdade real” não deve mais ser admitida como fundamentação válida. Essa terminologia está impregnada por uma ranço inquisitório, vem servindo à legitimação de condutas antidemocráticas, notadamente, a construção unilateral do provimento jurisdicional. Um dos efeitos evidentes dessa prática é a violação de um dos pilares do devido processo legal: a imparcialidade do magistrado.
Para ilustrar com números a dimensão do problema, a partir de uma busca à jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com a utilização dos termos “processo civil”, “prova” e “verdade real”, são encontrados 1.546 acórdãos, em que essas expressões são verificadas na ementa. Em muitos deles é possível identificar premissas como: “é sabido que o juiz é o destinatário das provas, podendo, em busca da verdade real e da elucidação dos fatos, determinar a realização daquelas necessárias à instrução do processo” (Apelação Cível 1.0000.23.099992-2/001 – 09/10/2023); ou “ainda que a prova do da existência de pactuação não tenha vindo com a contestação, deve ser levada em consideração, em homenagem aos princípios da busca da verdade real e da proibição do enriquecimento ilícito” (Apelação Cível 1.0000.23.069741-9/001 – 12/09/2023).
A situação se repete em outras Cortes Estaduais. Utilizando-se os mesmos critérios de pesquisa jurisprudencial, são encontrados 10.240 acórdãos no Tribunal de Justiça de São Paulo, em que essas expressões são encontradas no interior teor; e 24 acórdãos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em que esses termos são identificados na ementa, cabendo chamar atenção para as seguintes afirmações encontradas em algumas delas:
O julgador deve conduzir o processo em busca da verdade real e em busca da efetividade da justiça. 12. Ademais, o Superior Tribunal de Justiça já manifestou entendimento no sentido de ser admissível a iniciativa probatória do juiz, com realização de provas de ofício, é amplíssima, porque é feita no interesse público de efetividade da Justiça (Apelação nº 0112612-29.2018.8.19.0038 - 12/09/2023;
Com efeito, o magistrado é autorizado a determinar a realização de perícia de ofício se entender que a prova é indispensável, com a finalidade de buscar a verdade real e firmar seu convencimento motivado (Agravo de Instrumento nº 0050566-79.2022.8.19.0000 - 31/08/2023).
No Superior Tribunal de Justiça foram entrados 146 acórdãos, cabendo ressalvar que no âmbito desse Corte Superior, verifica-se que a utilização da “verdade real” como fundamento para autorizar uma intervenção do magistrado na atividade probatória é mais cautelosa. Normalmente a justificativa vem acompanhada de uma questão de “relevante valor social”, como, por exemplo, em ações de investigação de paternidade.
Como se observa, a famigerada “busca da verdade real” vem dando ensejo a decisões arbitrárias, servindo para justificar a determinação de produção de provas de ofício, autorizar a mitigação de regras procedimentais, como as que estabelecem um momento adequado para a juntada de documento ao processo, ou, ainda, para fundamentar o indeferimento de provas requeridas pelas partes sem uma motivação concreta. Ou seja, assumiu a feição de um “fundamento coringa”, que pode ser utilizado em qualquer situação, de acordo com a conveniência do magistrado.
Ainda que se observe a necessidade de o juiz adotar uma postura mais proativa em determinados casos concretos, como nas ações de investigação de paternidade, por exemplo, verifica-se que tal postura poderia perfeitamente ser justificada no interesse social da demanda, não havendo nenhuma necessidade em se reportar á “busca da verdade real”.
6.Considerações finais
O aprofundamento dos estudos sobre a matéria leva ao questionamento sobre o que falta para grande parte dos magistrados assumirem a posição que o ordenamento jurídico lhes reservou nessa moderna concepção de um processo civil constitucional.
O ativismo judicial durante a fase probatória deve ser redimensionado. Aquele ativismo a que aludem SILVA e NEVES, no citado artigo de sua autoria (Processo Civil Democrático: ativismo judicial frente às provas), adotado pelo magistrado na condição de “destinatário do contraditório” e cuja finalidade é a concretização de preceitos constitucionais, é bem-vindo. A atuação, nessa perspectiva, deve pautar-se na garantia do contraditório substancial, viabilizando a participação simétrica e paritária das partes, às quais deve-se assegurar os meios necessários para a produção das provas, conforme distribuição do respectivo ônus previamente definida, de modo a conferir legitimidade ao provimento jurisdicional.
Aquele ativismo, lado outro, que parte da premissa equivocada de que o juiz é o (único) destinatário das provas e que, portanto, possui o poder irrestrito de intervir na atividade probatória, inclusive suprindo a atuação que se espera e deve ser exigida das partes, sob o pretexto de se buscar uma (inalcançável) “verdade real” deve ser rechaçado.
A aceitação de que o juiz é mais um sujeito do processo, em uma relação de horizontalidade com os demais atores: partes, advogado, Ministério Público, Defensoria Pública, é essencial para a continuidade do desenvolvimento do processo civil constitucional, alinhado com os valores do estado democrático de direito. Esse processo de reconhecimento, não induz, de forma alguma, à perda da importância do magistrado, mas implica, inevitavelmente, em renúncia ao protagonismo.
É chegada a ora de abandonar o mito da “verdade real”. A atividade probatória horizontalizada, devidamente orientada pelos princípios constitucionais e cooperativamente produzida, com respeito ao contraditório substancial, pode conduzir, no máximo, a uma aproximação da verdade. Os elementos advindos dessa etapa processual, fornecerão ao magistrado a segurança jurídica necessária apenas para decidir pela maior plausibilidade de uma ou outra versão e construir, assim, dialogicamente, uma solução justa.
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SILVA, Anna Isis Teran; NEVES, Isabela Dias. Processo Civil Democrático: ativismo judicial frente às provas. Revista de informação legislativa: RIL, v. 54, n. 215, p. 97-115, jul./set. 2017. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/215/ril_v54_n215_p97. Acesso em: 15/07/2023.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2005.
VARGAS, Cirilo Augusto. A conexão entre os princípios do contraditório e da fundamentação das decisões jurisdicionais. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 5, p. 19-45, 2022. Disponível em: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/459. Acesso em: 05 mai. 2023.
[1] DIDIER JR. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento, p. 47
[2] DIDIER JR. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento, p. 68
[3] ÁVILA. O que é o “devido processo legal”?, p. 57
[4] NEVES, Manual de direito processual civil, p. 494.
[5] Enunciado n. 50 do Fórum Permanente de Processualistas Civis. Processualistas do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).
[6] VARGAS, A conexão entre os princípios do contraditório e da fundamentação das decisões jurisdicionais
[7] Ibidem.
[8] SILVA; NEVES. Processo Civil Democrático: ativismo judicial frente às provas.
[9] CANDIOTTO, Verdade e diferença no pensamento de Michel Foucault, Kriterion, Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. XLVIII, n. 115, p. 204.
[10] DIDIER JR. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, p. 46.
[11] DWORKIN, Levando os direitos a sério, p. 203.
Bacharel em Direito, graduado pela Escola Superior Dom Helder Câmara, em 2012. Já atuou como assistente judiciário e, desde 2013, atua como assessor judiciário. Aprovado para o cargo de Defensor Público Substituto no IV Concurso da Defensoria Pública do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, Pedro Martins. Atividade probatória à luz do processo civil constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 nov 2023, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63640/atividade-probatria-luz-do-processo-civil-constitucional. Acesso em: 23 nov 2024.
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