Resumo: O presente trabalho se propõe a realizar uma análise da constitucionalidade ou não do direito ao aborto lido à luz da Constituição da República. O tema possui tem uma grande sensibilidade por envolver diretamente direitos fundamentais que sofrem uma aparente colisão. A importância se confirma diante dos números apresentados pelo Governo Federal, que estipula em mais de um milhão de abortos ilegais praticados por ano, resultado em uma situação saúde pública. Desta forma, partindo de uma análise sob a égide dos direitos fundamentais à vida, à saúde e a dignidade humana, o trabalho se propôs, sem propósito de exaurir o tema, a examinar evolutivamente alguns julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 3510, ADPF 54 e a ADPF 442) acerca do aborto e sua relação com os direitos fundamentais, verificando-se pelo reconhecimento da constitucionalidade da prática abortiva frente a ponderação de valores inerentes e prevalentes à condição humana da mulher.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Direito à vida. Constitucionalidade. Aborto.
Introdução
O Ministério da Saúde entende como aborto a interrupção da gestação antes do período perinatal, entre a vigésima e a vigésima segunda semana, com a eliminação do produto da concepção pesando menos do que 500g, independentemente de sinais vitais[1].
O tema, em termos de legislação infraconstitucional, é tratado no âmbito criminal pelo Código Penal que tipifica como crime a prática abortiva, trazendo algumas situações que excluem sua ilicitude.
Entretanto, a jurisprudência, através do Supremo Tribunal Federal vem debatendo outras possibilidades de praticar o aborto e sua relação com os direitos fundamentais, verificando-se pelo reconhecimento da constitucionalidade da prática abortiva frente a ponderação de valores inerentes e prevalentes à condição humana da mulher.
Desta forma, o presente trabalho se propõe a realizar uma análise sobre constitucionalidade ou não do direito ao aborto lido à luz da Constituição da República.
O tema possui tem uma grande sensibilidade por envolver diretamente direitos fundamentais que sofrem uma aparente colisão. A importância se confirma diante dos números apresentados pelo Governo Federal, que estipula em mais de um milhão de abortos ilegais praticados por ano, resultado em uma situação saúde pública.
De um lado é incontroverso que o direito a vida daquele está sendo gerado possui grande relevância jurídica e proteção constitucional, mas o cerne da questão parece está ligado ao limite entre esse direito e os direitos fundamentais da mulher que está gerando, visto que também merece proteção estatal.
Desta forma, o estudo se propõe a viabilizar um debate sobre a ponderação desses direitos fundamentais e a consequente constitucionalidade da prática abortiva, sem esquecer de fazer um breve apanhado sobre a situação do tema no âmbito internacional.
Assim, sem pretender o esgotamento do tema, mas fazendo uma incursão documental doutrinária e jurisprudencial, o presente trabalho se põe mais um instrumento acadêmico na busca de aclarar esse tema que causa grande divergência tanto no âmbito das instituições como na sociedade como um todo.
Desenvolvimento
No Brasil, como não há legislação sobre o aborto e a regulação para sua prática, foi no âmbito da jurisprudência que se construiu alguns parâmetros mínimos sobre o tema, não de forma exaustiva, mas que orienta, de certa forma, como deve ser observado e respeitado os direitos fundamentais que possuem relação ao tema.
Desta forma, é no Supremo Tribunal Federal, que buscou-se a fonte que compreensão acerca dos direitos fundamentais, em especial o direito à vida e sua relação direta com o aborto à luz de sua (in)constitucionalidade.
Antes, portanto, de adentrar a análise dos julgados especificamente é pertinente analisar que a questão se encontra dentro os demais em que o tribunal constitucional exerce a função de ativismo judicial contramajoritário.
O termo ativismo judicial, conforme a doutrina, é caracterizado quando há uma participação de forma mais intensa do judiciário na concretização de valores e direitos previstos nas normas constitucionais.
Essa postura do poder judiciário ocorre quando o poder executivo e legislativo, que seriam os titulares primários para a função, por vezes, não correspondem as perspectivas da população como todo (quando o ativismo é majoritário), mas também se dá quando busca atender os próprios valores definidos na constituição (no ativismo contramajoritário).
Os julgados que passarão a ser analisados refletem bem essa ideia. Ao declarar a inconstitucionalidade de um ato ou impor condutas aos demais poderes está, o Supremo Tribunal Federal, impondo a maioria o que não necessariamente reflete o desejo e a crença dessa mesma maioria.
O caráter contramajoritário das cortes constitucionais é fundamentado pela doutrina, tendo como parâmetro o período pós segunda guerra mundial. Nesse período, houve a prática de grandes atrocidades por governantes de forma legítima, em termos de notação, tendo assim, as constituições modernas atribuído as cortes constitucionais a tarefa de ponderar os interesses das minorias, quando estas se mostrarem compatíveis com a constituição, mesmo em desfavor do interesse na maioria (SARMENTO, 2009).
Desta forma, a função seria de defender os direitos fundamentais e a reserva de justiça de uma comunidade política, insuscetíveis de serem derrubados por deliberação majoritária e a proteção das regras do jogo democrático e dos canais de participação política de todos, inclusive da maioria derrotada (BARROSO, 2015).
Assim iremos analisar o julgamento da ADI 3510 que tratou da Lei de Biossegurança. Também será objeto de estudo a ADPF 54, que julgou a interrupção da gestação de feto anencefálico. Também merece atenção, tendo uma grande relevância no direito penal, a ADPF 442 que tratou da descriminalização do aborto nas doze primeiras semanas de vida.
O primeiro julgado paradigma merece análise, por sua relevância, a ADI Nº 3.510 do Distrito Federal, teve como objeto a Lei 11.105/05, Lei de Biossegurança, especificamente o seu artigo 5º.[2]
A legislação em análise, surge devido aos avanços tecnológicos de engenharia genética, em especial, as pesquisas com células-troncos embrionárias, trazendo para o cenário a discussão acerca da constitucionalidade da manipulação dessas células e por conseguinte o momento em que a vida teria seu início.
Houve, nesse diapasão, a primeira audiência pública no âmbito do Supremo Tribunal Federal, com a presença de grandes representantes da sociedade civil, dentre os quais, Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos (CDH), Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS), Movimento em Prol da Vida (MOVITAE) e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Na ocasião, a maioria dos ministros, ao proferirem seus votos, abordaram as teorias acerca do início da vida humana de forma não exaustiva. Nas palavras do relator:
No que concerne à utilização de argumentos científicos como forma de fundamentar decisões judiciais, é possível conferir no caso em estudo a preferência pelas teorias científicas sobre outras formas de conhecimento humano, malgrado tenha se constatado que a ciência é por si só incapaz de definir com precisão um marco para o início da vida humana. Logo, não se defende a posição de que a ciência seja excluída da apreciação do STF nos casos pertinentes, mas simplesmente que não se converta no único critério utilizado para uma decisão acertada. Dentre as teorias apresentadas pelos cientistas, infere-se que aquela que foi defendida por mais vezes pelos ministros condiciona a implantação do embrião no útero materno para que a vida humana tenha início, qual seja a teoria da nidação. Cabe aqui frisar novamente que esta e todas as outras teorias são aceitas da mesma forma pela biologia e pela medicina. Assim, questiona-se por qual motivo essa foi justamente a preferida dos ministros. Talvez porque ela possa coexistir sem empecilhos com as pesquisas com células-tronco embrionárias, já que não implicaria na morte de seres humanos, visto que para a teoria da nidação ainda não existiria vida nos embriões crioconservados. (PRESGRAVE, 2018)
O Supremo Tribunal Federal, julgou improcedente a ação, autorizando, desta forma, a pesquisa e terapia com o uso de células-tronco embrionárias, sob fundamento de que tais manipulações não afrontam o direito à vida, nem tampouco os demais princípios constitucionais, em especial a dignidade da vida humana. (PRESGRAVE, 2018).
O segundo julgado objeto de análise, pela relevância com o tema, é a ADPF Nº 54 do Distrito Federal, que pleiteou no mérito a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, nomeadamente nos casos de antecipação terapêutica do parto na hipótese de gravidez de feto anencefálico, previamente diagnosticada.
Fazendo uma breve síntese dos argumentos trazidos em audiência no Supremo Tribunal Federal, apontou-se favoravelmente que atualmente a ciência possui meios eficazes de diagnóstico da viabilidade humana, além de invocar a ilegitimidade da imposição coletiva de uma determinada doutrina moral ou religiosa além dos impactos mentais causados por uma gravidez de feto inconciliável com a vida.
Por outro lado, foi defendido em sentido oposto, que seria impossível ofertar, no atual estágio da ciência, uma certeza absoluta sobre o diagnóstico preciso de morte encefálica, além do fato de que que a autorização precoce do parto do anencefálico pode desencadear uma majoração de interrupções de gestação por motivos de eugenia. (PIRES, 2013).
Dados demonstram que:
Entre 2001 e 2006, os tribunais de Justiça do País receberam 46 pedidos de interrupção da gravidez de anencéfalos. Em 54% dos casos, a decisão foi favorável à mulher, permitindo o procedimento. Em outros 35% o pedido foi negado. Nas demandas restantes, o tempo para decisão foi tão longo que o feto morreu antes. Os dados são de estudo inédito realizado pelo Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva (Prosare), ligado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Atualmente, nos países da América do Norte, Europa e parte da Ásia é permitido o aborto em todos os casos de malformações incompatíveis com a vida. Desde 2003, a Argentina tem lei semelhante. A proibição permanece em países muçulmanos, em parte da África e da América Latina, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde ((PRESGRAVE, 2018).
Assim o Supremo Tribunal Federal, por maioria, declarou a inconstitucionalidade da interrupção da gestação do feto anencefálico como conduta tipificada no código penal, homenageando a liberdade sexual e reprodutiva da mulher, a dignidade humana e a autodeterminação.
Nesse julgado, a corte constitucional não afastou o direito do feto à vida e ao desenvolvimento, mas quando impedido de se desenvolver devido a características biológicas que não condizem com a vida prevalece o direito da gestante de escolher continuar com a gestação ou não.
Por fim, o último julgado a ser analisado, a ADPF Nº 442 do Distrito Federal, movida pelo Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL, que requereu a não recepção parcial dos arts. 124 e 126 do Código Penal, afastando sua aplicação quando a interrupção da gravidez tive ocorrido até a décima segunda semana de gestação, utilizando como fundamento criminalizar o aborto nessas circunstâncias, ferindo os direitos fundamentais das mulheres, pleiteando o reconhecimento do direito constitucional de interrupção da gestação e sua autonomia familiar.
Ainda não houve julgamento do mérito, estando o processo em fase de habilitação para discussão sobre a temática e posterior conclusão para relatório.
Conclusão
O presente trabalho analisou o direito ao aborto e sua constitucionalidade tomando como parâmetro os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, no intuito de responder se a pratica abortiva possui coerência com a ordem constitucional atual.
Em uma análise evolutiva do do posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, quando dos julgamentos da ADI 3510, ADPF 54 e a ADPF 442, pode-se concluir que a criminalização do aborto antes do início das atividades cerebrais viola, em primeiro lugar, a autonomia da mulher, que obedece ao núcleo essencial da liberdade individual, resguardada pelo princípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CF/88).
Ignorar essa realidade é aceitar que a população, em especial aquelas que não possuem estrutura financeira e social, se veja forçada, por vezes, a se submeter a tratamentos precários, que partem da ingestão de substâncias venenosas até mesmo a introdução de objetos no útero da mulher.
A mulher goza de autonomia e autodeterminação em relação ao seu corpo e essa decisão deve ser lida a luz dos direitos fundamentais, sendo constitucional a liberdade em determinar o abordo no período em que a vida intrauterina não se determina por si só.
Se antes do início das atividades cerebrais não há efetiva vida humana, conforme a teoria supracitada, impor a mulher a manutenção da gestação em período anterior aos três meses de vida constitui também violação aos direitos de liberdade em sua autodeterminação e planejamento familiar, seu direito à saúde enquanto preservação de seu bem estar físico e mental, e em última análise afronta a sua própria dignidade humana
Referências
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
PIRES, Teresinha Inês Teles. Uma abordagem interpretativa dos fundamentos jurídicos do julgamento da ADPF 54: dignidade humana, liberdade individual e direito à saúde. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, 2013.
PRESGRAVE, Ana Beatriz Ferreira Rebello; CAMPOS, Daniela Vaz. A Abertura Democrática do Supremo Tribunal Federal: A Influência da Audiência Pública no Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 3510. Disponível em:<https://www.oabrn.org.br/downloads/revista/rev_parlatorio_nov2017_WEB.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2019.
SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e Constituição. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43619/44696>. Acesso em: 04 jul. 2019.
________, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e Possibilidades. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009
[1] Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento.pdf>
[2] Art. 5º. É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.
Pós-graduado em Direito Constitucional, Direito Penal e Direito Processual Penal pela FACULDADE ÚNICA. Pós-Graduado em Segurança Pública e Cidadania pela ASCES. Servidor Público do Tribunal Regional do Trabalho .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, DIMAIKON DELLON SILVA DO. Análise evolutiva da jurisprudência do STF acerca do direito ao aborto e sua (in)constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 nov 2023, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63705/anlise-evolutiva-da-jurisprudncia-do-stf-acerca-do-direito-ao-aborto-e-sua-in-constitucionalidade. Acesso em: 21 nov 2024.
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